DE ESCRAVOS A REMEDIADOS: UMA INCERTEZA. EXPERIÊNCIAS DE LIBERDADE E MOBILIDADE SOCILA EM CAMPINAS, 1829-1888.

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Transcrição:

DE ESCRAVOS A REMEDIADOS: UMA INCERTEZA. EXPERIÊNCIAS DE LIBERDADE E MOBILIDADE SOCILA EM CAMPINAS, 1829-1888. Laura Candian Fraccaro Mestranda em História Social da Cultura na Universidade Estadual de Campinas lauracfraccaro@gmail.com I Durante o século XIX, Campinas torna-se uma das maiores produtoras de café. As experiências vividas pelo seu vultoso contingente de libertos seriam severamente afetadas pelas mudanças da economia local e nacional e urbanas. Nessa análise ainda inicial dos trabalhadores negros em Campinas, escolhi ter como escopo comerciantes negros, principalmente mulheres, pois acredito que o processo de precariedade da liberdade tenha atingido de forma mais latente esse grupo do que os demais. Na cidade de Campinas, o comércio passou por diversas e recorrentes mudanças, não só normativas, mas também estruturais. A participação das mulheres nessa atividade, principalmente, das negras, que constituíam, num primeiro momento, o grupo dominante no comércio de pequeno porte, mudaria. Meu objetivo ao iniciar o trabalho era resgatar a trajetória dessas mulheres e alguns comerciantes para entender sua inserção no mercado. Durante a minha pesquisa, busquei, partindo do estudo de Sheila de Castro Faria sobre minas no Rio de Janeiro, verificar se em Campinas as mulheres conseguiam algum tipo de mobilidade financeira e social através das práticas comerciais; de que forma se inseriam no mercado; que redes relacionamento formavam. (FARIA, 2004) Pretendi combater o preconceito na historiografia que circunscreve as negras à pobreza e à mendicância. Mesmo conseguindo deter algum tipo de riqueza, essas mulheres são classificadas, por alguns estudiosos, como pobres ou destinadas à pobreza depois da alforria. Luciano Figueiredo ao analisar o cotidiano do trabalho em Minas Gerais do século XVIII, argumenta as forras, escravas e livres que do comércio dependiam teriam como traço comum a pobreza, precisando recorrer à prostituição para complementar seus ganhos. (1993, p.54 e 63)

Se, apesar de toda a instabilidade e pobreza decorrente dessas atividades, as forras e negras continuassem a exercê-las, ocupariam um papel tão diminuto, desprivilegiado e insignificante perante a economia da cidade, como afirma Amaral Lapa em relação ao comércio de pequeno porte. (2008A) Libertas e livres conseguiram deter algum tipo de riqueza, mas, no entanto, são classificadas, por vezes, na historiografia, como pobres ou destinadas à pobreza depois da alforria. Se escravos de ganho conseguiam sustentar a família de seu senhor e acumular pecúlio, por que não seriam capazes de acumular riquezas depois de libertos? Alguns autores contrapõem-se ao argumento de Faria, afirmando que o comércio a retalho não era tão rentável a ponto de permitir acúmulo de bens e ascensão econômica. No entanto, os impostos sobre essa atividade costumavam ser bem altos e a fiscalização rigorosa para aqueles que não tinham licença para exercê-la. Em Campinas, a fiscalização era severa, com mostrarei a diante. A partir das Licenças para Negócio, coletei mais de 190 nomes de mulheres que fizeram algum tipo de comércio em Campinas de 1830-1870. Cruzei, em busca de inventários, os nomes das mulheres que há mais tempo tinham se estabelecido no comércio com a base de dados do Tribunal de Justiça de Campinas localizado no Centro de Memória da Universidade Estadual de Campinas. Os Livros de Testamento também foram consultados em busca das trajetórias dessas mulheres. Resgatar as experiências vividas por essas mulheres, suas trajetórias e suas redes de relacionamento foram os objetivos principais da pesquisa, contudo, não seria possível cumpri-los sem acompanhar as mudanças da cidade em que viviam e no mercado em que estavam. A história das mulheres negras no comércio à retalho compõe a história do comércio em Campinas, da urbanização e da pequena economia, porém sem se desvencilhar também das mudanças nacionais. II

