A DIALÉTICA DA MERCADORIA: GUIA DE LEITURA *



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Transcrição:

A DIALÉTICA DA MERCADORIA: GUIA DE LEITURA * Reinaldo A. Carcanholo Sente-se na própria essência do dinheiro algo da essência da prostituição. G. Simmel Se o dinheiro, segundo Augier, vem ao mundo com uma mancha natural de sangue numa de suas faces, o capital, ao surgir, escorrem-lhe sangue e sujeira por todos os poros, da cabeça aos pés. K. Marx I - PRELIMINARES 1. A teoria do valor de Marx é, na verdade, muito mais ampla do que se tende a pensar. Em primeiro lugar, não se trata de uma teoria que se preocupe simplesmente em especificar os fatores que determinam os preços relativos ou o nível dos preços no mercado. Ela não é isso. Seus objetivos são muito mais amplos e complexos e seu ponto de partida é a determinação teórica da natureza da riqueza capitalista. Em segundo lugar, ela não se limita ao que se encontra desenvolvido no primeiro capítulo d'o Capital, mesmo que complementada por aqueles dedicados ao problema da transformação dos valores em preços de produção. Os conceitos de capital e mais-valia, capital industrial, capital fictício, por exemplo, são aspectos fundamentais da mencionada teoria do valor, sem os que ela não estaria completa e seria incompreensível. Na verdade, tais conceitos não são mais que formas desenvolvidas do valor e, portanto, os capítulos e seções d'o Capital dedicados a eles são indispensáveis para a referida teoria; eles aparecem discutidos ao longo de toda a mencionada obra, em seus três diferentes livros. Capital, por exemplo, é o próprio valor em fase avançada de seu desenvolvimento. Assim, poderíamos dizer, sem nenhum exagero, que a exposição da teoria marxista do valor encontra-se no conjunto da obra econômica de Marx e, em particular, em seu livro maior: O Capital. 2. Talvez essa seja uma das razões para que, desde sempre e até hoje, tenha existido exagerada incompreensão sobre a teoria de Marx sobre a sociedade capitalista, inclusive entre muitos daqueles que se consideram iniciados nesse tema. Essa incompreensão, além disso, tem como fundamento o fato de que muitos tratam de encontrar ali, de maneira imediata, resposta a perguntas não pertinentes ou, pelo menos, mal formuladas. 3. Nosso objetivo, neste trabalho, é construir um roteiro de estudos sobre os aspectos básicos da teoria marxista do valor; sobre aqueles aspectos que aparecem desenvolvidos * Agradeço os comentários de Mário Duayer e de Maurício Sabadini.

2 no primeiro capítulo d'o Capital. Para isso seremos obrigados a apresentar nossa interpretação sobre o tema. 4. Devemos advertir imediatamente sobre uma importante característica d'o Capital. Não vamos encontrar nesse livro a exposição dos resultados finais de uma pesquisa terminada; algo assim como um resumo das conclusões. De certa maneira, o que ali se expõe é a trajetória da pesquisa, os passos metodológicos necessários para ir descobrindo progressivamente cada nova categoria. Veremos que, ao lermos atenta e ordenadamente cada um dos seus sucessivos parágrafos, estaremos sendo conduzidos de mãos dadas pelo autor. Ele nos levará da observação sistemática e metódica da realidade, ao descobrimento das categorias; destas e de uma nova observação do real, nos guiará para o descobrimento de novas categorias. Começaremos logo a sentir-nos como os verdadeiros descobridores das mesmas. Aceitemos o convite do autor, caminhemos sob sua condução durante algum tempo, nos passos mais simples ou nos mais difíceis. Não tardará muito e nos daremos conta de que, em alguns passos, já não necessitaremos sua mão; poderemos caminhar sozinhos. 5. No entanto, como estamos acostumados a exposições sobre resultados finais, sobre conclusões, inicialmente não entenderemos o convite do autor. Suas palavras soarão como afirmações conclusivas. Nossa intenção nos próximos parágrafos é, em relação exclusivamente ao primeiro capítulo, demonstrar ao leitor que o autor d'o Capital efetivamente entregou-nos o referido convite e dar os passos mais importantes ali explicitados, aceitando as duas mãos de Marx. Em algumas oportunidades nos atreveremos a dar alguns passos sem sua ajuda; nesse momento estaremos convidando o leitor para que nos acompanhe. 6. Antes de entrarmos diretamente no tema, é indispensável uma última observação. Na verdade, a exposição d'o Capital não expressa de maneira completa o caminho de uma verdadeira pesquisa. Esta, na realidade, tem caminhos tortuosos; há momentos de êxito e também de fracassos; às vezes as perguntas formuladas são corretas, outras vezes é necessário começar de novo; uma ação específica pode resultar produtiva ou deve ser abandonada antes de terminar. A pesquisa, por melhor projetada que seja, não transcorre por uma linha reta, como poderia se pensar inicialmente; em outras palavras, ela não é um processo que possa ser totalmente planificado a priori. É certo que se encontrará em O Capital a exposição do processo de pesquisa científica, mas não do processo real, tal como efetivamente se deu. O processo de pesquisa científica que ali se explicita é ideal, no sentido de que se abstraem os erros, os fracassos, as ações realizadas, mas improdutivas; ali o processo aparece como se transcorresse por uma linha reta previamente traçada. As categorias vão sendo descobertas uma depois das outras; não existe lugar para a intuição, para a imaginação e a criação. Quem se tenha dedicado a uma verdadeira pesquisa científica saberá que aquele processo descrito como linear não é mais do que uma caricatura. No entanto, o procedimento expositivo usado por Marx é adequado: aos novos pesquisadores no tema, só é necessário comunicar os aspectos produtivos da pesquisa realizada e não os seus caminhos equivocados. Assim, a posteriori, é possível e correto fazer a exposição como se ela houvesse transcorrido por uma linha reta, sem desvios.

