PRESERVAÇÃO E MUDANÇA NA HISTÓRIA DO PORTUGUÊS: DE POSSESSIVO A EXISTENCIAL



Documentos relacionados
MUDANÇA EM TEMPO APARENTE E EM TEMPO REAL: CONSTRUÇÕES TER/HAVER EXISTENCIAIS.

Entre 1998 e 2001, a freqüência escolar aumentou bastante no Brasil. Em 1998, 97% das

O EMPREGO DOMÉSTICO. Boletim especial sobre o mercado de trabalho feminino na Região Metropolitana de São Paulo. Abril 2007

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, Nº 04, t. 3, pág. 2451

O COMPORTAMENTO SINTÁTICO DOS ELEMENTOS À ESQUERDA 1 Maiane Soares Leite Santos (UFBA) may_leite@hotmail.com Edivalda Alves Araújo (UFBA)

A SUBSTITUIÇÃO DE HAVER POR TER EM CONTEXTOS EXISTENCIAIS: ECOS DA MUDANÇA NA REMARCAÇÃO DO PARÂMETRO DO SUJEITO NULO

CURSO: TRIBUNAL REGULAR ASSUNTOS: CONCORDÂNCIA NOMINAL / CONCORDÂNCIA VERBAL SUMÁRIO DE AULA DÉCIO SENA

GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAÇÃO APOLÔNIO SALLES

O uso do Crédito por consumidores que não possuem conta corrente Junho/2015

Conteúdos: Pronomes possessivos e demonstrativos

Entenda a tributação dos fundos de previdência privada O Pequeno Investidor 04/11/2013

5 Considerações finais

O QUE É ATIVO INTANGÍVEL?

Energia Eólica. Atividade de Aprendizagem 3. Eixo(s) temático(s) Ciência e tecnologia / vida e ambiente

COMO REDIGIR ARTIGOS CIENTÍFICOS. Profa. EnimarJ. Wendhausen

Escola Bilíngüe. O texto que se segue pretende descrever a escola bilíngüe com base nas

6 Conclusões e próximos passos

Professora: Lícia Souza

MÓDULO 5 O SENSO COMUM

Súmula Teoria Energética. Paulo Gontijo

Produtividade no Brasil: desempenho e determinantes 1

IGREJA DE CRISTO INTERNACIONAL DE BRASÍLIA ESCOLA BÍBLICA

Reaproveitamento de Máquinas Caça-Níqueis

AVISO: Os exemplos contidos no HELP ONLINE são meramente ilustrativos e têm como objetivo principal ensinar o usuário a utilizar o sistema.

Transcrição da Teleconferência Resultados do 4T12 Contax (CTAX4 BZ) 26 de fevereiro de Tales Freire, Bradesco:

Matemática SSA 2 REVISÃO GERAL 1

Mercado de Trabalho. O idoso brasileiro no. NOTA TÉCNICA Ana Amélia Camarano* 1- Introdução

Dinheiro Opções Elvis Pfützenreuter

LUNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAIBA PRO - REITORIA DE GRADUAÇÃO ASSESSORIA PARA ASSUNTOS INTERNACIONAIS

PED ABC Novembro 2015

Indicamos inicialmente os números de cada item do questionário e, em seguida, apresentamos os dados com os comentários dos alunos.

Renata Aparecida de Freitas

Planejamento Financeiro Feminino

Visão. O comércio entre os BRICS e suas oportunidades de crescimento. do Desenvolvimento. nº abr no comércio internacional

A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA À DISTÂNCIA SILVA, Diva Souza UNIVALE GT-19: Educação Matemática

A ROTATIVIDADE DOS JOVENS NO MERCADO DE TRABALHO FORMAL BRASILEIRO*

CARTILHA SOBRE DIREITO À APOSENTADORIA ESPECIAL APÓS A DECISÃO DO STF NO MANDADO DE INJUNÇÃO Nº 880 ORIENTAÇÕES DA ASSESSORIA JURIDICA DA FENASPS

Correlação quando uma Variável é Nominal

AS CONTRIBUIÇÕES DAS VÍDEO AULAS NA FORMAÇÃO DO EDUCANDO.