No ano de 1851, Maria Thereza de Jesus, comerciante, levava seu filho Joaquim de doze anos ao delegado para prestar queixa contra o carapina Benedito Toledo. 1 Não mais possuía a tutela de seu filho por ser miserável moradora da Cidade. Dificilmente, conseguiria reavê-la ainda que Joaquim estivesse vivendo sob severos maus tratos, sendo tratado como escravo, apesar de livre. O menino passava os fins de semana e dia santos no tronco, sendo solto apenas para o trabalho, sofria constantes espancamentos e açoitamentos. Thereza sem poder retomar a tutela de seu filho por ser bem conhecida sua condição humilde recorre ao delegado para que seu filho não mais trabalhe sob as ordens do carapina. Anna Joaquina Rodrigues, aos olhos do inspetor do 4º Quarteirão, era uma mulher paciente, resignada e pobre, que por muito tempo agüentou as ofensas de Antonio Rodrigues do Sacramento, Prudência Maria da Conceição e seus filhos. Possuía uma venda de aguardente no mesmo endereço em que aconteciam as freqüentes contendas. 2 Não tendo dinheiro para entrar com um processo de Ofensas, reclamou ao inspetor de quarteirão, cuja intenção era que os ofensores recebessem um termo de bem viver. Era considerada pobre pelo inspetor, ainda que possuísse um botequim há mais de quatro anos, como verificado nas licenças. Essas duas mulheres se dedicaram ao comércio, donas de venda e de botequins. Anna Joaquina morava na Rua da Constituição, área considerada subúrbio de Campinas. 3 Esse quarteirão, assim como a área do seguinte, era uma espaço de grande concentração de pretos livres e libertos. 4 Não se pode afirmar se Anna Joaquina era branca ou negra, mas morando em um bairro de libertos, sendo dona de botequim e ainda possuindo o apelido de Aninha Sigarreira, aquela que faz cigarros, no mínimo pode se afirmar que vivia muito próxima à realidade que os livres, pobres e libertos encontravam. Maria Thereza certamente fora escrava, pois se averigua no processo a condição do menino, que é livre. Mulheres com trajetórias um tanto quanto diferentes, mas com dois pontos convergentes, o trabalho e a precariedade de suas vidas. A 1 Arquivo Edgar Leuenroth, Auto de Crimes de São Paulo, Interior, Campinas, 1851, MR:0165. Cf: ACMC, Livro de Licenças, 1836,1838, 1848. 2 CMU. Auto de recurso, 1863, P.: 3516, Of.: 1. 3 CMU. Inventário, 1865, Of.: 3, P.7030. 4 Cf: Lista de Habitantes de Campinas, 1829. Ainda que tenham se passado algumas décadas, é bem provável que essa condição tenha se mantido, já que, frequentemente, teciam se reclamações acerca da localização do Teatro Municipal, sempre rodeado de botequins.

segunda metade do século, acredito, foi marcada pela dificuldade em se inserir no comércio e, posteriormente, em se manter comerciando, devido às inúmeras mudanças locais e da economia do Império. Parti do pressuposto, ao iniciar essa pesquisa, de que as mulheres alforriadas teriam grandes possibilidades de acumular bens, ou mesmo, enriquecerem com o seu trabalho. No entanto, os resultados foram muito diversos a partir da década de 50. A análise inicial das Licenças para o Comércio concedidas na segunda metade do século XIX, mais precisamente no período compreendido entre 1830 a 1872, demonstrou um número muito pequeno de mulheres em relação aos homens registrados. O contingente feminino durante esse período de vinte anos diminuiu chegando a apenas 4,2% dos comerciantes licenciados. O número de mulheres comerciantes que já era bem inferior do que o esperado e incluía ainda todo o comércio formal, feito de portas adentro e o comércio feito por mulheres brancas ricas como donas de engenhos e lojas de importados. A representatividade das mulheres negras, forras ou, mesmo de mulheres brancas pobres dentro desse comércio licenciado parecia quase inexpressiva. Se as mulheres egressas da escravidão, em outros lugares do Brasil, conseguiam se suster e até mesmo acumular riquezas com a prática comercial, porque em Campinas constituíam tão pequena amostragem nas licenças na segunda metade do século? Primeiramente, considerou-se o fato das Licenças não constituírem uma fonte sistemática sobre os comerciantes. Por muitas vezes, os comerciantes deixavam de pagar esse tributo por um ou dois anos, mas mantinham seus negócios abertos. No entanto, não penso que a queda dos registros tenha como única explicação um aumento do comércio informal, como desenvolverei mais adiante. A partir de 1830 a Câmara Municipal da Vila de São Carlos e, posteriormente, de Campinas passa a regular as práticas comerciais. O comércio se tornaria uma atividade cada vez mais controlada e tributada o que transformaria não só sua prática, mas o perfil das pessoas que o praticavam. As atividades mais informais seriam mais intensamente reguladas e fiscalizadas ao longo do século XIX. O comércio que na primeira metade exigia um capital inicial muito baixo e

