A Sublimação e a Clínica em Lacan. Eliane Mendlowicz



Documentos relacionados
UMA TOPOLOGIA POSSÍVEL DA ENTRADA EM ANÁLISE 1

Elaboração de Projetos

O BRINCAR E A CLÍNICA

Por que há sonhos dos quais não nos esquecemos?

Introdução. instituição. 1 Dados publicados no livro Lugar de Palavra (2003) e registro posterior no banco de dados da

A sua revista eletrônica CONTEMPORANEIDADE E PSICANÁLISE 1

FILOSOFIA SEM FILÓSOFOS: ANÁLISE DE CONCEITOS COMO MÉTODO E CONTEÚDO PARA O ENSINO MÉDIO 1. Introdução. Daniel+Durante+Pereira+Alves+

PLANO DE AULA OBJETIVOS: Refletir sobre a filosofia existencialista e dar ênfase aos conceitos do filósofo francês Jean Paul Sartre.

Reconhecida como uma das maiores autoridades no campo da análise infantil na

As crianças adotadas e os atos anti-sociais: uma possibilidade de voltar a confiar na vida em família 1

VI CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL Recife, de 05 a 08 de setembro de 2002

Investigando números consecutivos no 3º ano do Ensino Fundamental

O desenho e sua interpretação: quem sabe ler?

Considerações sobre a elaboração de projeto de pesquisa em psicanálise

Adolescência Márcio Peter de Souza Leite (Apresentação feita no Simpósio sobre Adolescência- Rave, EBP, abril de 1999, na Faculdade de Educação da

CAPITAL DE GIRO: ESSÊNCIA DA VIDA EMPRESARIAL

A origem dos filósofos e suas filosofias

PSICANÁLISE: UM SOBREVÔO SOBRE A HISTÓRIA DE SIGMUND FREUD E DE SUAS IDÉIAS

Psicanálise: técnica para discernir e descobrir os processos psíquicos.

Súmula Teoria Energética. Paulo Gontijo

A ENERGIA DO BRINCAR: UMA ABORDAGEM BIOENERGÉTICA

Dia 4. Criado para ser eterno

Sessão 2: Gestão da Asma Sintomática. Melhorar o controlo da asma na comunidade.]

Educação Patrimonial Centro de Memória

"Crise ou tentativa de cura? - desafios para uma clínica do sujeito numa enfermaria psiquiátrica". 1

MÓDULO 5 O SENSO COMUM

Os Quatro Tipos de Solos - Coração

Direitos Humanos em Angola: Ativista é detido na entrada do Parlamento

Motivação. Robert B. Dilts

ADMINISTRAÇÃO GERAL MOTIVAÇÃO

A importância da audição e da linguagem

A PSICANÁLISE E OS MODERNOS MOVIMENTOS DE AFIRMAÇÃO HOMOSSEXUAL 1

I OS GRANDES SISTEMAS METAFÍSICOS

O Planejamento Participativo

Logoterapia & Espiritualidade

A Torre de Hanói e o Princípio da Indução Matemática

Objetivo principal: aprender como definir e chamar funções.

CIÊNCIA E PROGRESSO: notas a partir do texto de Pierre Auger denominado Os métodos e limites do conhecimento científico.

DILMA MARIA DE ANDRADE. Título: A Família, seus valores e Counseling

Caracterização Cronológica

FANTASIAS SEXUAIS INFANTIS, AS CRIANÇAS FALAM. A intenção deste trabalho foi escutar crianças pequenas a respeito da

Colégio Ser! Sorocaba Sociologia Ensino Médio Profª. Marilia Coltri

A GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA

UNIDADE I OS PRIMEIROS PASSOS PARA O SURGIMENTO DO PENSAMENTO FILOSÓFICO.

A INFLUÊNCIA DA FAMÍLIA NA ESCOLHA DA PROFISSÃO Professor Romulo Bolivar.

