O respeito à Alteridade e sua importância na constituição do Ideal-do-Eu: uma reflexão clínica a partir de formas de vinculação na transferência.



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O respeito à Alteridade e sua importância na constituição do Ideal-do-Eu: uma reflexão clínica a partir de formas de vinculação na transferência. Homero Vettorazzo Filho Sociedad Brasilera de Psicoanálisis de San Pablo (SBPSP) h.vettorazzo@uol.com.br Escrevi este texto como forma de elaborar interrogantes que me propus durante o transcurso de uma análise marcada pelo transbordar de intensidades. No encontro analítico, as palavras, excessivamente investidas pela paciente, ficavam empobrecidas em seus recursos simbólicos. A analisanda, uma mulher de 47 anos, extremamente centralizada em si por manter-se aderida às intensidades com que revestia seus sentimentos e vínculos, apresentava-se, sob um olhar mais cuidadoso, "desfeita" nesse pulsional transbordante e dispersivo. Em seu primeiro contato comigo portou-se de forma distante algo arredia e talvez desafiadora. Parecia deprimida e irritada. Falou-me de sua pouca disponibilidade de se analisar: Vou ser sincera. Vim por insistência de uma grande amiga que me falou muito bem de você. Mas não acredito que análise possa me ajudar. Já fiz algumas... Aliás, faço análise desde a minha adolescência. Não vou dizer que não adiantou para nada ou que meus analistas não foram bons. Aprendi com eles, mas no fundo essa depressão, esse mal-estar que sinto comigo, não muda, parece ficar cada vez pior. Ao pedir que me falasse sobre esse mal-estar, acrescentou sem ânimo: Agora, por exemplo. Vindo para cá, no sinal, parei ao lado de um ônibus. Vi um homem na janela, que estava absorto, tranqüilo... Era uma pessoa humilde, rosto sofrido, mas tive inveja

dele. Ele parecia saber para onde ia... O que queria. Estava satisfeito com ele... Eu não quero nada, não consigo querer nada. Do que me recordo deste primeiro encontro, como um todo, foi ter-lhe pontuado a intensidade da tristeza e da irritação em que a percebia tão profundamente mergulhada. Lembro-me ainda de ter retomado sua colocação inicial sobre ser sincera comigo. Perguntei-lhe: e com você? Você considera estar sendo sincera consigo mesma em relação a tudo que me disse? Aparentemente contrariada, quis saber o porquê de tal pergunta. Falei ser apenas uma observação; para ela pensar sobre isso, se considerasse plausível. Reforcei minha impressão de percebê-la invadida por uma profunda tristeza e irritação. Marquei, entretanto, como contraste, não ter conseguido sentir a mesma profundidade em sua forma de tratar, ali, comigo, destes sentimentos. Sem qualquer esboço de pensamento, respondeu-me que isso se devia ao seu cansaço: por estar, há tanto tempo, nessa situação sem ver qualquer saída. Propus-lhe outra entrevista com a qual concordou sem ânimo e sem colocar empecilho. Neste novo encontro, para minha surpresa, ela chegou com o humor totalmente diferente. Disse-me que minhas colocações tinham-lhe chacoalhado ajudando-a considerar novas saídas; sentia-se mais animada pensando inclusive em um projeto profissional com uma amiga. Nas entrelinhas, comentários sutilmente elogiosos ao meu respeito davam um tom sedutor a sua fala. Dispôs-se a começar sua análise e assim iniciamos um trabalho marcado por intensidades constantes, fossem elas ruidosas ou terrivelmente silenciosas. Na ocasião, a paciente encontrava-se em tratamento psiquiátrico com diagnóstico de transtorno afetivo bipolar. Ao longo dos anos, vinha sendo medicada, com pouca melhora sintomática, com as mais variadas combinações de antidepressivos, estabilizadores de humor, neurolépticos e ansiolíticos. Assim, por sua contínua frustração em torno do tratamento medicamentoso, criava atritos que, no meio de muito tumulto, culminavam quase sempre com a mudança de psiquiatra. A hipótese de um transtorno dissociativo conversivo, ou seja, de histeria grave, era também aventada em função da pouca resposta medicamentosa.

Dentro do possível mantive o trabalho analítico discriminado do acompanhamento psiquiátrico, apesar das freqüentes tentativas da paciente e de seus familiares de enredar-me nos circuitos tanto psiquiátrico quanto familiar. Tais circuitos fatalmente se transformavam em palco para múltiplas atuações pulsionais ao estilo folie à deux, trois, quatre ou mais. Neles, em um angustiante processo desidentificante eu via a analisanda se decompor exteriorizada e dispersa na trama com que configurava o real por ela Na mesma direção do exteriorizar-se, seu sentir invasivo parecia mantê-la constantemente à flor da pele. Podia ser desencadeado por uma simples palavra, interpretada por ela como elogio ou crítica, ou então, por um gesto ou por um tom de voz nos quais ela se sentisse rejeitada ou desejada. Às vezes chegava a uma sessão animada. Dependendo do curso da sessão, de uma intervenção que a frustrasse ou a remetesse a alguma associação dolorida, era o suficiente para que fosse dominada por um apático desânimo uso propositalmente as palavras animada e desanimada para diferenciá-las de alegre e triste, visto que a paciente, em sua sensibilidade intensa e superficial, causava-me a estranha impressão de estar frente a uma boneca vivente ao invés de uma mulher viva 1. Nos períodos denominados por ela como depressivos, quando era tomada por uma angustiante apatia, os finais de sessão se transformavam em um intenso tumulto. A separação, encenada como uma expulsão violenta, tinha a tonalidade de uma velada, mas sonora, acusação de abandono. Apesar da riqueza de sentidos contida em sua fala e nos seus apelos, interpretálos, no caso dessa paciente, levava quase sempre a uma banalização da fala. Sendo uma mulher inteligente, durante décadas de análise ela acumulou um entendimento sobre si que, capturado em sua estrutura sintomática, era usado como formas de explicar-se, recriminar-se, saturando assim o campo analítico. Além disso, o grau de excitação com que comumente revestia uma interpretação acabava tendo o efeito de esvaziá-la de seu sentido. Não era incomum vê-la se decompor ao encarnar uma interpretação. Outra situação comum era ela se interpretar inclusive com adequação teórica em sua inveja, até mesmo em sua auto-inveja, sua auto-destrutividade, seu sadismo, seu masoquismo, 1 Fedida (1999) ressalta que em certas situações depressivas se produz defensivamente uma imitação do vivo, carregando o sujeito para mais perto de sua morte. A vida é empurrada para longe demais em sua imitação de vivente.

