Fundamentos e instrumentos à ampliação da proteção às áreas especiais referentes aos direitos à moradia e ao meio ambiente: notas introdutórias 1



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Transcrição:

Fundamentos e instrumentos à ampliação da proteção às áreas especiais referentes aos direitos à moradia e ao meio ambiente: notas introdutórias 1 RESUMO Marise Costa de Souza Duarte 2 Maria Dulce P. Bentes Sobrinha 3 O trabalho busca introduzir idéias quanto à criação de mecanismos de proteção das áreas de interesse social e ambiental no Município de Natal. A partir da experiência de revisão do Plano Diretor de Natal (período 2004-2007), constatou-se a elevada vulnerabilidade a que essas áreas especiais (já protegidas legalmente desde o Plano Diretor de 1994) estavam sujeitas. Identificou-se que as pressões econômicas e políticas, principalmente no âmbito do Legislativo, representavam bem mais um campo de ameaças às conquistas sociais efetivadas do que de consolidação e ampliação da proteção desses espaços. Diante desse quadro e considerando o patamar de proteção jurídica conquistada a partir das lutas sociais, com marco na Constituição Federal de 1998, pontuamos alguns fundamentos e instrumentos na linha de ampliação da proteção dessas áreas, pela função social e ambiental que exercem. INTRODUÇÃO As cidades brasileiras, notadamente aquelas situadas em regiões litorâneas, vivem um momento de grande expansão do turismo imobiliário, verificando-se intensas pressões sobre áreas especiais protegidas 4, notadamente aquelas que abrigam os recursos ambientais e as áreas de moradia de interesse social. Isso significa ameaças à proteção de direitos hoje considerados fundamentais em nosso ordenamento. Não é por acaso que isso ocorre já que a produção do espaço urbano não se dá de forma neutra, mas é resultante de um processo histórico no qual se expressam as forças de poder existentes em um espaço e tempo determinados, em especial, o modo de 1 As idéias contidas neste artigo fazem parte da tese de doutorado Ampliação dos instrumentos de proteção das áreas especiais estabelecidas no Plano Diretor de Natal de 2007 a partir dos direitos à moradia e ao meio ambiente em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 2 Doutoranda em Urbanismo, Mestre em Direito Público e Especialista em Serviço Social, todos pela UFRN; Procuradora do Município de Natal/RN, Professora do Curso de Especialização em Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Universidade Potiguar UNP e do Curso de Especialização em Meio Ambiente e Gestão Urbana do Departamento em Geografia da UFRN. 3 Arquiteta e Urbanista, Doutora em Estruturas Ambientais Urbanas FAUUSP. Docente do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/ PPGAU/UFRN. 4 Como as áreas especiais de interesse social, as áreas de proteção ambiental, as áreas de controle de gabarito e de interesse paisagístico, dentre outras.

produção que se encontra na base econômica da sociedade 5. No atual estágio do capitalismo globalizado o desenvolvimento imobiliário urbano se torna motor central da expansão econômica das cidades, o solo urbano, meio privilegiado para valorização do capital privado 6, e as áreas frágeis, como as destinadas a resguardar recursos ambientais e os interesses das camadas de baixa renda, ficam cada vez mais vulneráveis. Inserida nessa dinâmica, a cidade de Natal apresenta um crescimento urbano expressivo a partir da década de 1990, quando ocorre a implementação do Projeto Parque das Dunas/Via Costeira, considerado um marco nos conflitos entre proteção ambiental, direitos sociais de moradia e grandes empreendimentos de infra- estrutura urbana ligados ao desenvolvimento do turismo em Natal. A partir de 2000, as ações do Programa de Desenvolvimento Turístico do Nordeste PRODETUR contribuíram para a expansão do capital turístico imobiliário, com ampliação e redefinição das pressões sobre o ambiente e as áreas de vulnerabilidade social. Num contexto em que a cidade de Natal conta com reduzidas áreas na faixa litorânea em porte adequado para a implantação de grandes empreendimentos imobiliários, a revisão do Plano Diretor de Natal (2004-2007) foi marcada pela forte pressão sobre as áreas protegidas, em processos que buscaram a desconstrução das leis que amparam as áreas especiais de interesse social e ambiental no Plano Diretor de Natal, pelo menos desde 1994. Embora a revisão do Plano Diretor (Lei Complementar nº82/2007) tenha se pautado pela participação social, abrangendo diversos formatos de discussão pública (grupos temáticos, conferência, conselhos, audiências públicas), foi no processo legislativo onde se verificaram as mais sérias ameaças às conquistas sociais e ambientais já efetivadas. A partir dessa experiência, constatou-se a necessidade de estudos sobre as possibilidades de aprofundamento dos instrumentos de proteção às áreas de interesse social e ambiental, que neste trabalho coloca-se de forma introdutória, pontuando alguns fundamentos e instrumentos na linha de ampliação e proteção dessas importantes áreas. FUNDAMENTOS E INSTRUMENTOS EM DIREÇÃO À AMPLIAÇÃO DOS ESPAÇOS URBANOS PROTEGIDOS EM FAVOR DO DIREITO DE MORADIA E AO MEIO AMBIENTE SADIO Partindo da Carta Magna de 1988, constata-se que a dignidade da pessoa humana (valor sobre o qual se assentam os direitos humanos fundamentais) se constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito (artigo 1, III). Em seu artigo 3 a Constituição define os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre os quais inclui: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; o desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem-estar de todos, excluída qualquer forma de discriminação. 5 Baseada no pensamento de Harvey (2004), compreendemos que a lógica de acumulação capitalista se assenta em uma contradição e incompatibilidade fundamental entre as necessidades de acumulação intrinsecamente inerentes ao capital e as demandas sociais derivadas dos direitos conquistados pela população (tendo em vista a eqüidade social). 6 Mattos, (2004).

