EDUCAÇÃO INFANTIL E RELAÇÕES RACIAIS/ÉTNICAS Maria Aparecida Silva Bento Doutora em Psicologia Social pela USP Diretora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades Este resumo está ancorado na abordagem de alguns aspectos das relações raciais na educação infantil. A escolha desta etapa da vida da criança foi feita tendo em vista que: - este período é fundamental para a formação da identidade racial; - é o período no qual os diferenciais entre crianças negras e brancas são mais significativos; - há maior negligencia do Estado, das instituições que trabalham com a infância, e do movimento social, particularmente o Movimento Negro, com relação a esta etapa do processo educacional. Em 1994, o Ministério da Educação deparou-se com questões levantadas na Conferência Mundial sobre Educação para Todos 1 : a escola está trabalhando para o desenvolvimento da cidadania? Existe tratamento diferenciado na escola? O poder público está fracassando em sua tarefa de garantir oportunidades e tratamento dignos para todos os cidadãos? Uma série de diagnósticos responde a estas indagações, apontando a existência de tratamento desigual, para crianças de diferentes segmentos e de diferentes origens, contribuindo para os dramáticos indicadores de desigualdades entre crianças negras e brancas no sistema educacional. O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com base no Censo de 2000 aponta que entre as crianças pobres de 0 a 6 anos, 38% são brancas e 66% são negras. Este diferencial é o maior dentre os encontrados nos diversos níveis de educação e refere-se a etapa de 0 a 6 anos, que costumamos chamar de educação infantil. A educação infantil é a primeira etapa da Educação Básica. Entende-se que ela pode contribuir para que se estabeleçam as bases da personalidade humana, da inteligência, da vida emocional, da socialização. As primeiras experiências da vida são as que marcam mais profundamente a pessoa. Quando positivas, tendem a reforçar, ao longo da vida, as atitudes de autoconfiança, de cooperação, solidariedade, responsabilidade. As ciências que se debruçaram sobre a criança nos últimos cinqüenta anos, investigando como se processa o seu desenvolvimento, coincidem em afirmar a importância dos 1 Tailândia/1990.
primeiros anos de vida para o desenvolvimento e aprendizagem posteriores. A educação infantil inaugura a educação da pessoa. Essa educação se dá na família, na comunidade e nas instituições. As instituições de educação infantil vêm se tornando cada vez mais necessárias, como complementares à ação da família, o que já foi afirmado pelo mais importante documento internacional de educação deste século, a Declaração Mundial de Educação para Todos 2. Esse é um dos temas importantes para o PNE - Plano Nacional da Educação. No entanto inexiste, em seu bojo, qualquer preocupação quanto à preparação dos professores seja do ensino infantil ou fundamental, para lidarem com conteúdos mínimos tais como a origem da diversidade, ou o fato de que a primeira representação que a criança negra tem de si na escola a projeta como escrava, sujeito passivo da história, escravizada e, num ato de indulgência dos brancos, libertada. Não há feitos gloriosos dos seus antepassados, não há heróis negros, a religião dos negros é tratada como fetiche, a semântica da palavra negro ou preto é empregada como sinônimo de algo ruim, depreciativo; não se estuda história da África e, quando aparece alguma representação da África no presente, ela não consegue fugir dos limites de uma grande selva. Em resumo, inexiste uma única formulação voltada para a problemática racial, notadamente para o crucial aspecto da preparação dos professores para lidarem com a temática racial. A baixa prioridade que a criança pequena recebe no PNE Plano Nacional de Educação aparece também nas políticas econômicas e sociais e se manifesta em suas condições de vida e morte. Quando observamos os indicadores de condição de vida desta fase, os piores são observados entre crianças negras e indígenas 3, residentes na região nordeste, em zona rural, provenientes de famílias com níveis de renda inferiores e cujas mães tiveram poucas oportunidades educacionais. a) Estas crianças têm as menores chances de viverem além dos 5 anos; b) Na faixa de idade entre 2 e 4 anos as crianças apresentam os maiores e mais persistentes índices de desnutrição; c) O Unicef tende a considerar a educação da mãe uma das causas da mortalidade/desnutrição e especialistas da educação atribuem à renda familiar e às condições de saneamento básico forte valor explicativo; 2 Declaração de Durban e Plano de Ação, parágrafo 124 do Plano de Ação. 3 Os indicadores sobre crianças indígenas nem sempre são disponíveis, pois, além de tiverem ocupado pouca atenção dos indigenistas e da antropologia (Nunes, 1999), sua presença bastante reduzida na população gera dificuldades na interpretação dos dados coletados em pesquisas amostrais.
