IDENTIDADES FEMININAS: PATROAS E CRIADAS EM MANUAIS FEMININOS, SÃO PAULO (1875-1928)



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Transcrição:

IDENTIDADES FEMININAS: PATROAS E CRIADAS EM MANUAIS FEMININOS, SÃO PAULO (1875-1928) Simone Andriani dos Santos (simone.santos@usp.br) Mestranda da FFLCH-USP/MP-Universidade de São Paulo (USP) Resumo: Este trabalho pretende analisar como patroas e empregadas domésticas eram representadas em manuais femininos (manuais de etiqueta, economia doméstica, puericultura e higiene e saúde) do final do século XIX e início do XX que circularam pela cidade de São Paulo. Buscando compreender os papeis atribuídos a e os lugares ocupados por elas, o intuito é verificar como essas duas categorias de mulheres eram caracterizadas nesses discursos. Como a reflexão faz parte da pesquisa em andamento de mestrado na FFLCH-USP, esse trabalho está inserido na temática de gênero e reflete sobre as construções históricas que as identificariam, mas que, por se tratarem de mulheres de classes sociais desiguais, as diferenciam. Palavras-Chave: Trabalho doméstico; Manuais; Espaço doméstico; Relações de gênero; Empregados domésticos Este trabalho se propõe a analisar a representação 1 de patroas e empregadas domésticas em manuais femininos do final do século XIX e início do XX, que circularam pela cidade de São Paulo 2. A intenção é verificar como cada uma delas era caracterizada por esses discursos, pois, embora a elas, por serem mulheres, eram atribuídos papéis sociais comuns de gênero, por serem de estratos sociais desiguais, eram consideradas diferentes (KOFES, 2001). O ano de 1875, escolhido como data inicial, refere-se à mais antiga publicação prescritiva utilizada em São Paulo, o Código do Bom-Tom, de José Ignácio Roquette. Adotamos o ano de 1928 como marco final, data de publicação do manual mais antigo da década de 1920 encontrado em nosso levantamento: Méthode Pratique de Développement du Charme Personnel 3. Entre as décadas de 1870 e 1920, período em 1 Para Chartier, as representações do mundo são forjadas por interesses de grupos; podem ser considerados mecanismos pelos quais grupos se impõem, ou tentam se impor. Sendo assim, os discursos não são neutros e as representações são matrizes de discursos e de práticas diferenciadas que têm por objetivo a construção do mundo social e a definição das identidades. (CHARTIER, 1991). 2 Esta reflexão faz parte da pesquisa em andamento de mestrado na FFLCH-USP, financiada pelo CNPq. A pesquisa propõe a análise das relações entre criadas e patroas, na cidade de São Paulo, entre as décadas de 1870 e 1920, a partir das diferenças de gênero, étnicas e sociais (re)produzidas no espaço doméstico. Utilizando como principal corpo documental os manuais femininos de prescrição de conduta (manuais de etiqueta, economia doméstica, puericultura e higiene e saúde), o intuito é compreender a formação identitária a partir do uso de objetos e espaços como indutores de comportamentos e hábitos corporais. 3 A maioria dos manuais que circulavam pela cidade eram obras estrangeiras. A partir do levantamento sistemático dos documentos em bibliotecas públicas e em escolas de São Paulo, foram encontrados manuais em português, inglês e francês. Por estarem localizadas em acervos e bibliotecas de São Paulo, pode-se inferir que essas obras foram utilizadas por leitores paulistanos. Para este trabalho, foram selecionados alguns manuais em língua portuguesa. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.538

que São Paulo passa por expressivas mudanças, a cidade transforma-se em importante centro urbano e econômico, eixo financeiro e comercial da economia paulista (PINTO, 1994, p. 65). A década de 1870 é o início das mudanças urbanas relacionadas à produção cafeeira (OLIVEIRA, 2005; SILVA, 2008, p. 21). Intensifica-se a transferência de famílias de fazendeiros para a cidade, assim como as transformações no consumo e a ampliação do comércio. A construção de luxuosas residências define um novo tipo de habitação, os palacetes (HOMEM, 1996) e um novo padrão de higiene (COSTA, 1983). A especialização dos espaços da habitação afeta a organização do serviço doméstico (LEMOS, 1976, 1989). Amplia-se o perímetro urbano e a cidade assiste a um crescimento demográfico 4. A