Acta Otorrinolaringológica Gallega

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ISSN: 2340-3438 Edita: Sociedad Gallega de Otorrinolaringología. Periodicidad: continuada. Web: www: sgorl.org/revista Correo electrónico: actaorlgallega@gmail.com Acta Otorrinolaringológica Gallega Artículo Original Corpos Estranhos no ouvido, nariz e garganta na população pediátrica Pediatric Foreign Bodies in the Ear, Nose and Throat Luís Cardoso, Catarina Areias, Joana Gonçalves, João Simões, Mário Cruz, Pedro Tomé, Luís Silva. Serviço de Otorrinolaringologia do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Portugal Recibido: 20/11/2017 Aceptado: 11/1/2018 Resumo Introdução: Os corpos estranhos do ouvido, nariz e garganta são um problema comum no serviço de urgência pediátrica. Podem ser classificados como animados e inanimados. Os inanimados podem ser classificado como orgânicos, inorgânicos, corrosivos e higroscópicos. Existem vários métodos que permitem a sua remoção, no entanto, por vezes, a sedação ou anestesia geral é necessária. Objetivos: Análise das características demográficas e clínicas dos corpos estranhos pediátricos, classificação do tipo de corpos estranhos, métodos de remoção e complicações. Material e Métodos: estudo retrospectivo de crianças com diagnóstico de corpos estranhos observado no nosso hospital pediátrico, entre Janeiro de 2014 e Dezembro de 2016. Resultados: o estudo incluiu 260 pacientes com 57% do sexo masculino 43% do feminino e uma idade média de 5,6 anos. Localizavam-se nos ouvidos em 45%, no nariz em 35% e na faringe em 20%. Foram classificados em animados em 2%, inorgânicos em 60%, orgânicos em 39%, corrosivos em 1% e higroscópicos em 19%. Os corpos estranhos mais comuns foram os plásticos em 24%, seguidos Correspondencia: Luís Cardoso Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, Portugal Correo electrónico: luis.cardoso@gmail.com 9

das espinhas em 20%. A tentativa de remoção prévia ocorreu em 17%. A anestesia geral foi necessária em 9%. As complicações foram documentadas em 10%. Conclusões: Maioria dos corpos estranhos podem ser facilmente removidos no gabinete de urgênca sem qualquer complicação. A necessidade de sedação/anestesia geral esteve associada à existencia de tentativas prévias de remoção e também à presença de complicações, pelo que as crianças devem ser encaminhadas para o serviço de urgência do departamento de otorrinolaringologia, evitando as tentativas prévias de remoção. Palavras chave: corpo estranho, pediatría, ouvidos, nariz, garganta, otorrinolaringologia Abstract Introduction: Foreign bodies in the ear, nose or throat are a common problem in pediatric emergency department. They may be classified as animate or inanimate. The inanimate can be additional classified as organic, inorganic, corrosive and hygroscopic. Several techniques can be used to remove the foreign body in the office but sometimes sedation or general anesthesia is required. The aim of this study was to analyze demographic and clinical characteristics of pediatric foreign bodies, classify the type of foreign bodies, removal methods and complications. Material e Methods: Retrospective study of children with diagnosis of foreign bodies observed in our pediatric hospital, between January 2014 and December 2016. Results: The study included 260 patients with 57% males and 43% females and a mean age of 5,6 years. They were located 45% in the ears, 35% in the nose and 20% in the pharynx. They were animated in 2%, inorganic in 60%, organic in 39%, corrosive in 1% and 19% hygroscopic. The most common foreign bodies were plastic items in 24% followed by fishbones in 20%. Previous manipulation occurred in 17%. General anesthesia was required in 9%. Complications were found in 10%. Conclusions: Most of the foreign bodies can be easily removed in the office without complications. The need of sedation or general anesthesia was associated with previous attempts of removal and with the presence of complications. Previous removal attempts should be avoided, and children must be referred to the otorhinolaryngology department. Keywords: foreign bodies; pediatrics; ear; nose; throat; otorhinolaryngology Introdução Um corpo estranho (CE) é definido como um objecto ou substância estranha ao local onde é encontrada, sendo motivo frequente de ida ao serviço de urgência, particularmente nas crianças 1. A introdução de corpos estranho neste grupo etário é habitualmente voluntária 2. Podem ser encontrados nos diferentes territórios do foro otorrinolaringológico, podendo ser classificados em animados (vivos) ou inanimados; os últimos podem ainda ser classificados em corrosivos (capacidade de rápida necrose dos tecidos), orgânicos ou inorgânicos e ainda em higroscópicos/hidrofílicos (com capacidade de absorção de 10