No Capítulo da Política Urbana (Capítulo II do Título VII), artigo 182, a Constituição Federal trata das funções sociais da cidade e da garantia do bem estar dos habitantes como objetivos da política de desenvolvimento urbano; além de considerar expressamente a função social da propriedade urbana. Importante destacar esse capítulo constitucional foi fruto de uma intensa luta do Movimento Nacional pela Reforma Urbana 7 cujos ideários se manifestam tanto nos embates sociais e políticos no território concreto da cidade como na construção de direitos formalmente reconhecidos; enfrentando, portanto, reações tanto no âmbito de interesses patrimoniais contrariados quanto no contexto de posições ideológicas conservadoras. Ainda importa considerar que, inicialmente com foco na Justiça Social, a Reforma Urbana a partir dos anos 90 passou também a focalizar com mais ênfase a Justiça Ambiental, que parte da compreensão de que o modelo de desenvolvimento no Brasil tem como característica a apropriação elitista do território e dos recursos naturais, a concentração dos benefícios usufruídos do meio ambiente, a destruição dos ecossistemas e a exposição desigual da população à poluição e aos custos ambientais do desenvolvimento, indicando a necessidade de trabalhar a questão do ambiente não apenas em termos de preservação mas também de distribuição de justiça 8, aproximando as lutas populares pelos direitos sociais e humanos e pela qualidade coletiva de vida com a sustentabilidade ambiental 9. Tratando, pela primeira vez, do meio ambiente, em seu Capítulo VI do Título VIII, a Carta Maior prescreve, em seu artigo 225, que: todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Essa norma 10 se constitui um marco na proteção e de defesa do meio ambiente no Brasil já que insere um novo direito (meio ambiente ecologicamente equilibrado) no ordenamento jurídico, além de tratar do meio ambiente como bem e impor à coletividade, juntamente, com o poder público, o dever de proteção e defesa desse direito. Vale ressaltar que, além do referido artigo 225, vários outros artigos constitucionais 11 se referem à matéria 7 Nos termos postos por Maricato (1994), a luta pela "reforma urbana" se origina a partir da evidência do fosso que, nas cidades brasileiras, divide os espaços reservados aos ricos e aos pobres, tendo no seu ideário a busca pela construção de direitos formalmente reconhecidos, dentre os quais o direito de moradia e à qualidade de vida. 8 O Movimento por Justiça Ambiental surgiu no Brasil, a partir de 2001, com objetivo de ampliar o diálogo e a articulação entre sindicatos, movimentos sociais, ambientalistas e pesquisadores, no sentido de estimular o fortalecimento da luta ambiental articulada à luta pela democracia e pelo bem comum, integrando as dimensões ambiental, social e ética, vez que parte da compreensão que a proteção do meio ambiente depende do combate à desigualdade social, não se podendo enfrentar a crise ambiental sem promover a justiça social. Atualmente é objeto de coordenação por parte da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, tendo como seu principal articulador Henri Acselrad. 9 Conforme Acserald, H.; Herculano, S.; Pádua, J. A. (2004). 10 Que se decompõe em sete incisos e seis parágrafos, com importantes disposições normativas. 11 Como os artigos 5º, LXXIII; 23, III, IV, VI, VII, IX, XI; 24, VI, VII, VIII; 129, III; 170; 174; 200 e 216; dentre outros.