incipiente indústria não absorve a mão-deobra disponível (PINTO, 1994), composta por imigrantes e ex-escravos. Os trabalhadores buscam formas alternativas de sobrevivência, realizando atividades autônomas, temporárias ou informais. Nesse quadro de oferta de trabalho, o serviço doméstico emprega a massa de desempregados, sobretudo mulheres e crianças. Segundo a autora, essas mulheres exerciam atividades como criadas, diaristas, cozinheiras, amas de leites, lavadeiras, passadeiras, arrumadeiras, copeiras, pajens, ajudantes nas casas de famílias (PINTO, 1994, p. 96-97). Configura-se um mercado de trabalho de alta rotatividade 5, formado por cerca de 40 mil trabalhadores em 1914, período em que a população paulistana era em torno de 375 mil habitantes (MATOS 1994, 2002). Diferentemente do que ocorreu no Estados Unidos, que sofreu uma crise de mão-o-obra doméstica, no Brasil, as mudanças, com o fim da escravidão, estão relacionadas ao projeto modernizador implementado pelas novas elites que assumem o comando do país com o fim do império, cujo objetivo era apagar os traços remanescentes da escravidão e do colonialismo e alcançar o progresso econômico (SEVCENKO 1992, 1998, p. XV, p.7-48). Políticas e normas de saneamento dos espaços públicos da cidade são adotadas pelo Estado 6. Porém, para as habitações em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, são os discursos de médicos sanitaristas e higienistas e os manuais prescritivos que passam a normatizar as tarefas do lar. Os manuais, sobretudo os de economia doméstica (SILVA, 2008, p. 144), reforçavam o papel da mulher para a ordenação do trabalho da casa, administrando o lar, orientando e ensinando seus empregados (CARVALHO, 2008, p. 241-246); algumas obras apresentam vários trechos ou capítulos inteiros direcionados para o trato com os criados, que orientações deveriam ser dadas e como as atividades deveriam ser executadas. 4 Resultado da política de imigração, das oscilações da produção cafeeira e do êxodo de trabalhadores oriundos de fazendas do café. Em 1874, a cidade de São Paulo tinha uma população de 23253 habitantes; em 1886, o número passou a ser de 44033. O censo de 1900 o número é de 239820 habitantes; em 1920, chega-se a 579033. (LANGENBUCH apud SEGAWA, 2000, p. 15). 5 Maria Izilda Santos de Matos (1994, 2002) afirma que, diante de um quadro de trabalho flutuante, em que o grau de rotatividade girava em torno de 10 a 15 mil substituições por ano, o serviço doméstico empregava grande número de mulheres, preferencialmente brancas (ALMEIDA, 1905, p. 157) e de origem portuguesa (MATOS, 1994, p. 194). 6 Algumas normas: o Código Sanitário do Estado de São Paulo de 1894, o primeiro elaborado, e sua reforma de 1911, a Lei n.º 432, de 3 de agosto de 1896, o Decreto n.º 2141, de 14 de novembro de 1911, entre outras. (RIBEIRO, 1993, p. 120-127). Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.539

Os manuais femininos de prescrição de conduta Inseridos na temática relacionada à civilidade 7, os manuais podem ser agrupados em quatro categorias: manuais de etiqueta, manuais de economia doméstica, manuais de puericultura e manuais de higiene e saúde. Os manuais de etiqueta são obras de conteúdo didático, de fácil acesso, permitindo ao seu público leitor uma rápida consulta 8. Ganhando destaque em meados do século XIX (LIMA, 1995, p. 162), esse tipo de obra veicula lições de polidez, civilidade e bom comportamento em sociedade. Tania Andrade Lima identifica dois perfis de manuais de etiqueta no final do século XIX: o que reproduzia um modelo franco-inglês, adotado pelas camadas mais altas da sociedade e outro, relacionado ao processo colonizador, influenciado pelos hábitos portugueses, constituindo um conjunto de normas adotado pelos segmentos médios no Brasil (LIMA, 1995, p. 149-150). Os manuais de economia doméstica, como O Lar Doméstico: Conselhos Práticos sobre a Boa Direção de uma Casa,, de Vera Cleser (1898), eram destinados às classes em ascensão, difundiam valores burgueses com respeito ao papel da mulher como mãe, esposa e dona-de-casa (LIMA, 1995, p. 149) e discutiam problemas de organização e serviços da casa. Quanto aos manuais de puericultura tinham o objetivo principal de reduzir as elevadas taxas de mortalidade infantil e ajudar a constituir uma