Motivação para o trabalho no contexto dos processos empresariais

A TEORIA DA PROPOSIÇÃO APRESENTADA NO PERIÉRMENEIAS: AS DIVISÃO DAS PRO- POSIÇÕES DO JUÍZO.

1. REGISTRO DE PROJETOS

A PRÁTICA PEDAGÓGICA DO PROFESSOR DE PEDAGOGIA DA FESURV - UNIVERSIDADE DE RIO VERDE

GEOGRAFIA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. 2 a Etapa SÓ ABRA QUANDO AUTORIZADO. FAÇA LETRA LEGÍVEL. Duração desta prova: TRÊS HORAS.

DIEESE e SEBRAE lançam Anuário do Trabalho na Micro e Pequena Empresa

2 Fundamentação Conceitual

Social Media and the new Advertising: an analysis of Farm's Instagram.

Boletim de Conjuntura Imobiliária. Versão Comercial - Outubro de 2010

1. Introdução. 1.1 Contextualização do problema e questão-problema

Artigo Opinião AEP /Novembro 2010 Por: Agostinho Costa

4.2.1 Resumo do enquadramento de operações para procedimentos especiais

Modos de vida no município de Paraty - Ponta Negra

Q-Acadêmico. Módulo CIEE - Estágio. Revisão 01

NOTA TÉCNICA N.º 01 /DMSC/DSST/SIT Brasília, 14 de janeiro de 2005.

GUIA DE AVALIAÇÃO DE CLIENTES PARA PROGRAMA DE RECUPERAÇÃO PÓS-DESASTRE

VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS: UM ESTUDO DE CASOS RELATADOS EM CONSELHOS TUTELARES DA INFÂNCIA E DA ADOLESCÊNCIA.

Mais da metade dos brasileiros pagam compras com o cartão de crédito, principalmente roupas, calçados e eletrodomésticos

Análise Econômica do Mercado de Resseguro no Brasil

6 A coleta de dados: métodos e técnicas utilizadas na pesquisa

5 Considerações finais

REGULAMENTO DE BOLSAS DE ESTUDO EM PORTUGAL PARA O ENSINO SUPERIOR DESTINADAS A ESTUDANTES AFRICANOS DE LÍNGUA PORTUGUESA CAPÍTULO I

A INFLUÊNCIA DOCENTE NA (RE)CONSTRUÇÃO DO SIGNIFICADO DE LUGAR POR ALUNOS DE UMA ESCOLA PÚBLICA DE FEIRA DE SANTANA-BA 1

Política de Divulgação de Atos ou Fatos Relevantes da Quality Software S.A. ( Política de Divulgação )

DIRETRIZES E PARÂMETROS DE AVALIAÇÃO DE PROPOSTAS DE CURSOS NOVOS DE MESTRADO PROFISSIONAL

Manual do Usuário Fornecedor

Eventos independentes

PONTO 1: Concurso de Crimes PONTO 2: Concurso Material PONTO 3: Concurso Formal ou Ideal PONTO 4: Crime Continuado PONTO 5: PONTO 6: PONTO 7:

As 10 Melhores Dicas de Como Fazer um Planejamento Financeiro Pessoal Poderoso

Sistema de signos socializado. Remete à função de comunicação da linguagem. Sistema de signos: conjunto de elementos que se determinam em suas inter-

AVALIAÇÃO FONOLÓGICA EM DESTAQUE RESENHA DO LIVRO AVALIAÇÃO FONOLÓGICA DA CRIANÇA, DE YAVAS, HERNANDORENA & LAMPRECHT

Journal of Transport Literature

FICHA BIBLIOGRÁFICA. Título: Perfil da Mulher Metalúrgica do ABC. Autoria: Subseção DIEESE/Metalúrgicos do ABC

Perfil Educacional SEADE 72

Estratégias de indeterminação em sentenças infinitivas nãoflexionadas

Fração como porcentagem. Sexto Ano do Ensino Fundamental. Autor: Prof. Francisco Bruno Holanda Revisor: Prof. Antonio Caminha M.

