PAPEL DA REDE DE ATENÇÃO BÁSICA EM SAÚDE NA FORMAÇÃO MÉDICA DIRETRIZES



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Transcrição:

PAPEL DA REDE DE ATENÇÃO BÁSICA EM SAÚDE NA FORMAÇÃO MÉDICA DIRETRIZES Gastão Wagner de Sousa Campos 1 Pretendemos neste documento apontar algumas diretrizes para o ensino médico na rede de atenção primária à saúde. FUNÇÕES DA REDE DE ATENÇÃO BÁSICA NO SISTEMA DE SAÚDE E A BUSCA DA UNIVERSALIDADE, EQÜIDADE E INTEGRALIDADE A atenção básica à saúde (ABS) deveria se constituir em uma das principais portas de entrada para o sistema de saúde (não a única, o que implicaria em burocratização intolerável, o Pronto-socorro é outra porta possível e necessária, por exemplo). Porém espera-se dela muito mais do que isso. Afirma-se que na ABS deveriam ser resolvidos 80% dos problemas de saúde da população¹, assume-se com isso que, nas configurações que o SUS vem adquirindo colocam-se para a ABS pelo menos três funções importantes²: Acolhimento à demanda e busca ativa com avaliação de vulnerabilidade: os pacientes precisam ser acolhidos no momento em que demandam. Sem isso a ABS nunca se constituiráemverdadeiraportadosistema.adimensão do acolhimento pressupõe a disposição, organização e preparação da equipe para receber, em momentos e horários variável, grande variedade de demandas e avaliar os riscos implicados assegurando seu atendimento, visando à máxima resolutividade possível. Ao mesmo tempo, por meio do recurso da visita domiciliar, a discrição de clientela e análise das condições de saúde da comunidade e do território espera-se uma postura que vincule pessoas, famílias e a comunidade às Equipes de ABS e identifique o risco e vulnerabilidade desses indivíduos, famílias e setores da comunidade. Clínica ampliada: a clínica realizada na rede básica de saúde tem uma série de especificidades, o que a torna diferente da realizada em grandes centros hospitalares ou ambulatórios de especialidades³. Contrário ao que se costuma pensar há grande complexidade nas intervenções na rede básica. O complexo se define em termos de número de variáveis envolvidas em um dado processo, nesse sentido é necessário intervir sobre a dimensão biológica ou orgânica de riscos ou doenças, mas será também necessário encarar os riscos subjetivos e sociais. Essas dimensões estarão presentes em qualquer trabalho em saúde, no entanto na rede básica atingem uma expressão maior, sendo necessário não somente considerar esses aspectos no momento do diagnóstico, mas também lograr ações que incidam sobre estas três diferentes dimensões. A proximidade com as redes familiares e sociais dos pacientes facilita essas intervenções, porém sem eliminar sua complexidade. Ainda, a possibilidade de se construir vínculos duradouros com os pacientes é condição para o aumento de eficácia das intervenções clínicas, sejam essas diagnósticas, terapêuticas ou de reabilitação. A construção do caso clínico pode ser efetivada em vários encontros ao longo do tempo, com isso, ao mesmo tempo, aumentar-se-á a confiança 1 Professor, Doutor, do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciência Médicas da Universidade Estadual de Campinas. 6 Cadernos ABEM Volume 3 Outubro 2007

entre profissionais e usuários. Assim, a clínica deverá ser ampliada, partindo de seu núcleo biomédico para os aspectos subjetivos e sociais de cada sujeito, respeitando a característica singular de cada caso cada caso é um caso sem abrir mão de critérios técnicos previamente definidos (diretrizes clínicas, programas, etc). Saúde Coletiva: ainda será necessário que a rede básica realize procedimentos de cunho preventivo e de promoção à saúde no seu território. Busca ativa de doentes, vacinas, educação, medidas para melhorar a qualidade de vida, projetos intersetoriais, tudo isso vêm sendo recomendado amplamente pela bibliografia da área e contribui com certeza para a resolução e prevenção de inúmeros problemas de saúde 4. Observa-se que, na prática, essas funções se entrelaçam, a integralidade e a efetividade do cuidado dependerão da possibilidade e da capacidade de cada Equipe combinar modos de intervenção de cada um desses campos na proporção exigida pelo caso. A composição dessas três funções não é uma tarefa simples. É freqüente se observar desvios que diminuem a capacidade da rede, em alguns casos há redes que se voltam somente para a prevenção de riscos e ações comunitárias deixando toda a resolutividade clínica para a rede de urgência e hospitalar. Em outros, observa-se uma ABS transformada em pronto atendimento clínico de baixa qualidade. Nenhuma dessas alternativas garante o papel resolutivo que a ABS deve sustentar. A