IMAGENS EM TRÂNSITO: A CIDADE COMO ESPAÇO PRIVILEGIADO PARA A PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE PINTURAS HISTÓRICAS



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Transcrição:

IMAGENS EM TRÂNSITO: A CIDADE COMO ESPAÇO PRIVILEGIADO PARA A PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE PINTURAS HISTÓRICAS Marlene Ourique do Nascimento. 1 Resumo: O presente artigo tem como escopo a produção e circulação de pinturas históricas. Inserido no âmbito de estudos em História Cultural e Cultura Visual trata da produção e circulação das obras Chegada dos casais açorianos e Tomada da ponte da Azenha de Augusto Luiz de Freitas e Expedição a Laguna de Lucilio de Albuquerque, desde as encomendas realizadas por Borges de Medeiros entre os anos de 1914 e 1919 até a instalação das obras, em 1935, no Pavilhão Cultural da Exposição do Centenário Farroupilha, atual prédio do Instituto de Educação General Flores da Cunha na cidade de Porto Alegre. Este estudo toma a cidade como o cenário de encomenda e circulação destas pinturas. Palavras-chave: Pintura Histórica, Revolução Farroupilha e Porto Alegre A obra Expedição a Laguna, de Lucilio de Albuquerque, assim como Chegada dos casais açorianos e Tomada da ponte da Azenha de Augusto Luiz de Freitas, foram encomendadas pelo então governador do Rio Grande do Sul Borges de Medeiros, conforme consta nos relatórios da Secretária de Obras Públicas do Estado do Rio Grande do Sul nos livros referentes aos anos 1914 e 1919 respectivamente. Somadas a outras obras de arte, principalmente em pintura histórica e estatuária, constituem parte da tentativa de construção de uma narrativa visual acerca do estado. Estas obras, de acordo com o que foi mencionado no ato da encomenda, direcionavam-se ao Palácio Piratini ainda em construção. 1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Educação. Prof.marlenenascimento@gmail.com Sessão temática Imagens - 657

Os murais do Palácio Piratini, assinados por Aldo Locatelli (1915-1962), representam uma das tentativas de expressar, por meio do muralismo, o pensamento da soberania do Estado. As tentativas que deixaram maiores vestígios são as obras de Antônio Parreiras (1860-1937), anteriores a I Guerra Mundial e as obras de Lucílio de Albuquerque Augusto Luiz de Freitas, realizadas ao longo e após esta guerra. (SIMON in LAGEMANN; LICHT, 2010, p.91) Embora não tenham permanecido no Palácio do Governo tiveram sua trajetória marcada por grandes eventos públicos ao terem sido expostas no Pavilhão Cultural da Exposição do Centenário Farroupilha em 1935, prédio que abriga hoje o Instituto de Educação General Flores da Cunha. A recém construída sede da Escola Normal cedeu seu espaço para uma grande exposição cultural que reuniu mostras em diversas temáticas. Foi nesse contexto comemorativo que as telas enfim vieram a público e passaram a constituir, das paredes da Escola Normal, um fragmento da memória sobre a Revolução Farroupilha e sobre o estado do Rio Grande do Sul. Atualmente, quem adentra o belíssimo prédio do atual Instituto de Educação, obra do arquiteto Fernando Corona, na Av. Osvaldo Aranha, depara-se - com certo arrebatamento com três grandes pinturas a óleo. Na entrada, na parte central, em frente à escadaria, encontra-se a tela de Augusto Luiz de Freitas Chegada dos casais açorianos que mede 6,30 x 5,50 metros e cuja temática retrata a chegada dos casais açorianos que vieram a povoar a região de Porto Alegre. A escadaria divide-se e a sua direita temos a obra Tomada da ponte da Azenha, do mesmo pintor, medindo 5,46 X 3,76 metros, retratando a batalha de 19 de setembro de 1935 quando os farrapos venceram a batalha contra os imperiais, travada na ponte da Azenha e ocuparam a cidade de Porto Alegre. A referida ponte localiza-se entre as avenidas Ipiranga e Azenha na capital gaúcha. À esquerda da escadaria encontra-se a obra Expedição a Laguna também conhecida como Garibaldi e a esquadra farroupilha de Lucílio de Albuquerque, medindo 5,45 X 3,32 metros, retratando uma famosa passagem da Revolução Farroupilha quando Giuseppe Garibaldi atravessa por terra os lanchões Seival e Farroupilha da Lagoa dos Patos até a barra do Tramandaí, rumo a Santa Catarina. Percebe-se nesta pequena narrativa visual uma linha de tempo que vem desde a formação do estado do Rio Grande do Sul até dois importantes episódios da maior Sessão temática Imagens - 658