Exercícios Teóricos Resolvidos

Manual de Operacionalização do Módulo de Prestação de Contas PCS

PERGUNTAS MAIS FREQÜENTES

Política de cotas para mulheres na política tem 75% de aprovação

A Matemática do ENEM em Bizus

BOLSA FAMÍLIA Relatório-SÍNTESE. 53

36) Levando-se em conta as regras da Lei 8.112/90, analise os itens abaixo, a respeito dos direitos e vantagens do servidor público federal:

ProfMat 2014 TAREFAS PARA A SALA DE AULA DE MATEMÁTICA

O BRASIL SEM MISÉRIA E AS MUDANÇAS NO DESENHO DO BOLSA FAMÍLIA

ESCOLA ELEVA EDITAL DE SELEÇÃO DE ALUNOS PARA O ANO LETIVO DE 2017

3 O Panorama Social Brasileiro

Educação Patrimonial Centro de Memória

Decomposição da Inflação de 2011

Aumenta a desigualdade mundial, apesar do crescimento econômico

Introdução às Bases de Dados

Revista Interdisciplinar de Marketing

PESQUISA EDUCAÇÃO FINANCEIRA. Orçamento Pessoal e Conhecimentos Financeiros

Prova de Português Comentada NCE

A INFLUÊNCIA DA FAMÍLIA NA ESCOLHA DA PROFISSÃO Professor Romulo Bolivar.

6.1 A Simulação Empresarial tem utilização em larga escala nos cursos de Administração, em seus diversos níveis de ensino no Brasil?

COMO ENSINEI MATEMÁTICA

A TUTORIA A DISTÂNCIA NA EaD DA UFGD

Gráficos. Incluindo gráficos

ADMINISTRAÇÃO MERCADOLÓGICA MÓDULO 18 PASSOS PARA DEPOSITAR UMA MARCA NO INPI

Percepção do setor: O que está provocando as ações a respeito das mudanças climáticas nas maiores companhias do mundo?

Transcrição:

PRESERVAÇÃO E MUDANÇA NA HISTÓRIA DO PORTUGUÊS: DE POSSESSIVO A EXISTENCIAL Dinah Callou (UFRJ/CNPq) Juanito Avelar (UNICAMP/FAPESP) RESUMO No português brasileiro (PB), o verbo haver existir pode ser substituído pelo verbo ter possuir, em construções existenciais e um aspecto intrigante dessa variação reside no fato de o verbo ter perder as restrições de definitude nos complementos e de haver acionar essa restrição. A hipótese é a de que esse contraste seja resultante do fato de ter, embora tenha sido reanalisado como existencial, mantenha ainda as propriedades de seleção de sentenças possessivas. Os dados analisados (1528 construções existenciais do português falado contemporâneo e 200 construções comhaver/ter-sentenças possessivas no português medieval (PM), do século XIII ao XVI) revelam um aspecto crucial das mudanças relevantes que tiveram lugar na história da língua portuguesa: a versão existencial de ter e haver herda os aspectos sintático-semânticos de sua versão possessiva, o que demonstra que um item pode emergir em um novo contexto sem mudar suas propriedades essenciais de seleção. PALAVRAS-CHAVE: variação, mudança, preservação, ter/haver-existencial/possessivo. 224 matraga, rio de janeiro, v.19, n.30, jan./jun. 2012