população saudável (LIMA, 2007). Focando os discursos médicos na mulher, a mãe era vista como a responsável pela criação saudável de seus filhos e formação dos futuros cidadãos (COSTA, 1983). Já os manuais de higiene e saúde eram publicados com o objetivo de promover o discurso médico, voltando-se à educação sanitária da população. Em um primeiro momento, dirigiam-se às mulheres de classes dominantes, mas a expectativa era de que o discurso normativo atingisse os extratos inferiores (GONÇALVES, 2006, p. 119). Apresentam, de uma maneira geral, instruções e procedimentos de cura de pequenas doenças, noções de puericultura, cuidados básicos com higiene, alimentação, vestuário, habitações, entre outros temas. Segundo Lilia Moritz Schwarcz, os manuais são um tipo de literatura prescritiva que chega à burguesia após a Revolução Francesa. Com o objetivo de estabelecer hierarquias sociais, são adotadas práticas comuns da corte a partir da defesa da etiqueta e do controle dos gestos e dos sentimentos (1997). No Brasil, os guias de comportamento foram bem recebidos pelas elites rurais da sociedade escravocrata. Maria do Carmo Teixeira Rainho (1995) afirma que, nesse momento, existiam dois tipos de manuais: os pedagógicos (destinados aos mais jovens) e os cortesãos (consumido por pessoas mais velhas que frequentavam ambientes da corte e os salões da sociedade). Os manuais foram adotados em um momento em que o Império e a sociedade passavam por transformações, o controle corporal foi a maneira adotada para fixar marcas de distinção social (RAINHO, 1995; SCHWARCZ, 1997, p. 10). Em pouco tempo essas obras caem no gosto do público e passam a ser amplamente divulgadas para outros grupos sociais (SCHWARCZ, 1997, p. 10), criando-se novas tipologias de manuais. Segundo Sônia 7 Segundo Norbert Elias, uma sociedade estabelece, em diferentes épocas, instrumentos de condicionamento impostos aos indivíduos capazes de criar modelos que refletem suas próprias ideias de moralidade, de delicadeza e de polidez. Dessa forma, as regras de civilidade criadas por cada sociedade estabelecem preceitos cujo objetivo é nortear as relações entre as pessoas. (ELIAS, 1990; PILLA, 2003; REVEL, 2009; SCHWARCZ, 1997). 8 Segundo Schwarcz, essas obras tiveram grande sucesso, pois eram abrangentes, tratam de temas como modos à mesa, formas de recepções, vestuário, cartas, maneiras de se comportar em diferentes ambientes sociais, dicas de higiene, entre outros. (RAINHO, 1995; SCHWARCZ, 1997, p. 14-16). Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.540

Roncador (2007), autoras como Julia Lopes de Almeida ganham notoriedade publicando esse tipo de obras direcionadas ao público feminino 9, pois continham informações sobre a vida doméstica, orientando como as donas-de-casa deveriam administrar seus lares. Os manuais, muitos deles utilizados como material didático em escolas femininas, em aulas cujos títulos variavam entre Trabalhos Manuais, Boas Maneiras, Conhecimentos Gerais, Economia Doméstica etc., produzem um discurso que aproxima educação da mulher e civilidade, ao mesmo tempo em que prescreve, a partir de um tom moralizante, modelos de comportamento a serem seguidos por suas leitoras. (CUNHA, 2007). Seus conteúdos estão diretamente relacionados às ideias que associavam o feminino ao espaço privado. Tendo-se em vista que essas obras traziam conhecimentos domésticos (costurar, bordar, cuidar da alimentação da família e higiene da habitação, puericultura) como instrução básica à mulher, deixavam subentendido que a mulher deveria ser preparada para a administração ou gerência do lar. Os textos apresentam enunciados normativos que dizem o que era e o que deveria ser a mulher bem educada, preocupada com o cuidado do lar e da família, como podemos notar no trecho extraído do manual A arte de viver em sociedade: Será polida, affavel, carinhosa; será vigilante e activa; será garrida e requintada; fará do ménage uma arte, da vida de familia uma religião, e do seu lar o mais divino dos sanctuarios. (CARVALHO, 1909, p. 64-65). O conteúdo presente nesses manuais está diretamente relacionado às ideias da época sobre as diferenças entre homens e mulheres. A construção de papéis de gênero apoiava-se nessa diferença sexual, em que o sexo era entendido como responsável pelo destino social de homens, como provedores, e de mulheres, como esposas e mães. Esperavam-se comportamentos específicos de ambos os sexos, comportamentos, então, atribuídos à natureza de cada um e devendo por isso ser seguidos (GONÇALVES, 2006). Dessa forma, a partir da leitura dos manuais femininos de conduta, vislumbrase o papel social atribuído ao gênero feminino relacionado às tarefas domésticas, à reprodução e à educação dos filhos 10. 