sua exclusão, seu abandono, seu Édipo, etc. Era desanimador constatar como aquilo que poderia viabilizar-se em ressonâncias para uma escuta íntima de si, ficava investido por um excesso que a capturava no real de sua fala, mantendo-a presa, ali, como personagem de seu discurso. A análise de crianças consistiu em um norte para que eu pudesse pensar minhas falas no trabalho com a paciente. Durante as sessões, inúmeras vezes ocorriam-me cenas de atendimentos nas quais, com a colaboração precisa de meus pequenos analisandos, pude realizar como a significância de minha palavra estava muito mais vinculada ao meu lugar encenado no jogar do que ao sentido de seu conteúdo. Assim, também nessa análise, procurava localizar-me no fantasma encenado na transferência para, a partir daí, contra-agir minha fala. Algumas vezes, frente ao tom mais grave ou impaciente de minha voz, a paciente reagia mostrando-se ofendida ou intimidada. Em tais circunstâncias normalmente pedialhe desculpas por tê-la assustado assegurando que não era essa minha intenção, mas que, tendo acontecido, seria importante ela se acalmar para, juntos, usarmos tal experiência como uma forma de pensar o que estava em jogo. Na maioria das vezes acalmava-se, entretanto, não conseguia perceber nela qualquer indício de que tivesse se tranqüilizado com o real da experiência de ter sido escutada e respeitada em seu medo. Parecia apenas vivenciar uma espécie de alívio que ganhava um tom sutilmente acusatório nos suspiros e no silêncio que lhe sucediam. Em tais circunstâncias, não raras vezes, suas associações se seguiam por sucessivos relatos sobre não ser ouvida e considerada normalmente, pelo marido, ou então, por lembranças infantis nas quais a falta de cuidado dos outros com ela ficava evidente. Ainda em associação às vivências da paciente frente às variações de modalidade e tonalidade de minha voz, ocorreu-me certa vez a estória da Chapeuzinho Vermelho, como figuração do que se encenava na sessão. Nos seus estados de humor animado, a paciente, me lembrava, de certa forma, a imagem da Chapeuzinho indo pela estrada a fora. O assustador de minha voz, por sua vez, parecia dar forma ao lobo bocudo e ameaçador. O interessante é que pelas associações da paciente, ou por sua forma de agir na transferência, duas configurações de lobo pareciam estar em jogo. Um lobo devorador que aparentemente aludia à imago materna como mãe devoradora, insatisfeita e

desindentificante fantasma no qual a paciente se encenava, dentro de uma lógica sexual oral, em uma relação, indiscriminada e autofágica, tal qual a percebia se debater e sucumbir frente à exigência incondicional de seus Ideais. O outro lobo, sedutor, parecia aludir à imago paterna como pai sedutor, cúmplice fantasma no qual a paciente se encenava, dentro de uma lógica fálica infiltrada, entretanto, por muitos elementos orais. Nesta última condição reconhecia a analisanda/ Chapeuzinho, em franca excitação eufórica, identificada como objeto de gozo incestuoso, mas, ao mesmo tempo, desamparada, no centro da cena primária, aprisionada como objeto-causa do prazer e do desprazer dos pais. A paciente em suas formas de vinculação deixava explícito o desamparo de alguém que nunca conseguiu fechar a porta do quarto dos pais condição que repetida no tratamento precisava ser barrada e resignificada por meio dos movimentos transferenciais. Jogar com tal estória deu-me espaço mental para localizar-me neste enredo perigoso no sentido de não ser caçador, mas de também não virar caça. A indiscriminação na paciente entre o espaço da realidade e o da cena imaginária (script alucinado) em que se via imersa, associada à suas formas maciças de investimento e desinvestimento expressão do TUDO ou NADA como legalidade instituída transformou-se em vértices de observação para minha escuta. A impressão era a dela estar em uma espécie de excitação sonambúlica, sem poder dormir e sonhar, e na qual o terror noturno era muito recorrente. Certa vez, no decorrer de uma sessão, sentia-me, tal como ela, tragado em seu voraz e devorador mar de lamúrias. Prestando atenção no meu desânimo escutei-me cantando em meu íntimo: Meu pai Oxalá é o rei, venha me valer. O Velho Omulu Atotô Abaluaiê 2 A melodia, a primeira vista, causou-me a impressão de que um Pai estava precisando ser invocado para dar alguma ordem simbólica àquela bagunça pulsional. Exercer alguma ação que tirasse a casa daquele abandono. Tal pensamento soou para mim de forma bem humorada e me aliviou um pouco. A música continuava ressoando e comecei a notar que ela tomava, à minha escuta, a sonoridade de uma cantiga de ninar: 2 Meu Pai Oxalá, letra e música de Toquinho e Vinícius de Moraes.