poucos riscos, à medida que as décadas passam, torna-se uma atividade amplamente tributada e, de riscos crescentes, caso não se pagassem os tributos. A Câmara buscava registrar seus comerciantes para poder cobrar tributos e verificar os estabelecimentos e mercadorias. As Licenças, de diversos tipos, eram a principal forma de a Câmara cobrar impostos sobre os comerciantes da cidade e, devido à sua importância, não se manteriam incólumes durante esse período. A Licença para o comércio, em 1829, era exigida apenas dos proprietários de armazéns, botequins e tavernas. 5 Considero esses estabelecimentos os mais formais do comércio, juntamente com lojas e boutiques. Necessitavam não só de um capital inicial maior para seu funcionamento, mas também de um espaço físico específico. As fiscalizações, em um primeiro momento, só aconteciam nos espaços mais formais de comércio, mas paulatinamente os informais seriam aferidos. Em 1831, o fiscal avisa a todos os negociantes, principalmente nas casas que tem balcão que serão pedidas as licenças e quem não as possuir receberia multa. Em pouco tempo, a Câmara inclui esse tipo de comércio mais informal em suas fiscalizações e registros. Em 1833, a venda de aves, hortaliças, verduras, que antes não era tributada passa a ser. É cobrado dessa atividade o dízimo., um pequena taxa. 6 Aqueles que sobreviviam a partir do comércio de um pequeno excedente da produção familiar, depois de 1833 teriam que destinar parte do lucro ao pagamento de licenças, dízimos e, caso não o fizessem, de multas. As fiscalizações aumentaram no decorrer do século, assim como o número e o valor dos impostos e multas. Pagava- se impostos sobre a venda de aguardente e carne verde. O dízimo, pagamento sobre venda de excedentes da produção doméstica, atinge o valor de 30$000 em 1872 e de 160$000 para aqueles com uma produção destinada à venda. 7 Mesmo que a informalidade estivesse presente nas práticas comerciais, é muito improvável que os habitantes conseguissem se safar de todos os tributos e fiscalizações. 5 Arquivo da Câmara Municipal de Campinas, Livro de Registro de Correspondências, 1829-1831. P.2v 6 ACMC, Registro de Correspondências, 1829-1831. p.40. 7 Cf: ACMC, Registros Gerais, 1825-1831, p. 150. e Livro de Posturas e Editais, 1856-1872 e 1872-1881, Ano:1872.

A partir da década de 50, as posturas municipais se tornariam mais rigorosas e os espaços para o comércio passariam a ser delimitados. A postura de 1856 previa uma fiscalização mais rígida com as vendas e tabuleiros que deveriam se concentrar nos largos. Em 1859, a Câmara propõe a criação da Praça do Mercado, na qual deveriam se dirigir todos os alimentos que não fossem de recreio ou quitanda antes de serem vendidos pelas ruas de Campinas. Gêneros que as negras livres e libertas costumavam vender não eram, portanto, regulados. Mas com a criação de um outro espaço, o Mercado de Hortaliças, o comércio de boa parte dos produtos de quitanda, verduras e hortaliças, passa a acontecer obrigatoriamente no nesse espaço e seus arredores. As multas também se tornaram mais onerosas. Se em 1829, aquele que vendesse gênero adulterado ou danificado além de perder a mercadoria, pagaria uma multa de 2$000. A multa por estar com o estabelecimento aberto sem licença passaria de 10$000 réis em 1830 a 30$000 em 1856. A multa para os comerciantes de aguardente também teria igual crescimento. O processo de recrudescimento das fiscalizações e de cumprimento das disposições legais, se tornava mais intenso, tornando o funcionamento paralelo do comércio informal como forma de enriquecimento muito improvável. A partir da década de 70, com o aumento das fiscalizações, manter-se no setor de serviços se torna mais caro e arriscado, pois, ainda que ficassem na marginalidade, poderiam correr os riscos de serem severamente multados. A própria modernização da cidade, de acordo com Amaral Lapa, fez com que a aristocracia exige serviços de melhor qualidade e com maior refinamento, levando as atividades informais à marginalidade. (LAPA, 2008) Os comerciantes e contribuintes de estabelecimentos de portas-adentro viam na informalidade uma competição desleal e cobravam das autoridades um aumento da fiscalização. Mesmo que o fiscal da Câmara não conseguisse controlar todos os estabelecimentos, vendas e tabuleiros, as denúncias contribuíam muito para tornar o comércio informal uma atividade cada vez menos rendosa para os setores menos remediados. A fiscalização mais acentuada tornava uma prática que deveria ser estável e fonte de renda, uma potencial fonte de enorme despesa e até falência, caso não houvesse dinheiro para