9 Por exemplo, como o manual de economia doméstica Livro das noivas. ALMEIDA, 1905. A primeira edição é de 1896. (RONCADOR, 2007). 10 Os estudos de gênero, que surgem associados a movimentos reivindicatórios que entendiam as desigualdades sociais como oriundas das diferenças entre homens e mulheres (BOCK, 1991, p. 1-24) e que floresceram durante a década de 60, originalmente nas áreas de antropologia e sociologia, vão problematizar posteriormente essa questão. O engajamento acadêmico contra ideologias sexistas levou ao uso da categoria gênero em vez da referência ao sexo (que enfatizava as funções naturais da mulher) para deixar claro que tais diferenças eram de caráter social, econômico e especialmente político. Tais estudos procuraram desnaturalizar as formas sexuadas de subordinação. O entendimento do gênero como uma categoria de análise implicou em considerá-la como parte ativa na formação, funcionamento e transformação da sociedade. As estruturas sociais precisavam ser entendidas como estruturas sexualizadas. (PISCITELLI, 2002; RAGO, 1998; SCOTT, 1995). Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.541

As relações entre patroas e empregadas e os manuais Não seria de mulheres este livro, donas e donzellas, se não houvesse nelle um cantinho para fallar das criadas Julia Lopes de Almeida, Livro das Donas e Donzellas Abordando o tema das relações entre criadas e patroas no espaço doméstico, a antropóloga Maria Suely Kofes torna-se uma referência para todos que pesquisam o tema (2001). Em seu doutorado, a autora buscou compreender as relações entre patroas e empregadas domésticas e como se constituem a identidade, a diferença e a desigualdade estabelecidas entre essas duas categorias de mulher. A condição de seres do mesmo gênero supostamente as identificariam, porém Kofes demonstra que as diferenças individuais e as desigualdades de estratos sociais as distanciam. A relação entre empregadas e patroas é marcada por limites e práticas ritualizadas, um mecanismo fundamental da construção da identidade. Daí a necessidade da autora de compreender como são estabelecidas essas distinções 11 : por exemplo, o uniforme, o elevador de serviço, o sino de chamar a empregada durante as refeições, etc. Trata-se, portanto, de um jogo entre identidade e diferença, entre proximidade e distanciamento, o qual exige ritualizações a fim de clarear as fronteiras obscurecidas (KOFES, 2001, p. 69-70). Embora a pesquisa se volte para o período contemporâneo, os conceitos por ela mobilizados podem ser encontrados nos manuais femininos de nossa pesquisa. Alguns autores, ao pesquisarem sobre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX, tratam de alguns aspectos semelhantes àqueles apontados no trabalho de Kofes. É o caso de João Luiz Máximo da Silva (2008) que, ao estudar como o processo de instalação e os mecanismos de expansão das redes de fornecimento de eletricidade e de gás na cidade de São Paulo, demonstra as transformações das relações sociais na casa paulistana, do serviço doméstico e das relações de trabalho. O domínico de novos equipamentos domésticos, como fogões a gás, foi utilizado para marcar as diferenças entre patroas e empregadas. De forma semelhante, encontramos algumas passagens no trabalho de Vânia Carneiro de Carvalho sobre a formação de identidades sociais diferenciadas pelo gênero e sua relação com os objetos domésticos. Ao tratar do serviço doméstico, a autora identifica as diferentes formas que patroas e empregadas incorporaram as mudanças tecnológicas, a racionalização e a implantação dos preceitos da medicina higiênica. Como os papéis entre criadas e patroas em alguns momentos se mesclam, havia a necessidade de marcar distinções dentro da casa seja por meio do modo elegante de se sentar da dona-de-casa, em oposição à prática tradicional de se sentar no chão e que caracteriza os hábitos rústicos da criada, o uso de aventais distintos para essas duas personagens ou o domínio de técnicas e do uso de novos equipamentos domésticos que colocavam a patroa em posição privilegiada em relação às cozinheiras (2008, p. 255-257). 11 Há que se pressupor certas regras neste jogo de alteridade que se instala. Regras estas que, ou podem ser explicitadas através de uma sobrecarga simbólica (gestos, roupas, demarcações de espaços, comensalidades etc.) ou podem ser definidas em um código legal, ou as suas coisas simultaneamente. (KOFES, 2001, p. 95). Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.542