O velho Omulu Atotô Abaluaie... O velho Omolu Atotô Abaluaiê... atotô abaluaiê... atotô... abaluaiê...... atotô abaluaiê... Lembrei-me de uma situação clínica descrita por Silvia Bleichmar (1994) sobre uma jovem mãe que a consulta em função de seu bebê, de cinco semanas, ficar praticamente acordado durante 20 das 24horas do dia, não conseguindo mamar além de não dormir. Em tais circunstâncias o casal e o bebê se encontravam em um clima de desespero e esgotamento. Bleichmar dispõe-se a observar o vínculo mãe/bebê durante a mamada e troca de fralda, feitas na sua presença, em seu consultório. Durante esses encontros, conversa com a mãe voltando, por meio de suas intervenções, a atenção desta sobre o bebê, sobre sua forma de vê-lo, de tocá-lo, de senti-lo, estimulando-a assim a falar sobre ele, sobre suas fantasias de ser mãe. A jovem vai relaxando, fala sobre seus medos, olha o bebê com curiosidade, faz perguntas e experimenta prazer nessa situação. Instala-se assim algo que a autora vai conceituar como o exercício do narcisismo transvasante materno. A lembrança da descrição desse caso, das considerações de Bleichmar, o desespero irritadiço da paciente, a música de ninar, abriram minha disponibilidade para ouvir a paciente em sua irritabilidade. Penso que me senti mais livre de minha própria exigência. Animei-me a conversar com ela sobre seu cansaço e sua pouca possibilidade de sonhar. Falamos como esse viver alucinado era difícil e a sessão transcorreu com ela se acalmando e sentindo-se visivelmente mais vitalizada. Em outra situação, posterior, na qual o sentimento de ser tragado pelo Nada também dominava, me percebi de novo em minhas cantorias internas. A canção desta vez era: Ai minha mãe, minha mãe, menininha Ai minha, mãe menininha do Gantois A estrela mais linda, hein? Tá no Gantois O consolo da gente, hein? Tá no Gantois E a Oxum mais bonita, hein? Tá no Gantois Olorum quem mandou Essa filha de Oxum Tomar conta da gente E de tudo que há Olorum quem mandou ô ô Ora iê iê ô [...] Ora iê iê ô [...] Ora iê iê ô. 3 Foi interessante perceber que dessa vez o sentimento que acompanhava a canção não tinha a sonoridade de cantiga de ninar; parecia um lamento, um sentimento de solidão, de querer colo. Diferente daquele desamparo mais informe, de se estar 3 Oração da Mãe Menininha, letra e música de Dorival Caymmi.

desesperado, irritado, perdido no meio de uma excitação sem saída. Talvez influenciado por meu sentimento percebi uma tonalidade também diferente no Nada da paciente. Ela pareceu-me mais triste. Resolvi investigar. Ocorria-me como idéia ela estar se vendo esquecida em seus sentimentos de solidão e de isolamento. Falar disso, entretanto, seria introduzir seguramente um estímulo excitante que não sabia qual destino tomaria. Optei por perguntar-lhe: O que você está procurando? Ela respondeu: Estou sem forças, triste. Não estou procurando nada. Mobilizado ainda por essa intuição de estar perdida em uma solidão triste, contestei: Nada, talvez seja o que você encontrou... O que eu estou te perguntando é sobre: o que?... Quem?... Você está procurando? Pudemos conversar sobre seus sentimentos de tristeza, cuidando para que ela não fosse tomada por eles. Falou-me, de forma menos dramatizada e encarnada, da sua invisibilidade frente ao olhar da mãe. Optei por não fazer nenhuma interpretação de sentido sobre o conteúdo de suas lembranças. Apenas assinalei visando interessá-la por si que parecia tratar-se de uma questão importante visto que freqüentemente, em nossa relação, percebia nela o mesmo tipo de olhar sobre o qual estava me falando. Quando animada seu olhar ficava saltitante e estando deprimida ficava vago e insatisfeito, mas sempre transparente. Assim, conhecer suas formas de se olhar, e também de olhar para a vida, parecia ser uma proposta importante para ela considerar. Tal Império dos Sentimentos 4 e de Personagens à procura de um Sujeito 5 davam-me a clara indicação de que essa mulher precisava ser implicada em constituir-se subjetivamente, apropriando-se da força do seu sentir. Isso me remetia à constituição da subjetividade e ao narcisismo como condição estruturante do Eu questão que tento configurar neste texto para colocá-la em discussão dentro do trabalho analítico. Regressão e Transferência: o desfazer regressivo da identificação (e do Eu) nas figuras amadas da infância. Freud (1899) em carta a Fliess, tratando de suas preocupações sobre as escolhas da neurose, retoma sua pergunta sobre o porquê uma pessoa se torna histérica e não paranóica. Diz Freud: 4 Alusão ao filme de Nagisa Oshima (1975). 5 Parafraseando a peça Seis Personagens à Procura de um Autor de Luigi Pirandello (1921).