Clínica Psicanalítica e Ambulatório de Saúde Mental

Filosofia da natureza, Teoria social e Ambiente Ideia de criação na natureza, Percepção de crise do capitalismo e a Ideologia de sociedade de risco.

SALVAÇÃO não basta conhecer o endereço Atos 4:12

I - A evolução da Psicanálise

TIPOS DE RELACIONAMENTOS

O céu. Aquela semana tinha sido uma trabalheira!

Energia Eólica. Atividade de Aprendizagem 3. Eixo(s) temático(s) Ciência e tecnologia / vida e ambiente

Capítulo II O QUE REALMENTE QUEREMOS

5 DICAS DE GESTÃO EM TEMPOS DE CRISE. Um guia prático com 5 dicas primordiais de como ser um bom gestor durante um período de crise.

Detonando a Teoria do Big Bang Sumário

1.000 Receitas e Dicas Para Facilitar a Sua Vida

Construção, desconstrução e reconstrução do ídolo: discurso, imaginário e mídia

PERGUNTAS E RESPOSTAS SOBRE A PATERNIDADE GERALMENTE FEITAS POR MÃES

Douglas Daniel de Amorim A PSICANÁLISE E O SOCIAL

ELABORAÇÃO DE PROJETOS

escrita como condicionante do sucesso escolar num enfoque psicanalítico

Considerações acerca da transferência em Lacan

FLUIDO CÓSMICO UNIVERSAL

FAZEMOS MONOGRAFIA PARA TODO BRASIL, QUALQUER TEMA! ENTRE EM CONTATO CONOSCO!

Marcelo Ferrari. 1 f i c i n a. 1ª edição - 1 de agosto de w w w. 1 f i c i n a. c o m. b r

ESPIRITUALIDADE E SAÚDE: UMA PERSPECTIVA BIOENERGÉTICA

O Pequeno Livro da Sabedoria

PODERES DO PSICANALISTA

JOSÉ DE ALENCAR: ENTRE O CAMPO E A CIDADE

Educação Ambiental: uma modesta opinião Luiz Eduardo Corrêa Lima

HEGEL: A NATUREZA DIALÉTICA DA HISTÓRIA E A CONSCIENTIZAÇÃO DA LIBERDADE

Profa. Ma. Adriana Rosa

Megalomania: amor a si mesmo Raquel Coelho Briggs de Albuquerque 1

Top Guia In.Fra: Perguntas para fazer ao seu fornecedor de CFTV

A fala freada Bernard Seynhaeve

1 O que é terapia sexual

ANTROPOLOGIA FILOSÓFICA DE EDITH STEIN. Prof. Helder Salvador

Aula 2 Revisão 1. Ciclo de Vida. Processo de Desenvolvimento de SW. Processo de Desenvolvimento de SW. Processo de Desenvolvimento de SW

GABARITO - FILOSOFIA - Grupo L

CONHECENDO-SE MELHOR DESCOBRINDO-SE QUEM VOCÊ É? 13 PASSOS QUE VÃO AJUDÁ-LO PARA SE CONHECER MELHOR E DESCOBRIR QUE VOCÊ REALMENTE É

As 10 Melhores Dicas de Como Fazer um Planejamento Financeiro Pessoal Poderoso

Aula 05 - Compromissos

VI Seminário de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar 20 a 24 de setembro de 2010

ERRADICAR O ANALFABETISMO FUNCIONAL PARA ACABAR COM A EXTREMA POBREZA E A FOME.