Sandra Lauderdale Graham (1992), em sua pesquisa sobre o serviço doméstico no Rio de Janeiro, identifica uma relação ambígua entre criadas (livres ou escravas) e seus patrões. A autora expõe como a rua (espaço público) não era vista como um local ameaçador aos criados, mas, na verdade, uma oportunidade de cuidar de seus interesses pessoais ou de fugir de uma rotina de trabalho ininterrupta, da vigilância e da violência (física e sexual) dos patrões. Maria Izilda Santos de Matos afirma que o serviço doméstico era caracterizado por uma dura rotina de trabalho tarefas como lavar, passar, cozinhar, limpar, organizar, costurar etc. (1994, p. 195), e as relações carregadas de uma herança escravocrata. A própria utilização dos termos amo e criado, indicava a persistência de comportamentos de uma sociedade recém-libertada da escravidão. Embora houvesse relatos de tratos mais amigáveis, a maioria das relações entre criados e patrões era permeada por autoritarismo, desconfiança e violência. Os criados eram explorados, recebiam salários baixíssimos, trabalhavam em péssimas condições, poucas vezes tinham direito a descanso, a rotina de trabalho era árdua e extensa (p. 207-210); é o que vemos, por exemplo, no Livro das Noivas: Levantar-se de madrugada, deitar-se tarde, estar de pé todo o dia, salvo as duas ou tres horas de repouso, viver numa eterna sordicia: a poeira, as águas de lavagem de loiça ou do toilette; alimentar-se de restos, não ter em cada mez senão poucas horas de liberdade, das quaes a fadiga impede de saborear o goso [...]. Tragar durante dezoito horas os caprichos de uma familia inteira, ouvir as crueldades serrazinas das creanças, impertinencias da senhora, as grosserias do senhor, as observações azedas e as exigencias senis dos avós... Ainda não é tudo. É preciso suportar as suspeitas injuriosas, os armarios fechados, o molho de chaves levado com ostentação, os talheres contados á noite, deante da criada, officialmente, depois da familia se ter assegurado, ás occultas, de não faltar coisa alguma; e uma interminavel serie de phrases com duplo sentido atiradas de esguelha e mais horriveis de receber no coração do que uma facada na carne. Não ha nada que, no começo, desanime tanto uma pessoa honesta como a suspeita injusta; e, digo bem alto, a maior parte das vezes, improbidade dos criados nasce da desconfiança os patrões. (ALMEIDA, 1905, p. 124-126). Segundo Luís Antonio Coelho Ferla (2011), a figura da empregada doméstica, no período que vai da abolição da escravidão ao fim da Segunda Guerra Mundial, canaliza grande parte dos medos sociais (roubo e doenças) daqueles tempos. A substituição do escravo pelo criado de servir causou um estranhamento entre aqueles que serviam e os que eram servidos. Esse estranhamento se deveu ao grande crescimento demográfico associado ao influxo imigratório, à especialização de áreas da cidade com a crescente urbanização e à alta rotatividade do mercado de trabalho. Essa desconfiança com relação à rotatividade, vemos, por exemplo, em A arte de viver em sociedade: Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.543