3 II - MERCADORIA: VALOR-DE-USO E VALOR-DE-TROCA 7. Aceitemos o objeto de estudo assinalado pelo autor em O Capital, já no seu primeiro parágrafo: a riqueza capitalista, isto é, a riqueza na época de domínio do capital. O nosso problema é identificar a natureza dessa riqueza, em outras palavras, nossa pergunta é: o que é riqueza na época capitalista? 8. O autor diria que, para responder a essa pergunta, não temos outro instrumento científico que a observação da realidade: "A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em imensa acumulação de mercadorias (...)" 1 Em outras palavras, observamos que a riqueza capitalista é uma "imensa acumulação de mercadorias"; aparece como, apresenta-se como uma imensa quantidade de mercadorias. Não se trata de uma definição 2 : riqueza capitalista é mercadoria. Trata-se de uma constatação, a partir da simples observação da realidade. 1. Marx, K. O Capital. Crítica da Economia Política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1980. Volume 1, p. 55. Obs.: a. Todas as próximas citações, salvo quando explícito, referem-se ao mesmo autor, obra e volume. Por isso, só indicaremos, depois de cada uma delas, entre parênteses, o nome do autor e o número da página. b) As diversas edições da DIFEL são todas iguais à edição citada (Civilização, 1980) com a mesma paginação. Na nova edição da Civilização Brasileira (1998), embora se trate rigorosamente da mesma tradução, a paginação é diferente. c) Outras edições d'o Capital, muito utilizadas entre nós são as da Coleção "Os Economistas" da Nova Cultural (anteriormente, Abril Cultural). No que se refere ao primeiro capítulo (A Mercadoria), a paginação sempre é a mesma, salvo na última edição (1996). d) Para indicar a página correspondente nas diversas edições utilizaremos o seguinte procedimento : - Dentro do parênteses, em seguida ao nome de Marx, aparecerá o número da página correspondente às edições da Difel (ou às antigas edições da Civilização Brasileira)........ ( ) - Em seguida, entre colchetes, aparecerá o correspondente à edição de 1998 da Civilização Brasileira................... [ ] - A seguir, entre chaves, o correspondente às antigas edições da Coleção dos Economistas..... { } - Finalmente, entre < >, o correspondente à última edição da Coleção dos Economistas (Nova Cultural, 1996)............ < > No que se refere à edição da Coleção dos Economistas de 1988 (brochura de capa azul), por razões de redução de custos, sua paginação foi alterada (salvo para o primeiro capítulo, como já assinalávamos). Por isso, quando necessário, incluiremos chaves adicionais { }, com a página correspondente a essa edição entre aspas, dentro dessas chaves {" "}. Assim, a citação anterior, ficaria assim: (Marx, p. 55)[57]{45}{"45"}<165>. Em caso similar (capítulo da Mercadoria), no entanto, incluir {"45"} seria redundante e, por isso, não será feito. 2. Não tratar-se de definição é extremamente importante. Na teoria de Marx, ao contrário do que estamos acostumados, não existem definições.

4 Seria possível, aqui, dizer que riqueza é dinheiro, ao invés de dizer que é mercadoria. No entanto, esse simples e sujo pedaço de papel (embora muito complexo e misterioso do ponto de vista teórico) constituído pelo dinheiro só pode ser considerado riqueza por ser capaz de comprar mercadorias; qualquer mercadoria. 9. Assim, se quisermos conhecer a riqueza capitalista e se olharmos a sociedade onde rege esse regime de produção, veremos que tal riqueza está formada por mercadorias e, portanto, não teremos outra coisa a fazer senão observar 3 a mercadoria mais de perto. Isso é o que diz implicitamente o nosso autor. 10. Se observarmos a mercadoria, nos daremos conta de que ela apresenta duas características; tem dois aspectos imediatamente observáveis. Ela é "antes de mais nada, um objeto externo, uma coisa que, por suas propriedades, satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia." (Marx, p. 41) [57]{45}<165> 4. Em segundo lugar, ela é um objeto capaz de intercambiar-se com outros objetos, com outras mercadorias; ela é capaz de comprar outras mercadorias. 11. Essas duas características da mercadoria não são produto da imaginação do autor d'o Capital; elas são facilmente observáveis por qualquer de nós. O que Marx fez foi dar nomes a tais características, criar termos relativos a esses aspectos. A mercadoria é um valor-de-uso pela sua capacidade de satisfazer necessidades; é um valor-de-troca (ou tem valor-de-troca) devido a sua capacidade de comprar outras. Assim, podemos dizer neste momento que a mercadoria (M) é valor-de-uso (V u ) e é valor-de-troca (V t ); é a unidade desses dois aspectos. M = V u V t 12. Nossa pesquisa não tem outro caminho a seguir senão observar mais de perto os dois aspectos da mercadoria. Aqui não analisaremos o valor-de-uso uma vez que não nos interessa neste momento. Corremos o risco, no entanto, de que se pense que esse aspecto da mercadoria tem um papel secundário na teoria de Marx, coisa que é, evidentemente, incorreta. A verdade é que destacar aqui sua importância implicaria demasiado espaço; mais do que poderíamos dispor neste lugar 5. 3. A observação da realidade é o primeiro passo do método científico da dialética materialista, característica do pensamento de Marx. 4. O primeiro parênteses corresponde à edição DIFEL; o segundo às diversas edições da Coleção "Os Economistas". Ver observações da nota número 1. 5. Afirmemos, no entanto, que, se a teoria de Marx for entendida adequadamente, em toda a sua profundidade, seu conceito de utilidade pouco tem a ver com o mesmo conceito neoclássico. Enquanto para os autores dessa corrente, a utilidade se esgota em uma relação subjetiva entre indivíduo e objeto, na teoria marxista essa relação subjetiva deve ser entendida como mera aparência. O estudo adequado dos esquemas da reprodução (livro II d'o Capital) permite entender que a utilidade, em sua essência, refere-se às necessidades do capital e não de cada indivíduo, pois o sujeito social, no capitalismo, sofre uma inversão (o ser humano é

5 III - DO VALOR-DE-TROCA AO VALOR 13. O que é valor-de-troca de uma mercadoria? Valor-de-troca é a "relação quantitativa entre valores-de-uso de espécies diferentes" 6 (Marx, p. 43)[58]{46}<166>, é a proporção em que se trocam valores-de-uso de um tipo por valores-de-uso de outro. Isso significa que uma mercadoria não tem um valor-de-troca, tem valores-de-troca. Quantos? Por exemplo: 1 kg. de trigo = 5 kg. de milho = 0,5 kg. de carne = 2 litros de leite = 6 kg. de mandioca = 3 kg. de feijão etc. Poderíamos dizer, assim, que uma mercadoria tem tantos valores-de-troca quantas mercadorias diferentes dela existam no mercado e possam, portanto, intercambiar-se consigo. 14. Tomemos agora um particular valor-de-troca de uma mercadoria qualquer. Essa proporção ou relação quantitativa, que é o valor-de-troca, "muda constantemente no tempo e no espaço". (Marx, p. 43)[58]{46}<166> Em outras palavras, se observarmos no mercado o valor-de-troca de uma mercadoria com outra qualquer, veremos que essa proporção não permanece invariável: ela muda com o tempo. Por outro lado, se no mesmo momento observarmos diferentes mercados, distantes uns dos outros, veremos distintos valores-de-troca de uma mercadoria em relação a outra determinada. 15. Essa variabilidade em relação ao tempo e ao espaço, pode sugerir que o valor-detroca tem a casualidade como uma de suas características. 16. Por outro lado, o valor-de-troca de uma mercadoria como proporção que é, muda conforme a outra mercadoria com a qual se troca a primeira. 17. A variabilidade do valor-de-troca de uma mercadoria dependendo da outra mercadoria com a que se intercambia determina naquele a característica de relatividade. substituído pelo capital, no papel de sujeito econômico e social). Assim, a utilidade para os neoclássicos está muito longe da utilidade para Marx. E isso é natural que ocorra, pois estamos frente a duas teorias: a primeira com uma perspectiva unidimensional da realidade e a outra, dialética. Observe-se que, para Marx, a afirmação de que a utilidade seja uma relação subjetiva indivíduo/objeto não constitui erro ou engano; ela é correta, mas insuficiente, pois a aparência é uma das duas verdadeiras dimensões da realidade. O erro ocorreria se pensássemos que a utilidade é só isso; que tem só essa dimensão; o engano está constituído pela crença na unidimensionalidade do real. Para maiores informações sobre a importância do valor-de-uso na teoria econômica de Marx, cf. Rosdolsky (2001), cap. 3, pp 75-92, cf. também Marx (1966), pp. 719-720. 6. Tampouco, aqui, se trata de definição. Frente a uma das características da mercadoria, Marx atribui um nome.