reaver o que fora recolhido pelo fiscal. O capital inicial necessário para se estabelecer um comércio, seja de venda, botequim e ambulante não era mais tão acessível como na primeira metade do século. Valter Martins, analisando a história dos mercados e do abastecimento em Campinas, defende que a criação de espaços e horários específicos para a venda e compra, o aumento da fiscalização das medidas e das qualidades dos alimentos faria parte de um processo de normatização do comércio.(2001, p.39.) Acredito que o comércio, mais do que um processo de normatização, com licenças, tributos e posturas, como afirmou Martins, sofreu um processo de formalização. O comércio formal se tornava mais numeroso enquanto o informal acaba por ser mal visto tanto pelas autoridades como pelos consumidores. Os espaços são formulados para comerciante cujo capital inicial e de investimento são bastante elevados. No entanto, não são apenas as normas e as posturas que transformam o comércio, mas também as mudanças na cidade e na produção de alimentos. Enquanto o mercado de grande produção e consumo não tinha se estabelecido totalmente, setores mais pobres podiam se constituir como mediadores nas transações comerciais entre consumidores e produtores. Elizabeth Kuznesof assinala que a mudança de um modo de produção doméstico (domestic mode of production), baseado no comércio pelo valor de uso da mercadoria para um mercado baseado no valor de troca e de larga escala de produção não foi feito de modo abrupto como na Europa ou Estados Unidos.(1980, p.594) A especialização das plantações, a expansão de um mercado comercial urbano e o declínio da cultura de subsistência permitiu que as mulheres se dedicassem às vendas do pequeno comércio.o excedente da produção familiar podia ser vendido nas ruas da cidade, pois não possuía grandes concorrentes. Entretanto, com a urbanização e com as mudanças na economia da cidade, esse tipo de mediação e inserção no comércio se torna cada vez mais difícil. Quando a agricultura de Campinas se volta para a exportação de café, pequenos e grandes lavradores passam a se dedicar a esse cultivo e, cada vez mais, com o aumento do preço do café, esse interesse se amplia.(lapa, 2008) Os setores de mais baixa renda conseguiram galgar

espaço como mediadores, possibilitando um aumento na renda familiar e acúmulo de bens. No entanto, a criação de transportes, ferrovias e a importação de mercadorias trouxeram a concorrência com a larga produção e preços mais baixos. A formalização das atividades comerciais, além de acirrar a concorrência incentivou as investidas das autoridades contra as ocupações exercidas pelos libertos. Os segmentos menos remediados, principalmente as mulheres descendentes de escravos ou alforriadas, dificilmente conseguiram manter-se como mediadores, tornando muito escassa a possibilidade de acúmulo de algum tipo de riqueza através da atividade comercial. Depois dessa formalização, não restaria espaço para o comércio de quitanda, feito em janelas ou balcões das casas, ou de vendas nas ruas e de tabuleiro. Os comerciantes de estabelecimentos formais e os consumidores mais remediados exigiam das autoridades fiscalizações e penalidades aos vendeiros e quintadeiras. Reclama-se sobre as mercadorias vendidas, que não são apenas gêneros de quitanda alimentos frescos, mas de venda. O pequeno comércio, o comércio informal ou volante não era mais tão numeroso e com sua diminuta representação não conseguia combater esses constantes ataques. Não era apenas a atividade comercial feita na informalidade que incomodava os grupos mais remediados, mas seus sujeitos. Em 1860, Joaquim Américo é acusado de ter infringido o Código de Posturas, artigo 41º referente à venda de algum produto corrompido. Joaquim Américo era preto e dono de açougue e estava sendo acusado de vender banha estragada. 8 Declara que apesar de homem pobre e miserável, pagou ao fiscal a multa de 30$000 réis para não ir à cadeia por oito dias e continuar mantendo os meios de sustentar sua família. Joaquim afirma ainda que pagara a multa porque receava meter-se em teias judiciais, por que tem medo da justiça, porque quase sempre rebenta a corda pelo mais fraco e para poder ter sosseg. No entanto, decide recorrer quando descobre que o Dr. Ricardo Gumbleton Daunt era o denunciante. Seu desconhecimento das Posturas permitiu que o fiscal lhe enganasse e pedisse sua prisão, mas o que mais incomoda Joaquim na denúncia é o fato de Gumbleton Daunt ser o 8 Cruzei os nomes dos pais de Joaquim Américo com os nomes coletados na Lista de Habitantes de Campinas de 1830, na qual encontrei o fogo de sua família. AEL Lista de Habitantes, 5ª Companhia, n º40. Lourenço Antônio e Maria. Um dos filhos é Joaquim, livre, cuja idade calculada a partir do Processo de Infração de Postura permite-me afirmar que é Joaquim Américo.