Nas casas modernas, salvo rarissimas excepções em que subsiste ainda uma certa comprehensão do viver de outras eras, os creados entram e sahem, hospedes de um dia, espiões malevolos e inintelligentes que pervertem tudo que vêem e desfiguram tudo que ouvem, automatos que obedecem a signaes convencionaes, sem alma, sem coração, sem moralidade e sem affecto. (CARVALHO, 1909, p. 234). Ferla afirma que a herança da escravidão, os discursos modernizadores e a ambiguidade e indefinição dessa relação de trabalho 12 relegaram a esse grupo um caráter de periculosidade. Dessa maneira, nota-se nos manuais femininos a tensão existente nessa relação entre patroas e empregadas. Pode-se observar, por exemplo, na forma distinta como essas mulheres eram caracterizadas. No que concerne à beleza física, a patroa é descrita como uma mulher elegante, bela como arte, dotada de delicadeza e graça, harmonica, está sempre bem vestida ; a criada é aquela que é desleixada, aspera, possui mãos grosseiras e desacauteladas, vive de trapos e que precisa ter força física para realizar as tarefas da casa. No manual Arte de viver em sociedade, encontramos a seguinte descrição da dona de casa: creatura de nervos de aço, resistente e fortissima, de encantador e prestigioso aspecto, que se faz bella á força da arte [...], que sorri, anda, pára, dansa, cumprimenta, sempre com suprema arte; que acolhe com uma infinidade extraordinaria de nuances diversas as differentes pessoas que lhe são apresentadas; que se veste na perfeição, conversa com uma ligeireza e uma graça inimitável, preside a um salão com uma mestria genial, e não tem um pensamento que não dimane da sociedade ou não convirja para ella. (CARVALHO, 1909, p. 31). Com relação ao controle de si, essa mulher elegante não deveria: Dar excessivamente na vista, obrigar toda a gente a que se occupe da sua pessoa, apresentando-se d um modo em desharmonia com a moda estabelecida, falar alto, pentear-se mal, trazer as luvas rotas, calçar d um máu sapato, rir a proposito de tudo, não attender, na toilette que se veste, ao logar para onde se vae - tudo isto e muitas mais cousas são indicadas como a falta d aquella maravilhosa qualidade convencional, sem a qual, por mais que se faça, não se pertence ao mundo! (CARVALHO, 1909, p. 31). Quando analisamos as descrições dos atributos morais, encontramos a mesma distinção. A patroa é resistente, intelligente, benevola e caridosa disposição para com os defeitos alheios, sabe agradar, ser justa e afectuosa, controla seus gestos, possui aspecto encantador e prestigioso, sabe ser econômica, tem gosto 12 Embora os primeiros projetos de legislação desse serviço datam do final do século XIX, a Consolidação das Leis Trabalhistas, em 1943, mantém excluídos da legislação do mundo do trabalho até a Constituição de 1988. As leis criadas entre o final do século XIX e início do XX estabeleciam as obrigações e os deveres de patrões e empregados, mas o objetivo era proteger os empregadores das ameaças de roubo e violência e de contaminação por doenças (FERLA, 2011). Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.544

artistico e higiene domestica ; a criada é rude, inimiga, atrevida, desobediente, indolente, com má vontade, tem estupidez, preguiça, ignorancia, são pessoas sem alma, sem moralidade, sem affecto, invejosos, incultos, vingativos, criaturas indiferentes e boçais. A dona de casa no Brasil é a martyr mais digna de commiseração, entre todas as citadas pela historia. Viver em baixo das mesmas telhas com uma inimiga que faz tudo o que póde para atormentar as nossas horas, pagar-lhe os serviços e ainda fazel-os de parceria, assumindo a responsabilidade dos máos jantares que ella faz e da maneira desleixada por que arrasta a vassoura pela casa; ordenar e ser desobedecida; pedir e obter más respostas; fallar com doçura e ouvir resmungar com aspereza; advertir com justiça e ouvir responder com aggressão e brutalidade; recommendar limpeza, economia, ordem e calma, e vêr só desperdícios, porcaria, desordem e violencia, confessa que é coisa de fazer abalar em vibrações dolorosas os nervos os mais modestos, mais tranquillos e mais saudavelmente pacatos do mundo! (ALMEIDA, 1906, p. 64). Com relação às tarefas que cada uma delas possuía, encontramos também distinções. A patroa era responsável pela saúde da família e conforto no lar, educação dos filhos, administra o lar e, por esse motivo, era ela quem preparava os cardápios das refeições, ensinava os criados como agir e realizar as tarefas, organizava as atividades e rotina doméstica, deveria saber dominar a arte culinaria e ter o respeito das cifras, da economia, e da bôa administração interior. Não ha profissão, convenhamo-nos, em que não haja poesia; o caso é comprehendel-a e respeital-a, dando-lhe o logar merecido. A ménagère então deve sentir revestidos