água) ou hidrofóbicos (se repelirem água) 1,3. A localização, as características do CE e o tempo de permanência são factores determinantes na sintomatologia, no entanto, podem ser totalmente assintomáticos e detectados apenas em exame de rotinas ou após instalação de uma complicação resultante da sua presença. Vários são os métodos existentes para a sua remoção, incluindo pinças, ansas, ganchos, aspiração ou irrigação. O sucesso da sua remoção vai depender não só das características do CE, da sua localização, mas também da experiência do médico e da colaboração da criança. Por vezes, é necessário recorrer à sedação ou anestesia geral para a sua extracção. Os corpos estranhos corrosivos, particularmente as pilhas e também ímanes, tem a capacidade de provocar necrose em várias horas com a penetração dos electrólitos para a profundidade dos tecidos e requerem imediata remoção. 3,4,5 Os corpos estranhos orgânicos, particularmente quando higroscópicos [sementes (grão, milho, feijão, arroz), algodão e o papel] produzem uma intensa reacção inflamatória local e podem aumentar facilmente de volume em contacto com superfícies húmidas dificultando a sua remoção com o passar do tempo, pelo que também devem ser removidos de imediato. Tanto nos corpos estranhos corrosivos como nos higroscópicos, as lavagens/irrigação estão contra-indicadas. 3 A presença de uma perfuração timpânica é igualmente uma contra-indicação à irrigação. 6 Este trabalho tem como objectivo a análise das características demográficas e clínicas dos doentes submetidos a remoção de CE do ouvido, nariz e faringe, assim como a classificação do tipo de CE, identificação dos métodos de remoção e complicações associadas. Material e Métodos Procedeu-se a um estudo retrospectivo das crianças até aos 17 anos de idade com diagnóstico de CE localizado ao ouvido, nariz e faringe observadas no serviço de urgência do Hospital Pediátrico do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra entre Janeiro de 2010 e Dezembro de 2016. A pesquisa foi baseada na codificação do International Classification of Diseases (ICD9): ouvido (ICD931), nariz (ICD932) e faringe (ICD933). A base de dados incluiu: idade, sexo, localização, tipo de CE, sintomas, existência ou não de tentativa prévia de remoção, método de remoção e complicações (inerentes à presença do CE ou à tentativa da sua remoção). Foi pedido parecer ao comité de ética que aprovou a realização do estudo. A análise estatística foi efectuada através do programa informático SPSS e a comparação entres as diversas variáveis através do teste Qui-quadrado e teste t de Student. Os valores obtidos foram considerados estatisticamente significativos para p<0,05. Resultados Foram excluídas 22 crianças por diagnóstico incorrecto: não confirmação de CE ou impossibilidade de consultar o processo clínico. Obteve-se um total de 280 crianças. Cinquenta e sete porcento (n=147) pertenciam ao sexo masculino e 43% (n=113) ao sexo feminino. A média global de idades foi de 5.8 anos ± 3.6 years (8 meses a 17 anos). Quarenta e cinco porcento dos 11

corpos estranhos estavam localizados no ouvido (n=117), 35% (n=91) no nariz e os restantes 20% (n=52) na faringe (Figura 1). Figura 1: Localização dos corpos estranhos Não houve associação significativamente estatística entre sexo e localização (p=0.6) havendo, no entanto, um predomínio do sexo masculino nas diferentes localizações. As crianças com corpos estranho no nariz apresentaram uma média de idades significativamente inferior (p=0.001) relativamente às restantes localizações (Figura 2). Figura 2: Média de idades em anos Dois porcento dos corpos estranhos eram animados e 98% inanimados. Dos inanimados, 60% eram inorgânicos, 39% orgânicos e 1% corrosivos; 19% do total dos corpos estranhos eram do tipo higroscópico. Foram removidos os mais diversos tipos de corpos estranhos, sendo que os mais comuns foram plásticos (24%), espinhas (20%), sementes (10%), bicos de lápis (8%) e restos alimentares (7%) (figura 3). 12

Figura 3: Tipo de corpo estranho removido e localização. Todas as crianças com corpos estranho localizados na faringe foram sintomáticas, apresentando sensação de CE ou odinofagia; Apenas 20% dos corpos estranhos do ouvido apresentaram sintomatologia, entre as quais: 65% otalgia, 17% otorreia, 9% perda auditiva e 9% otorragia; 16% dos corpos estranhos do ouvido apresentaram sintomatologia associada: 72% rinorreia purulenta, 17% epistaxes, 6% dor nasal e 5% obstrução nasal. Antes de recorrerem ao nosso serviço de urgência, em 17% houve pelo menos uma tentativa prévia de remoção do CE, quer por profissionais de saúde quer por familiares: 11 % no grupo de ouvido, 4% no nariz e 2% na faringe. Não existiu diferença significativamente estatística entre média de idades e tentativa prévia (p=0.198) nem associação entre localização e tentativa prévia (p=0.122). Em 91% o CE foi removido com ou sem anestesia local; Em 9% foi necessário sedação ou anestesia geral em ambiente controlado do bloco operatório (Figura 4). Figura 4: Método de remoção. 13