denunciante. Daunt era médico na cidade, também ocupou o cargo de vereador e usando de sua influência por muitas vezes pediu ao fiscal que fosse investigar certos espaços. (PUPO, 1995) Acredito que a participação constante de Gumbleton Daunt entre outras figuras ilustres, como grandes negociantes, na acusação e no corpo de testemunhas não seja apenas uma forma de respaldar a ação movida. É muito provável que esse setor da sociedade que incluía doutores, médicos, negociantes e lojistas além de considerar o comércio ambulante um problema para a cidade, entendesse que não era lugar para as pessoas pobres e negras o comércio de portas adentro como de açougues e de botica. Não poderiam ocupar os mesmo lugares e posições que homens considerados ilustres ocupavam. Os negros e as negras que conseguiam galgar algum espaço no acirrado mercado de Campinas ainda teriam que lidar com as investidas de uma sociedade racista e classista, pois esta com pouca alegria conseguia admiti-los ocupando espaços de fornecedores da cidade. Os estigmas que perseguem a condição dos libertos e descendentes de potencializariam as dificuldades enfrentadas por esses homens e mulheres. A partir da década 70 com a construção do Mercado de Hortaliças, ter-se-ia uma diminuição da participação das mulheres negras, forras e brancas pobres, pois tendo um baixo capital inicial não teriam condições de se manter na concorrência com as lojas de porta adentro e de se manterem longe dos olhos acirrados do fiscal do comércio. Contudo, as trajetórias de Maria Thereza e Anna Joaquina evidenciam que antes de 1870, as mulheres já encontravam dificuldade em se suster através do comércio. Essa pequena amostragem que esses três casos constituem poderia ser insuficiente para tal informação. Porém, a partir da análise das licenças, percebeu-se que o número de registro constitui uma linha descendente a partir de 1832, enquanto a participação masculina é crescente por todo período.

% % Gráfico I: Registro de Licenças para Negócios. Como mencionado anteriormente, a diminuição nos registros de mulheres poderia apenas representar uma existência paralela de vendas e botequins. Mas, ao analisar o gráfico, percebe-se que em 1836 há o maior número de registros de mulheres de todo o período estudado. Se as fiscalizações antes da criação dos espaços comerciais praça, mercado, mercado de hortaliças eram bem tênues, na década de 30 seriam muito raras. Em 1836, 44 mulheres pagavam pela licença e em vinte anos, esse número cai drasticamente para 6. Mais importante do que aferir a razão pela qual as mulheres pagavam pela licença em uma época cuja fiscalização era branda, é se perguntar porquê as mulheres de 1856, que também não encontravam um quadro de fiscalização acentuada, não pagavam. A resposta definitivamente não se encontrava confinada entre a Rua Constituição e o Largo de Santa Cruz ou era fruto apenas de um processo de mudanças municipais. Gráfico II: Registro de Licenças para Negócios. O gráfico mono-logaritmo permite perceber melhor crescimentos e decréscimos, pois a distâncias dos intervalos são proporcionais e não em números absolutos. III

Zephyr L. Frank ao estudar a trajetória de Dutra, um liberto no Rio de Janeiro, que conseguiu acumular durante sua vida dois imóveis urbanos e 13 escravos durante o século XIX, ressalta que para entender a vida social e econômica é imprescindível se ater nas mudanças ocorridas no sistema escravocrata. Para o autor, de modo sucinto, o ambiente urbano possuía uma relativa distribuição igual de propriedade em escravos e, por conseguinte, uma menor desigualdade entre a população livre, o que contribuiria para uma alta taxa de mobilidade social. No entanto, essa configuração só seria possível enquanto se mantivesse um crescimento econômico baixo, porém firme. (FRANK, 2004) O preço dos escravos era relativamente baixo durante a década de 20, possibilitando uma acumulação desse tipo de bem pelos setores médios. Mas, ciclos de inflação, a alta do preço dos escravos depois da proibição do tráfico e o aumento das exportações brasileiras contribuíram para que aqueles que tivessem escravos tornassem suas fortunas mais valiosas e impediu que muitos outros comprassem cativos ou imóveis, aumentando assim a desigualdade social a partir da década de 50. O capital necessário para adentrar no setor médio da população na década de 20 era menor, portanto, do que na década de 40. Casos de ascensão como o de Dutra não constituíam severas exceções, mas o mundo em que vivia, as condições econômicas que contribuíram para a formação de seu patrimônio, eram efêmeros a tal ponto que seus filhos não mais encontrariam chances de almejarem tal mobilidade. À proporção que os escravos vão perdendo valor com o prenúncio do fim da escravidão, os setores médios, que muito investiram em cativos, vão vendo suas fortunas progressivamente se desvalorizar. Esse processo acontece conjuntamente ao processo de urbanização, no qual à medida que a cidade se moderniza e enriquece, a distância entre setores médios e a elite só aumenta, pois esta última, comumente, investia em outros bens além de cativos. Ainda que haja uma queda do valor da riqueza acumulada, o padrão de vida se mantém. A partir da segunda metade do século XIX, Campinas passa por mudanças econômicas, se inserindo na produção de café nacional. Essa economia se transformando em economia de exportação e expansão, em um primeiro momento, permite que pequenos setores na sociedade assumam funções de abastecimento dos grandes plantéis, como afirma Kuznesof. O que