d ella todos os seus actos. [...] Com as mãos sujas de carvão, na cozinha, accendendo o fogo para fazer o almoço do marido, cosendo-lhe a roupa, amammentando os filhos, varrendo a casa ou enterpretando Chopin; pintando uma aquarella ou amarrando um bouquet, a mulher tem sempre a mesma poesia: a de trabalhar para ser agradavel, util, bôa, para satisfazer uma necessidade moral ou intellectual do esposo e da familia, revelando-se amorosa e digna do doce e pesado encargo que a sociedade lhe destinou. (ALMEIDA, 1905, p. 28-29). Às criadas cabia obedecer e cumprir as ordens que lhes eram passadas: A fiscalisação de uma bôa dona de casa conserva bons os bons criados e torna uteis os soffriveis. (CLESER, 1898, p. 30); Agora, se a vossa cozinheira fôr o que geralmente são todas por ahi, tractae de a educar; e se porventura não attender aos bons coselhos nem fôr susceptível de emenda, nesse caso... resta-vos um único meio de salvação despedil-a. (ALMEIDA, 1905, p. 98). Embora a distinção entre patroas e criadas fosse fortemente marcada nos textos dos manuais, em alguns momentos, pode-se observar que funções exercidas por eles poderiam se mesclar, principalmente, quando se tratava de estratos menos abastados: Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.545

A base de todo o conforto do lar é a boa dona de casa. Não pode haver economia nem commodidade em casa a não ser que a mulher ajude o marido, de recursos modestos, pois que nella se resume a governante, a ama de leite e a criada. [...] Demais a dona de casa, quando o seu marido é um operario ou um modesto funcionario, ou do commercio, deve cosinhar e fazer todo o arranjo do lar, poupando desse modo o dinheiro que se dispende com cosinheira e criada, embora leve uma vida atarefada; o tempo se faz e chega para tudo. (CLESER, 1898, p. 22). Nesse sentido, podemos considerar que, a partir da análise dos manuais femininos, a relação entre patroas e empregadas domésticas, entre o final do século XIX e início do XX, era marcada por limites e práticas ritualizadas, da mesma forma como apontou Kofes (2001) ao estudar o período contemporâneo. Embora patroas e criadas domésticas fossem mulheres e a elas eram atribuídos os mesmos papéis social de gênero (cuidado da casa, realização de atividades domésticas, reprodução), por serem pertencentes a estratos sociais desiguais, elas eram vistas de formas distintas. Isso é possível perceber quando estudamos as descrições de seus atributos físicos e morais, a rotina de trabalho e os medos sociais (roubo e doenças) canalizados no grupo ao qual as empregadas domésticas pertenciam. Considerações Finais O objetivo do trabalho foi analisar como patroas e criadas domésticas eram representadas em manuais femininos de prescrição de conduta (manuais de etiqueta, de economia doméstica, puericultura e de higiene e saúde). Eram obras que circularam pela cidade de São Paulo na passagem do século XIX e início do XX, em um momento em que de crescimento demográfico, transformação dos padrões de vida e de relações de trabalho. Os textos apresentavam discursos sobre gênero que consideravam que as diferenças sexuais entre homens e mulheres, ditas naturais, determinavam comportamentos e lugares sociais distintos na sociedade. Embora patroas e criadas fossem mulheres e a elas eram atribuídos papéis sociais comuns de gênero, por serem de estratos sociais desiguais, eram apresentadas de formas distintas. Fontes ALMEIDA, J. L. de. Livro das Donas e Donzellas. Desenhos de Jeanne Mahieu. Rio de Janeiro/ São Paulo/ Belo Horizonte: Francisco Alves & C.a, 1906. ALMEIDA, J. L. de. Livro das Noivas. 2a. edição. Rio de Janeiro/São Paulo/ Minas: Francisco Alves & Cia., 1905. CARVALHO, M. A. V. de. A arte de viver na sociedade. 4.ª ed. Lisboa, Parceria Antonio Maria Pereira. 4.ª ed., 1909. CLESER, V. O lar domestico: conselhos praticos sobre a boa direcção de uma casa. Sabará/MG: Unico agente vendedor A. Dilli/ S.Paulo Typographia de Oscar Monteiro, 1898. OUDINOT, Dr. P. C., JAGOT, Paul-Clément. Méthode Pratique de Développement du Charme Personnel, Paris: Édition Drouin, 1928. ROQUETTE, J. I. Código do bom tom; ou, Regras da civilidade e de bem viver no XIX Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.546

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