Dinah Callou e Juanito Avelar Introdução Neste artigo, focalizam-se mudanças que envolvem os verbos ter e haver em dois momentos da história do português. O primeiro momento remonta ao português medieval, período em que haver perdeu o significado de posse e tornou-se um verbo existencial; o segundo momento refere-se a estágio recente do português brasileiro, no qual o verbo ter possessivo se torna um verbo existencial, ainda que mantenha também seu valor de posse. Apresentam-se alguns fatos que comprovam a preservação de propriedades sintáticas e semânticas de sentenças possessivas quando esses verbos entram em contextos existenciais, revelando uma situação em que mudança e preservação podem ser observadas simultaneamente. Para sustentar essa hipótese, foram analisadas 200 cláusulas possessivas com ter e haver no português medieval (do século XIII ao XVI), extraídas do Corpus Informatizado do Português Medieval (Tycho). Para o português brasileiro contemporâneo, levamse em conta dados intuitivos, assim como uma amostra de 1.528 construções existenciais na fala do PB, já referida em trabalhos anteriores de Callou & Avelar (2002, 2003, 2006). A emergência de TER como um verbo existencial no português brasileiro Observem-se, de início, algumas sentenças do português contemporâneo. Em (1a), por exemplo, a sentença Tem várias calças dentro do armário, pode ser interpretada como uma construção possessiva no português europeu (PE), sendo equivalente a Ele/Ela tem diversas calças dentro do armário. Por outro lado, o falante do português brasileiro a interpreta como existencial: Há várias calças dentro do armário. Para receber a interpretação possessiva, no português brasileiro, é necessário projetar um sujeito possuidor, como em (2): Ele/Ela tem várias calças dentro do armário. No português europeu, ter não pode ser usado em construções existenciais, apenas haver, como no exemplo (3): Há várias calças dentro do armário. (1) a. Tem várias calças dentro do armário. PE: Ele/Ela tem diversas calças dentro do armário PB: Há várias calças dentro do armário b. Tinha um documento na carteira. matraga, rio de janeiro, v.19 n.30, jan./jun. 2012 225

PRESERVAÇÃO E MUDANÇA NA HISTÓRIA DO PORTUGUÊS: DE POSSESSIVO A EXISTENCIAL PE: Ele/Ela tem um documento dentro da carteira PB: Há um documento dentro da carteira c. Tem dois computadores no escritório. PE: Ele/Ela tem dois computadores no escritório PB: Há dois computadores no escritório (2) Ele tem várias calças dentro do armário. PE/PB: Ele/Ela tem diversas calças dentro do armário (3) Há várias calças dentro do armário. PB/PE: Há diversas calças dentro do armário Todas as pesquisas que tratam da variação de ter e haver no português brasileiro (Cardoso 1986, Callou & Avelar 2000, 2003, 2006, Silva 2003, entre outros) chegam à conclusão de que ter é muito mais frequente na fala que haver. Como ilustrado em (1), apresentado em Callou & Avelar (2006), haver é o verbo preferencial na escrita formal, mas sua frequência é baixa na língua falada, mesmo entre falantes com nível alto de escolarização. Figura 1 Frequência de ter e haver,em construções existenciais, na fala e na escrita, no Português brasileiro Em artigo anterior, Callou & Avelar 2000 sugerem que um forte candidato a acionar a reanálise de ter como verbo existencial é a redu- 226 matraga, rio de janeiro, v.19, n.30, jan./jun. 2012