6 O valor-de-troca é uma característica relativa a ambas mercadorias que participam de uma relação de intercâmbio. 18. Em conclusão, a observação sistemática do mercado permite, ao nosso autor, descobrir duas características imediatamente observáveis do valor-de-troca: a variabilidade e a relatividade. A variabilidade, característica facilmente visível, obriga que Marx manifeste suspeita sobre a possibilidade de que o valor-de-troca seja casual. A variabilidade sugere, assim, a possibilidade da casualidade. "Por isso, o valor-de-troca parece algo casual e puramente relativo e, portanto, uma contradição em termos, um valor-de-troca inerente, imanente à mercadoria." (Marx, p. 43)[58]{46}<166> Em outras palavras, parece um contra-senso pensar a existência de um valor no interior mesmo da mercadoria. 19. Então, a conclusão do nosso autor é a seguinte: a) se é certo que o valor-de-troca é relativo e se ele possuísse uma explicação científica, ela não se encontraria na mercadoria ("imanente" a ela) cujo valor-de-troca perguntamos; a explicação deveria ser encontrada em ambas mercadorias em conjunto: na que está à esquerda e na que está à direita da igualdade; b) no entanto, se o valor-de-troca fosse puramente casual (parágrafo 18), não teria nenhum sentido buscar uma explicação para ele; as coisas casuais não têm explicação científica, exceto por meio da lei das probabilidades, o que na verdade não é o que interessa aqui. 20. No entanto, esse aparente contra-senso de buscar uma explicação para o valor-detroca e, além do mais, de buscá-la no interior da mesma mercadoria e não na sua relação com outra, não leva nosso autor a renunciar na busca de uma teoria do valor. Veremos que a conclusão de que não tem sentido buscar essa explicação, isto é, buscar o valor, é resultado exclusivo da observação imediata, preliminar da realidade; da superfície dos fenômenos reais. 21. Não existe outra maneira de superar essa conclusão preliminar de superar o nível aparencial senão a própria observação dos fenômenos. É por isso que o nosso autor afirma: "parece... uma contradição em termos, um valor-de-troca inerente, imanente à mercadoria. Vejamos a coisa mais de perto." (Marx, p. 43)[58]{46}<166> 22. Vejamos, então, a coisa mais de perto. A aparente casualidade do valor-de-troca era conseqüência do fato da sua variabilidade no tempo e no espaço. Eliminemos as mudanças que ocorrem no tempo e no espaço; se dessa maneira encontrarmos alguma regra sistemática à qual atenda o valor-de-troca, então poderemos concluir que, na verdade, ele não é casual e que, portanto, pode e deve encontrar-se uma explicação científica causal para ele. Observemos que, encontrada uma única regularidade em um fenômeno que supomos ser casual, a casualidade deve ser afastada. Basta considerar o exemplo de sorteios de loteria. Se, na observação dos seus resultados sucessivos, encontrarmos uma única regularidade que permaneça por tempo mais ou menos prolongado, em algum momento chegaremos à conclusão que algo está interferindo de maneira deliberada; não pode ser casual. Assim, procuremos uma regularidade no valor-de-troca; uma única regularidade.

7 23. Como dissemos, eliminemos as variações no tempo e no espaço. Observemos de novo o mercado e suponhamos que encontramos ali que: 1 kg. de trigo = 5 kg. de milho = 0,5 kg. de carne = 2 litros de leite = 6 kg. de mandioca = 3 kg. de feijão etc. Perguntemos agora qual seria o valor-de-troca, nesse mesmo instante e nesse lugar, de 2 litros de leite em termos de mandioca. Não é necessário buscar muito essa resposta, pois o mesmo mercado nos indica: 2 litros de leite = 6 kg. de mandioca E se quiséssemos saber o valor-de-troca dessa quantidade de leite em termos de todas as demais mercadorias, a resposta seria: 2 litros de leite = 6 kg. de mandioca = 5 kg. de milho = 0,5 kg. de carne = 3 kg. de feijão = etc. 7 24. O que significa o anterior? Dados os valores-de-troca do trigo, os valores-de-troca do leite não são casuais, estão determinados. Por outro lado, se tivéssemos partido do valor-de-troca do leite, o valor-de-troca do trigo não poderia ser qualquer, já estaria determinado e, portanto, não seria casual. A casualidade, como característica do valorde-troca era puramente da aparência. Devemos então buscar a explicação do valor-detroca. 25. Tomemos outra vez as diferentes expressões do valor-de-troca de 1 kg de trigo: 5 kg de milho, 0,5 kg de carne, 2 litros de leite, 6 kg de mandioca, 3 kg de feijão. Podemos ver que todas essas quantidades de diferentes mercadorias são intercambiáveis entre si no mesmo mercado e no mesmo momento assinalado anteriormente, exatamente 7. Este raciocínio poderia ser vítima de uma crítica baseada no fato da existência de lucro do intermediário. Para evitar maiores discussões, basta indicar que o que nos interessa aqui é somente chegar à conclusão de que os diferentes valores-de-troca da mesma mercadoria são todos iguais entre si e que essa igualdade é determinada pelo próprio mercado. Para demonstrar isso talvez fosse suficiente argumentar que, com as quantidades especificadas das diferentes mercadorias, qualquer possuidor poderá adquirir sempre a mesma quantidade da mercadoria trigo, isto é, daquela cujo valor-de-troca estamos estudando.