revolução política ocorrida no estado. A partir disso, pode-se pensar sobre algumas questões acerca da construção das narrativas visuais e da sua circulação. A análise a seguir resulta de parte da dissertação de mestrado intitulada Nas pistas das imagens: produção e circulação de pinturas históricas no Rio Grande do Sul de 1914 a 1935 (NASCIMENTO, 2014) e que objetivou analisar a produção e a circulação destas pinturas desde a sua encomenda até sua alocação no prédio do então Pavilhão Cultural da Exposição do Centenário Farroupilha. A referida pesquisa dividiu-se em três partes que problematizavam, primeiramente, o contexto de encomenda das obras, passando pela intenção dos encomendantes e pela construção da sede do governo gaúcho. A seguir a análise deteve-se nas questões teóricas da cultura visual e no aspecto educativo das pinturas históricas. Estas etapas constituíram um caminho para ilustrar o percurso das obras na cidade de Porto Alegre. Finalmente, a última análise do estudo citado contempla - já passada a exposição do Centenário Farroupilha - o momento em que as obras passam a constituir parte da Escola Normal. Analisa-se a produção destas obras no contexto de construção do Palácio Piratini e o percurso por elas trilhado como uma linha imaginária que nos conduz pela Porto Alegre deste período. Segundo esta pesquisa, observa-se dois momentos distintos de atuação destas pinturas: o primeiro refere-se à tentativa de construção de uma narrativa acerca do estado e o segundo uma demonstração de beleza e soberania dentro das grandes comemorações do centenário farroupilha. Ainda de acordo com a pesquisa realizada, estas obras não foram expostas em outros locais, tendo permanecido na sede do governo, desde as encomendas até a grande exposição. Assim, a cidade pode ser tomada como um cenário por onde circulam as imagens e no qual elas atuam como construtoras deste mesmo cenário, em uma troca contínua de informações entre as imagens e o espaço por onde circulam e no qual se estabelecem. O que são as nossas memórias sobre o espaço urbano senão uma miscelânea de imagensmemória, confusas entre memórias individuais e coletivas, mas que por fim sustentam de certa forma nossa visão sobre a cidade. Sessão temática Imagens - 659