ambiental, inaugurando uma nova etapa no tratamento do meio ambiente no Brasil. Por outro lado, os direitos sociais à moradia, à saúde, à educação, ao trabalho e ao lazer, dentre outros direitos fundamentais à pessoa humana, também encontram suas bases da Constituição Federal (art.6º). O Estatuto da Cidade (Lei Federal nº. 10.257/2001), norma regulamentadora dos artigos 182 e 183 da Carta Magna, segue a orientação dos preceitos constitucionais referidos, estabelecendo que a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, apoiando-se em diversas diretrizes gerais, dentre as quais: a garantia do direito a cidades sustentáveis, compreendido como direito à terra urbana, moradia, saneamento ambiental, infra-estrutura urbana, transportes e serviços públicos, trabalho e lazer, para presentes e futuras gerações (artigo 2º e inciso I). Conforme mandamento constitucional (artigo 182) e o disposto no Estatuto da Cidade, o Plano Diretor se constitui em um instrumento de planejamento básico para a política de desenvolvimento e de expansão urbana no qual se estabelecem as exigências fundamentais para que a propriedade cumpra sua função social. Assim, é através do Plano Diretor e suas leis regulamentadoras, que devem ser estabelecidas normas que venham efetivar os direitos fundamentais à moradia e ao meio ambiente, tendo especial importância o estabelecimento de áreas especiais de proteção ambiental e de interesse social, que ganham um status de proteção diferenciado exatamente em razão dos frágeis 12 interesses que vem resguardar. Na linha de análise aqui desenvolvida, emerge o princípio da função social da propriedade 13 e, mais recentemente, o princípio da função sócio-ambiental da propriedade, tratado por diversos doutrinadores de Direito Ambiental 14, que configura-se a partir da interpretação sistemática das normas constitucionais referentes ao uso da propriedade urbana e rural e das normas relativas à proteção ao meio ambiente. Ainda que não expressamente inscrito na legislação 15 o princípio da função sócio-ambiental da propriedade é compreendido como o ônus que é atribuído ao proprietário, que consiste em um conjunto de deveres e responsabilidades que permeia toda a relação de propriedade (e não apenas limita o seu exercício), de modo com que, mesmo sem dar destinação produtiva aos recursos ambientais 16, o proprietário está obrigado a utilizá-los realizando finalidades sociais (vinculando-se a uma ética de responsabilidade solidária) e o dever da coletividade (art.225 da Constituição Federal de 1988). Desse modo, a propriedade protegida em nosso sistema jurídico é aquela na qual se desenvolve uma relação individualizada sustentável social e ambientalmente; devendo ser reprimidas as práticas que atentam contra essa idéia, como a supressão de espaços ambientais e sociais. Seguindo na busca pela ampliação da proteção aos espaços especialmente protegidos em favor do direito de moradia e ao meio ambiente, 12 Do ponto de vista da dinâmica territorial urbana atual, onde o uso do solo passa ser uma importante fonte de ganhos financeiros. 13 Introduzido em nosso sistema jurídico desde a Constituição de 1934. 14 Edis Milaré (2005), Rodrigues (2005), Mirra (1996), dentre outros. 15 Importa destacar que o princípio da função social se encontra inscrito expressamente na Constituição Federal nos artigos 5, XXIII, 182, 2 (referente à propriedade urbana) e 186, caput (propriedade rural). 16 Art.2 da Lei Federal 6938/81