O estrato sexual mais primitivo é o auto-erotismo, que age sem qualquer fim psicossexual e exige somente sensações locais de satisfação. Depois dele vem o aloerotismo (homo e heteroerotismo); mas certamente também continua a existir como corrente separada. A histeria (e sua variante, a neurose obsessiva) é aloerótica: sua principal trajetória é a identificação com a pessoa amada. A paranóia desfaz novamente a identificação; restabelece todas as figuras amadas na infância, que foram abandonadas e reduz o próprio ego a figuras alheias. [...] As relações especiais do auto-erotismo com o ego-original projetariam viva luz sobre a natureza dessa neurose. Nesse ponto o fio se rompe. (pp.377) 6. Ao dizer que a paranóia desfaz novamente a identificação; restabelece todas as figuras amadas na infância, que foram abandonadas e reduz o próprio ego a figuras alheias, Freud (1989) abre o caminho para a postulação de noções fundamentais que desenvolverá em Introdução ao Narcisismo (Freud, 1914) quando, ao tratar do Ideal-do- Eu e da consciência moral base de suas concepções sobre Superego vincula a voz dos pais da infância à origem das legalidades presentes nos mandatos destas instâncias. Fica claro, acompanhando a obra de Freud, que tais mandatos não se reduzem a simples ordens formais. São mandatos em que as palavras podem encarnar em si realizar um imaginário no qual o indivíduo se encena em um jogo pulsional atuado como efeito do desejo onipotente do outro. Nem sempre a articulação desse imaginário encontra derivação suficiente no registro simbólico em que o indivíduo já pode se pensar, abstraindo-se da cena, para assim enunciar-se, como sujeito. As fixações nas cenas imaginárias nos fazem pensar também na participação do outro nesse jogo sempre atravessado por um sexual à procura de realização, e do qual não temos ciência. Freud (1909) alude a isso quando relata em seu historial sobre o Homem dos Ratos o episódio no qual o paciente, ainda menino, durante um confronto rivalizante com o pai, começa a dirigir-lhe xingamentos com muita raiva. Por falta de palavras, usa palavras comuns em tom ofensivo. O pai perplexo e mobilizado em seu inconsciente profere em tom ameaçador: o menino ou vai ser um 6 Destaque em negrito do autor.

grande homem, ou um grande criminoso. Tal mandato ainda ecoava no imaginário do paciente quando, adulto, procurou Freud, estando na base de seus fantasmas sadomasoquistas como os da famosa tortura dos ratos assim como nas dúvidas obsessivas que o torturavam moralmente. Freud (1909) promove ainda neste texto outras aberturas para pensarmos questões sempre pulsantes em nossa clínica. Uma delas eu contextualizaria nas formas regressivas assumidas pelo odiar/amar relacionadas, respectivamente, segundo o autor, à interferência e à realização do desejo sexual. De qualquer maneira me interessa marcar que Freud nos alerta para o componente do sexual infantil 7 que pode investir o amor e o ódio. Tal contexto me parece importante para considerar as intensidades que revestiam os sentimentos experimentados pela paciente em situações de júbilo e decepção. Na experiência analítica tais sentimentos apareciam transmutados em roteiros com teor de um verdadeiro sadomasoquismo canibal. Interpretá-los explicitamente resultava sempre em por mais lenha na fogueira. Assim, para desarmá-los, aprendi ser mais efetivo esquivar me deles, deslocando-me para um lugar diferente àquele que me era freqüentemente destinado. A saber, o lugar de Criador em relação de gozo ou de decepção com sua criatura, ou de Mestre que tem na discípula sua realização. Parece-me que agir, recusando o lugar anti-ético que me era oferecido, poderia servir à paciente como um modelo de cuidar-se e considerar-se eticamente, opondo-se a se colocar como criatura nas mãos das exigências de seu Ideal condição que denunciava o caráter pulsional destes mandatos. Acredito ser importantíssima a consideração da erotização do amor e do ódio visto que nessa condição o objeto perde sua condição de alteridade para ficar reduzido à função de objeto pulsional. Tal situação resulta em condições clínicas especialmente preocupantes, pois, pelo investimento excessivo de sua fala, tais pacientes acabam por se decompor regressivamente nos personagens de seu discurso, em uma espécie de real onírico (sonambúlico) no qual narrador/narrativa se confundem em uma excitante e inesgotável trama. 7 Uso aqui o infantil no contexto proposto por Laplanche de não reduzi-lo à noção de infância, mas ao que pulsa ainda em nós, na base de nossos fantasmas, à procura de simbolização possível.

É nessa trama que nos é imposto pensar o factual da realidade, da sessão e de nós mesmos. Neste sentido, um modelo que pode ser útil é o da figurabilidade dos sonhos onde temos a degradação 8 regressiva da palavra e do pensamento em imagens sensoriais cuja materialidade reside nas inscrições das marcas mnênmicas, base de nosso fantasiar inconsciente.. Considerar essa condição tornou-se um pano de fundo importante para minha escuta. Ainda no contexto das configurações assumidas na transferência por tal trama, retomo a proposta freudiana de considerar a regressão como um desfazer regressivo e alucinado das identificações em figuras amadas e abandonadas na infância, ou seja, nos objetos de investimento e de configuração do infantil assim restabelecidos, por captura indiciária, na realidade que ganha, portanto, um colorido alucinado. É interessante notar que o movimento regressivo traz em si claramente uma função desobjetalizante, visto que o retorno no real das figuras primariamente investidas tem como efeito um processo de desidentificação, tanto de si como do objeto. Tal processo de desindentificação acarreta uma fragilidade na trama de articulação simbólica do Eu que, nessas condições, vive a percepção endopsiquica de si como risco de invasão e desmoronamento, passando então defensivamente a percebê-la como estando fora de si. Condição que, por sua vez, predispõe à aderência (compulsiva) do Eu em pessoas ou em situações da realidade transformadas em indícios por sua ressonância com o primitivo denegado internamente. Como efeito da captura nessa condição, a desimplicação subjetiva, a desubjetivação tanto de si como do objeto e a compulsividade, consistem em sério entrave ao trabalho com tais pacientes. Desta forma, a intuição clínica de Freud sobre os processos regressivos abre caminhos importantes para a escuta no trabalho psicanalítico. Em função desta dimensão regressiva assumida pela palavra o discurso do paciente e a palavra do analista devem ser considerados implicados com o contexto universal da regressão onírica. Tal deve ser o embasamento metapsicológico quando se propõe que a escuta de uma sessão analítica deva corresponder à de um sonho, ou quando se discute o sonhar do analista durante a sessão. Associada a isso, a hipótese de Freud (1917) sobre ser a identificação o mais 8 Uso degradação no sentido de retornos regressivos às gradações primeiras de inscrições representacionais, não tendo, portanto, conotação moral.