Novas metodologias de análise surgiram com o advento da História Cultural e com a apropriação de novos objetos por parte da historiografia, assim estas novas metodologias contemplam as imagens na sua totalidade abarcando inclusive a sua produção e circulação. Este artigo privilegia, portanto, a cidade como um aspecto para além das obras, capaz de influenciar a visão e o modo de ver dos observadores. As imagens, deste modo, referem-se à cidade, transitam por ela e constituem suas memórias. Neste caso, dois espaços urbanos se entrecruzam com as obras em análise e sua circulação: o Palácio Piratini e a Escola Normal, atual Instituto de Educação General Flores da Cunha. Cada um destes espaços atua como um fator determinante nos diferentes momentos da circulação destas obras. Reforçase, entretanto, que a circulação destes artefatos não se encerra com a sua alocação no atual do Instituto de Educação, visto que as pinturas continuam a fazer parte da escola e da cidade constituindo novos usos e novas memórias. No momento da encomenda das obras, destaca-se o cenário de construção e finalização do Palácio Piratini passando ainda por questões de estado, no sentido das escolhas das obras que seriam expostas na sede do governo. Percebe-se assim, que as escolhas foram pontuais, recaindo sobre grandes episódios do passado do estado do Rio Grande do Sul. A trajetória destas pinturas dialogando com estes dois importantes espaços da cidade de Porto Alegre - é marcada pela forma como a cidade apropriou-se delas em diferentes momentos. Hoje, postas no IE - Instituto de Educação - elas tomam outra proporção e outros usos, distanciando-se da história do Palácio Piratini e do esforço de construção de uma narrativa visual para a sede do governo. O uso dessas imagens se desloca para um ambiente educacional e se relaciona com uma parcela muito especial de moradores da cidade, alunos da primeira escola de formação para professores do estado. Quando chegam ao fim do seu percurso, ou seja, quando encontram um lugar de exposição pemanente, podemos então lançar mão de outras questões acerca destas obras, colocando a cidade como o cenário maior do desenrolar deste percurso. As telas do IE conversam ainda com as questões de fundação da cidade, principalmente a obra central, Chegada dos casais Açorianos. Precisamos pensar que a Sessão temática Imagens - 660

construção de uma história de Porto Alegre relaciona-se também com questões comemorativas e com a produção intelectual do início do século XX no estado, assim como as telas em questão e a produção histórica a partir delas. Em A invenção da História de Porto Alegre, Charles Monteiro (2002) revela os processos de construção da historiografia da cidade entrelaçada com o desejo de modernidade do período, entre obras de modernização e a organização do conhecimento histórico a partir dos intelectuais da época, partindo da análise dos textos do Boletim Municipal 1939-1942, os Anais do III Congresso de História Sul-riograndense e reportagens do Correio do Povo e revista O Globo. Monteiro destaca a participação do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, ligado ao Partido Republicano, na produção de artigos e publicações que debatiam as origens da cidade de Porto Alegre, da mesma forma que o IHGRS conduz os preparativos para o Grande Certame de Setembro. No período que vem desde a fundação do IHGRS em 1921 até o final da década de 1930 percebemos um esforço por parte do governo estadual para juntamente com os intelectuais de então proporem uma história de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul. O IHGRS ligado a estes esforços e sua participação na organização do evento de 1935 diz muito sobre esta intenção. Para alicerçamos o pensamento sobre este tema o artigo refere-se também aos processos e esforços realizados pelo governo do estado e pelos intelectuais de Porto Alegre na primeira metade do século XX. Observa-se que os esforços para a construção de uma possível narrativa visual da história do estado esteja na esteira destes processos. Monteiro parte da constituição do campo do saber histórico no estado que tem como princípio a formação do IHGRS, assim como o estabelecimento dos primeiros cursos de graduação e pós-graduação nos anos de 1970. Observa-se que os intelectuais que fizeram parte deste processo advêm de áreas como Direito e Medicina e que os próprios membros do IHGRS não tinham formação em História ou Geografia. (MONTEIRO, 2002 p.14) A primeira tentativa de construir uma dita história de Porto Alegre foi a publicação A Fundação de Porto Alegre, de Augusto Porto Alegre, tinha por pretensão construir a Sessão temática Imagens - 661

