PARTE I. O conceito de qualidade de vida e o Projeto WHOQOL



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Transcrição:

PARTE I O conceito de qualidade de vida e o Projeto WHOQOL

1 Problemas conceituais em qualidade de vida Marcelo Pio de Almeida Fleck O progresso da medicina trouxe, entre outras conseqüências, um marcado prolongamento na expectativa de vida durante o último século. Assim, algumas doenças que eram letais (p. ex., infecções) passaram a ser curáveis. No entanto, para a maioria das doenças, a medicina moderna dispõe de tratamentos que não curam, mas permitem um controle de seus sintomas ou um retardo de seu curso natural. Com isso, há um prolongamento da vida à custa de um convívio com uma forma abrandada ou assintomática das doenças. Passou, então, a ser de grande importância dispor de maneiras de mensurar a forma como as pessoas vivem esses anos a mais. A introdução do conceito de qualidade de vida como medida de desfecho em saúde surgiu nesse contexto, a partir da década de 1970. Podemos citar pelo menos seis grandes vertentes que convergiram para o desenvolvimento do conceito: Estudos de base epidemiológica sobre a felicidade e o bem-estar. Nos países desenvolvidos, a eliminação da miséria passou a ser um objetivo insuficiente diante das demandas de sociedades cada vez mais ricas e com objetivos mais amplos. A criação de oportunidades em vários níveis passou a ser também uma exigência de cidadãos cada vez mais conscientes de seus direitos e deveres. Gurin e colaboradores (1960) realizaram uma enquete para avaliar a saúde mental nos Estados Unidos, cujo objetivo era pesquisar como [as pessoas] se sentiam com elas mesmas, seus medos e ansiedades, seus pontos fortes e seus recursos, os problemas que enfrentam e as formas que têm para lidar com esses problemas. Na década de 1970, Campbell e colaboradores (1976) propuseram-se a realizar um estudo para monitorar a qualidade da vida dos norte-americanos e fizeram um amplo estudo das condições objetivas e subjetivas da população americana. Eles constataram, entre outros tantos achados, que essa relação está longe de ser linear. Busca de indicadores sociais. A partir do início do século XX, houve uma crescente busca de indicadores de riqueza e de desenvolvimento, como o Produto Interno Bruto, a renda per capita e o Índice de Mortalidade Infantil. Mais recentemente, medidas de alta complexidade, como o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento,

20 Marcelo Pio de Almeida Fleck & cols. procuram incluir aspectos de natureza social e cultural (como indicadores de saúde e educação) às tradicionais medidas econômicas. Insuficiência das medidas objetivas de desfecho em saúde. As medidas tradicionais de desfecho em saúde baseadas em exames laboratoriais e na avaliação clínica são de inegável importância. No entanto, avaliam muito mais a doença do que o doente e são particularmente insuficientes para a avaliação do desfecho em doenças crônicas, em que o objetivo do tratamento não é a cura, mas sim a redução do impacto da doença nas diferentes áreas da vida do paciente. Além disso, já é bem sabido que a utilização de serviços de saúde está mais associada a como as pessoas percebem seu estado de saúde do que a seu estado de saúde objetivo. Medidas de desfecho baseadas na percepção do doente (PRO; patient report outcomes) incluem não só a qualidade de vida, mas também a disfunção, a interação e o apoio social, bem como o bem-estar psicológico, entre outros indicadores. Psicologia positiva. Nas últimas décadas, tem havido uma tendência para o desenvolvimento da pesquisa dos aspectos positivos da experiência humana. O foco exclusivo na doença, que sempre dominou a pesquisa na área da saúde, vem cedendo espaço ao estudo das características adaptativas, como resiliência, esperança, sabedoria, criatividade, coragem e espiritualidade. A pesquisa em qualidade de vida está em sintonia com o interesse em estudar variáveis positivas da vida humana (Seligman; Csikszentmihalyi, 2000). Satisfação do cliente. A preocupação com o grau de satisfação do usuário com os serviços oferecidos é uma tendência que cresceu muito no final do século XX em todas as esferas. As empresas desenvolveram serviços de atendimento ao consumidor, e pesquisas de grau de satisfação com os produtos tornaram-se fundamentais no planejamento estratégico de várias empresas. Esse movimento estendeu-se à área da saúde, e preocupar-se com a qualidade de vida dos usuários passou a ser um objetivo central dos muitos serviços que têm uma visão integrada de atendimento. Movimento de humanização da medicina. Um importante contraponto ao movimento de crescente sofisticação tecnológica da medicina foi a constatação da necessidade de reumanização do atendimento. A preocupação em recolocar a relação médico-paciente como a grande responsável pelo sucesso das intervenções na área da saúde criou a necessidade de desenvolver parâmetros de avaliação que levem em conta esse fenômeno. A última década presenciou o crescimento exponencial da produção científica sobre qualidade de vida. Mesmo que questões conceituais e psicométricas importantes ainda não tenham sido resolvidas, esse crescimento demonstra o interesse e a pujança da pesquisa na área. O objetivo deste capítulo é o de revisar alguns dos principais problemas conceituais em qualidade de vida.