antigo traço de vínculo com o objeto, nos permite conceber os processos regressivos transferenciais como formas de pensar o acesso e a intervenção psicanalítica nestes tempos primeiros e constitutivos do aparelho psíquico e da subjetividade. Tal condição nos conduz a considerarmos: O narcisismo como ato estruturante na constituição do Eu e como base para a constituição das legalidades do sistema de Ideal-do-Eu. Seguindo a trilha marcada por Freud, retomo a noção do Narcisismo como condição estruturante para a constituição do Eu e do Ideal do Eu considerados em sua implicação no processo de subjetivação e como base da estruturação da consciência moral e do superego. As relações entre corpo, imagem e Eu estiveram sempre presentes nas teorizações psicanalíticas. No contexto do corpo pensado como base primordial para as representações do Eu, o narcisismo, viria como expressão de um novo ato psíquico que se impõe contra a dispersão auto-erótica que se apresenta no corpo erógeno. Na constituição desse processo, seguindo o pensamento freudiano, ressaltaria duas funções psíquicas estruturantes: o recalque originário e o processo identificatório. É na condição de identificação que Freud (1923, p.42) propõe a constituição do Eu-Ideal e sua retranscrição no sistema de Ideal-do-Eu. Diz: Independente do tipo de resistência que o caráter vá futuramente erigir para lidar com os efeitos das cargas de investimentos recolhidas dos objetos, essas primeiras identificações do início da vida, ainda da primeira idade, irão se generalizar e ser duradouras. Isso nos remete à questão de como surge o Eu-Ideal, pois, por trás deste, esconde-se a primeira e mais significativa identificação do indivíduo, aquela com o pai da sua própria pré-história pessoal. Em um primeiro momento, essa identificação não parece ser a consequência nem o resultado de um investimento objetal, pelo contrário, ela é uma identificação direta e imediata, anterior a qualquer investimento de objeto 9.... 9 Destaque em negrito do autor

No que diz respeito a uma identificação direta e imediata, anterior a qualquer investimento de objeto, somos levados a pensar o processo identificatório em um contexto anterior ao descrito por Freud (1917, p. 109) em Luto e Melancolia, quando o definiu como uma primeira etapa de como o Eu escolhe os objetos. Penso que Bleichmar (1994) ao especificar a função narcisisante materna, na dupla função exercida pela mãe, ajuda a dimensionarmos o caráter desta identificação que precede a escolha de objeto. Diz ela: Ser pensado pelo outro é condição de vida em sua persistência. Ser amado e ser pensado implicam em uma não apoderação do corpo por parte do outro: o próprio corpo só chega a ser próprio porque alguém, generosamente, cedeu uma propriedade de si mesmo, da qual se deve tornar alheio. (pp.4). No mesmo contexto dessa identificação direta, Aulagnier (1979) cunhou a noção de sombra falada em sua concepção de projeto identificatório, enfatizando que, antes mesmo de nascermos enquanto sujeito, estamos marcados, em nossa origem, pela antecipação de um Eu construído a partir do discurso que a mãe produz sobre o corpo do infante, encarnando-o enquanto sombra falada, e inscrevendo-o em uma ordem temporal e simbólica. Tal discurso se dá em uma dimensão muito além de um simples código lingüístico já que não se trata somente de palavras; é um ato de dirigir-se a um outro que alude tanto à mãe implicada em seu desejo, quanto à criança incluída como destinatária desse enunciado e, portanto, da projeção desse desejo. Fica assim nitidamente delineado o duplo que investe a constituição narcísica, base do processo identificatório. Ao mesmo tempo em que uma mãe sonha o filho como sujeito humano semelhante, com autonomia nos projetos futuros que inventa para ele, portanto, com possibilidades transgressivas, ela o toma também sob a forma de objetocausa de seu desejo e com isso o têm como realização pulsional sexual. Bleichmar (2006) antecipa a questão ética, entendida radicalmente como reconhecimento da alteridade, para esse início da vida considerado em relação aos tempos de fundação do psiquismo e aos processos envolvidos na estruturação do Eu, de seus Ideais (Eu-Ideal / Ideal-do-Eu), e do Supereu, implicados, por sua vez, na construção

da subjetividade, inclusive em sua dimensão ética. Deslocada assim, para antes da resolução edípica, a ética é considerada em relação às formas de apropriação do corpo e dos sentimentos da criança, que pode ser tratada pelos adultos como extensão de suas próprias necessidades, ou seja, como objeto parcial de descarga de suas pulsões, sejam elas prazerosas, ou angustiantes. A condição traumática instituída pela franca dependência da criança em relação ao adulto sedutor e cuidador, incita tal abuso afetivo, como o denominou Freud (1909, pp.143). As crianças formulam quem são em correspondência direta ao que ouvem de certas propostas do adulto. Muitas vezes tais proposições, apesar de mascaradas com emblemas culturais, visam à erotização da criança como objeto de realização do adulto no que diz respeito a seu sexual inconsciente. A introjeção de tal condição acarreta também em uma erotização dos processos constitutivos do Ideal-do-Eu. Penso que é a erotização do Ideal do Eu que está na base da demanda pulsional em que, na melancolia, a sombra do objeto faz sobre o Eu (Freud, 1917). Tal abuso afetivo se configurava em minha paciente na sua forma alienante de posicionar-se, como objeto de pulsão, frente ao outro ou ao seu Ideal. Também a noção de sombra falada (Aulagnier,1979) dá figurabilidade e movimento à colocação freudiana, no sentido de sua articulação com o sistema de Ideais do Eu. A autora propõe que a persistência do equivalente de tal sombra falada se reencontra sempre no horizonte da relação libidinal do Eu com seus Ideais de si mesmo ou com aqueles projetados na relação com o outro. Assinala, entretanto, a importância de que tal distância entre a sombra e o objeto investido seja reconhecida, desde as origens. Tal condição implica em que a dúvida, o sofrimento, a agressão, possam ser vividos tanto pela mãe quanto pela criança nos momentos em que não se assegura a concordância entre sombra e objeto. Caso contrário, tal sombra falada, ao invés de abrir perspectiva de porvir, pode transformar-se em assombração excitante devoradora e devorante, degradada no real psíquico do objeto pulsional que a habita. Este me parecia ser o desafio transferencial a ser vivido nesta análise.