explicaria o alto número de mulheres que se registram e pagam para fazerem pequeno comércio, ou abrirem botequins na década de 30. Em 1826, Maria Joaquina do Espírito Santo não só tinha uma venda como emprestava dinheiro a juros. 9 É muito provável, que fosse negra, pois em uma contenda com Maria Theodora foi acusada de ser feiticeira, de fazer muitos feitiços. Maria Joaquina não se importava em comprar papéis de consignação e correr riscos de não receber a quantia prometida. Seu negócio poderia lhe render uma boa renda, já que até sua queixosa frequentava seu botequim. Podia emprestar dinheiro e comprar dívidas, pois, provavelmente, seu comércio lhe dava segurança o bastante para não temer os riscos com a omissão do devedor. Nesse período que antecede à intensa urbanização de Campinas, os setores mais pobres tinham maior possibilidade de comprar escravos, pois seu preço era muito menor. Contudo, a partir da proibição do tráfico, comprar um escravo fica gradativamente mais difícil já que seu valor triplica na década de 50, atingindo seu ápice em 60.(FLORENTINO, 2005) As mulheres que já tinham se estabelecido no comércio de pequeno porte, ou dele tiravam seu sustento, provavelmente conseguiram durante a década de 30 e até mesmo de 40, se suster e, em alguns casos acumular bens, mas aquelas que se inseriram a partir da década de 50, como ilustra muito bem os casos de Anna e Maria Joaquina, encontraram instabilidade e pobreza. O baixo número de registros, assim como a queda no número de vendas e botequins chefiados por mulheres e o aumento de lojas e boticas a partir da década de 50, evidenciam que os setores menos remediados, dos quais as negras e as forras fariam parte, já não conseguiam se estabelecer no comércio como na década de 30 a ponto de despenderem de seu parco orçamento, o dinheiro para licença e impostos. 10 Simplesmente, poderiam manter suas vendas, mas não como antes, pagando impostos sobre registros e mercadorias. Por entre fiscalizações, multas e concorrência, Joana Justina da Santa Cruz conseguiu acumular 3:249$000 até a sua morte, no ano de 1865, em bens, jóias e alugueis a receber. 9 CMU, TJC, P:985 Of:1, P:986 Of:1. 10 Em 1829: Botequins:06 vendas:13 Lojas: 0. Em 1870, Lojas:04 Botequim:01 Venda:10 Escritório Bancário:01 Casa de Jóais:01