Dinah Callou e Juanito Avelar ção das flexões no paradigma verbal no português brasileiro. Conforme foi apontado em vários estudos (Duarte 1995, Tarallo 1996, Figueiredo Silva 1996, Galves 1996, Kato 2005, entre outros), essa redução flexional teve uma drástica consequência no uso de sujeitos referenciais nulos: os contextos que licenciam o sujeito referencial nulo no português brasileiro se tornaram restritos. Observe-se, por exemplo, a sentença (5a), Comprou um carro. No português europeu, essa sentença pode equivaler a Ela comprou um carro. Entretanto, é necessário preencher o sujeito Ela comprou um carro para que se torne uma construção aceitável no português brasileiro, como se pode verificar em (5b). (5) a. Comprou um carro. ( PE: ok / PB: * ) b. Ele/Ela comprou um carro. ( PE: ok / PB: ok ) Voltando ao verbo possessivo, seria impossível para um falante do português brasileiro interpretar sentenças de ter com sujeitos nulos referenciais como um contexto possessivo. Por exemplo, em construções de ter, como em (6), a gramática do português europeu pode licenciar um sujeito nulo referencial de posse: (6a) tem um livro = Ela tem um livro. Essa mesma construção não seria aceitável no português brasileiro, por ser praticamente impossível para um falante do português brasileiro admitir um sujeito nulo referencial possuidor, em tais contextos. (6) a. Tem um livro. (PE: ok /PB: * ) Ele/Ela tem um livro b. Tinha dinheiro. (PE: ok / PB: * ) Ele/Ela tinha dinheiro Nesse caso, a solução seria admitir uma interpretação existencial para as sentenças de sujeito nulo com o verbo possessivo. Há um paralelismo temporal que reforça este ponto de vista: o uso de terexistencial começa a surgir em finais do século XIX e é exatamente nesse período que a perda do sujeito nulo é detectada em documentos escritos (Duarte 1995, Tarallo 1996). Como foi assinalado em análises prévias, não há um exemplo indiscutível de ter-existencial em documentos escritos no Brasil até o século XVIII, mas a frequência de ter, oposta à frequência de haver em contextos existenciais atinge 22% na segunda metade do século XIX, como se pode verificar na Figura (2). Um estudo de Duarte (1995) revela que, nesse mesmo período, a taxa de sujeitos nulos correspondentes à terceira pessoa começa a cair, indo de 83% em 1845 a 55% em 1992, como se vê na Figura 3). Nesse sentido, matraga, rio de janeiro, v.19 n.30, jan./jun. 2012 227

PRESERVAÇÃO E MUDANÇA NA HISTÓRIA DO PORTUGUÊS: DE POSSESSIVO A EXISTENCIAL a variação de ter e haver no português brasileiro pode refletir uma solução sintática, no domínio das construções possessivo-existenciais, para lidar com a perda do sujeito nulo referencial. Figura 2: Frequência deter-existencial (em oposição à frequência dehaver) em documentos escritos no Brasil, do século XVII ao século XX (Avelar 2005, Callou& Avelar 2003, 2005) Figura 3: Frequência de sujeito nulo referencial correspondente à terceira pessoa em documentos escritos no Brasil de 1845 a 1992. (Duarte 1995: 20 228 matraga, rio de janeiro, v.19, n.30, jan./jun. 2012

Dinah Callou e Juanito Avelar TER e HAVER no português medieval No que diz respeito ao verbo haver, as causas de sua reanálise como um item existencial, no português medieval, perdendo a interpretação possessiva, não são tão claras até o momento. Tanto haver quanto ter já ocorriam como um verbo de posse naquele período, como se pode ver nos exemplos (9) e (10). (9) Sentenças possessivas com haver no português medieval a....n½huun½bronõ pode auer saudesensa cabeça... (século XIII - Afonso X, Foro Real - CIPM) b....costume he q(ue) n½huamolher q(ue) aj a mááffama... (Dos Costumes de Santarém 1294. Fonte CIPM) c. outra moller que aia marido... (Foros de Garvão, 1280(?). Fonte: CIPM) (10) Sentenças possessivas com ter no português medieval a.sse o caualeyro teuer o caualo quando morerssamolher... (Dos Costumes de Santarém 1294. Fonte: CIPM) b. queremos e demãdamos que todo crischão s tenha esta fé (Afonso X, Foro Real 1280(?). Fonte: CIPM) c.sse o caualeyro teuer o caualo quando morerssamolher... (Dos Costumes de Santarém 1294. Fonte: CIPM) IGUAL A 10a A Figura 4 mostra a frequência de haver e ter em contextos possessivos no período que vai do século XIII ao XVI. É possível observar que há uma estabilidade na distribuição de uso dos verbos, com taxas de, respectivamente, 72% e 28%. Este quadro sofre uma mudança abrupta no século XVI, época em a taxa de ter atinge 90% e ultrapassa a taxa de haver. Figura 4 Frequência dehavereterem sentenças possessivas no português medieval matraga, rio de janeiro, v.19 n.30, jan./jun. 2012 229