As implicações clínicas de tais considerações impõem que nos posicionemos frente à imprecisão empobrecedora que recobre a conceituação de narcisismo, para pensarmos estratégias de abordagem desta condição no tratamento. Considerando-se o narcisismo como movimento identificatório estruturante que resulta na constituição de outro semelhante, considerado em sua alteridade, ficam as questões: Como articular esta condição às escolha narcísicas de objeto? Neste último contexto: o que é objeto de amor e o que é objeto de pulsão? Como ocorre o imbricar recíproco destas condições? Ou, em outras palavras, o que é narcisismo como forma de estruturação e desenvolvimento do Eu? E o que é narcisismo que tem no próprio Eu (nas representações imaginárias de si) ou no outro (vivenciado como continuidade indiscriminada de si) um objeto de satisfação do pulsional infantil? É importante marcar que o narcisismo como estruturante, como força ligadora, integradora ato psíquico fundante do ego e dos processos de subjetivação deve ser diferenciado do gozo narcísico como expressão do sexual pulsional parcial que, ao procurar descarga total, desconstroi, degrada regressivamente, tanto o objeto como o Eu, no real psíquico da coisa/objeto complementar à pulsão. A Alteridade e a Ética do Ideal: uma reflexão clínica a partir das formas de vinculação transferenciais.. Não agüento mais viver assim... Não quero mais viver assim... Não tenho vontade de nada... Não consigo levantar da cama... Fico lá, com o travesseiro tapando meus ouvidos, encolhida, imóvel, não quero ouvir barulho, movimento, nada. São tantos anos assim. Tanta análise, tratamento, remédios... Não muda nada... Não agüento mais viver assim... Falas, como estas, freqüentes e persistentes, dominavam nossos encontros, mas principalmente os desencontros. Percebia-me tomado por reações e pensamentos que geralmente me soavam como defensivos. Tinha a impressão de poder ser arrastado por um turbilhão também despertado em mim para um buraco negro: um mundo de trevas aonde só existia lugar para culpa, auto-recriminação, decepção e conformismo.

Apesar de conceber e valorizar a análise da contratransferência 10 como ferramenta importante no trabalho analítico, meu empenho nessa direção me preocupava. Questionava-me se não estava defensivamente me escondendo atrás de tal análise: ter o que pensar a respeito das minhas reações, era sem dúvida mais alentador do que o nada a ser feito proposto pela paciente. Sei que as defesas são necessárias e também organizadoras, entretanto, me importava discernir se meu sonhar não estaria a serviço de uma função resistencial de me manter isolado e protegido em minhas conjecturas como uma forma de não aprofundar, e afundar, em um terreno no qual a paciente parecia estar se afogando. Aliás, uma cena que me ocorreu várias vezes nesse atendimento era do filme O piano 11, na qual a personagem central é arrastada para o fundo do mar por ter o pé preso a seu piano que caiu mar adentro. De início, a personagem tenta se liberar, mas depois se deixa afundar em um misto de total complacência e êxtase configurados em um profundo e calmo silêncio: uma ausência absoluta de estímulos, o Nirvana. No filme, tal êxtase é quebrado quando a jovem, de forma ambivalente, solta seu pé da bota retornando assim à superfície. A imagem hipnótica do êxtase com que o silêncio absoluto era revestido, na cena em questão, condensava uma condição literal a ser tratada nesta análise: a da erotização do Nada questão presente na intolerância e rigidez com que a paciente se afogava em suas exigências e recriminações. Sua volta à superfície, por outro lado, tomava para mim a figura de desejo de análise, uma força que, no sentido contrário ao êxtase, a despertasse do transe hipnótico implicando-a subjetivamente nesse retorno. Uma função narcísica transvasante, em seu caráter identificatório, se impunha. Da mesma forma se impunha o cuidado ético em não tomar a paciente sedutoramente em minhas mãos, propondo-me a salvá-la talvez como forma de evacuar o terror evocado em minhas próprias fantasias. Não podia me entreter com o verniz ético e humanista de alguns apelos da paciente, ou 10 Concebo a contratransferência como transferências do analista, ou seja, como um processo que implica o analista em sua própria vida pulsional; condição que tira a contratransferência do campo exclusivo das projeções do analisando sobre o analista. 11 Filme escrito e dirigido pela neozelandesa Jane Campion, 1993.