Considerando apenas os casos em que a sedação/anestesia geral foi necessária, 53% dos corpos estranhos estavam localizados no ouvido, 29% na faringe e 18% no nariz, sendo 59% inorgânicos, 38% orgânicos e 12% corrosivos. No ouvido, o tipo de CE foi muito variável: semente, brinco, dente, plástico, borracha, lápis, esponja, entre outros, sendo a pedra o mais frequente e em 20% dos casos; semelhante variação sucedeu no nariz com ocorrências individuais para cada tipo de CE; já no grupo da faringe a remoção da espinha ocorreu em 90%. Existiu associação significativa entre tentativa prévia de remoção e a necessidade de sedação/anestesia geral (p=0.016). O mesmo não se verificou entre a localização (p=0.508) e o tipo de corpo estranho (p=0.510) com a necessidade de sedação/anestesia geral. As complicações ocorreram em 10% dos casos: 5% nos ouvidos, 4% nariz e 1% faringe. A figura 5 documenta o tipo de complicações registadas. Existiu associação significativa entre a ocorrência de complicações e a necessidade de sedação/anestesia geral (p=0.014). Não houve diferença estatística significativa entre sexo e complicações (p=0.477), idade e complicações (p=0.383) nem associação entre tentativa prévia e complicações (p=0.225). Figura 5: Complicações Discussão Verifica-se na literatura, assim como na nossa série, um predomínio do sexo masculino 6 11, justificado por alguns autores pela natureza física e mais aventureira das crianças do sexo masculino comparativamente às do género aposto. 6 Semelhante ao nosso estudo, a idade mais frequente para a ocorrência de corpos estranho nas crianças é entre 3-6 anos. 6,8,12,13 Nesta idade as crianças deixaram a fase oral e encontram-se na fase anal e fálica do desenvolvimento psicossexual de Sigmund Freud obtendo prazer com a manipulação de vários orifícios. 6 Outras causas apontadas resultam do aumento das actividades corporais e da natureza exploradora e inquisitiva desta idade, assim como a imitação de hábitos não saudáveis de introdução de objectos pelos adultos com os quais contactam. 12 Relativamente ao local de ocorrência dos corpos estranhos, o ouvido surge como o mais frequente na maioria das séries 1,2,6,8,12 18, superado, raras vezes, pelo nariz. 9 A localização faríngea surge sempre 14

com uma frequência muito abaixo dos dois grupos referidos anteriormente. Conforme pudemos apurar no nosso trabalho, grande percentagem de corpos estranhos localizados nos ouvidos e nariz são assintomáticos e apenas detectados em exames de rotina, ou aquando de sintomatologia que careça de observação ou ainda após confissão da própria criança. Estes resultados são corroborados por outros autores. 2,13,17 Quando o CE está localizado no ouvido, a hipoacusia surge como o sintoma mais frequente 8,13 seguido da dor e da hipoacusia 2. Na nossa série, o sintoma mais frequente foi a otalgia seguida da otorreia. Poderá levantar-se a hipótese de que as crianças em idade pré-escolar, maioria afectada neste estudo, possam ter mais dificuldade em expressar uma queixa de hipoacusia do que uma sensação de dor, podendo justificar a prevalência dessa sintomatologia no nosso trabalho comparativamente às restantes séries internacionais que incluem habitualmente adultos. Já no nariz, a rinorreia purulenta fétida unilateral é descrita como o principal sintoma, tal como se constatou na nossa série. 8,10 Numa criança, perante uma rinorreia purulenta unilateral fétida, a hipótese de um CE deve ser sempre considera até que se prove o contrário. 1 Facilmente se compreende que os corpos estranhos localizado na faringe possam causar sensação de CE ou odinofagia e motivem de imediato uma vinda ao serviço de urgência, razão pela qual todas as crianças foram sintomáticas. Na nossa série, duas crianças apresentaram corpos estranhos corrosivos (pilhas), localizados no ouvido, ao contrário do descrito na literatura em que as fossas nasais são o local mais habitual. 13 A lavagem/irrigação foi o método de eleição em 15% dos corpos estranhos localizados nos ouvidos: pequenas missangas esféricas, justa-timpânicas que impossibilitavam a sua remoção por instrumentação sem risco de complicações iatrogénicas acrescidas. A alta incidência de espinhas de peixe como corpos estranhos na faringe pode reflectir a falta de atenção no preparo da alimentação e mastigação. A projeção natural das tonsilas palatinas na cavidade oral explica que estas sejam o local mais comum (81% dos CE faringe) de impactação de corpos estranhos na faringe. 14 A média de idade das crianças com necessidade de ida ao bloco operatório foi de 5,5anos. Ao lidar com crianças tão pequenas, devemos ter em mente que a primeira tentativa de remoção do CE poderá ser a única oportunidade permitida. Várias tentativas de remoção, particularmente contra vontade da criança, resultarão numa sensibilização da criança que será menos colaborante e que poderá levar a complicações iatrogénicas acrescidas como edema, hemorragia e lacerações, dificultando a visualização e remoção do CE, possível apenas posteriormente sob sedação/anestesia geral. Por estas razões, e semelhante a outros autores, houve uma associação entre tentativa prévia e necessidade de sedação/anestesia geral. 19 Na literatura a necessidade de sedação ronda os 4-12%, intervalo na qual se encontra a nossa série 2,8,18. Os corpos estranhos inorgânicos localizados no ouvido foram aqueles que necessitaram de uma maior ida ao bloco operatório, o que poderá ser justificado pelos maiores números absolutos nesta localização e deste tipo de corpo estranho; as espinhas da faringe surgem em segundo lugar e neste particular, a mínima intolerância da criança impossibilita a abertura da boca ou a realização da laringoscopia indirecta para identificação e remoção do corpo estranho, obrigando à sedação/anestesia geral. 15