A avaliação de qualidade de vida 21 CONCEITOS AFINS A introdução do conceito de qualidade de vida na área da saúde encontrou outros construtos presentes afins, os quais tiveram um desenvolvimento independente e cujos limites não são claros, apresentando várias intersecções. Alguns são distorcidos por uma visão eminentemente biológica e funcional, como status de saúde, status funcional e incapacidade/deficiência; outros são eminentemente sociais e psicológicos, como bem-estar, satisfação e felicidade. Um terceiro grupo é de origem econômica, baseando-se na teoria da preferência (utility). A qualidade de vida apresenta intersecções com vários desses conceitos, mas seu aspecto mais genérico (a saúde é apenas um de seus domínios) tem sido apontado como o seu grande diferencial e sua particular importância. O status de saúde pode ser definido como o nível de saúde de um indivíduo, grupo ou população avaliado de forma subjetiva pelo indivíduo ou através de medidas mais objetivas (Medical Subject Headings PUBMED, 2005). Ao utilizarmos conceitos amplos de saúde, como o da OMS, em que saúde é um status de completo bemestar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença ou enfermidade (OMS, 1946), as medidas de status de saúde passam a ter muitos pontos de intersecção com as de qualidade de vida. Gill e Feinstein (1994) diferenciam qualidade de vida de status de saúde ao afirmarem que qualidade de vida, ao invés de ser uma descrição do status de saúde, é um reflexo da maneira como o paciente percebe e reage ao seu status de saúde e a outros aspectos não médicos de sua vida. O status funcional pode ser definido como o grau em que um indivíduo é capaz de desempenhar seus papéis sociais livre de limitações físicas ou mentais (Bowling, 1997). A Organização Mundial da Saúde, por meio da International Classification of Impairments, Disabilities and Handicaps, traduzida para o português como Classificação Internacional das Deficiências, Incapacidades e Desvantagens (Farias; Buchalla, 2005), definiu os termos deficiência (impairment), incapacidade (disability) e desvantagem (handicap) de forma a uni-los conceitualmente. Deficiência refere-se a perda ou anormalidade psicológica, fisiológica ou anatômica de uma estrutura ou função; incapacidade é qualquer restrição ou dificuldade de desempenhar uma função decorrente de uma deficiência, e desvantagem é uma medida da conseqüência social da deficiência ou da incapacidade. Assim, uma pessoa com cegueira tem uma deficiência no sentido da visão, tem como incapacidade a dificuldade de enxergar e como desvantagem uma dificuldade de orientação espacial (entre outras). Uma crítica a esse modelo foi a falta de relação entre as dimensões que o compõe e a falta de abordagem de aspectos sociais e ambientais, entre outras (Farias; Buchalla, 2005). A partir de 2001, uma nova versão dessa classificação foi oficializada pela OMS: a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, em que aspectos positivos (funcionalidade) e negativos (incapacidade) são considerados em relação a três dimensões diferentes: 1. Uma dimensão biológica (integridade funcional e estrutural), com implicações na atividade versus limitação da atividade.