PRESERVAÇÃO E MUDANÇA NA HISTÓRIA DO PORTUGUÊS: DE POSSESSIVO A EXISTENCIAL Do século XVI em diante, haver desaparece dos contextos de posse e passa a ser usado exclusivamente com o sentido existencial, ocorrendo em construções impessoais, como as exemplificadas em (12). É relevante assinalar que há registros de haver como verbo existencial desde o século XIII, compartilhando esse uso com o verbo de cópula ser, como em (13). (12) Sentenças existenciais com haver no português medieval a.se na terra ouuer malfeitores s (Foros de Garvão 1267. Fonte: CIPM) b.enhua abadia huu tesoureiro avia (Século XIII apresentado em Mattos e Silva 1997: 262) c....que non avia y mouros nem judeus (Século XIII Apresentado em Mattos e Silva 1997: 262) (13) Sentenças existenciais com ser no português medieval a. Todo homen que no Reyno for... ((L017)) no~ lj responda~. (Foros de Garvão 1280. Fonte: CIPM) b. Todo crischãocrea firmemente qu é hiu soo e uerdadeyro Deus, padre e fillo e sprictusancto [...].(século XIII - Nunes 1943: 8) Preservação de propriedades Considerando todos esses fatos, pretende-se mostrar que há algumas propriedades que envolvem ter e haver nos domínios de posse e existência, tanto no português medieval quanto no português brasileiro, que revelam um aspecto significativo nas mudanças ocorridas: quando entram nos domínios existenciais haver no português medieval e ter no português brasileiro esses verbos preservam propriedades essenciais de suas versões como verbos possessivos. Efeitos de definitude Fato relevante diz respeito ao chamado efeito de definitude. Como já foi amplamente apontado na literatura, construções existenciais estão sujeitas a restrições de definitude, que barram a ocorrência de DP definido como complemento de verbos existenciais. Construções com ter existencial, entretanto, não são tão rígidas no que concerne a essa propriedade: um aspecto intrigante que envolve a emergência de ter como um verbo existencial, no português brasileiro, é o de que esse 230 matraga, rio de janeiro, v.19, n.30, jan./jun. 2012

Dinah Callou e Juanito Avelar verbo enfraquece a restrição possessiva nos complementos (Viotti 2002, Avelar 2004) das sentenças existenciais, como exemplificado em (14). Em (14a), por exemplo, o complemento do verbo existencial é a frase nominal definida o livro novo do Saramago, o que viola a restrição esperada de definitude em ambientes existenciais. (14) a. Naquela loja tem o livro novo do Saramago. b. Hoje tem o jogo do Brasil. c. No Rio de Janeiro tem a praia de Copacabana. Essas mesmas sentenças não parecem naturais em contextos com haver, que tende a rejeitar constituintes definidos como complemento. Em dados de língua falada, Callou & Avelar (2002) mostram que a maioria dos casos que favorecem o uso de haver se referem a contextos em que o complemento verbal é um bare noun, com interpretação genérica ou indefinida, que não se observa em contextos com ter. (15) a. não há vantagem...90-164 b. não há tempo... 90-164 c. há possibilidade.. 70-114 d. não havia jeito... 70-088 e. há mulheres que se comportam... (70-233) f. foi uma fase que houve concursos públicos... (70-164) Este contraste pode ser facilmente explicado se for considerado o fato de que, quando se tornam existenciais, haver no português medieval e ter no português brasileiro, algumas características de suas versões como verbos possessivos são preservadas, no que se refere aos efeitos de definitude. A Figura (16) apresenta a taxa de bare nouns, complementos definidos e complementos indefinidos com ter e haver em contextos possessivos, do século XIII ao XVI. Observe-se que a taxa de bare nouns com haver naquele período atinge 67%, contra 18% de complementos indefinidos e 15% de complementos definidos. Em outras palavras, sentenças com haver já exibiam uma restrição de definitude desde o português medieval, antes de se tornar um verbo exclusivamente existencial. Ao contrário, ter não evidenciava uma preferência clara por um tipo específico de complemento, no que tange à marca de definitude. matraga, rio de janeiro, v.19 n.30, jan./jun. 2012 231