Quanto às complicações, estas são mais frequentes quando há tentativa prévia de remoção 11,12,17 pelas razões apontadas anteriormente, no entanto, não se obteve, neste estudo, uma associação estatística significativa estre essas duas variáveis. O que se verificou foi uma associação significativa entre complicações e a necessidade de sedação/anestesia geral. Assim, poder-se-á interpretar que das tentativas prévias não resultaram maiores complicações, mas que as complicações decorrentes do próprio CE ou iatrogénicas, na tentativa de remoção, estarão na base da necessidade de ida ao bloco operatório. As complicações iatrogénicas atingiram um total de 73% de todas as complicações ocorridas. As complicações globais foram abaixo dos 14-22% relatados por outros autores 2,14,15. Uma das principais limitações deste estudo é a sua natureza retrospectiva cuja informação se limita apenas à que consta nos diários das folhas de urgência e registo informático. Conclusões Os CE pediátricos são mais comuns no ouvido do sexo masculino e em idade pré-escolar, apresentando os CE do nariz uma idade inferior às restantes regiões. Os tipos de CE mais frequentes são os inertes inorgânicos, particularmente os plásticos. Frequentemente os CE do ouvido e nariz são assintomáticos, ao contrário dos da faringe que são sintomáticos. Maioria dos CE são removidos no gabinete médico. A necessidade de recorrer à sedação/bloco operatório ocorreu principalmente em corpos estranhos inorgânicos localizados no ouvido e esteve associada, significativamente, à existência de tentativas prévias mas também à presença de complicações. A presença de corpos estranhos deve ser motivo de referenciação ao especialista de otorrinolaringologia. Prevenção e vigilância por parte dos pais/ cuidadores é essencial para reduzir a incidência de corpos estranhos. Conflicto de intereses: Nada a declarar. Bibliografia 1- Parajuli, R. Foreign bodies in the ear, nose and throat: An experience in a tertiary care hospital in Central Nepal. Int. Arch. Otorhinolaryngol. 2015; 19: 121 123. 2- Jovino, J., Carlos, J., Lima, B., Vitale, R. F. & Geminiani, R. J. Foreign Bodies in Otorhinolaryngology - Hospital Monumento and Clínica Otorhinus Research. Arq int otorrinolaringol. 2007; 11(3): 305 310. 3- Bowles, P. F., Turrell, C. & Das, P. Bilateral aural foreign bodies. Aust. Fam. Physician. 2016; 45: 200 201. 4- Hore, C. T. Nasal foreign body removal in children. Med. J. Aust. 1996; 164: 448. 5- Craig, S. S., Cheek, J. A., Seith, R. W. & West, A. Removal of ENT foreign bodies in children. EMA - Emerg. Med. Australas. 2015; 27: 145 147. 6- Shrestha, I., Shrestha, B. L. & Amatya, R. C. M. Analysis of ear, nose and throat foreign bodies in Dhulikhel hospital. Kathmandu Univ. Med. J. 2012; 10: 4 8. 7- Bressler, K. & Shelton, C. Ear Foreign-Body Removal: A Review of 98 Consecutive Cases. Laryngoscope. 1993; 103: 367 370. 16

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