A Escolarização e suas vicissitudes



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Transcrição:

A Escolarização e suas vicissitudes 1. A criança e a educação através dos tempos Carolina Bacchi, Flavia Vasconcellos, Isabel Moreira Ferreira, Renata Dabori. 01.10.2001 A escola é a primeira inserção social da criança para além da família. Na escola, a criança vai encontrar "outros semelhantes" agrupados, geralmente pela faixa etária. Este grupo terá um ou mais professores, que dirigem o trabalho pedagógico, sugerindo atividades, propondo materiais a serem utilizados, transmitindo conteúdos que pareçam compatíveis à idade escolástica de cada criança. Tudo isso nos parece bastante óbvio, mas como sabemos, desde o trabalho de P. Ariès (1978), nem as crianças, nem as escolas tiveram no decorrer da história o mesmo lugar social de hoje. Na sociedade medieval, por exemplo, o sentimento de infância não existia, quer dizer, a criança fazia parte do mundo dos adultos, sem diferenciação, sem particularidades. Não existia um modo especial de abordagem da criança. A organização escolar atual fundou-se a partir do nascimento do sentimento de infância, que vai gerar a existência de organizações e intervenções próprias ao universo infantil. No início do século XIX, ocorre a regularização do ciclo anual das promoções escolares e a fixação rigorosa entre a idade e a classe, sendo as crianças finalmente separadas dos adultos. A educação passa a ser identificada como a possibilidade de evolução do ser humano, como a promessa de um futuro melhor para todos. A criança deve realizar o sonho de sucesso de seus pais, sendo o fracasso escolar compreendido como o fracasso da possibilidade de desenvolvimento do mundo idealizado pelos adultos. * * * A aprendizagem implica necessariamente em esforço. Aprender alguma coisa leva tempo, dedicação, implica em incertezas, consiste em trabalho para vencer obstáculos. Na Europa, há um elemento chave da pedagogia que busca transmitir o gosto pelo trabalho, pelo esforço, "le goût de l'effort". "A excelência de uma vida é relativa à nobreza dos esforços: ser (...) um filho digno é se distinguir no esforço, não é alcançar" (Calligaris, 1992). Mas parece que muitas das nossas crianças se desinteressam muito rápido pela aprendizagem, quando se dão conta de que disso depende muito esforço, e de que o gozo nem é imediato, nem certo. Em seu livro "Hello Brasil" (1992), o psicanalista Contardo Calligaris dedica um capítulo às crianças brasileiras. Trata-se do olhar de um

estrangeiro que se surpreende, estranha, incomoda-se e assombra-se com o lugar social da criança no Brasil. A questão primordial refletida é a aparente contradição de um país no qual a criança oscila da posição de rei (de quem tudo pode) para a posição de dejeto (a quem tudo é negado). Depositou-se na instância pedagógica a esperança de constituição de um sujeito que satisfaça um desejo ancestral de um gozo sem limites. Justamente a Educação, que deve estar atrelada de um modo indelével a função paterna, se vê de mãos atadas por esta imposição do "jeitinho brasileiro" que consegue burlar toda e qualquer lei para conseguir o que deseja com o mínimo esforço possível. Este lugar social reservado à criança faz eco tanto em sua constituição subjetiva, como na organização das instituições escolares e familiar. Não é à toa que os índices de fracasso escolar vêm aumentando. Aliás, este é um fator que vem causando preocupação e a necessidade de reformulação do sistema escolar vigente. O aluno que "fracassa" impõe questionamentos cotidianos e nos obriga a buscar novos sentidos para o que viemos construindo até então. Fracasso, na verdade, não é uma boa forma de abordagem dos problemas de aprendizagem. Falar em fracasso é uma antecipação da história de um sujeito. Podemos falar em fracasso a posteriori. Muitos profissionais vêm propondo novas maneiras de abordagem da questão. Maria Helena Patto (1990) desloca o fracasso inicialmente identificado como a inabilidade do aluno, para a inadequação da escola, que vem sofrendo uma deteriorização, oferecendo ensino de má qualidade e tratando seus alunos com preconceito, que, segundo a autora, funda e estrutura uma política educacional e um modo de relação professor-aluno. Será a construção de um discurso crítico que irá apontar, para Patto, um caminho possível para a transformação do sistema de educação, reorganizando a noção de fracasso escolar que vem regendo a organização de ensino. Lajonquière (1992) propõe que falemos em vicissitudes e não em problemas ou distúrbios. Além disso, as dificuldades na aprendizagem devem ser lidas no ponto de entrelaçamento entre o cognitivo e o desiderativo. "as vicissitudes que um sujeito suporta na sua aprendizagem são produtos sobredeterminados da inteligência e do desejo inconsciente". Maria Cristina Kupfer (2000) também trouxe uma contribuição recente para lidar com essa questão que é a noção de estilo cognitivo. O estilo cognitivo é o modo de aprendizagem do sujeito: "a peculiar relação de um sujeito com um particular objeto, o conhecimento" (2000, p. 129). Se se trata de uma criança mais lenta isso vai imprimir uma certa marca no seu modo de aprender; se é uma criança com muito interesse pela leitura, disso decorrerá outra história escolar; e ainda, se temos na sala de aula uma criança deficiente, teremos um estilo cognitivo marcado por esta condição da criança. Apesar do estilo participar da estrutura do sujeito, ou seja, é intransferível e permanente, trata-se de uma estrutura 2