PRESERVAÇÃO E MUDANÇA NA HISTÓRIA DO PORTUGUÊS: DE POSSESSIVO A EXISTENCIAL Figura 5 Frequência de TER e HAVER,de acordo com o tipo de complemento, em sentenças possessivas do século XIII ao XVI. Nesse sentido, o enfraquecimento da restrição de definitude, em construções existenciais com ter, no português brasileiro, pode se dever ao fato de que, quando se torna existencial, esse verbo traz suas propriedades de seleção de sua versão possessiva, na qual não há restrição no que se refere aos efeitos de definitude. Por outro lado, o haverexistencial no português contemporâneo preservou as mesmas propriedades concernentes às marcas de definitude de complementos observadas na versão possessiva do português medieval. Posição de sujeito Existem outras evidências da preservação de propriedades sintático-semânticas nas mudanças relevantes que envolvem o uso de uma categoria de expletivo em contextos existenciais com ter. Esse, por assim dizer, expletivo é o pronome você, como se pode ver em (17). Como já foi apontado por Callou & Avelar 2002, a taxa de frequência de você em contextos existenciais atinge 19% entre os falantes jovens, como a Figura 6 ilustra. Observe-se que não é possível inserir o você quando se usa o verbo haver. Em (17a), por exemplo, pode-se dizer você tem prédios altíssimos em Nova York, no sentido de há prédios altos em Nova York, mas não se pode dizer você há prédios altíssimos em Nova York. (17) a. Você tem / *há prédios altíssimos em Nova York. b. Você tem / *há muitos museus na Europa. 232 matraga, rio de janeiro, v.19, n.30, jan./jun. 2012

Dinah Callou e Juanito Avelar Figura 6 Frequência de uma categoria de expletivo você, em sentenças existenciais do português brasileiro(década de 90) Esse contraste pode ser explicado se considerarmos que essas construções com ter não perderam a possibilidade de preenchimento do sujeito mesmo com um verbo existencial e que, ao contrário, haver, um verbo impessoal, não possui uma posição para receber um sujeito. Em outras palavras, as propriedades estruturais do possessivo ter, no que se refere à aceitação de um argumento externo, se mantêm na versão existencial desse mesmo verbo. Vale a pena apontar que, quando perdeu o status possessivo e se tornou existencial no português medieval, haver ocorria normalmente com o pronome locativo dêitico hi como um sujeito, como se pode verificar nas sentenças em (19) (Said Ali 1964, Mattos e Silva 1997). Esta propriedade indica que, ainda que perca a possibilidade de receber um sujeito no português contemporâneo, haver exibia essa propriedade em seu estágio inicial como verbo existencial. Embora não seja claro por que haver perdeu essa propriedade, a ocorrência de tal pronome locativo dêitico como sujeito revela que esse verbo exibia uma propriedade da sua versão como possessivo nos primeiros estágios como um existencial. (19) a. nãohaisegredo (16th century presented in Said Ali 1964) b.avyahimuytos mouros vezinhos acerca da cidade (Crô nica de D. Afonso, Capítulo II Século XIV. Fonte: CIPM) c....que non aviay mouros nem judeus (13th century Apresentado em Mattos e Silva 1997: 262) matraga, rio de janeiro, v.19 n.30, jan./jun. 2012 233