22 Marcelo Pio de Almeida Fleck & cols. 2. Uma dimensão social (participação), com implicações na capacidade de participação versus restrição da participação. 3. Uma dimensão contextual ambiental, que inclui a presença e a disponibilidade de elementos facilitadores versus barreiras. Embora o status funcional tenha um impacto na qualidade de vida, os conceitos não são sinônimos: um mesmo nível de incapacidade ou de status funcional pode coexistir com vários status existenciais, do desespero à tranqüilidade (Hunt, 1997). O termo qualidade de vida relacionada à saúde (Health Related Quality of Life HRQOL) tem sido utilizado como um conceito guarda-chuva que abriga um conjunto de instrumentos desenvolvidos a partir de uma perspectiva funcionalista. Patrick e colaboradores (1973) definiram HRQOL como a capacidade de um indivíduo de desempenhar as atividades da vida diária, considerando sua idade e papel social. O desvio dessa normalidade resultaria em menor qualidade de vida. Posteriormente, Patrick e Erikson (1993) revisaram sua definição, considerando HRQOL como o valor atribuído à duração da vida modificado por lesões, estados funcionais, percepções e oportunidades sociais que são influenciadas pela doença, dano, tratamento ou públicas. Kaplan e colaboradores (1989) definem HRQOL como o impacto do tratamento e da doença na incapacitação e no funcionamento diário. Felicidade é outro conceito próximo à qualidade de vida e também de difícil definição. Na definição clássica de Bradburn (citado por Campbell et al., 1976), é o produto entre a presença de sentimentos positivos e a ausência de sentimentos negativos. Já a satisfação tem tido uma considerável base teórica. O nível de satisfação é definido pela discrepância percebida entre as aspirações e as conquistas, variando desde a percepção de preenchimento até a de privação (Campbell et al., 1976). Dessa forma, a satisfação implica um julgamento e uma experiência cognitiva, enquanto a felicidade é uma experiência fundamentalmente afetiva. Para ilustrar a diferença, Campbell e colaboradores (1976) lembram que o contrário de felicidade é tristeza e o de satisfação é frustração. Bem-estar subjetivo é uma medida que combina a presença de emoções positivas e a ausência de emoções negativas com um senso geral de satisfação com a vida (Diener, 1984). Sua proximidade com o conceito de qualidade de vida é evidente. Kanheman, Diener e Schwartz (1999) sugerem que, diferentemente do bem-estar subjetivo, a avaliação de qualidade de vida deve estar, necessariamente, imersa no contexto social e cultural tanto do sujeito como do avaliador, não podendo ser reduzida a um equilíbiro entre prazer e dor. Os conceitos acima descritos são usados muitas vezes na literatura de forma implícita ou explícita como sinônimos. Segundo Patrick (2003): qualidade de vida é mais abrangente que status de saúde e inclui aspectos do meio ambiente que podem ou não ser afetados pela saúde. Status funcional refere-se, habitualmente, à limitação no desempenho de papéis sociais ou em atividades.

A avaliação de qualidade de vida 23 As medidas de bem-estar referem-se a percepções subjetivas, incluindo relatos de sensações prazerosas ou desprazerosas e avaliações globais de saúde ou de estado subjetivo. Outro conceito afim, derivado dos modelos de preferência (utility) da área da economia de saúde, é o de QALY (quality-adjusted life years). O QALY é uma tentativa de combinar uma estimativa de duração com qualidade de vida. Duas estratégias são clássicas nas medidas de preferência: a escolha pela probabilidade (standard gamble) e a escolha pelo tempo (time trade off). No primeiro caso, o indivíduo é perguntado sobre o quanto ele estaria disposto a se arriscar para se ver livre da doença, sabendo que o procedimento em questão levaria a dois desfechos extremos possíveis: morte ou cura. No segundo caso, o indivíduo é solicitado a escolher o quanto de tempo ele abriria mão de vida para poder viver os anos sem a doença. Enquanto a maioria das medidas de qualidade de vida avaliam estados de saúde, as medidas de preferência avaliam o valor que os indivíduos dão aos diferentes estados (Wilson; Cleary, 1995). MODELOS TEÓRICOS DE QUALIDADE DE VIDA Existem vários modelos teóricos subjacentes ao conceito de qualidade de vida, e alguns autores listaram esses modelos. Hunt (1997), por exemplo, cita os seguintes: 1. resposta emocional às circunstâncias; 2. impacto da doença nos domínios emocional, ocupacional e familiar; 3. bem-estar pessoal; 4. habilidade de uma pessoa em realizar suas necessidades; 5. modelo cognitivo individual. A mesma autora destaca que apenas os últimos dois (satisfação das necessidades e cognitivo individual), a partir de uma reflexão teórica e empírica, vêm a ser instrumentos consistentes. Já McKenna e Whalley (1998) identificam duas abordagens para medir a qualidade de vida: 1. a funcionalista 2. a baseada nas necessidades (needs-based) Reunindo as idéias desses autores, é possível agrupar os modelos teóricos de qualidade de vida em dois grandes grupos: 1. o modelo da satisfação 2. o modelo funcionalista