8 no volume ali indicado. Isso significa que elas são, no mercado, todas iguais entre si. Todos os diferentes valores-de-troca da mercadoria trigo são iguais entre si, e quem afirma isso é o próprio mercado. Isso constitui uma regularidade. É verdade que isso ocorre em um mercado e em um determinado momento, isto é, eliminando-se as variações de espaço e tempo, como dissemos acima. Mas também é verdade que isso é um fato no interior de qualquer mercado e em qualquer instante do tempo. Trata-se de uma regularidade que sempre ocorre e, portanto, podemos descartar a idéia da casualidade. 26. Vejamos novamente as expressões de troca de 1 kg de trigo e perguntemos: o que fazem todas essas coisas iguais entre si, do lado direito da igualdade? Em outras palavras, o que obrigou que todas essas quantidades de diversas mercadorias sejam iguais? Esse resultado não é casual, ele é necessário. Esse algo que impõe a existência da igualdade de todas elas só pode ser uma característica da própria mercadoria trigo. Quem atrai para si as demais mercadorias é o trigo, e as atrai em quantidades que as fazem iguais entre si. Assim, não pode ser outra maneira: alguma propriedade interior ao trigo é a responsável. Essa propriedade imanente à mercadoria, descoberta por meio da observação sistemática, é denominada valor, pelo nosso autor 8. 27. Resumamos todas as considerações anteriores com as extremamente resumidas palavras do nosso autor: "Qualquer mercadoria se troca por outras, nas mais diversas proporções, por exemplo, um quarter de trigo por X de graxa, ou por Y de seda ou Z de ouro etc. Ao invés de um só, o trigo tem, portanto, muitos valores-de-troca. Mas, uma vez que cada um dos itens, separadamente X de graxa, Y de seda ou Z de ouro, é o valor-de-troca de um quarter de trigo, devem X de graxa, Y de seda e Z de ouro, como valores-de-troca, ser permutáveis e iguais entre si. Daí se deduz, primeiro: os valores-de-troca vigentes da mesma mercadoria expressam, todos, um significado igual; segundo: o valor-de-troca só pode ser a maneira de expressar-se, a forma de manifestação de uma substância que dele se pode distinguir." (Marx, p. 43)[58 e 59]{46}<166> 28. Portanto, o valor-de-troca de uma mercadoria é a maneira de expressar-se, a forma de manifestação, a expressão de um conteúdo da (algo imanente à) mercadoria. Essa substância que se pode distinguir do valor-de-troca tem um nome dado por Marx: valor 9. 8. Algo similar ocorre com o magnetismo. Um ímã atrai outros objetos de ferro devido à sua propriedade interior chamada magnetismo. De maneira similar (nesse aspecto), o valor é uma propriedade imanente às mercadorias que não pode ser observada diretamente. Só sabemos da sua existência devido às suas manifestações: os valores-de-troca. Podemos olhar um ímã por todos os seus lados, jamais saberemos da existência de sua imantação a não ser por suas manifestações: a atração de outros objetos de ferro. Da mesma maneira como a imantação transforma um objeto de ferro em ímã, em um objeto que era mais ou menos misterioso antigamente, o valor transforma os valores-de-uso produtos do trabalho humano em mercadorias, objetos total e absolutamente misteriosos até hoje. Talvez, mais hoje do que ontem.

9 29. Façamos uma breve pausa neste momento e vejamos, nos parágrafos anteriores, o processo metodológico utilizado para chegar aos resultados encontrados. Já havíamos destacado que o ponto de partida do nosso autor é sempre a realidade mesma e não conceitos criados pela sua própria imaginação, por seu pensamento; seu método de investigação científica é a observação sistemática dessa realidade 10. Por sorte existe referência do próprio autor sobre essa questão: "... eu nunca parto dos 'conceitos', nem portanto do 'conceito de valor'... Eu parto da forma social mais simples na que se corporifica o produto do trabalho na sociedade atual, que é a mercadoria. Analiso-a e o faço fixando-me especialmente na forma sob a qual ela se apresenta. Descubro, assim, que 'mercadoria' é, por um lado, na sua `forma material, um objeto útil ou, em outras palavras, um valor-de-uso e, por outro, encarnação do valor-de-troca e, desde este ponto de vista, 'valor-de-troca' ela própria. Sigo analisando o 'valorde-troca' e descubro que ele não é mais do que uma 'forma de manifestar-se', uma maneira especial de aparecer o valor contido na mercadoria, razão pela qual procedo à análise deste último." 11 IV - O VALOR 30. Portanto, como vimos, o valor é uma qualidade, um atributo, uma propriedade da mercadoria 12. Essa qualidade ou propriedade da mercadoria consiste na sua capacidade de comprar (de intercambiar-se com) outras mercadorias, todas as demais mercadorias, sem exceção. Até agora, não sabemos muito sobre ela, praticamente nada. Só sabemos que se trata de um determinado poder de compra. Observemos, então, a coisa mais de perto. 31. A propriedade valor da mercadoria não aparece (não se expressa) por si mesma, não aparece como tal propriedade, mas por meio de sua manifestação: o valor-de-troca. Por isso o valor-de-troca é a forma necessária, imediata, de manifestação do valor. 32. Essa propriedade-valor que as coisas possuem na sociedade mercantil não é natural a elas. Em outras palavras, as coisas não têm valor por serem coisas. Só possuem valor 9. Identificar valor-de-troca e valor, o que equivale a confundir valor e preço, é um erro absolutamente primário; trata-se de identificar essência e aparência. O que é mais surpreendente é a freqüência com que podemos nos encontrar com essa equivocada interpretação. Mais adiante veremos que o próprio Marx tem algo de culpa ao induzir seus leitores menos atentos a esse engano; e não foi intencional (cf. parágrafo 51 mais adiante). O que é inegável é que, em muitas passagens d'o Capital não fica a menor dúvida de que se trata de conceitos diferentes, embora relacionados. 10. O método utilizado por Marx e implícito desde o começo poderia ser resumido da seguinte maneira: formular uma questão, observar, descobrir, descrever o descoberto, dar nome; em seguida, se necessário, observar mais de perto antes de uma nova questão. 11. Marx, K., 1966, pp. 717 e 718 (trad. nossa). 12. O valor não será uma simples propriedade da mercadoria para sempre. Como qualquer outro conceito da teoria de Marx ele se refere não a algo dado, mas a um processo de desenvolvimento. Ele chegará a transformar-se de simples propriedade adjetiva em realidade substantiva, em ser com vida própria. É o que se chama substantivação do valor. Para melhor compreensão disso, cf. Carcanholo e Nakatani (1999).