O DOGMATISMO VINCULADO ÀS DROGAS RESUMO

Para o XVIII Encontro Latino-americano Winnicott contemporâneo. Desde Winnicott reflexões sobre a dimensão corporal da transferência

AULA 17 MEDIUNIDADE NAS CRIANÇAS E NOS ANIMAIS

A LOUCURA DO TRABALHO

A última relação sexual

CONFERÊNCIA NACIONAL DE EDUCAÇÃO ARTÍSTICA. A educação artística como arte de educar os sentidos

A DOENÇA O REAL PARA O SUJEITO

1.1. O que é a Filosofia? Uma resposta inicial. (Objetivos: Conceptualizar, Argumentar, Problematizar)

SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO

Uma volta no tempo de Atlântida

Empreendedorismo. O perfil empreendedor

SISTEMA BRENA DE AUTOMAÇÃO COMERCIAL

Transcrição:

A Sublimação e a Clínica em Lacan Eliane Mendlowicz O conceito de sublimação aparece na obra freudiana em 1897, nas cartas a Fliess (manuscrito L), quando Freud se perguntando sobre a histérica, descobre que a causa desse tipo de neurose se deve à vontade inconsciente da histérica de esquecer a cena de sedução sexual paterna. Para evitar a rememoração da cena, a histérica constrói fantasias baseadas na cena que ela quer esquecer. Assim, a histérica consegue temperar, sublimar a lembrança. Daí em diante, o termo evolui para diferentes significações que oscilam de concepções que se fundam em meios de defesa, capazes de temperar os excessos e transbordamentos pulsionais, até elaborações que implicam uma teorização da sublimação como um meio de expressão altamente valorizado socialmente da pulsão. Embora possa ser considerado como um termo essencial à psicanálise e para muitos autores esteja diretamente vinculado à questão da cura na clínica psicanalítica, o mais nobre dos destinos de um processo analítico, é sem dúvida um termo inacabado na obra freudiana, dando margem a diversas interpretações. Em 1915, Freud escreveu um estudo metapsicológico sobre a sublimação, escrito este provavelmente destruído. Bem mais tarde, em 1930, no Mal Estar na Civilização, é ainda diante de um conceito inacabado que se encontra Freud. A satisfação sublimada, diz Freud, possui uma qualidade particular que um dia chegaremos certamente a caracterizar do ponto de vista metapsicológico (Freud, 1930). Jamais foi completamente elaborado e o que restou dessa concepção, que alguns autores consideram que não poderia se caracterizar corretamente como um conceito, envolve impasses lógicos suficientes que justificam um questionamento acerca deste termo, com um valor indubitável para a psicanálise, uma vez que se refere a um dos destinos pulsionais possíveis. Freud, em 1923, afirma que a vicissitude mais importante que uma pulsão pode sofrer parece ser a sublimação, processo em que tanto o objeto como a finalidade são mudados. O que era originalmente uma pulsão sexual acha sua satisfação em alguma realização que não é mais sexual, com um valor social ou ético mais elevado. O artigo foi publicado no livro A PSICANÁLISE E SEUS DESTINOS Organizadores: José Durval Cavalcanti de Albuquerque e Edson Lannes, Ed.

A sublimação se mostra difícil de definir na teoria e na clínica, onde as descrições sobre os percursos psicanalíticos que redundam em criações sublimatórias são não só imprecisas, como parecem da ordem da magia, onde subitamente um grande talento eclode, visão no mínimo ingênua, a serviço de um desejo de coerência entre a prática e um esboço teórico. Lacan, no Seminário sobre a Ética (1959-1960) é extremamente mordaz, ao criticar um artigo de Melanie Klein, Situações de Angústias Infantis Refletidas num Trabalho de Arte e no Impulso Criativo. Nesse artigo, a autora referindo-se a um exemplo de uma analista, Karin Mikailis, comprova sua teorização sobre a sublimação, que implica uma reparação ao corpo materno despedaçado. Mikailis relata o caso de uma cliente melancólica, que se queixava de um vazio dentro de si. Tal cliente tinha em sua casa uma parede coberta por quadros pintados por seu cunhado, um pintor tido como talentoso. Um dia, seu cunhado vende um dos quadros e a parede fica com um vazio, precipitador de crises depressivas na paciente. Ela resolve então a situação pintando uma tela. Jamais tinha pintado nada em sua vida, e seu cunhado completamente perplexo não acredita que ela tivesse sido a autora e argumenta que se ela fora capaz de pintar aquele quadro, ele seria capaz de reger uma sinfonia de Beethoven na Capela Real, embora ele não pudesse reconhecer nenhuma nota musical. Lacan ironiza o resultado, observando a absoluta falta de crítica a algo que mais parece uma obra do divino Espírito Santo. Entretanto, Melanie Klein desconsidera completamente a possibilidade de ser uma pura invencionice e faz uma análise dos quadros, tentando comprovar sua teorização e, para isso, esse exemplo se adequava perfeitamente. O primeiro quadro era uma pintura de uma negra, depois se seguia uma velha decrépita para, finalmente, culminar na pintura de uma mulher que era a mãe da cliente, em seus anos esplendorosos. Ora, isso servia, portanto, como uma demonstração quase perfeita da reparação do corpo materno despedaçado através de um processo sublimatório. No desenvolvimento da obra freudiana a sublimação passa a implicar um processo que envolve uma modificação da meta e do objeto pulsional. A meta mais imediata da pulsão é a satisfação sexual. A sublimação supõe uma modificação e até mesmo uma mutação da meta. O objeto é um objeto contingente e a modificação da meta mais a contingência do objeto implicam um processo de dessexualização. Ora, é preciso manter neste processo uma ligação com a sexualidade, se quisermos sustentar a construção