24 Marcelo Pio de Almeida Fleck & cols. O modelo da satisfação O modelo da satisfação foi desenvolvido a partir de abordagens sociológicas e psicológicas de felicidade e bem-estar (Diener, 1984). Com base nele, a qualidade de vida está diretamente relacionada à satisfação com os vários domínios da vida definidos como importantes pelo próprio indivíduo. O senso de satisfação é uma experiência muito subjetiva (Campbell et al., 1976) e está bastante associado ao nível de expectativa. Assim, um indivíduo pode estar satisfeito com níveis diferentes de aquisições. Calman (1984) sintetizou esses aspectos ao definir a qualidade de vida como o hiato entre expectativas e realizações. Uma decorrência dessa relação é que o indivíduo pode atingir um bom nível de qualidade de vida buscando um aumento de suas realizações ou uma diminuição de suas expectativas. Aquele que se volta para a busca da realização sente a satisfação com o sucesso. De forma alternativa, o que reduziu suas expectativas experimenta a satisfação da resignação. Ambos estão satisfeitos, embora, qualitativamente, as experiências do sucesso e da resignação sejam afetivamente bastante diferentes (Cambpell et al., 1976). Além disso, existem circunstâncias para as quais a única estratégia possível a ser satisfeita é, de fato, a resignação. Provavelmente, também a estrutura de personalidade e a cultura em que o indivíduo está imerso sejam determinantes importantes na decisão de aumentar as realizações ou diminuir as expectativas. Duas contribuições importantes ao modelo teórico da satisfação podem ser observadas na literatura e dizem respeito aos aspectos com os quais o indivíduo deveria estar satisfeito para ter uma boa qualidade de vida. A primeira contribuição advém originalmente das idéias de Thomas More (1994) e de Maslow (1954) sobre a presença de necessidades básicas do ser humano que precisam ser preenchidas para que este possa se sentir bem. Essas necessidades incluiriam, por exemplo, saúde, mobilidade, nutrição e abrigo. O modelo, ao considerar que existem necessidades básicas universais, respalda a idéia de que é possível desenvolver um instrumento de qualidade de vida com uma perspectiva transcultural. Uma segunda contribuição, chamada abordagem cognitiva individual, considera que a qualidade de vida é uma percepção idiossincrática e que, portanto, só pode ser medida individualmente. Serve como base teórica dos instrumentos SEIQOL (Self Evaluation Instrument for Quality of Life) e pondera o escore marcado no domínio com a importância atribuída a este mesmo domínio pelo respondente. O modelo funcionalista Este modelo considera que, para ter uma boa qualidade de vida, o indivíduo precisa estar funcionando bem, isto é, desempenhando de forma satisfatória seu papel social e as funções que valoriza. Assim, a doença torna-se um problema na medida em que interfere no desempenho desses papéis e, implicitamente, a saúde é considerada o maior valor da existência (McKenna; Whalley, 1998). O termo qualidade de vida relacionada à saúde (health-related quality of life) serviu para agrupar vários instrumentos de base teórica funcionalista.