história da formação da cidade. Esta obra explicava a fundação de Porto Alegre através dos processos de Sesmarias e da chegada dos casais açorianos. (MONTEIRO, 2002, p.16) Podemos pensar que durante as encomendas das obras até o período da exposição de 1935 a história de fundação do estado está ligada à chegada dos açorianos, tema principal de uma das obras estudadas e que ocupa lugar de destaque no seu local de exposição. Além disso, nota-se o esforço em construir uma narrativa sobre a história e deste esforço resultam muitas encomendas de obras artísticas, tanto plásticas quanto literárias que dessem conta de retratar as teses defendidas por estes intelectuais. Este conjunto de obras constituem hoje importantes exemplares do patrimônio artístico do estado. Na capital gaúcha, segundo Ana Lucia Goelzer Meira (2002), o início das questões de preservação do patrimônio deu-se em 1938 com o tombamento em nível nacional da Igreja das Dores e do acervo do Museu Julio de Castilhos. A partir disso a trajetória da preservação do patrimônio no estado teve diferentes etapas em que se privilegiou um ou outro aspecto para o tombamento, como as questões de excepcionalidade ou arquitetura, entre outros. Estes conceitos, com o passar do tempo, foram dando espaço a questões relacionadas à memória da população. Segundo Meira houve uma ampliação dos conceitos, em que as práticas e significados ligados à memória coletiva passaram a ocupar um lugar antes destinado exclusivamente a critérios estéticos. (MEIRA, 2002) Estas obras são exemplo da identificação que os bens culturais são capazes de causar em determinada população. A forte vontade de manutenção da memória do próprio IE contida naquelas telas moveu a Associação de Ex-Alunas do Instituto de Educação a buscar no setor público e privado recursos para a restauração das obras a partir de 2004, com o lançamento do projeto S.O.S Arte IE. Neste momento as telas encontravam-se em péssimo estado de conservação. Para angariar fundos para a restauração, a Associação de ex-alunas visitou inúmeras instituições públicas e privadas, ocasião na qual se apresentava um breve histórico da então situação das telas e cartas do IPHAN e IPHAE atestando a importância destes bens para aquela instituição assim como para o estado do Rio Grande do Sul. Sessão temática Imagens - 662

A restauração deu-se nos quatro anos seguintes, no próprio saguão da escola, pois optou-se pela não retirada das telas devido ao seu grande porte. Mais uma vez a história destas obras entrelaça-se com a da instituição de ensino que as abriga, pois durante quatro anos a comunidade escolar dividiu o saguão principal com andaimes, tintas e equipamentos de restauro além da equipe da restauradora Leila Sudbrak, até que em 2009 as obras de restauração se encerraram e a comunidade teve de volta as três obras em sua plenitude. A documentação referente à restauração das obras resume-se a cartas de apoio do IPHAN e IPHAE, cópias do material entregue às instituições no momento de solicitação de apoio e reportagens de jornais. Importa ainda trazer a público o fato de que estas obras encontram-se hoje restauradas e em exposição no saguão do Instituto de Educação. Retomando as questões comemorativas que pautam o percurso destas imagens pela cidade, observa-se a atuação de Walter Spalding, juntamente com os membros do IHGRS - após colaborarem para a execução da exposição de 1935 - no ano de 1940 passam a organizar a comemoração do bicentenário de Porto Alegre. Neste momento, Spalding é bibliotecário da biblioteca do estado e passa a organizar, catalogar e publicar documentos referentes à história da cidade. Este período é marcado pelo desenvolvimento de projetos que possam constituir tanto a própria história da cidade e do estado, quanto pelos esforços no sentido de legitimar esta construção. Percebe-se, portanto, os usos das imagens para a legitimação de discursos tendo a cidade como espaço privilegiado para o trânsito e construção dos mesmos. Tais discursos influenciam o próprio espaço urbano assim como os processos de modernização da cidade ocorrido no mesmo período e principalmente, mais tarde, na administração de Loureiro da Silva a partir de 1937. Com relação ao momento da Exposição do Centenário Farroupilha, observa-se a preocupação com relação à imagem que a cidade de Porto Alegre transmitirá aos participantes. A cidade será apresentada como um modelo da modernidade e do progresso desejado. A cidade, que busca a imagem da modernidade que ainda não havia chegado, será representada por símbolos urbanos como as largas avenidas e os viadutos recéminaugurados. Sessão temática Imagens - 663