vazia que pode abarcar qualquer tipo de conteúdo. Falar de estilo não é falar em determinação. Nada na aprendizagem está predeterminado. As inscrições primordiais sobredeterminam as escolhas e as experiências de vida de um sujeito. Elas são marcas indeléveis, mas delas decorrem cadeias significantes diversas e imprevisíveis. Nada do que virá depois está predeterminado. "É claro que a cada objeto que a criança for indagar e investigar vai estar presente essa modalização que aquela inscrição primária estruturou" (Jerusalinky, 1997). De que modo essas noções contribuem na prática do educador? Os esforços de um educador não devem estar centrados em uma técnica ou método, mas em poder construir um campo de acesso ao sujeitoaluno, ou seja, um terreno fértil no qual se transmita ao aluno sua posição desejante em relação ao objeto de conhecimento. O psicanalista Alfredo Jerusalinsky (1997) comenta a respeito que o professor deve colocar "os objetos do mundo a serviço de um aluno que (...) escolherá nessa oferta aqueles que lhe dizem respeito, nos quais está implicado por seu parentesco com aquelas primeiras inscrições que lhe deram forma e lugar no mundo". A didática não deve estar a serviço de uma técnica, mas sim do sujeito: sabendo que a aprendizagem não é predeterminada, nem garantida, os educadores se preocupam em apresentar os objetos de conhecimento com uma certa ordem, que contribua para que a criança faça relações, análises críticas, conheça os valores e as qualidades dos objetos apresentados. A posição da psicanálise frente a educação pode não ser bem recebida por alguns educadores, por não parecer muito associada à prática. Mas esse mal-estar gerado é certamente fruto das expectativas sociais atuais com relação à educação que podemos afirmar que são realmente extremas. O que se espera da escola hoje? Quase tudo. A escola tem de cumprir com metas pré-estabelecidas, ela deve transmitir certos conteúdos num certo período de tempo. Ela deve transmitir noções de valor e ética. Tem de estabelecer limites e noções básicas de convivência social. Tem de formar alunos capazes de enfrentar um mundo marcado pela competição e pela velocidade. A tarefa da escola de hoje não é nada fácil, é até um pouco megalomaníaca, porque realmente é difícil imaginar que ela vá conseguir cumprir sempre tantos objetivos. Não fosse essa cobrança social, as escolas certamente se veriam em um terreno mais fértil, com mais tranqüilidade para exercer sua função primordial: ensinar. Capacidade de aprender as crianças têm, mesmo as crianças deficientes, mesmo as crianças psicóticas. A questão é que nem sempre a criança consegue corresponder à expectativa social. Um professor pode, então, indagar: "Então, nós devemos nos conformar quando uma criança apresenta dificuldades no seu percurso escolar?" 3

Claro que não, porque embora nós possamos não concordar com a carga que a instituição escolar tem de carregar, essa é a sua incumbência social na atualidade, e por hora não temos como mudar isso. Quem sabe, porém, a reflexão e a crítica possam a longo prazo provocar mudanças estruturais no discurso social. Os trabalhos aqui citados são exemplos disso. A criança com dificuldades continua precisando de ajuda, o que mantém a pergunta acerca de como intervir nas questões relativas à aprendizagem e à socialização. Kupfer (2000, p. 128) diz a esse respeito que "será necessário criar instrumentos para trabalhar com um aluno ou, para sermos mais precisos, um sujeito, que está capturado por essas redes que são sociais e que se revelam especialmente na escola". 2. TRAPÉZIO: um grupo de apoio à escolarização O aluno que "fracassa" impõe questionamentos cotidianos e nos impele a uma busca por novos caminhos. O alto índice de fracasso escolar em escolas públicas do país vem criando incômodo e a constante necessidade de reformulação do sistema escolar vigente. O Trapézio é uma ONG que tem o trabalho voltado para as áreas de Educação e Saúde. Suas ações visam a melhoria das condições de ensino e escolarização, beneficiando alunos, pais e educadores. Oferecemos: tratamento para alunos com dificuldades escolares; um grupo de reflexão e discussão de questões relativas à escolarização e à família, para pais; e cursos e espaços de interlocução para educadores. Todas essas ações integradas constituem o Grupo de Apoio à Escolarização. A escolarização é o momento de ingresso no circuito social, no qual a criança terá de se posicionar frente a demandas variadas: de saber, de disciplina, e de educação. Se a escola é o lugar onde a criança irá aprender coisas novas, será na escola também que ela terá que se defrontar com os seus "não saberes" e limites. É muito comum a ocorrência de sintomas no decorrer deste processo. Alguns desses sintomas são facilmente trabalhados pela própria escola (quando se trata de uma escola atenta a cada aluno e disposta a criar e improvisar intervenções), outros demandam trabalhos específicos para que se dissipem. Os sintomas escolares são sintomas sociais que fazem convergir em um mesmo ponto questões do sujeito e do social. Por conta disso, optamos por uma montagem que oferece atendimento em grupo, podendo incidir mais diretamente nos sintomas apresentados. As crianças passam por três atividades diferentes: a oficina de linguagem, o ateliê de artes e o grupo de projetos. O grupo proporciona a elas a possibilidade de trocar experiências, saberes e dúvidas, oferecendo condições para que o discurso circule e as falas das crianças acabem por contemplar efeitos terapêuticos. Os grupos são propositadamente heterogêneos, o que leva ao necessário confrontamento das diferenças, questão priorizada no tratamento; na medida em que a criança pode suportar a diferença do outro, abre-se a possibilidade de flexibilizar a si próprio. O grupo também 4