A avaliação de qualidade de vida 25 Existem críticas ao modelo funcionalista, e é questionável se o modelo funcionalista é, de fato, adequado para avaliar a qualidade de vida. Por exemplo, Albrecht e Devlieger (1999) chamam a atenção para o paradoxo da deficiência. Utilizando a metodologia qualitativa, os autores demonstraram que indivíduos com deficiências graves e persistentes podem relatar boa ou excelente qualidade de vida, mesmo quando a maioria dos observadores externos qualificaria sua existência como indesejável. Para alguns indivíduos, a deficiência parece ter servido para reorientar a vida. Nessa situação, a percepção de uma boa qualidade de vida adviria do fato de esses indivíduos estarem convivendo de forma satisfatória com as limitações impostas pela deficiência. O CONCEITO DE QUALIDADE DE VIDA Apesar de haver um consenso sobre a importância de avaliar a qualidade de vida, seu conceito ainda é um campo de debate. Alguns autores reconhecem a complexidade e a impossibilidade de conceituar de forma adequada a qualidade de vida, tratando-a como uma variável emergente (Gladis et al., 1999), da mesma forma que construtos como traços de personalidade ou emoções. Para esse tipo de construto, os psicólogos preferem atribuir características ou indicadores que não merecem o status de definição. Dessa forma, a existência de diferentes definições decorreria, na verdade, justamente do peso dado a cada uma dessas características ou indicadores. A ausência de consenso a respeito de um conceito em um campo novo de conhecimento é algo comum e perfeitamente compreensível, embora crie problemas por vezes insolúveis. O que é único nessa área de pesquisa é que os instrumentos que se propõem a avaliar a qualidade de vida se multiplicam exponencialmente, trazendo uma avalanche de dados e, por vezes, influenciando políticas de saúde, sem, no entanto, saber-se ao certo o que, de fato, estão medindo. Sem uma base conceitual clara não há como correlacionar o que está sendo medido com o que deveria estar sendo medido (Hunt, 1997). Nesse sentido, a definição proposta pelo Organização Mundial da Saúde é a que melhor traduz a abrangência do construto qualidade de vida. O Grupo WHOQOL definiu qualidade de vida como a percepção do indivíduo de sua posição na vida, no contexto de sua cultura e no sistema de valores em que vive e em relação a suas expectativas, seus padrões e suas preocupações. Ele considera o conceito de qualidade de vida como um conceito bastante amplo, que incorpora, de forma complexa, a saúde física, o estado psicológico, o nível de independência, as relações sociais, as crenças pessoais e a relação com aspectos significativos do meio ambiente (The WHOQOL Group, 1995). Três aspectos fundamentais sobre o construto qualidade de vida estão implícitos nesse conceito do Grupo WHOQOL: 1. Subjetividade, isto é, a perspectiva do indivíduo é o que está em questão. A realidade objetiva só conta na medida em que é percebida pelo indivíduo.

26 Marcelo Pio de Almeida Fleck & cols. 2. Multidimensionalidade, isto é, a qualidade de vida é composta por várias dimensões. Este aspecto tem uma conseqüência métrica importante, a de que não é desejável que um instrumento que mensure a qualidade de vida venha a ter um único escore, mas sim que a sua medida seja feita por meio de escores em vários domínios (p. ex., físico, mental, social, etc.). 3. Presença de dimensões positivas e negativas. Assim, para uma boa qualidade de vida, é necessário que alguns elementos estejam presentes (p. ex., mobilidade) e outros ausentes (p. ex., dor) (Fleck et al., 1999). Calman (1987) fez contribuições importantes para tornar o conceito de qualidade de vida mais claro. Ele considera que uma boa qualidade de vida está presente quando as esperanças e as expectativas de um indivíduo são satisfeitas pela experiência. Essas expectativas são modificadas pela idade e pela experiência. Para esse autor, a definição de qualidade de vida tem algumas implicações: 1. Só pode ser descrita pelo próprio indivíduo. 2. Precisa levar em conta vários aspectos da vida. 3. Está relacionada aos objetivos e às metas de cada indivíduo. 4. A melhora está relacionada à capacidade de identificar e de atingir esses objetivos. 5. A doença e seu respectivo tratamento podem modificar esses objetivos. 6. Os objetivos necessariamente precisam ser realistas, já que o indivíduo precisa manter a esperança de poder atingi-los. 7. A ação é necessária para diminuir o hiato entre a realização dos objetivos e as expectativas, quer pela realização dos objetivos, quer pela redução das expectativas. Essa ação pode se dar através do crescimento pessoal ou da ajuda dos outros. 8. O hiato entre as expectativas e a realidade pode ser, justamente, a força motora de alguns indivíduos. CONSIDERAÇÕES FINAIS A introdução do conceito de qualidade de vida foi uma importante contribuição para as medidas de desfecho em saúde. Por sua natureza abrangente e por estar estreitamente ligado àquilo que o próprio indivíduo sente e percebe, tem um valor intrínseco e intuitivo. Está intimamente relacionado a um dos anseios básicos do ser humano, que é o de viver bem e de sentir-se bem. Definir a qualidade de vida ou seus conceitos mais próximos (felicidade e bem-estar) é uma preocupação antiga (Aristóteles, 2003). No entanto, a busca da operacionalização desse construto e do desenvolvimento de instrumentos capazes de medi-lo vem exigindo empenho considerável em vários níveis: conceitual, metodológico, psicométrico e estatístico. Assim, um efeito secundário mas não menos importante advém dessa busca: um importante avanço em novas tecnologias de desenvolvimento de instrumentos, aprimoramento dos modelos teóricos para con-