psicanalítica fundamental de que as forças criadoras têm como fonte necessariamente a sexualidade. Diante deste paradoxo da dessexualização da libido, Lacan utiliza o termo Das Ding, a partir do texto freudiano, Projeto de Uma Psicologia Científica (1895), e afirma que é justo a sublimação que traz à pulsão uma satisfação diferente de sua meta sempre definida como meta natural é precisamente o que revela a própria natureza da pulsão que não é puro instinto, mas que tem relação com Das Ding como tal, com a Coisa enquanto distinta do objeto (Lacan, 1959-1960). Vincula o termo Das Ding ao campo pulsional e o remete ao que vai além do sujeito do significante, consequentemente além da vigência do princípio do prazer. A Coisa tem uma longa tradição na filosofia, de Aristóteles a Heidegger, passando pela concepção kantiana da Coisa em si que está além da aparência fenomênica e é, em si mesma, incognoscível. Em psicanálise, Das Ding se situa como objeto mítico pulsional, objeto perdido para sempre, ou como especifica Lacan, este objeto não foi perdido, por sua própria natureza é um objeto reencontrado, é reencontrado sem que soubéssemos, a não ser pelos seus reencontros, que foi perdido. Portanto, a Coisa nos reencontros de objeto é representada por outra coisa. Não faremos uma análise crítica do termo Das Ding, construção assaz enigmática, mas reconhecemos seu valor operacional e ousamos dizer que a junção do campo pulsional a Das Ding afasta qualquer possibilidade de se interpretar a pulsão como algo da ordem do natural, do biológico, assim como exclui qualquer equação do Real com o natural. Das Ding se apresenta como uma unidade velada. O significante construído pelo homem é feito à imagem da Coisa, embora esta Coisa seja da ordem do irrepresentável, portanto, impossível de ser imaginada. No nível da sublimação o objeto é inseparável das elaborações imaginárias, especialmente das culturais (Lacan 1959-1960). Portanto, o objeto refere-se ao que é da ordem narcísica, diferentemente da Coisa, que como já foi dito, pertence ao campo do mais além do princípio do prazer. Nessa direção Lacan ergue sua fórmula, bastante geral, da sublimação, afirmando que ela eleva o objeto à dignidade da Coisa (Lacan 1959-1960). Implica a criação de imagens, formas significantes construídas a partir da imagem inconsciente de nosso corpo, mais exatamente de nosso eu inconsciente narcísico, não tendo uma utilidade social prática e imediata, embora