capacidade de a rede básica resolver 80% dos problemas de saúde dependerá tanto de investimentos, quanto da adoção de um modelo organizacional adequado e que permita o cumprimento dessas três funções. MODELO ORGANIZACIONAL PARA A ABS Para atingir-se essa capacidade de resolver problemas de saúde, há hoje um reconhecimento de que a ABS deverá ordenar-se segundo algumas diretrizes: Trabalho em Equipe Interdisciplinar: sabe-se que nenhum profissional conseguiria ter um acúmulo de conhecimentos e habilidades práticas suficiente para cumprir simultaneamente essas três funções. Por outro lado, a fragmentação da atenção básica em diversas especialidades ou profissões, que não buscam formas integradas para a atuação, tem se demonstrando como sendo um modelo inadequado. No Brasil, o Ministério da Saúde, a partir de 1994, apoiando-se em experiências municipais, adotou um desenho para a composição básica dessa Equipe com base na lógica da Saúde da Família: médico, enfermeiro, dentista, técnicos ou auxiliares de enfermagem e odontologia, todos com formação e função de generalistas, e os agentes de saúde, uma nova profissão, em que trabalhadores recrutados na comunidade fazem ligação da equipe com família e com a comunidade 5. Em algumas localidades há experiências que incorporam outros profissionais à ABS, ainda que procurem manter sempre a Equipe de Saúde da Família como núcleo central para ordenar a atenção. Com a idéia de constituírem-se redes de Apoio Matricial, agregam-se Equipe de Saúde Mental, Reabilitação, Nutrição, Saúde Coletiva e Desenvolvimento Social, Saúde da Mulher e da Criança, entre outras, que trabalham articuladas com várias Equipes de Saúde da Família em um determinado território. Algumas cidades têm experimentado deslocar especialistas em áreas com grande demanda para também atuarem na atenção básica. Responsabilidade Sanitária por um Território e Construção de Vínculo entre Equipe e Usuários: com objetivo de definir-se a responsabilidade sanitária de modo claro, recomenda-se que cada Equipe de Saúde da Família bem como outras com função de Apoio Matricial tenham a seu encargo o cuidado à saúde de um conjunto de pessoas que vivem em um mesmo território. A Equipe deve conhecer os condicionantes de saúde dessa região, bem como identificar risco e vulnerabilidade de grupos, famílias e pessoas, desenvolvendo projetos singulares de intervenção. A construção de vínculo depende desse desenho organizacional e também da ligação longitudinal horizontal ao longo do tempo entre Equipe e usuários. Abordagem do Sujeito, da Família e do seu Contexto, a busca da Integralidade em ABS: que depende do exercício combinado das três funções acima explicitadas. Dentro dos limites da ABS, cada Equipe deve contar com meios para resolver problemas de saúde valendo-se de ações clínicas, de promoção e prevenção e, até mesmo, de reabilitação e alívio do sofrimento. Espera-se que as Equipes consigam tanto apoiar a comunidade e outros setores para a intervenção sobre determinantes do processo saúde/doença, quanto garantir atenção singular aos casos com maior vulnerabilidade. Cadernos ABEM Volume 3 Outubro 2007 7

Reformulação do saber e da prática tradicional em saúde: recomenda-se uma reformulação e ampliação do saber clínico, com a incorporação de conceitos e de ferramentas originários da saúde coletiva, saúde mental, ciências sociais e de outros campos do conhecimento que permitam aos trabalhadores de saúde lidar com a complexidade do processo saúde e doença, incorporando o social e o subjetivo, bem como fazer a gestão do trabalho em equipe e em sistemas de rede. Para isso é fundamental a instituição de programas de educação permanente, com cursos e discussão de casos, de consensos clínicos, que tornem possível esse trajeto. Migrar o ensino para a ABS não significa automaticamente migrar o ensino para um paradigma novo. Freqüentemente a ABS reproduz, em condições limitadas, o mesmo modelo de atenção à saúde dos serviços especializados. A Abordagem Integral depende da reformulação do paradigma tradicional denominado de biomédico. Para isso recomenda-se tomar o sujeito em sua família e em seu contexto econômico, social e cultural, bem como envolver os usuários tanto na gestão do sistema de saúde, quanto na construção de sua própria saúde. Articular a ABS em uma rede de serviços de saúde que assegure apoio e amplie a capacidade de resolver problemas de saúde. A ABS necessita de uma ligação dinâmica e de apoio com outras redes, a saber, de urgência, hospitalar, de centros especializados, de saúde coletiva, de desenvolvimento social, etc. A ABS REALMENTE EXISTENTE De fato, onde existiria