d) O governo tem negligenciado a educação infantil quando desenvolve políticas de combate a pobreza para esta faixa etária. Assim, se por um lado, as crianças pequenas negras e indígenas são negligenciadas no plano nacional da educação elas têm ainda os piores indicadores de condição de vida, quando comparadas às crianças brancas. Acrescente-se a isto um outro tipo de violência que as atinge: a violência simbólica, que ocorre nas creches e escolas de educação infantil e focaliza particularmente o seu pertencimento racial/étnico. Fúlvia Rosemberg destaca que o espaço escolar é hostil às crianças não-brancas, e redefine a expressão maior evasão das crianças negras da escola por expulsão das crianças negras do sistema escolar 4. Esta hostilidade tem, dentre outras, origem no fato de que a dimensão simbólica de poder está colocada de modo a preservar a relação de idade-classe-raça rígida, que coloca crianças, pobres, negros em posição inferior tendo que aprender a partir de uma lógica de linguagem e de pensamento sobre e para o mundo do adulto, classe-média, branco. Este modelo tem implantado nas escolas públicas um sistema de ensino de baixa qualidade no qual professores nutrem baixa expectativa com relação aos seus alunos negros, perpetrando ou se omitindo diante da violência simbólica que os atinge. Uma profusão de ações que ocorre no ambiente escolar pode ser enquadrada no que chamamos de violência simbólica. A relação entre as crianças freqüentemente marcada por xingamentos ou brincadeirinhas com conotação racial, o silêncio ou omissão dos professores diante de situações de discriminação. E, no caso da educação infantil, a dificuldade do professor em tocar a criança negra, pentear seus cabelos, cuidar de seu corpo, ações quase inevitáveis nesta etapa da educação. Saliente-se ainda que, nos estudos sobre materiais didáticos, realizados entre 1980 e 1990, o que se observa é a reprodução de uma posição de raça extremamente contaminada por uma visão racista, causadora de sofrimento mental para a criança negra, que ou não é considerada ou aparece de maneira deturpada (desumanizada, inferiorizada, demonizada). Algumas perguntas devem ser feitas: como agir para garantir igualdade de acesso, tratamento e oportunidades na escola, para todos? Como subsidiar os educadores para selecionar os materiais utilizados em suas aulas e terem práticas inclusivas? Sob quais parâmetros se deve pautar uma proposta educacional preocupada em garantir a diversidade humana e cultural? Como garantir e preservar a saúde mental das crianças negras submetidas cotidianamente a esta violência simbólica que atinge particularmente sua identidade racial? A título de exemplo, experiências desenvolvidas por educadores com crianças desta faixa etária, coletadas pelo CEERT no Prêmio Educar Para a Igualdade Racial entre os anos de 2002 e 2004 revelam que a discriminação racial entre as crianças foi um disparador para se 4 Relações raciais e rendimento escolar, Fúlvia Rosemberg, 1987.