mesmo das justificativas que fazia do seu sofrer 12, visto percebê-la em uma situação regressiva na qual a legalidade de seu Ideal-do-Eu estava a serviço da tirania do seu Eu- Ideal, mantendo-a sob a condição de objeto de realização pulsional. Uma noção aparentemente simples de ser enunciada: a de que o desejo do analista deve ser o de análise, teve que ser arduamente mantida contrapondo-se às mobilizações ativadas pelo contexto tumultuado e excitante. Percebi, degustando o amargor das conseqüências, a diferença entre desejo de análise e realização de desejo do paciente. Assim, considero que tal discriminação não deve ser pensada como uma questão técnica, mas sim metapsicológica. Fiz muitas revisões no proceder com a paciente tendo tal questão em mente. Tentava escutá-la nas dissonâncias que marcavam sua fala, seu acting, e seu sentir, implicando-me nesse processo no que diz respeito àquilo que minha presença, minhas reações e minhas intervenções ativavam nela. Sabia que não podia me distrair com seus personagens, seu sofrimento, suas oscilações de humor, ou com minhas conjecturas que muitas vezes ficavam a serviço do faz de conta em que vivia. Visando a proposta de analisá-la, era no confronto transferencial que deveria manter meu campo de atuação. Atentar para esses pequenos grandes detalhes, aparentemente tão conhecidos e corriqueiros, teve uma função de abertura de campo analítico e de maior liberdade no agir analítico. Apresento, para marcar interrogantes que gostaria de discutir, uma situação clínica significante no curso dessa análise, que foi arduamente trabalhada no cenário transferencial. Tal condição, configurada em um acting out da paciente, dava corpo a uma série de compreensões concebidas, na transferência sobre as legalidades que regiam suas formas de ser na vinculação consigo e com o outro. Invadida pelo seu nada, a paciente estava faltando às sessões dizendo-se tomada por uma persistente idéia de suicídio. Os familiares e seu psiquiatra cogitavam a possibilidade de submetê-la novamente a uma série de eletros-choque. Um tumulto moralista configurava-se em evidentes atuações sadomasoquistas nas quais dominava um tom acusatório e culpabilibizador. Era uma ménage à muitos que assumia para mim a configuração sádica de um salve-se quem puder. Talvez por captar tal situação, a 12 Com essa paciente pude conceber a diferença entre dor e sofrimento considerando que na última condição devemos ter um sujeito implicado e enunciando sua dor.

paciente contra-atuava colocando-se passiva em uma condição marcada por angústia e por um estranho e prazeroso torpor. Frente ao aumento progressivo de suas faltas, ela começou telefonar-me no horário de suas sessões pedindo, nos recados deixados na secretaria eletrônica, para que ligasse de volta. Apoiando-me em auto-justificativas que mais pareciam ser de bom senso do que decorrentes de um embasamento psicanalítico me convenci a retornar suas ligações. Nestes telefonemas a paciente sistematicamente me reafirmava seu grande desânimo. Já não saia mais do quarto; ficava deitada no escuro com a cabeça e os ouvidos tapados com o travesseiro, evitando ser invadida pelos sons e pela claridade. Não comia e não queria falar com ninguém. Reiterava seu sofrimento e que não agüentava mais estar viva. Todas estas comunicações eram entremeadas por longos períodos de silêncio principalmente depois de me relatar seu desejo de morrer. Diante de tais telefonemas sentia-me tanto invadido como frente a um impasse. Após pensar muito sobre o contexto em jogo nesta situação, dei-me conta de que responder ou não aos telefonemas tratava-se de uma questão metapsicológica a ser considerada portanto nem técnica nem humana. Pensando na paciente aprendi, no contato com ela, sobre seu risco de ser invadida por intensidades externas ou internas, condição que denunciava falhas no seu recalque primário e na constituição de sua membrana egóica com prejuízo, portanto, em sua função de filtro. Assim, via-me solicitado, como seu analista, a atuar no sentido de restaurar tais funções. Por outro lado, minha condição de escuta tornava-se precária frente à emergência de seus apelos e à ameaça dela matar-se acrescidas da dificuldade de ausência de setting. Portanto, qualquer palavra que eu dissesse podia oscilar entre sua ineficácia ao risco de perturbá-la gravemente. Em função disto resolvi intervir expondo-lhe minha dificuldade em trabalhar neste contexto. Tinha como intenção tanto lhe dar referentes de pensamento como implicá-la em minha decisão de não mais atender seus telefonemas. Sua reação foi de desespero dizendo-se abandonada e desacreditada em sua condição de não conseguir levantar-se para vir à análise. Discordei pontuando que ao reagir de imediato ela não havia me escutado nem pensado sobre minhas colocações. Pedi que se acalmasse e tentasse me ouvir. Reforcei que estando tomada pela sensação de abandono e descrédito não percebia que eu também existia e que estava falando de mim, das minhas condições de

trabalho. Acrescentei que a percebia incomunicável trancada em sua solitária. Pergunteilhe se ela sabia o que era solitária? Frente a sua falta de resposta insisti, chamando-a pelo nome, reiterando que havia lhe feito uma pergunta, o que tinha a me dizer a respeito? Respondeu-me impaciente, chorando: Não sei o que você está perguntando... Solitária?... Aquele verme? Concordei que era exatamente isso e acrescentei, após continuar mobilizando-a com perguntas, se ela lembrava-se que o tal verme era hermafrodito e que vivia encerrado em uma relação fechada consigo mesmo. Reforcei o propósito de ela voltar a vir às sessões visto que a experiência atual não estava ajudandoa a se pensar e, no que dizia respeito a mim, me via sem condições de trabalho por sentir-me pressionado, ameaçado e tendo de agir às cegas. Encerrei o telefonema com ela persistindo em sua sensação de não ter sido ouvida e compreendida. Após essa intervenção ela continuou faltando por muitas outras semanas, sem fazer qualquer comunicação. Nesse período considerei, em carne viva, a diferença entre desejo de análise e desejo do analista. Minha decisão em agir apoiado na transferência conforme o que pensava sobre os processos psíquicos em jogo na paciente, me dava a dimensão do que era desejo de análise. Conheci o desejo do analista, como contraponto, no impasse de atendê-la na realização de suas necessidades. Percebia meu esforço de manter-me vinculado à proposta de analisá-la e, ao mesmo tempo, a tentação em me decompor, regressivamente, nos seus objetos primários realizadores de desejos. Tal condição colocou-me em contato direto com as duas situações resistênciais princeps, para o trabalho analítico, que ficavam explicitadas na demanda da paciente em: 1) ser objeto-causa de desejo para o analista e vice-versa ter no analista o objeto-causa de seu desejo 2) de restituir, no lugar do analista, o lugar dos pais onipotentes da infância que garantem a imortalidade e a anulação da realidade como lugar de alteridade. A paciente retornou gradativamente às sessões persistindo em uma conduta na qual ficava evidente ela própria ter-se transformado em um palco aonde a morte era encenada como presença sinistra e sedutora da promessa de tranqüilidade e libertação. Estávamos em um de tais encontros em que o Nada imperava meio a uma fala que denunciava um profundo vazio quando, de passagem, ela diz que, estando extremamente mal ao sair do consultório no dia anterior, subiu até a cobertura do prédio com a intenção de suicidar-se. Encontrou, entretanto, a porta de acesso trancada. Prosseguiu discorrendo