10 porque encontram-se dentro de uma sociedade mercantil. É essa sociedade, ao igualar o trigo com o milho no mercado, que confere ao trigo sua propriedade de ser valor; ela e só ela lhe confere o poder de comprar. 33. Então, o valor é uma qualidade entregue às coisas pela sociedade; mas não por qualquer sociedade, exclusivamente pela sociedade mercantil. Logo, o valor é uma qualidade social e histórica das coisas. 34. Algo, quando é produto do trabalho humano, adquire valor porque na sociedade ocorre intercâmbio mercantil. Este é resultado da existência de certo tipo de relações sociais entre os produtores, de relações entre produtores formalmente independentes e autônomos, que produzem uns para os outros, para a troca. Portanto, o valor não é mais que a expressão, nas coisas, das particulares relações sociais de produção existentes na sociedade mercantil. Assim, as relações mercantis de produção expressam-se nas coisas, como uma qualidade social destas: como valor. 35. O valor é uma espécie de carimbo que a sociedade estampa sobre a materialidade física de cada valor-de-uso, transformando-o em mercadoria. Essa marca indelével, impressa na face da mercadoria, diz: VALOR. Indelével, mas invisível. Ele é algo similar, na mercadoria, à nacionalidade de uma pessoa. A nacionalidade indica, em geral, o local de nascimento do indivíduo: "sou brasileiro", por exemplo. O valor revela que o valor-de-uso que o possui, provém de (ou é originário de, foi produzido sob) relações sociais mercantis de produção. O valor é uma espécie de passaporte que confere ao seu possuidor (a mercadoria) o poder de comprar (de trocar-se por) suas similares (isto é: outras mercadorias). Muitas vezes se diz que o valor é uma relação social. Essa não é uma afirmação rigorosamente correta. O valor é, na realidade, a relação social mercantil expressa nas coisas produzidas pelo trabalho como uma propriedade (ou qualidade específica delas), propriedade essa que consiste num certo poder de compra sobre as demais coisas. 36. Portanto, o valor não tem materialidade física mas, ao mesmo tempo, não é uma simples idéia, um simples pensamento. O valor é real e tem materialidade, só que materialidade social e histórica. V- VALOR E TRABALHO 13 37. Qual é o mecanismo que a sociedade utiliza para estampar nas coisas o carimbo VALOR, a característica valor? 13. A relação entre valor e trabalho humano, isto é, o fato de que este seja a fonte do valor, não nos parece que tenha recebido, n'o Capital, o tratamento mais adequado e suficiente. Provavelmente isso se explica pelo fato de que, na época de sua redação, pelo menos entre os grandes autores, o assunto não era tão controvertido. A verdadeira razão que permite a Marx sustentar ser o trabalho humano o que produz valor é muito mais significativa do que pode parece no capítulo de seu livro sobre a mercadoria. Nos dias de hoje, quando muito se discute o assunto, é indispensável um tratamento diferente. Por isso, deixaremos para discutir mais amplamente o assunto nos Temas Complementares, incluído no final deste trabalho.

11 Esse mecanismo é o trabalho humano. 38. O mercado, ao igualar duas mercadorias quaisquer, em certas quantidades, por exemplo trigo e ferro, x trigo = y ferro, ao mesmo tempo nos diz que o trabalho do produtor de trigo, incorporado a esse bem, e o que produziu o ferro são iguais. No entanto, é evidente que esses dois trabalhos são objetivamente diferentes entre si e, então, não é que eles sejam iguais no mercado; este os faz iguais, os iguala, abstrai suas diferenças. 39. Assim, da mesma maneira que a mercadoria é a unidade de dois aspectos (valor-deuso e valor), o trabalho mercantil (especialmente na sociedade mercantil por excelência, que é a sociedade capitalista) é ao mesmo tempo trabalho concreto (ou útil) e trabalho abstrato. É trabalho concreto (ou útil) na medida em que prestamos atenção nas suas propriedades específicas, as que permitem distinguir entre o trabalho de um tipo, do trabalho de outro. É trabalho abstrato na medida em que o consideramos como simples trabalho humano, indistinto 14. "Se prescindirmos do valor-de-uso da mercadoria, só lhe resta ainda uma propriedade, a de ser produto do trabalho. Mas, então, o produto do trabalho já terá passado por uma transmutação. Pondo de lado seu valor-de-uso, abstraímos, também, das formas e elementos materiais que fazem dele um valorde-uso. Ele não é mais mesa, casa, fio ou qualquer outra coisa útil. Sumiram todas as suas qualidades materiais. Também não é mais o produto do trabalho do marceneiro, do pedreiro, do fiandeiro ou de qualquer outra forma de trabalho produtivo. Ao desaparecer o caráter útil dos produtos do trabalho, também desaparece o caráter útil dos trabalhos neles corporificados, desvanecem-se, portanto, as diferentes formas de trabalho concreto, elas não mais se distinguem umas das outras, mas reduzem-se, todas, a uma única espécie de trabalho, o trabalho humano abstrato." (Marx, pp. 44 e 45)[60]{47}<167 e 168> 40. Assim, o trabalho mercantil capitalista tem duas faces ou, em outras palavras, é a unidade de dois aspectos (ou pólos): trabalho concreto (ou útil) e trabalho abstrato. trabalho humano = trabalho concreto trabalho abstrato 14. "Pondo-se de lado o desígnio da atividade produtiva e, em conseqüência, o caráter útil do trabalho, resta-lhe apenas ser um dispêndio de força humana de trabalho. O trabalho do alfaiate e o do tecelão, embora atividades produtivas qualitativamente diferentes, são ambos dispêndio humano produtivo de cérebro, músculos, nervos, mão etc., e, desse modo, são ambos trabalho humano". (Marx, p. 51)[66]{51}<173>