trabalhar a temática racial na sala de aula. Ou seja, os xingamentos, as ofensas verbais das crianças brancas provocaram no educador o desejo de trabalhar com a igualdade racial. Configura-se assim uma situação curiosa: como sustentar o mito de que as crianças pequenas são puras, não são preconceituosas? Os educadores de educação infantil que desenvolveram as experiências de tratamento da temática racial em sala de aula, definiram como principais objetivos de sua ação, despertar para a diferença e respeitá-la. E buscaram atingir estes objetivos, principalmente, através de brincadeiras e roda de história. Ou seja, é possível desenvolver ações concretas com vistas a mudança deste quadro e criar condições para que a criança negra encontre um ambiente favorável, onde ela possa se reconhecer. Segundo Mezan, cada sociedade precisa se estruturar de forma tal, que seus membros possam se identificar com certos modelos, adotá-los como seus, representá-los como ideais a serem atingidos etc. É necessário que haja também um espaço dentro do qual, cada um de nós possa acomodar estes modelos gerais que a sociedade oferece às nossas próprias determinações. Assim, é fundamental para a criança negra que lhe sejam oferecidas imagens e conteúdos que contemplem o seu pertencimento racial de maneira digna. Sua condição racial/étnica, seus traços, sua cor não podem continuar a constituir em fonte de dor. Sabemos que o corpo ou a imagem corporal é um dos componentes fundamentais na construção da identidade. A identidade do sujeito depende, em grande medida da relação que ele cria com o seu corpo. Um corpo que não consegue ser perdoado, absolvido do sofrimento que inflige a pessoa, torna-se um corpo perseguidor, odiado, visto como foco permanente de ameaça de morte e dor. Assim é que, muitas vezes a criança negra não se representa, não se enxerga como negra! Desta forma consideramos de fundamental importância que as condições da educação, particularmente a educação infantil, sejam pautadas no debate social para que sofram alterações. E, neste sentido, o momento atual é extremamente propício para a implementação de programas de formação que valorizem a diversidade humana e combatam o preconceito, tendo em vista os desdobramentos da III Conferência Mundial contra o Racismo ocorrida em Durban, em 2002. Na área educacional a declaração de Durban, insta o Estados a comprometerem-se a assegurar acesso à educação sem qualquer tipo de discriminação, a comprometerem recursos para eliminar as desigualdades e a darem a importância necessária à revisão dos
livros-textos e dos currículos para eliminação de quaisquer elementos que venham a promover racismo, investindo na formação dos educadores. No plano interno, a aprovação da LDB (Lei de Diretrizes e Bases) e sua recente alteração, através da Lei 10.639/2003, reforçam esta função da escola, ao fixar nas diretrizes e bases da educação nacional, orientações que favorecem perspectivas interculturais e pluriétnicas nas políticas educacionais. Destacamos como exemplos: a oferta de educação intercultural aos povos indígenas 5, encaminhadas através dos órgãos de apoio a esses povos; o destaque ao ensino da História do Brasil, como componente curricular que valoriza a contribuição das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente as matrizes indígenas, africana e européia 6, a inclusão do estudo da História da África e dos africanos e da luta e contribuição dos negros do Brasil na formação da sociedade nacional, e ainda a garantia de participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola, com participação da comunidade escolar, através de conselhos ou equivalentes. Cabe às organizações negras e as instituições que trabalham com as questões da infância, que vêm negligenciando esta importante etapa da educação, contribuir propositivamente e assessorar com seus acúmulos de conhecimentos e práticas no desenho das políticas públicas educacionais de promoção da igualdade racial, construindo indicadores e metodologias para que os educadores possam se orientar quanto à identificação e correção dos principais equívocos cometidos no trato desta temática, e na identificação de práticas, programas e ações desejáveis. Assim é que, embora cotas nas universidades sejam fundamentais para reverter o quadro das desigualdades no Brasil, a educação infantil também deve ser alvo de atenção imediata. BIBLIOGRAFIA COSTA, Jurandir Freire. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro, Edições Graal, 2º edição, 1986. MEZAN, Renato. Psicanálise, Judaísmo: ressonâncias Rio de Janeiro, Série Psicologia Psicanalítica. Editora Imago, 1995 ROSEMBERG, Fúlvia. Relações raciais e rendimento escolar. In: Cadernos de Pesquisa. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, 1987, nº 63. SILVA JR., Hédio. Discriminação Racial nas Escolas - Entre a Lei e as Práticas Sociais. Unesco, 2002. 5 art.78 e 79. 6 art. 26, parágrafo 4º.