sobre seu desejo de morrer como possibilidade de silenciar o tumulto em que se encontrava e não agüentava mais. Ficou então em silêncio. Percebi-me em novo impasse. De um lado sentia-me com raiva, irritado no fundo ofendido 13,, atingido pela violência que, configurada em um circuito tinto de ambivalência e rivalidade oral, me visava na condição de objeto pulsional seu. Sabia também, mais do que nunca, que devia des-sexualizar minha intervenção; o que não significava neutralizá-la ou distanciar-me. Qualquer distanciamento em tal condição era transformar fogo em incêndio. Além disso, pela experiência desenvolvida no contato analítico, sabia que a paciente era extremamente vigilante às mínimas entonações flagradas em minha voz. Por outro lado, impunha-se, até como forma de proporcionar à paciente um modelo alternativo, uma intervenção que não me tornasse complacente, como objeto complementar, ao seu império do sentir. Fazia-se necessário usar meu desejo de análise como força mobilizadora de seu interesse sobre si enquanto sujeito, em oposição a um corpo erógeno disperso. Mais dono de meus sentimentos, minha primeira ação, neste sentido, foi a de chamá-la pelo nome. Se estivesse em estado sonambúlico seria bom acordá-la para que pudesse interpretar seu sonho. Pareceu-me também ser conveniente, tal como em outras situações em que ficava imersa em tamanha letargia, provocá-la sem desafiá-la com questões. Não sabia o que dizer sobre a intencionalidade de seu ato de suicidar-se pulando do prédio de meu consultório, mas sabia que não podia deixar de estranhá-lo e de significá-lo no confronto transferencial direto com ela. Perguntei-lhe: Fulana, não te chama atenção, para quem não tem desejo nenhum, você resolver se matar jogando-se do prédio em que tenho consultório? Sua resposta, como usual, veio de imediato esvaziando minha pergunta à medida que afirmava minha importância para ela e que a escolha do meu prédio foi oportuna. Chamando-a novamente pelo nome pedi para que repetisse minha pergunta. Não tinha certeza de que ela a havia escutado para poder considerá-la antes de responder. Fez isso, ao mesmo tempo em que voltou a ater-se em suas explicações. Interrompi, marcando que sua resposta só reforçava minha questão: por que, já que me admira tanto, resolve matar-se 13 Transformar minha ofensa em indignação foi uma tarefa que concebi ao longo do trabalho. A ofensa tem um estatuto pulsional mais próximo ao gozo narcísico, portanto, de me colocar como objeto de satisfação ou a ser satisfeito em minhas expectativas. A indignação tem um estatuto mais ético de ser desconsiderado em minha alteridade.

bem em cima da minha cabeça? Irritada, ela contesta: será que você não viu que não tem nada a ver com você? Sou eu... Eu. Eu que não agüento mais viver, eu que não quero mais nada... Não tem nada a ver com você. Neste momento estava chorando intensamente, mas sem contato com o que estávamos tratando. Após permanecer em silêncio por um tempo volto a perguntar, contrapondo-me a seu choro: Você não acha estranha esta sua forma de consideração e de amar? Você se diz tão grata a mim e, ao mesmo tempo, nada tem a ver comigo? Não sou considerado em nada? Você resolve se matar, quase que na minha frente, sem se interessar em saber se isto vai me atingir, o que vai causar para mim? Mais calma, ainda chorando, me diz: Sei que sou egoísta... Mas não quero causar mal para você. Você pensa que não me matei até hoje por quê? Que não penso em meus filhos? No mal que posso causar a eles? Minhas amigas falam isso para mim, mas eu não estou agüentando mais. Frente a sua tentativa em desfazer-se nas suas auto-recriminações e de diluir o propósito e a singularidade de seu trabalho de análise generalizando-o no contexto de outras relações suas, interrompo-a: Fulana, você não está realmente me entendendo. Eu não sou suas amigas e o que estou tratando com você é diferente daquilo que vocês conversam. Estou, há alguns anos, seriamente interessado em trabalhar com você suas formas de funcionamento mental, tais como essa que estamos agora discutindo: de você, em muitas atitudes suas, não se levar em consideração fazendo o mesmo com pessoas que você diz gostar. Percebendo que a paciente parou de chorar e que, pega de surpresa, está impactada e atenta, volto a perguntar: o que pensa sobre o que estou lhe dizendo? Desta vez não responde de imediato: não quero ser assim... Você sabe, não gosto de fazer ninguém sofrer... Fico com raiva das pessoas quando me sinto abandonada... Nós já conversamos... Parece que só eu sofro... que tudo é comigo... Mas você sabe que não quero machucar ninguém. Penso ser importante não deixar que o apelo sedutor venha desconversar o confronto: Não, Fulana, eu não sei não... E penso que você também não sabe. Também não estamos aqui para discutir suas boas intenções até porque, como diz a sabedoria popular, de boas intenções o inferno está cheio. O que sei de minha experiência com você é que, quando sofre, você fica extremamente moralista e radical. Parece que todo mundo está lhe devendo algo. Aliás, penso que é exatamente disso que estamos tratando agora. Não vou concordar que me trate da mesma forma com a qual se trata quando está