encontramos o princípio da vedação ao retrocesso social. Desenvolvido pela jurisprudência européia, tal princípio é visto como uma cláusula geral de proteção dos direitos fundamentais, especializados pela legislação infraconstitucional, e que assume uma função de defesa para o cidadão contra as ingerências do Estado. Buscando uma maior interferência na efetiva estabilidade constitucional em face dos direitos sociais, tal princípio tem como escopo essencial evitar que a ordem jurídica sofra a insegurança reformista, se constituindo mola mestra na condução da estabilidade dos direitos fundamentais que asseguram a dignidade da pessoa humana como um todo e, por conseqüência, a efetividade da segurança jurídica no Estado de Direito 17. Pensamos que, diante das ameaças colocadas às áreas de interesse social e ambiental, de grande valia será a utilização desse poderoso instrumento. Por fim, não se pode deixar de considerar que o aperfeiçoamento do sistema de proteção internacional aos direitos de moradia e ao meio ambiente, dentre outros direitos sociais, se coloca como importante instrumento em favor da ampliação da proteção aqui defendida. Materializado em algumas ações concretas, esse sistema de proteção tem na Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Plataforma DhESCA Brasil) um dos principais espaços de articulação nacional de movimentos e organizações da sociedade civil para o desenvolvimento de ações para a promoção, defesa e reparação dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais, visando ao fortalecimento da cidadania e à radicalização da democracia. CONSIDERAÇÕES FINAIS Concluindo, é necessário considerar que as idéias aqui colocadas se constituem na introdução de uma pesquisa em desenvolvimento e que requerem um amplo aprofundamento teórico e prático, com foco nas novas idéias e saberes que na atualidade se colocam na linha da garantia aos direitos humanos fundamentais (como os direitos à moradia e ao meio ambiente) tão arduamente conquistados, pelo menos a nível formal e normativo, pela sociedade. Ainda que estejamos na condução do trabalho de revisão bibliográfica sobre o tema estudado, seu fio condutor não se afasta da idéia central de garantir aos espaços de interesse social e ambiental inseridos no Plano Diretor de Natal um grau de consolidação capaz de resistir às sérias ameaças que se colocam em face da pressão política associada à, cada vez mais, intensa pressão imobiliária urbana, com evidente influência nos fóruns onde se discutem e constroem as normas de uso e ocupação do solo. Não olvidando a importância da participação social em todo o processo de construção das normas urbanas e nas ações e discussões sobre as (tão desejadas) cidades justas, inclusivas e sustentáveis, em especial no processo de revisão do Plano Diretor de Natal 2007, pensamos que o aprofundamento do debate sobre o tema no campo acadêmico se constitui uma exigência necessária, possível e um dos grandes desafios para todos os que 17 Brasil, (2007).

se preocupam com a efetivação da justiça social e da qualidade de vida nas cidades. REFERÊNCIAS: ACSELRAD, Henri. Conflitos Ambientais no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. ACSELRAD, Henri; HERCULANO, Selene; PÁDUA, José Augusto. Justiça Ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. BENJAMIN, Antônio Herman V. Objetivos do direito ambiental. In: Congresso Internacional de Direito Ambiental (5. São Paulo, 2001). Anais... São Paulo: IMESP, 2001. p.57-78. BENTES, Dulce. Zonas Especiais de Interesse Social - Zeis e Grandes Empreendimentos: resistência de territórios populares e elementos para inclusão sócio-territorial no litoral potiguar. Trabalho apresentado no Seminário Política e Planejamento: Economia, Sociedade e Território. Curitiba, 2008. BRASIL, Francisca Narjana de Almeida. O princípio da proibição do retrocesso social como efetividade da segurança jurídica. Disponível em: http://www.jusacademico.v10.com.br/12docsinternauta/docvisit_088.doc. Acesso em: 17 out. 2007. BRASIL. Constituição Federal (1988). In: MEDAUAR, Odete. Coletânea da Legislação Ambiental. São Paulo: RT, 2007. CORAGGIO, José Luiz. A construção de uma economia popular como horizonte para cidades sem rumo. In: RIBEIRO, Luis César de Queiroz; SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos (orgs). Globalização, fragmentação e reforma urbana: o futuro das cidades brasileiras na crise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. DANIEL, Celso. Governo local e Reforma Urbana num quadro de crise estrutural. In: RIBEIRO, Luis César de Queiroz; SANTOS JÚNIOR, Orlando Alves dos (orgs). Globalização, fragmentação e reforma urbana: o futuro das cidades brasileiras na crise. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994. DUARTE, Marise Costa de Souza. Meio Ambiente Sadio: Direito Fundamental em Crise. Curitiba: Juruá, 2003. GIDDENS, Anthony. Sociologia. Porto Alegre: Artmed, 2005. HARVEY, David. O Novo Imperialismo. São Paulo: Edições Loyola, 2004. LEITE, José Rubens Morato. Dano Ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: RT, 2000. MARICATO, E. Reforma Urbana: Limites e Possibilidades. Uma Trajetória Incompleta. In RIBEIRO, Luiz César de Queiroz; SANTOS JUNIOR, Orlando

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