dependa de valores sociais da época, mas os ganhos utilitários são secundários, os significantes criados têm como função primordial representar a Coisa. Nesta formulação, a sublimação implica um processo diferente do sintoma, que envolve uma substituição significante como meio de satisfação pulsional, tal substituição é desmontável e aponta para outra cadeia de significantes. No caso da sublimação, há uma irredutibilidade a qualquer outra cadeia de significantes e ela é criada, a partir de ex-nihilo. Sabemos que no texto O Instinto e suas Vicissitudes (1915), Freud distingue o recalque e a sublimação como destinos pulsionais diferentes, mas esta é outra área problemática da concepção freudiana, pois de uma forma ou outra o sexual aparece transformado. No texto Futuro de uma Ilusão (1927), Freud nos adverte de que a arte é a atividade criativa que mais se adapta para reconciliar o homem com os sacrifícios que tem que fazer em nome da civilização. Se não há recalque, de qualquer forma há um constrangimento, um impedimento imposto à atividade pulsional, que tem que desviar seu fluxo para uma atividade não sexual, cujo resultado não é uma realização disfarçada de desejo, mas sim a criação de uma nova forma, irredutível a qualquer outra significação possível. O destino pulsional no recalque encontra sua satisfação numa sequência significante fixada, enquanto a sublimação, segundo nosso ponto de vista, se caracteriza fundamentalmente pela criação de um novo significante na cultura. Lacan, retomando Freud do Mal Estar na Civilização (1930), situa a questão sublimatória em torno da arte, da religião e da ciência. São as formas sublimatórias características de nossa civilização e todas as três implicam uma relação com o vazio. O homem é o médium entre o Real e o significante. Esta Coisa, aonde todas as formas criadas pelo homem são do registro da sublimação, será sempre representada por um vazio, já que não pode ser representada por outra coisa ou melhor só pode ser representada por outra coisa (Lacan 1959-1960). Prossegue dizendo que a arte consiste em um modo de organização em torno desse vazio, a religião numa construção a fim de evitar o vazio e a ciência rejeita a presença da Coisa, já que pressupõe a possibilidade de um saber absoluto, mas em todas as formas de sublimação, o vazio será determinante, o vazio estará sempre no centro. A sublimação pressupõe, portanto, uma criação que tem como referência central o vazio, ao passo que o sintoma presentifica a fixação de uma relação de objeto imaginária,

que satisfaz de uma forma ou outra a pulsão, e mantém a esperança de uma satisfação absoluta. Diante de nossa argumentação resta-nos indicar, para finalizarmos, a questão da relação da sublimação com a clínica psicanalítica, como o destino mais nobre de qualquer processo analítico em direção à cura. Interpretamos a fórmula geral de Lacan, que a sublimação consiste em elevar o objeto à dignidade da Coisa, como uma fórmula que está mais próxima do Freud de Leonardo da Vinci (1910) e do Freud de Mal estar na Civilização (1930), quando ele aponta que nada parece caracterizar melhor a civilização que sua estima e estímulo às atividades mentais humanas superiores suas realizações intelectuais, científicas e artísticas e o papel líder que é designado às ideias nas realizações artísticas, entre estas ideias estão os sistemas religiosos, do que o Freud de O Ego e o Id (1923), texto onde ele levanta a hipótese da sublimação ser uma dessexualização sob a forma de um retorno narcísico ao eu. Em O Ego e o Id (1923), Freud coloca em questão a possibilidade da transformação da libido objetal em libido narcísica implicar o abandono de objetivos sexuais, ou seja, uma dessexualização, um tipo de sublimação. Levanta a hipótese de que toda a sublimação ocorreria através de uma mediação do eu, que iniciaria o processo trocando a libido sexual de objeto em libido narcísica e daí em diante prosseguiria para dar-lhe outro objetivo. Freud nunca ficou inteiramente satisfeito com esta formulação, pois no Mal Estar na Civilização (1930) coloca esta questão em dúvida e parece privilegiar mais a sublimação, como um processo que só poucas pessoas conseguem realizar. Lacan repudia a sublimação como mediada pelo eu, pois critica duramente Bernfeld, quando esse autor, através de um exemplo clínico, supõe que a sublimação deveria ser considerada a partir da parte pulsional que pode ser utilizada às finalidades do eu. Lacan sustenta que... o problema da sublimação se coloca muito mais precocemente que no momento onde a divisão entre as finalidades da libido e do eu se tornam claras, patentes... A Coisa é um lugar decisivo de onde deve ser articular a definição da sublimação, antes que o eu tenha nascido e antes que as finalidades do eu apareçam (Lacan 1959-1960). É sobre este argumento de Lacan, é sobre os três campos escolhidos por este autor para situar o problema da sublimação, a arte, a religião e a ciência, é sobre sua insistente discriminação que não é qualquer produção do homem que implica a