12 É justamente por possuir esse duplo aspecto que ele é capaz de produzir uma mercadoria, isto é, produzir duas coisas ao mesmo tempo: valor-de-uso e valor. Como trabalho concreto (útil) o trabalho cria valores-de-uso 15, como trabalho abstrato produz valor. "Como configuração dessa substância social que lhes é comum (trabalho humano indistinguível, abstrato, RC), são valores-mercadorias." (Marx, p. 45)[60]{47}<168> "Um valor ou um bem só possui, portanto, valor, porque nele está corporificado, materializado, trabalho humano abstrato." (Marx, p. 45)[60]{47}<168> 41. É necessário insistir. O caráter abstrato do trabalho mercantil não é um simples produto do pensamento, da imaginação. É o mercado, a própria realidade do capitalismo, quem cria a indiferença do trabalho, o trabalho abstrato. O mercado produz a indiferenciação dos trabalhos. Na verdade, os dois pólos contraditórios do trabalho (útil e abstrato) são pontos de vista diferentes, a partir dos quais podemos observar o trabalho. Podemos olhar o trabalho de um marceneiro, por exemplo, do ponto de vista do que sua ação particular tem de diferente em relação ao trabalho de outros produtores. Assim, estaremos vendo o trabalho útil ou concreto. Podemos olhá-lo, também, de outro ponto de vista: observando apenas o que ele tem em comum com o trabalho de todos os demais tipos. Assim, estaremos vendo o trabalho abstrato; estaremos fazendo a abstração do trabalho. Dessa maneira, a abstração é produto do nosso pensamento; é uma idéia. É verdade. No entanto, na sociedade capitalista essa idéia não é arbitrária, pois é o próprio mercado que iguala trabalhos diferentes. Desejar utilizar o conceito de trabalho abstrato para entender sociedades não capitalistas, não mercantis, aí sim seria uma arbitrariedade do pensamento. É por isso que podemos dizer que o trabalho abstrato, no capitalismo, é um conceito próprio da realidade e não um simples e arbitrário pensamento 16. 15. "O casaco é valor-de-uso que satisfaz uma necessidade particular. Para produzi-lo, precisa-se de certo tipo de atividade produtiva, determinada por seu fim, modo de operar, objeto sobre o que opera, seus meios e seu resultado. Chamamos simplesmente de trabalho útil aquele cuja utilidade se patenteia no valor-de-uso do seu produto ou cujo produto é um valor-deuso." (Marx, pp. 48 e 49)[63]{50}<171> "Sendo casaco e linho valores-de-uso qualitativamente diversos, também diferem qualitativamente os trabalhos que dão origem a sua existência - o ofício de alfaiate e o de tecelão." (Marx, p. 49)[63 e 64]{50}<171> 16. A ação do nosso pensamento de produzir abstrações é muito mais freqüente do que se poderia pensar. A todo momento estamos fazendo abstrações. É completamente diferente quando pensamos em um gato, por exemplo, e não no "meu" gato. Este é cheio de particularidades e é por isso que o identificamos como "o meu". "Gato" ou "um gato" é o resultado, no pensamento, da abstração das diferentes particularidades. Trata-se de uma idéia, mas ela não é arbitrária; corresponde à realidade e a prova disso é que, entre eles, os gatos, há a possibilidade de reprodução. O mesmo acontece com o conceito de cão ou "cachorro"; trata-se de um conceito não arbitrário do pensamento. No entanto, embora seja possível, se quisermos, pensar em um "gachorro" (mistura de cão e gato), trata-se de uma idéia arbitrária, não correspondente à realidade.

13 VI - A MAGNITUDE OU GRANDEZA DO VALOR 42. Observemos uma vez mais o valor-de-troca. Sabemos que ele não é mais do que expressão, forma de manifestação do valor. Sabemos também que ele é uma determinada proporção quantitativa. Então, de onde procede essa característica quantitativa do valor-de-troca? Como o valor-de-troca não é senão a expressão fenomênica do valor, suas características só podem ser expressões das propriedades inerentes ao próprio valor. A característica quantitativa do valor-de-troca só pode corresponder a uma dimensão quantitativa do valor. Essa dimensão quantitativa do valor, descoberta dessa maneira, denomina-se magnitude ou grandeza do valor. Observemos, antes de prosseguir, um aspecto formal extremamente importante. Muitas vezes, Marx, quando quer se referir à magnitude ou grandeza do valor, escreve simplesmente valor. Assim, encontraremos com muita freqüência referências do tipo: o valor de determinada mercadoria é igual a 10 horas de trabalho. Obviamente, o autor está aqui referindo-se à magnitude do valor da mercadoria. Esse é um procedimento simplificador e aceitável se pudermos ter sempre presente o seu significado. 43. Como "um bem só possui (...) valor, porque nele está corporificado, materializado, trabalho humano abstrato" (Marx, p. 45)[60]{47}<168>, a magnitude do valor determina-se pela quantidade ou volume de trabalho humano socialmente necessário à produção do bem. Por outro lado, "a quantidade de trabalho, por sua vez, mede-se pelo tempo de sua duração, e o tempo de trabalho, por frações do tempo, como hora, dia etc." (Marx, p. 45) [60]{47}<168> Aliás, devemos destacar que é muito importante diferenciar claramente o que é medida do valor (o tempo de trabalho socialmente necessário) do que é a sua determinação (quantidade de trabalho socialmente necessário). Isso é relevante, sobretudo se tivermos em consideração o conceito de intensificação do trabalho, aspecto que desenvolveremos nos Temas Complementares, ao final deste trabalho. Outra observação importante aqui é a de que, na verdade, a magnitude do valor de uma mercadoria não se determina pela quantidade de trabalho socialmente necessário para produzi-la, mas pela quantidade de trabalho socialmente necessário para reproduzi-la. Isso significa que a magnitude do valor de uma mercadoria produzida no ano passado, por exemplo, não está determinada pelas condições tecnológicas vigentes naquele instante, mas nas presentes hoje. Por tanto, a grandeza do valor dessa mercadoria é igual à quantidade de trabalho socialmente necessário para produzir uma mercadoria exatamente igual a ela, hoje; neste instante. 44. Por tempo de trabalho socialmente necessário, nosso autor, entende "o tempo de trabalho requerido para produzir-se um valor-de-uso qualquer, nas condições de

14 produção socialmente normais, existentes, e com o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho." (Marx, p. 46)[61]{48}<169> Por certo, o trabalho socialmente necessário é a dimensão quantitativa do trabalho humano abstrato. Aqui não entraremos em mais detalhes relativos ao trabalho socialmente necessário. VII - CATEGORIAS ABSTRATAS 45. Vejamos novamente o primeiro parágrafo d'o Capital. O autor nos diz ali que a riqueza, na época capitalista, está constituída por um "imensa acumulação de mercadorias". Portanto, a primeira categoria que aparece nesse livro é a de riqueza. Mas essa riqueza como tal, não se refere a nenhuma época em particular, a nenhuma sociedade particular; é uma categoria GERAL, adequada a qualquer forma histórica, a qualquer tipo de sociedade. A mercadoria, por seu lado, é a riqueza na época mercantil, especialmente na época capitalista (esta é, na verdade, a sociedade mercantil levada ao seu máximo desenvolvimento). Então, a mercadoria é uma categoria PARTICULAR, exclusiva da sociedade mercantil. As categorias abstratas de GERAL e PARTICULAR correspondem, neste caso, respectivamente, às categorias: RIQUEZA (R) e MERCADORIA (M). GERAL PARTICULAR R M 46. Como a riqueza capitalista é mercadoria, então aquela é ao mesmo tempo, e de maneira contraditória, duas coisas: é valor-de-uso e é valor. Essa característica contraditória da riqueza capitalista pode facilmente revelar-se, por exemplo, se observamos sua dimensão quantitativa: pode ser encontrada uma situação real na qual a riqueza capitalista esteja em crescimento desde o ponto de vista do valorde-uso, e não esteja (ao mesmo tempo) desde o ponto de vista do valor. Marx faz referência a uma situação que indica esse caráter contraditório da riqueza capitalista : "Uma quantidade maior de valor-de-uso cria, de per si, maior riqueza material: dois casacos representam maior riqueza que um. Com dois casacos podem-se agasalhar dois homens, com um casaco, só um etc. Não obstante, ao acréscimo