A intenção de modernidade é percebida na sua relação com as imagens e com a própria Exposição do Centenário. Conforme Possamai, as exposições no Brasil do século XIX e início do século XX tinham como principal objetivo a afirmação da imagem de um país civilizado perante o restante dos países, e é neste contexto que se constitui e se organiza a exposição que homenageará a Revolução Farroupilha. (POSSAMAI, 2007, p.331) Porto Alegre projeta, através destas representações, seu desejo de modernidade e se apresenta como um cenário que possibilita a construção de discursos e narrativas que podem ser produzidas e conduzidas por determinados movimentos políticos. Sandra Pesavento analisando a construção de uma história cultural do urbano apresenta as ideias de Marcel Roncayolo que refere-e aos produtores e consumidores de espaço. (PESAVENTO, 1995) Neste sentido, para analisar o espaço urbano, devemos pensar em instituições que conduzem a formação deste espaço dentro de determinadas perspectivas, como neste caso, as ideias de modernidade. Porém, não podemos pensar nos consumidores de espaço, representados pela população que vive e transita nas cidades, como um observador passivo desta construção, mas pensar que a questão da circulação pressupõe o vaivém dos sentidos conferidos aos espaços e sociabilidades urbanas atribuídas pelos produtores e consumidores da cidade. (PESAVENTO, 1995, p. 283) Outro ponto de relevância é o fato de os artefatos aqui analisados, na sua produção e circulação serem, além de documentos iconográficos, obras de arte. Neste caso, como bem cita Pesavento, entre os consumidores das cidades estão as classe artística, dos poetas, escritores e pintores que tem a cidade tanto como sua inspiração ou influência, podemos pensar que produzem visões especiais das cidades. Desta forma, as pinturas históricas foram encomendadas sob a intenção de chegar à população da cidade como a representação de um passado de glórias que se seguiria à modernidade desejada. Desta forma, observa-se mais uma vez a necessidade de pensarmos a teia de agentes que envolvem a produção e circulação de imagens como um complexo sistema que não se mantém inerte, mas que muda de acordo com o tempo e movimentos da própria cidade. Sessão temática Imagens - 664

Naturalmente, a forma de uma cidade, seus prédios e movimentos contam uma história não verbal do que a urbe vivenciou um dia, mas, por mais que este patrimônio tenha sido preservado, os espaços e socialidades se alteram inexoravelmente, seja enquanto forma, função ou significado (PESAVENTO, 1995, p. 284) A cidade se constituiu então como lugar privilegiado de produção e circulação de imagens e narrativas, possibilitando pensarmos sobre os agentes envolvidos nestas práticas e na forma como estas narrativas se comportam no tempo. A cidade é o espaço em que o historiador reúne fragmentos e vestígios de passado para tentar construir uma narrativa do presente e estes vestígios comportam-se de formas diferentes ao longo do tempo, alterandose assim como o espaço que os abriga. Uma importante etapa do percurso destas telas se dá na sua alocação no prédio do IE, estas obras de arte são dadas a ver principalmente neste momento. Se este estudo privilegiou os aspectos da visualidade e as formas de uso das imagens, é no momento da alocação delas no prédio escolar que remetemo-nos a uma das principais funções das imagens, a de representar o passado ausente. O local de permanência destas obras mostra uma forte relação com as questões de modernidade e transformações que paradoxalmente baseiam-se no culto ao passado. Enfim, a construção da Escola Normal e a organização da grande exposição de setembro estão na esteira do desejo e dos processos de modernidade para colocará Porto Alegre entre as grandes cidades do mundo e neste contexto estas obras de arte figuraram como a base de um passado glorioso e belo que pudesse sustentar os planos para o futuro. REFERÊNCIAS CANEZ, Anna Paula. Fernando Corona e os caminhos da arquitetura moderna em Porto Alegre. Porto Alegre: Universidades Integradas do Instituto Ritter dos Reis, 1998. Sessão temática Imagens - 665

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