sublimação e sim somente aquelas que provocam um choque, uma novidade, é que repousa nosso argumento que a sublimação envolve a criação de um novo significante na cultura. Esta formulação nos aproxima do Freud de Leonardo da Vinci (1910), quando ele discrimina que as pulsões que tem como destino a sublimação ficam no limite do que é discernível pela psicanálise. Freud afirma neste texto que embora o talento artístico e a capacidade sejam intimamente ligados com a sublimação, teria que admitir que a natureza da função artística e criadora é inacessível às linhas psicanalíticas. Nossa meta permanece a de demonstrar a conexão do caminho da atividade pulsional entre as experiências externas de uma pessoa e suas reações. Mesmo que a psicanálise não esclareça o poder artístico de Leonardo, pelo menos ela torna suas manifestações e suas limitações compreensíveis (Freud 1910). Elevar um objeto à dignidade da Coisa pressupõe necessariamente uma simbolização, mas é um processo que vai além, que tem algo a mais que uma simbolização, pois implica uma disrupção, emergindo algo de novo e surpreendente. Consequentemente, a sublimação é um processo que implica uma simbolização a mais. No caso da simbolização, o que se observa é um processamento dos dados já disponíveis na cultura e essa é uma diferença significativa, ou seja, supomos que no processo sublimatório algo de novo se inscreve com efeitos cujas marcas se manifestam necessariamente no cultural, daí a tese de que a sublimação é a criação de um novo significante na cultura. Na clínica psicanalítica, a remissão sintomática cria condições favoráveis a uma redistribuição econômica, que facilita o campo sublimatório. Desfeita a fixação com a relação de objeto imaginária, que promete a satisfação absoluta, a pulsão terá a via sublimatória mais desimpedida, o que não implica que a psicanálise tenha acessibilidade ao porque a via sublimatória foi a escolhida. Estamos diante de mais um impasse, mais um limite de nosso ofício, e relembrando Freud no Mal Estar da Civilização (1930), terminamos com a observação de que o ponto fraco da sublimação é que não tem aplicabilidade geral, é acessível a poucas pessoas com disposições e talentos especiais e que mesmo assim, os poucos que possuem essas qualidades não estão livres do sofrimento.

Bibliografia: Freud, Sigmund. Project for a Scientific Psychology 1895 Standard Edition, London, H.P., 1975, V.1. Extracts from the Fliess Paper Draft L 1897 Standard Edition, London, H.P., 1975, V.1. Leonardo da Vinci and a Memory of his Childhood 1910 Standard Edition, London, H.P., 1975, V.11. Instincts and their Vicissitudes 1915 Standard Edition, London, H.P., 1975, V.21. The Ego and the Id 1923 Standard Edition, London, H.P., 1975, V.19. V.21. The Future of an Illusion Standard Edition, London, H.P., 1975, Civilization and its Discontents 1930 Standard Edition, London, H.P., 1975, V.21. Lacan, Jacques. LÉthique de la Psychanalyse Le Séminaire livre 7, 1959/1960, Éditions du Seuil, Paris,1986. Laplanche, Jean. A Sublimação Martins Fontes, São Paulo, 1989. Vital Brazil, H. As Estruturas de Sublimação em Psicanálise Tempo Psicanalítico, Revista da SPID, Rio de Janeiro, 1989.