15 da massa de riqueza material pode corresponder a uma queda simultânea no seu valor. Esse movimento de sentidos opostos se origina no duplo caráter do trabalho". (Marx, p. 53)[68]{52 e 53}<175> 47. A riqueza capitalista, ou a mercadoria é a unidade contraditória de valor (V) e valorde-uso (V u ): R c = M = V u V O valor-de-uso é uma dimensão da riqueza capitalista comum à riqueza em qualquer época histórica, em qualquer tipo de sociedade. Em outras palavras, a riqueza, em qualquer tipo de sociedade, sempre está constituída de valores-de-uso. Por isso, o valorde-uso é o CONTEÚDO material da riqueza. "Os valores-de-uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dela." (Marx, p. 42)[58]{46}<166> Por outro lado, o valor, como expressão nas coisas das particulares relações mercantis de produção, é a FORMA SOCIAL E HISTÓRICA da riqueza na época capitalista. CONTEÚDO FORMA SOCIAL E HISTÓRICA V u V 48. Logo, a mercadoria (ou a riqueza capitalista) é a unidade contraditória de dois pólos: do conteúdo (valor-de-uso) e da forma (valor). 49. Da mesma maneira, o trabalho mercantil (na época capitalista) é a unidade contraditória de dois pólos: do conteúdo (trabalho útil ou concreto) e da forma (trabalho abstrato). trabalho = trabalho concreto trabalho abstrato A dimensão trabalho útil (ou concreto) do trabalho mercantil (ou capitalista) é própria do trabalho em qualquer forma de sociedade, é portanto própria do trabalho em geral. Assim, o trabalho útil é o conteúdo do trabalho mercantil e do trabalho em qualquer outra sociedade.

16 Por outro lado, a indiferenciação do trabalho, a dimensão abstrata do trabalho mercantil, é produto da realidade capitalista. Então, o trabalho abstrato é a forma social e histórica do trabalho na sociedade capitalista. trabalho = trabalho concreto trabalho abstrato conteúdo material forma social e histórica 50. Vimos que o valor não é imediatamente observável na realidade. O valor-de-troca, por outro lado, não só é imediatamente observável, na sociedade capitalista, como apresenta duas características aparenciais: a casualidade e a relatividade. Somente ultrapassando tais características aparenciais do valor-de-troca é que nos encontrávamos com a realidade valor. Portanto, o valor-de-troca é uma categoria aparencial, da APARÊNCIA, enquanto que o valor é uma categoria relativa à ESSÊNCIA. APARÊNCIA ESSÊNCIA V t V 51. Assim, o valor-de-troca é a aparência do valor, sua forma de expressão ou sua forma de manifestação. Ele forma com o valor, também, uma unidade de dois pólos contrapostos: V ESSÊNCIA V t APARÊNCIA Qual é o nome que Marx atribui a essa unidade contraditória? Umas vezes ele a chama pelo nome de valor; outras de valor de-troca e isso, no nosso entendimento, é um ponto de partida para muitos equívocos 17. Por isso é que, acreditamos, muitos chegam a 17. Por exemplo, quando ele faz afirmações do tipo "o valor de tal mercadoria é 10 libras esterlinas", está chamando o preço ou o valor-de-troca de valor. Na verdade, rigorosamente, deveria estar dizendo: o valor (unidade essência/aparência), na sua dimensão aparencial, dessa mercadoria é tantas libras. Por outra parte, no início do capítulo I, sobre a mercadoria, quando afirma que "o valor-de-troca revela-se...", tudo indica que está verdadeiramente referindo-se à unidade valor (com seus dois pólos) e não propriamente ao valor-de-troca: "O valor-de-troca revela-se, de início, na relação quantitativa entre valores-de-uso de espécies diferentes, na relação em que se trocam, relação que muda constantemente no tempo e no espaço." (Marx, p. 43)[58]{46}<166>

17 identificar, como se fossem sinônimos, valor e valor-de-troca, o que constitui erro grave e ingênuo 18. Assim, V t V = ou V t = V V t V Por outro lado, outra observação sobre terminologia: não devemos confundir forma de expressão ou de manifestação com forma social e histórica. A palavra forma é usada aqui em dois sentidos totalmente distintos. É indispensável, também, atenção sobre esse aspecto. 52. Vimos que mercadoria é a unidade contraditória de valor-de-uso e valor, mas tínhamos visto antes que era, ao mesmo tempo, valor-de-uso e valor-de-troca. Imediatamente observada, portanto na aparência, a mercadoria é a unidade de valor-deuso e valor-de-troca. APARÊNCIA M = V u V t Na essência, a mercadoria é a unidade contraditória de dois pólos: valor-de-uso e valor. ESSÊNCIA M = V u V Não fosse correta nossa interpretação, ele deveria ter dito: o valor de troca é uma relação quantitativa entre valores-de-uso de espécies diferentes. 18. Ver nota de rodapé anterior número 9.