A avaliação de qualidade de vida 27 templar a complexidade desse construto, além da consciência de que os aspectos sociais e transculturais são extremamentes relevantes e precisam ser incorporados. Frente a esses desafios, talvez como em poucos campos do conhecimento, as metodologias qualitativa e quantitativa têm sido aliadas importantes para medir o que Fallowfield (1990) definiu como a medida que faltava na área da saúde. REFERÊNCIAS ALBRECHT, G. L.; DEVLIEGER, P. J. The disability paradox: high quality of life against all odds. Social Science and Medicine, v.48, n.8, p. 977-88, 1999. ARISTÓTELES. A ética. São Paulo: Edipro, 2003. BOWLING, A. Measuring health. Filadélfia: Open University Press, 1997. CALMAN, K. C. Definitions and dimensions of qualiy of life. In: AARONSON, N. K., BECKMANN, J. The quality of life of cancer patients. Nova York: Raven Press, 1987. CALMAN, K. C. Quality of life in cancer patients: an hypothesis. Journal of Medical Ethics, v. 10, n.3, p. 124-177, 1984. CAMPBELL, A.; CONVERSE, P. E; RODGERS W. L. The quality of american life: perceptions, evaluations and satisfactions. Nova York: Russel Sage Foundation, 1976. DIENER, E. Subjective well-being. Pyschological Bulletin, v. 95, n. 3, p. 542-575, 1984. FALLOWFIELD, L. Quality of life: the missing measure in health care. Nova York: Souvenir Press, 1990. FARIAS, N.; BUCHALLA, C. M. A classificação internacional de funcionalidade, incapacidade e saúde da organização mundial da saúde: conceitos, usos e perspectivas. Revista. Brasileira de Epidemiologia, v. 8, n. 2, p. 187-193, 2005. FLECK, M. P.; LEAL, O. F.; LOUZADA, S.; et al. Development of the Portuguese version of the OMS evaluation instrument of quality of life. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 21, n. 1, p. 19-28, 1999. GILL, T. M.; FEINSTEIN, A. R. A critical appraisal of the quality of quality-of-life measurements. JAMA, v. 272, n. 8, p. 619-26, 1994. GLADIS, M. M.; GOSCH, E. A.; DISHUK, N. M.; et al. Quality of life: expanding the scope of clinical significance. Journal of Consultant and Clinical Psychology, v. 67, n. 3, p. 320-331, 1999. GURIN, G.; VEROFF, J.; FELD, S. Americans view their mental health. Nova York: Basic Books, 1960. HUNT S. M. The problem of quality of life. Quality of Life Research, v. 6, n. 3, p. 205-212, 1997. KANHEMAN, D.; DIENER, E.; SCHWARZ, N. Preface. In: KANHEMAN, D.; DIENER, E.; SCHWARZ, N. Well-being: the foundations of the hedonic psychology. Nova York: The Russel Sage Foundation, 1999. KAPLAN R, M.; ANDERSON, J. P.; WU, A. W.; et al. The Quality of Well-being Scale. Applications in AIDS, cystic fibrosis, and arthritis. Medical Care, v. 27, n. 3, p. S27-43, 1989. MASLOW, A. H. Motivatyion and Personality. Nova York: Harper & Row, 1954. McKENNA, S. P.; WHALLEY, D. Can quality of life scales tell us when patients begin to feel benefits of antidepressants? European Psychiatry, v. 13, n. 146-153, 1998.

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