PRESERVAÇÃO E MUDANÇA NA HISTÓRIA DO PORTUGUÊS: DE POSSESSIVO A EXISTENCIAL d. con sua herdade que yha e co suas pertijças (13th century Apresentado em Mattos e Silva 1997: 262) Conclusões Para resumir, esta análise revela um aspecto crucial das mudanças relevantes que tiveram lugar na história da língua portuguesa: as versões existenciais de ter e haver no português brasileiro herdaram aspectos sintático-semânticos de suas versões possessivas, o que demonstra que um item lexical pode emergir em um novo contexto sem mudar suas propriedades essenciais de seleção. ABSTRACT In Brazilian Portuguese (BP), the verb haver to exist/there to be can be replaced by the possessive ter to have in existential constructions and an intriguing aspect of this variation is that ter loses the definiteness restrictions on complements while haver triggers such restriction. The assumption is that this contrast is due to the fact that, although ter has been reanalyzed as existential, it keeps the selection properties of possessive sentences. The data analyzed (1528 existential clauses from spoken contemporary BP and 200 with haver/ter-possessive clauses in MP, from the 13 th to the 16 th century) reveal a crucial aspect of the relevant changes in the history of Portuguese: the existential version of ter and haver inherits syntacticsemantic aspects of their possessive version, which shows that an item can emerge into a new context without changing its essential selection properties. KEY-WORDS: variation, change, preservation, ter/haverexistential/possessive. 234 matraga, rio de janeiro, v.19, n.30, jan./jun. 2012

Dinah Callou e Juanito Avelar REFERÊNCIAS AVELAR, Juanito. Dinâmicas Morfossintáticas com Ter, Ser e Estar no Português Brasileiro. Master Thesis. IEL/Unicamp/BR, 2004. CALLOU, Dinah. On ter-existential clauses in Portuguese.In: Britt-Louise Gunnarson et alii (org.). Language variation in Europe. Department of Scandinavian languages Universitetstryckerit: 2004. CALLOU, Dinah & Juanito AVELAR.Estruturas com ter e haver em anúncios do século XIX. Em Alkmim, T. (org.) Para a história do português brasileiro, Vol. III. São Paulo: Humanitas-USP. 47-68, 2002.. Ter and haver in the history of Portuguese: the appearance of ter in existential environments. Paper presented at NWAVE 32, UniversityofPennsylvania, october 2003. CARDOSO, Suzana. TER/HAVER no português do Brasil: mudança linguística e ensino. Atas do I Simpósio sobre diversidade linguística no Brasil. Salvador: UFBA, 1986. DUARTE, Eugenia. A perda do princípio Evite Pronome no português brasileiro. PHDThesis. IEL/Unicamp/BR, 1995. KATO, Mary. A gramática do letrado: questões para a teoria gramatical. M. Marques et al. (orgs.) Ciências da linguagem: trinta anos de investigação e ensino. Braga: CEHUM (U. do Minho), pp. 131-145, 2005. MATTOS e SILVA, Rosa Virginia. Observações sobre a Variação no Uso dos Verbos Ser, Estar, Haver, Ter no Galego-Português Ducentista. Estudos Linguísticos, 19. pp. 253-286, 1997. SAID ALI, Manuel. Gramática Histórica da Língua Portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1964. VIOTTI, Evanir. Sobre o Efeito de Definitude nas Sentenças Existenciais. Revista do GEL, Número Especial. pp. 127-153, 2002. Data de recebimento: 25 de março de 2012 Data de aprovação: 25 junho de 2012 matraga, rio de janeiro, v.19 n.30, jan./jun. 2012 235