18 VIII - A EXPRESSÃO DO VALOR 53. Já tínhamos visto, no parágrafo 31, que o valor não se expressa por si mesmo. O valor, como qualidade social das coisas, só pode revelar-se (expressar-se ou manifestarse) através da relação social de umas mercadorias com outras; através do valor-detroca 19 : "Em contraste direto com a palpável materialidade da mercadoria, nenhum átomo de matéria se encerra no seu valor. Vire-se e revire-se, à vontade, uma mercadoria: a coisa-valor se mantém imperceptível aos sentidos. "As mercadorias, recordemos, só encarnam valor na medida em que são expressões de uma mesma substância social, o trabalho humano; seu valor é, portanto, uma realidade apenas social, só podendo manifestar-se, evidentemente, na relação social em que uma mercadoria se troca por outra." (Marx, p. 55)[69]{53 e 54}<176> 54. O valor, então, se expressa através do valor-de-troca; este é forma do valor, forma necessária do valor. Veremos depois, com precisão, que o preço é um valor-de-troca especial, o valor-de-troca de uma mercadoria com o dinheiro. O preço é, então (e também o dinheiro), uma forma do valor. 55. O que faz nosso autor na seção 3 do primeiro capítulo d'o Capital? "Partimos do valor-de-troca ou da relação de troca das mercadorias, para chegar ao valor aí escondido. Temos, agora, de voltar a essa forma de manifestação do valor." (Marx, p. 55)[69]{54}<176> O que ocorre é um retorno ao valor-de-troca. Mas não se trata de repetir ali o que já se descobrira inicialmente. Tínhamos visto o valor-de-troca como um fenômeno imediatamente observável, e não descobrimos mais do que era possível a partir de uma simples observação superficial. Agora já temos sua explicação científica, o valor. Partindo dele, trata-se de descobrir novas determinações do valor-de-troca, aquelas que não podiam ser conhecidas antes. Veremos que o descobrimento de novas determinações do valor-de-troca (como expressão do valor que é) enriquecerá o nosso saber sobre o próprio valor. Se quiséssemos expor o anterior através de categorias mais abstratas, poderíamos dizer o seguinte: a) Nossa primeira aproximação à aparência de um fenômeno faz-se através da simples observação do mesmo, da observação da superfície do fenômeno. b) Depois, um tratamento sistemático, metodologicamente adequado, permite-nos descobrir sua essência, sua explicação essencial. 19. Em nota anterior de rodapé, havíamos feito uma analogia entre o valor e o magnetismo em objetos de ferro. Aqui, podemos também apelar para uma analogia com a personalidade de uma pessoa. Da mesma maneira que o valor, a personalidade humana não se apresenta como tal, mas se expressa. Manifesta-se através da relação da referida pessoa com todas as demais. É o conjunto das formas através das quais se dá seu relacionamento com todas as demais pessoas, o que nos permite conhecer a exata personalidade dela. É precisamente o mesmo que ocorre com o valor das mercadorias. O fato de que a personalidade não seja diretamente visível, não nos permite negar sua realidade.

19 c) Mas, isso não é suficiente, é necessário, a partir daí, retornar à manifestação fenomênica e descobrir suas determinações; veremos então que a explicação científica ganhará toda sua riqueza. 56. O propósito do nosso autor, na referida seção, é descobrir a gênese (o surgimento) do dinheiro e do preço e, assim, a natureza deles: "Importa realizar o que jamais tentou fazer a economia burguesa, isto é, elucidar a gênese da forma dinheiro. Para isso é mister acompanhar o desenvolvimento da expressão do valor contida na relação de valor existente entre as mercadorias, partindo da manifestação mais simples e mais apagada até chegar à esplendente forma dinheiro. Assim, desaparecerá o véu misterioso que envolve o dinheiro." (Marx, p. 55)[70]{54}<176 e 177> 57. Em que sentido afirmamos que o nosso autor estuda ali a gênese do dinheiro? Na verdade, ele só se preocupa com os momentos fundamentais do desenvolvimento histórico da forma do valor, desde o escambo até chegar ao dinheiro. Não expõe a história concreta dele, com toda a riqueza das suas determinações. 58. O autor nos fala do "enigma do dinheiro". Em que consiste o enigmático, o fascinador, o mistério do dinheiro? Isso é algo que se compreenderá posteriormente. No entanto, podemos adiantar que o enigmático relaciona-se com o fato de que o ouro parece que funciona como dinheiro por ser ouro, por suas qualidades materiais, naturais e imanentes. Veremos que isso é pura ilusão, embora necessária, produto da realidade mesma e não de um erro do observador 20. IX - A FORMA FORTUITA DO VALOR (FORMA A) 59. Nosso autor parte da expressão mais simples, mais primitiva do valor: a troca, o escambo. x A = y B ou x A "vale" y B 60. Essa forma do valor corresponde à etapa mais primitiva do desenvolvimento das relações mercantis de produção; na verdade, à pré-história da sociedade mercantil. As relações mercantis ainda não existem; ou só existem como potenciais ou, no máximo, como embrionárias. Poderíamos, talvez mais apropriadamente, identificar essa troca como um intercâmbio pré-mercantil de presentes. Nessa etapa, o objetivo do produtor é a produção de valores-de-uso e só eventualmente, excepcionalmente, o excedente 20. Talvez seja conveniente, aqui, destacar mais uma vez o fato de que a aparência nunca deve ser vista como resultado de um erro ou engano do observador. Ela é um aspecto fundamental do real, ao lado da essência. O erro está, como já dissemos, em considerar que a realidade só apresenta seu aspecto observável; o engano está em acreditar na unidimensionalidade do real. Em que sentido, então, a essência pode ser vista como superior à aparência? Talvez somente no sentido de que só a essência permite entender os nexos íntimos da realidade; só ela permite explicar a razão da própria conformação da aparência, a estrutura e as leis de funcionamento além das tendências e potencialidades futuras do real.

20 produzido, ou parte dele, chega a ser trocado. Não existe, portanto, intercâmbio sistemático de mercadorias; sua ocorrência é eventual, casual, fortuita. As relações mercantis não se encontram desenvolvidas, tampouco a mercadoria o está. Na realidade o que existe não é ainda uma verdadeira mercadoria, com todas as suas determinações; é um embrião de mercadoria. 61. O processo de desenvolvimento da forma do valor, que vamos estudar aqui nesta parte do capítulo inicial d O Capital, corresponde ao processo de desenvolvimento do próprio valor e, portanto, da mercadoria. Além do mais, esses processos refletem o processo de desenvolvimento das relações mercantis de produção, processo através do qual essas relações tornam-se progressivamente dominantes na sociedade inteira. Por isso, a forma simples ou fortuita do valor corresponde ao momento mais primitivo do valor e da mercadoria e refere-se às primeiras manifestações, que são eventuais, das relações mercantis na sociedade: "Em conseqüência, a forma simples de valor da mercadoria é também a formamercadoria elementar do produto do trabalho, coincidindo, portanto, o desenvolvimento da forma-mercadoria com o desenvolvimento da forma do valor." (Marx, p. 70)[83]{63}<189> 62. Apesar de simples e primitiva, nessa forma já se encontra o segredo de todas as formas mais desenvolvidas do valor. E, o mais importante, aqui pode-se descobrir esse segredo: "Todo o segredo da forma do valor encerra-se nessa forma simples do valor. Na sua análise reside a verdadeira dificuldade." (Marx, p. 56)[70]{54}<177> 63. Analisemos, então, a forma simples: x A = y B ou 1 litro de leite = 5 Kg. de trigo. Nessa expressão, a pergunta que se faz é: E a resposta, é: - Qual é o valor de x A?, ou - Qual é o valor de 1 litro de leite? - O valor em trigo de um litro de leite é 5 kg. - O valor em B de x A é y. 64. Portanto, a mercadoria A, como não pode fazer por si mesma, expressa seu valor 21 através da relação com B; através de B. Assim, B serve de material de expressão do 21 que é um relação social expressa.