Registrou sua venda, que ficava na Rua da Santa Cruz no período de 1859-1864. Além de ficar em importante e populoso bairro de mesmo nome, a rua tinha o nome de Rua da Pinga, devido à grande quantidade de botequins que nela se estabeleceram. O Largo da Santa Cruz onde o botequim de Joana Justina se localizava era também espaço para constantes festas, que atraíam muitas pessoas.(lapa, 2008) Em seu testamento, declarou ser viúva e sem herdeiros. Libertou seu escravo Virgínio, de dez anos. Possuía duas moradas de casas, no valor total de 2:800$000, cujos aluguéis não lhe rendiam muito mais que 14$529 réis mensais. Suas dívidas chegaram a apenas 13,3% do total de seus bens. 11 De acordo com a análise de Maria Luiza Ferreira sobre o patrimônio acumulado por diversos grupos sociais em São Paulo na segunda metade do século XIX, Joana Justina estaria entre os setores médios, acima dos considerados remediados. (2005) Joana Justina conseguiu não só manter seu botequim durante sua vida, como também, construir um patrimônio de mais de três contos de réis em meio a um aumento da desigualdade social e uma diminuição da mobilidade. Provavelmente, esse acúmulo foi possível porque Joana investiu em imóveis, que lhe forneciam uma renda e que não sofreram uma queda contínua de valor, como os cativos. Maria Candida da Cruz, moradora de Santa Cruz e comerciante, era liberta. 12 Possuía duas escrava. Possuía um imóvel, aonde residia, no valor de 800$000 réis. Seu patrimônio chegou a 1:306$619 e não constituía uma riqueza volumosa, mas, no entanto, as dívidas que possuía constituíam apenas 12% de todos os seus bens. Tinha a receber de 24 pessoas, um total de 103$159 réis e a pagar 160$170 réis. Apenas sua casa representava 61% do seu patrimônio. 13 De acordo com a classificação de Oliveira, estaria entre os remediados e teria também uma vida estável. Maria Candida provavelmente se alforriou no período em que o valor de escravos era baixo e quando pode acumular bens, os cativos estavam sofrendo um gradativo aumento em seus 11 CMU, Inventário, 1865, Of:3, P:7020. 12 CMU. Livro de Testamento n º161, p.62v, 1842. 13 Roza de 58 anos foi vendida por 300$000, Maria era considerada de valor, pois seria muito mais velha do que Roza, tendo que ficar aos cuidados da filha de Maria Cândida.

valores, o que explicaria, em parte, a posse de duas escravas com idade avançada, o investimento em uma casa e em transações financeiras. A trajetória de Maria, acredito, não foram comuns em Campinas, principalmente a partir de 1850, mas nos auxiliam a combater o estigma que cercam as mulheres que viveram do comércio. Já Ana e Maria Joaquina foram donas de botequins, se registraram nas licenças, tinham parceiros, seja um companheiro ou um amigo fiscal, conhecidos que testemunhavam a favor, e trabalharam por anos no comércio de Campinas, mas, apesar do empenho e de suas redes de socialização, assim como tantas outras mulheres, acabaram morando em casas de aluguel, sendo ofendidas de ladra e puta, sem poder sustentar a si ou suas filhas. Mais do que falta de destreza ou de inserção nas comunidades o que contribui principalmente para que essas mulheres não conseguissem tirar do comércio sua sobrevivência, foi o momento em que viviam. Não bastava ter agência para conseguir mobilidade a partir da década de 50. (FARIA, 2000) Zephyr Frank argumenta que em uma geração depois de 1849, a riqueza era mais concentrada do que nunca, e as avenidas para o enriquecimento tornavam-se incrivelmente fechadas para pessoas como Dutra. Em Campinas, com algumas variações, se instalava o mesmo contexto, no qual, principalmente, as mulheres ligadas ao comércio ou ainda a atividades mais informais como lavadeiras, viam as possibilidades de enriquecer praticamente desaparecerem, restando apenas a subsistência. Maria Candida e Joana Justina sabiam o quão complicado e sofrível podia ser sobreviver à escravidão ou mesmo à liberdade. Joana, em seu testamento, além de beneficiar seu escravo de 10 anos com a liberdade, deixou para a escrava Luiza, de Joaquim Cardoso dos Santos Bahia, um quarto com a condição de não o tirarem por dívidas e por não se suster. Deixa ainda mais 30$000 réis para essa mesma escrava. Escolhe não dar uma quantia maior a Luiza, mas assegura uma morada para sua amiga e vizinha pelo resto de sua vida. Maria Candida declara que criou uma órfã, de nome Mereciana, com 15 anos, e que pelos serviços prestados para ela deixava uma série de utensílios como chocolateira e tachos. À Mereciana foi dado mais do que utensílios, mas a possibilidade de fazer sua própria venda e manter sua profissão. Tanto Maria como Joana