permite que as crianças possam sair de posições cristalizadas no cotidiano escolar, ocupando, nesse novo espaço, novos lugares. As atividades propostas enfocam a produção e as etapas necessárias para que esta se realize (idealização, execução e finalização). Todas elas integram uma estrutura de tratamento que se apoia sobre dois grandes eixos: propiciar momentos de escolha nos quais a criança necessariamente tenha de se posicionar com relação ao seu desejo e a sustentação da produção em todos os seus níveis, como foi dito acima. A escuta dos pais é o segundo pilar do trabalho. Este trabalho propicia a reflexão e discussão acerca de temas relativos à escolarização e à vida familiar. Ele leva à mobilização e à implicação dos pais no tratamento de seus filhos, oferecendo condições para que estes possam reposicionar-se frente à problemática dos filhos e à escola, re-significando, inclusive, a sua própria história escolar. Cada família tem um profissional de referência, que realiza atendimentos individuais quando necessário. Além deste atendimento, eles participam de um grupo, no qual também suas experiências podem ser trocadas. Em relação à escola, consideramos de fundamental importância um espaço de interlocução, no qual possamos entender, junto aos profissionais que trabalham com a criança, o lugar que ela ocupa frente a instituição escolar, assim como compreender as questões que são suscitadas em sala de aula. Este trabalho é realizado pelo profissional de referência, que tem o objetivo de oferecer-se como interlocutor para que o professor possa abrir questionamentos sobre o seu papel (restituir ao professor o seu lugar de agente da educação, simultaneamente restituindo à criança o seu lugar de aluno). Oferecemos esse espaço de escuta com o objetivo de desfazer lugares de cristalização, permitindo a sustentação do trabalho com o diferente em sala de aula e priorizando as necessidades e dificuldades suscitadas pelas idiossincrasias individuais e seus estilos cognitivos. Assim, esse trabalho pretende oferecer condições para as escolas de buscar, juntamente com a nossa equipe, uma abordagem comum do estilo do aluno e abrir espaço para circulação de discursos. Importante dizer que essa situação nos defronta com o impasse de não psicologizar os espaços da educação, o que desvirtualizaria o tipo de atendimento que propomos. Não pretendemos "ensinar" o professor a reconhecer problemas psíquicos ou a realizar intervenções psicanalíticas em sala de aula. Isso o afastaria da sua tarefa principal e retiraria a especificidade de seu trabalho. Dessa forma, menos do que enquadrar o aluno psicologicamente ou realizar avaliações, visamos acolher as questões enfrentadas pelo professor em sala de aula e contribuir para uma compreensão acerca das dificuldades na aprendizagem e na socialização. Deste modo, criar uma interlocução com educadores significa incluir a escola como parceira na abordagem da dificuldade escolar, construindo um terreno fértil para que novas articulações possam ser formuladas e 5

outros caminhos apontados, reconstruindo cotidianamente a clínica e ampliando o poder social da psicanálise em múltiplas vertentes. Referências Bibliográficas ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro, RJ: Guanabara, 1978. CALLIGARIS, C. Hello Brasil! Notas de um psicanalista europeu viajando ao Brasil, São Paulo, Escuta, 3ª edição, 1992. JERUSALINSKY, A. "A Escolarização De Crianças Psicóticas" in Estilos da Clínica. Revista sobre a Infância com problemas, São Paulo, Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, IPUSP, 1997. KUPFER, M. C. MACHADO Educação para o futuro: psicanálise e educação. São Paulo. Escuta, 2000. LAJONQUIÈRE, L. De Piaget a Freud. A (psico)pedagogia entre o conhecimento e o saber. Petrópolis, RJ. Ed. Vozes, 1992. PATTO, M. H. A produção do fracasso escolar. São Paulo, T. A. Queiroz, 1990. 6