essa ABS idealizada em recomendações e textos teóricos? Em nenhum lugar, com certeza. Como está acontecendo com o SUS em geral, também a implantação da rede de ABS no Brasil está ocorrendo de maneira bastante heterogênea. O que se resumiu acima são recomendações genéricas, que alguns gestores e profissionais procuram transformar em realidade. Em tese teríamos quase 100 milhões de brasileiros vinculadosadistintosprogramasnaabs.noentanto,aqualidade e a capacidade resolutiva desses serviços é muito desigual. Temos desde cidades com baixa cobertura, até outras que alcançaram setenta por cento de famílias vinculadas a ABS. O apoio ao exercício de uma clínica eficaz é igualmente heterogêneo, o mesmo se pode dizer sobre a integração da ABS ao sistema hospitalar e de especialidades. Além disso, há problemas sérios com a política de pessoal, desde o sistema precário de contratação até a quase inexistência de oportunidade tanto para a formação especializada quanto para acesso a processos de educação permanente. A maioria absoluta dos médicos, enfermeiros e dentistas não tem formação especializada em saúde da família, ou saúde coletiva ou para o exercício de uma clínica ampliada de cunho generalista, nem contam tampouco com apoio técnico ou institucional 6. Concluindo pode-se observar que, apesar da mudança de cenário, a ABS tende, na prática, a reproduzir o modelo biomédico dominante, sendo necessários esforços continuados e sistemáticos para reformular esse tipo de prática edesaber. Nesse sentido, as Escolas Médicas deverão colocar-se como parceiras dos sistemas locais de saúde objetivando um esforço articulado para a efetiva organização da ABS. POR QUE O ENSINO NA REDE BÁSICA DE SAÚDE? Há uma recomendação curricular genérica de que a formação médica busque uma variação de cenários para o ensino prático. Na mesma linha recomenda-se a inserção do aluno desde o início do curso em atividades práticas 7. Além disso, se na rede básica se espera sejam resolvidos 80% dos problemas de saúde da população, se aceitamos que as intervenções no território são de grande complexidade, e se ainda acrescentamos a isso que grande parte da população brasileira vive na pobreza, teremos claras evidencias técnicas e éticas de que nossas escolas médicas devem formar um profissional competente para intervir nessa realidade. Nesse sentido, a rede básica é um campo de práticas potencial e necessário, no qual os vários cursos de formação de profissionais de saúde deverão inserir seus alunos. Em medicina, cursos que combinem teoria e prática voltada para o campo da Saúde Coletiva podem ser desenvolvidos desde o primeiro ano. O ensino de metodologia sobre educação em saúde, visita domiciliar, epidemiologia aplicada a serviços, política e gestão em saúde, projetos comunitários e intersetoriais, tudo isto e muito mais pode fazer parte de módulos com estágios em ABS desde o primeiro ano. Além do mais, se observa que, progressivamente, com a implantação do SUS, grande parte dos casos que antes de- 8 Cadernos ABEM Volume 3 Outubro 2007

mandava atendimento em hospitais e serviços de urgência, busca atenção na ABS. Assim o próprio ensino da clínica necessita de novos cenários. Além do mais, na ABS o aluno seria ensinado a fazer uma abordagem ampliada e singular de cada caso, o que qualificaria a formação teórica sobre diretrizes. Entrar em contacto com essa complexidade, com a obrigação de trabalhar em equipe e de fazer um seguimento longitudinal possibilita que o aluno se aproprie de competências essenciais para o exercício da profissão. Valorizar o ensino na rede básica visa atender uma demanda social inelutável de nosso país, bem como ampliar os cenários para práticas tanto de clínica quanto de saúde coletiva, e também honrar a promessa de bem formar nossos alunos 8. Ainda, pressupõe aceitar que a prática é fundante da formação e que há experiências que nenhum livro pode fornecer. Por último, implica reconhecer que os problemas que o SUS deve resolver são problemas também para as Escolas Médicas. Nesse sentido, não estamos formando médicos com competência e habilidade para o exercício dessa função essencial ao sistema e à saúde dos brasileiros. A ABS não logrará efetivar-se se não contar com milhares de médicos capazes para trabalhar em equipe, exercer uma clínica ampliada, participar de projetos coletivos e que estejam abertos para continuar aprendendo. NECESSIDADES PEDAGÓGICAS COLOCADAS PELA RELAÇÃO ENSINO SERVIÇOS NA ABS O aluno de graduação precisa de uma estrutura de estágio que permita e facilite o trânsito entre teoria e prática. Os docentes como mediadores fundamentais dessa relação deveriam, necessariamente, ser