conheciam as dificuldades que se colocavam à frente de setores pobres e médios da população que viam cada vez mais comprometida a chance de ter renda para sobreviver minimamente. Pretendiam em seus testamentos assegurar, ao menos, a sobrevivência imediata ou o conforto na velhice. Os libertos, a seu modo, tentavam construir ativamente vínculos sociais e garantias suficientes para lidar com incerteza e a precariedade, reorganizando laços de dependência e interdependência que permitissem sua filiação a uma ordem minimamente viável e estável, afirma Henrique Espada ao analisar contratos de locação de serviços.(2006) Maria Candida e Joana buscaram para seus próximos assegurar certa estabilidade, oferecendo-lhes profissão, material inicial, ou um quarto para se estabelecer quando não mais pudesse trabalhar. Aninha Sigarreira tinha um relacionamento próximo ao inspetor para poder assegurar um pouco de tranquilidade em meio a insultos e agressões. O autor defende que freqüentemente, se pensa a liberdade como a possibilidade de acessos aos direitos universais, mas quando o cativo é lançado no mercado de trabalho encontra um quadro totalmente diverso. Sem casa, sem pano e sem botica asseguradas pelo senhor, as libertas e descendentes se deparam com um aumento de sua vulnerabilidade econômica e social. Havia limiar tênue entre a subsistência e miserabilidade, que pode ser facilmente atravessado por oscilações de mercado.(castel, 1998 p.219) As constantes fiscalizações e multas que começam a fazer parte de Campinas mais intensamente a partir de 1870, assim como uma perda de produção na lavoura, e o racismo de grandes produtores e consumidores também poderiam desestabilizar a vida dessas pessoas, ou torná-las mais complicadas. A precariedade, paulatinamente, se instaura na vida dos homens e mulheres forros, tornando se mais intensa à medida que o século XIX avança. Ana e Maria Joaquina trabalharam, montaram suas vendas, foram donas de botequins, mas acabaram sendo mulheres pobres, assim como Escolástica, Benedita Claudiana e Antônia Vicência. 14 Mais do que uma possibilidade de ter e aumentar seus bens, essas mulheres 14 CMU, P:2350, Of:1; P:1923 Of:1, P:310 Of:1.

encontraram uma vida de penúria e exclusão. Não lhes faltou esforço, destreza ou inserção na comunidade de seus semelhantes. Defendo que a partir de 1850, com uma maior acentuação na década de 70, as mulheres em Campinas encontravam cada vez mais dificuldades em se inserirem no mercado, seja como comerciantes, lavadeiras ou quituteiras. A alta do preço dos cativos afastava a possibilidade de ascender, tornando aqueles que possuíam cativos mais ricos e os que não possuíam mais pobres. Aquelas que no comércio se encontravam, tiveram de enfrentar uma formalização, que dificilmente resistiram a ponto de se tornarem ricas ou apenas remediadas. Ainda que consigam sobreviver de forma paralela no comércio, com a urbanização de Campinas, as diversas posturas e fiscalizações e as investidas de grandes comerciantes e doutores são arrebatadas para fora do mercado. A única certeza para os libertos era de serem lançados numa situação social marcada pela precariedade. (LIMA, 2006, p.309) BIBLIOGRAFIA CASTEL, Robert. As Metamorfoses da Questão Social: uma crônica do salário. Petrópolis, Vozes, 1998. FARIA, Sheila de Castro. Sinhás Pretas, damas mercadoras: as pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850), tese apresentada ao departamento de História da Universidade Federal Fluminense para o concurso para professor titular em História do Brasil. FARIA, Sheila de Castro. Mulheres forras: riqueza e estima social. Tempo, nº9, 2000 FIGUEIREDO, Luciano. O avesso da memória. Cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no século XVIII. Rio de Janeiro, José Olympio/Edunb, 1993. FLORENTINO, Manolo. sobre minas, crioulos, e a liberdade costumeira no Rio de Janeiro, 1789-1871, In: Tráfico, cativeiro e liberdade Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. FRANK, Zephyr. Dutra's World: Wealth and Family in Nineteenth-Century Rio de Janeiro. Albuquerque: University of New Mexico Press, 2004. GEBARA, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil (1871-1888). São Paulo, Ed. Brasiliense, 1886

KUZNESOF, Elizabeth Anne. Household Economy and Urban Development: São Paulo, 1765 to 1836. Boulder: Westview Press, 1986.. LAPA, José Roberto Amaral. Os cantos e os antros: Campinas 1850-1900. Campinas: Editora da Unicamp, 2008. LIMA, Henrique Espada. Sob o domínio da precariedade: escravidão e os significados da liberdade de trabalho no século XIX. Topoi, v.6, n.11, 2006. MARTINS, Valter. História de Compra e Venda:Mercados e abastecimento urbano em Campinas, 1859-1908. (tese de doutorado, FFLCH, USP, 2001). OLIVEIRA, Maria Luiza Ferreira de. Entre a casa e o armazém: relações sociais e experiência da urbanização, São Paulo 1850-1900. Ed. Alameda, 2005. PUPO, Celio M. de Mello. Campinas, municípios no Império: fundação e construção, usos familiares, a morada, sesmaria, engenhos e fazendas. Imprensa Oficial do Estado S.A de São Paulo, 1983. XAVIER, Regina Célia. História e vidas de libertos em Campinas na segunda metade do século XIX. Dissertação de Mestrado apresentada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, 1993.