Especificidades das mortes violentas no Brasil e suas lições. Maria Cecília de Souza Minayo



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Transcrição:

Especificidades das mortes violentas no Brasil e suas lições Maria Cecília de Souza Minayo

1ª. característica: elevadas e crescentes taxas de homicídios nos últimos 25 anos Persistência das causas externas ao longo do tempo em patamares elevados e crescentes a partir da década de 1980, para duas principais subcausas: homicídios e acidentes de trânsito. Baixas taxas de suicídio. As taxas mais ou menos constantes das causas externas constituem um fenômeno estudado por Durkheim em o livro O suicídio há mais de 100 anos. As proporções das causas externas na mortalidade geral do país cresceram de 11 % a 15% no período e no momento presente mostram uma leve tendência de queda. As taxas e proporções elevadas, segundo Hannah Arendt (1994), dramatizam problemas sociais profundos, estruturais e conjunturais que exigem medidas e planos muito mais complexos do que apenas colocar mais polícia nas ruas.

2ª. característica: Diferenciações na distribuição das taxas de violência pelos Municípios Brasileiros Do conjunto de 5.561 municípios brasileiros: 1.802 não tiveram, no ano 2000, nenhum acidente de trânsito fatal; em 2.633 deles não ocorreu sequer um homicídio; em 3.382, não houve suicídio. Essa diversidade passa despercebida da maioria das pessoas, influenciada pelo Brasil midiático que nos apresenta um país homogêneo. Gestores de saúde que querem realmente enfrentar o problema não podem se guiar por estatísticas e informações de outros lugares. Existem violências sim em todas as localidades do país e é preciso entendê-las em sua especificidade. Diz a OMS: Há muito mais violência ocorrendo de forma invisível nos lares, nos locais de trabalho, nas instituições médicas e sociais criadas para cuidar das pessoas. Muitas pessoas são demasiadamente jovens, fracas e doentes para se protegerem. Outras são forçadas por convenções ou pressões sociais a se manterem em silêncio (WHO, 2002,3).

3ª. característica - Predominância e concentração dos Homicídios Nos últimos 25 anos, o risco de uma pessoa morrer por homicídio no Brasil teve um crescimento teve um crescimento exponencial e as mortes por essa causa, durante a década de 1980 ultrapassaram a predominância dos acidentes de trânsito. Em 1980, em cada 100 mil pessoas, 117 morriam por homicídios. Em 2003, as taxas foram de 288 para cada 100 mil. No ano de 1980, os homicídios significavam 19,8% (13.910 óbitos) do total das mortes por causas externas no Brasil. Já em 2003, corresponderam a 40,3% (50.980 óbitos). Observa-se nos últimos quatro anos uma tendência inicial de queda nesse indicador, o que já vem afetando, positivamente, as taxas de mortalidade por causas externas, em geral. Sem dúvida essa leve tendência de queda evidencia a existência de políticas voltadas para a redução, assim como a formulação de programas integrados em que a sociedade civil une esforços com políticas sociais em torno do conceito de segurança cidadã.

4ª. característica: Dispersão espacial dos Acidentes de Trânsito e de Transporte Os acidentes de trânsito e de transporte, ao contrário dos homicídios, ocorrem de forma dispersa pelo território nacional, com forte inflexão em municípios de porte médio e de pequeno porte. Ocorrem, sobretudo, nas localidades cortadas por vias expressas, onde há estradas em má conservação e no interior de cidades em crescimento, onde os veículos circulam sem lei, sem segurança, sem sinalizações precisas e sem vigilância. Faltam, na maioria dos casos desses municípios, reconhecimento da gravidade do problema, estratégias de prevenção e de repressão aplicadas de forma rotineira e permanente.

5ª. característica: Taxas baixas de suicídio e crescimento desse tipo de violência, na população de maior idade O Brasil mantém taxas relativamente baixas de suicídio, constantes em toda a série histórica analisada. Observa-se prevalência masculina em todas as faixas de idade. Cerca de 3,5 a 4,0/100.000 Existe incremento das taxas de suicídio nas faixas de 50 anos e mais, sobretudo, na população acima de 70 anos. Esse incremento do suicídio da população idosa vem acontecendo desde a Segunda Guerra Mundial em vários países da Europa. As análises dos casos no caso dos idosos mostra a associação com sentimentos de abandono, de impotência social, elevado sofrimento provocado por enfermidades degenerativas e depressão. Também se associa a várias outras formas de violência praticadas pela família ou por instituições.

5ª. característica: Concentração por gênero, idade e condição social HOMENS: a cada 100 mil ocorrências, 54 envolvem homens, 4,4 mulheres. A mesma concentração das taxas de óbitos por causas externas que constatamos na população masculina, encontramos também quanto às faixas etárias. IDADE: Durante os últimos 25 anos, cerca de 70% de todos os homicídios foram de adolescentes e homens jovens de 10 a 39 anos.(1) o primeiro lugar, 20 a 24 anos; (2) o segundo, de 25 a 29 anos. JUVENILIZAÇÃO: embora o segmento de 15 a 19 anos apresente taxas menores, é o que mostra tendência de crescimento (33,8%), no período 2000-2005 e 1980-1985 CONDIÇÃO SOCIAL: maioria pobre, com baixa escolaridade e vivendo nas periferias das regiões metropolitanas das grandes cidades.

6ª. característica: Concentração das mortes por meio de armas de fogo Em todas as capitais do país, a arma de fogo é o instrumento preferencial para dirimir conflitos e produzir a morte entre as pessoas sobretudo entre os homens. Atualmente, não se pode falar de homicídio no Brasil e no mundo sem que venha à tona a evidência do envolvimento e da contribuição das armas de fogo que movimentam um dos maiores mercados da economia global. Dados da década de 90 sugerem que acima de 60% dos assassinatos ocorridos em áreas urbanas brasileiras na década de 90 foram cometidos com o uso desses aparatos. Ex: No Rio de Janeiro, 90% das mortes violentas são cometidas com o uso da arma de fogo e 70% dos homicídios são provocadas por confrontos armados entre os traficantes e policiais.

Considerações Finais Embora muito já tenhamos escrito e dito sobre o impacto da violência sobre a saúde, é importante que, cada vez mais, acompanhemos esse movimento, monitorando as insidiosas trilhas de sua manifestação em nosso país como um todo e em cada município em particular. Numa política de atenção ao problema, se um estudo de cada localidade ainda não foi feito é necessário que o seja. Pois, a história local, a formação social e as vivências atuais se refletem nas manifestações de violência que são também locais, ocorrem dentro dos lares, nas relações de trabalho e institucionais, embora a maioria das violências não apareçam nas taxas de morte ou de internação.