capacitados para esse novo tipo de ensino. O vínculo com o docente é um grande facilitador, assim o contato prolongado, horizontal, com um mesmo professor deveria ser estimulado. Isso ainda permitiria um cuidado adicional com os alunos que, muitas vezes, sentem-se desorientados nessa etapa de sua formação e sofrem o impacto da realidade que lhes é apresentada. As atividades planejadas deveriam estimular a busca de informação, leituras, reflexões e permitir que a partir das questões que a prática coloca se descubram e estudem novos conteúdos. No caso, a grade curricular deverá ser ordenada de maneira a permitir cursos mais longos, com estágios no mesmo serviço, de modo que o aluno possa acompanhar casos clínicos ou sanitários por um período longo. O estágio na rede básica precisa ser ordenado, tanto por razões pedagógicas quanto de funcionamento dos serviços, em pequenos grupos de alunos, com supervisão e acompanhamento de professores e de tutores ou colaboradores escolhidos entre Equipes da ABS. Nos primeiros anos, os estágios na rede básica se voltam para o campo da saúde coletiva, e seriam coordenados por professores e profissionais com formação especializada ou que se apropriaram de conhecimentos sobre clínica ampliada e saúde pública. A partir do quarto ano e no internato, contudo, recomendam-se estágios clínicos na rede básica. O ensino de pediatria, ginecologia, obstetrícia, clínica médica, psiquiatria, infectologia, entre outras disciplinas, depende cada vez mais da prática que acontece fora do hospital universitário, na ABS ou em Centros de Referência. Nessa situação é importante que os professores especialistas se articulem com as Equipes de generalistas em saúde da família, buscando articular o ensino prático com a lógica de funcionamento do modelo de atenção da rede básica. Operando com os agentes de saúde, fazendo discussão de caso em Equipe, visita domiciliar, educação em saúde, elaboração de projeto terapêutico e de intervenção sobre o território, etc. O ensino na ABS não pode ser responsabilidade apenas dos docentes de Saúde Coletiva ou de Saúde da Família, necessita do envolvimento de outras especialidades conforme descrito acima. Depende ainda da possibilidade de se recrutar na rede de ABS monitores ou tutores que dêem viabilidade à necessária descentralização e multiplicação dos campos de prática. COMO OPERACIONALIZAR AS RELAÇÕES ENSINO SERVIÇO? Contratação clara de responsabilidades com a rede pública (projetos de integração, contratos e convênios, etc.). Em geral, os Hospitais Universitários estão sob gestão da própria Universidade, o mesmo não acontece com as redes de atenção básica. No Brasil, 97% da rede básica encontram-se sob direção municipal, nesse caso a descentralização se realizou quase completa- Cadernos ABEM Volume 3 Outubro 2007 9

mente. Recomenda-se que as Escolas elaborem projetos de integração docente-assistencial com as Secretarias Municipais, definindo com clareza os vários componentes dessa relação. Por um lado, é importante assegurar espaço para os alunos: definição de distritos, serviços e equipes onde ocorrerão os estágios; por outro, é fundamental assegurar reciprocidade; ou seja, compromisso da Escola, representada por alunos e docentes, com o respeito às diretrizes políticas sanitárias adotadas, bem como com a qualidade da atenção. Investimento para assegurar infra-estrutura básica para o ensino em ABS: os locais onde trabalham as Equipes não necessariamente estão preparados para receber um grupo, ainda que pequeno, de alunos; é importante que a Universidade, em parceria com o Ministério e Secretarias de Estado, elabore projetos para adaptação desses espaços também para o ensino. Algum apoio ao transporte de alunos e professores é importante, com a descentralização dos espaços de prática fica complicado o deslocamento de alunos e docentes, sendo conveniente assegurar-se formas que facilitem esses deslocamentos. Apoio em informática é fundamental para o ensino a distância e a utilização de recursos da tele-medicina pelos alunos, docentes e Equipes. Projetos de acesso fácil à biblioteca e consulta especializada qualificam esses estágios bem como o próprio funcionamento da rede básica. Parceria estreita com gerencia local e Equipe (reuniões, discussões, planejamento conjunto, etc.) em todos os locais onde ocorra estágio. Além do contrato geral com o gestor municipal, é importante que cada docente com seus alunos realizem um contrato explicitação do projeto de ensino e assunção de compromissos compartilhados com o dirigente e com a Equipe junto aos quais ocorrerá o estágio prático. Desenho de estágios que valorizem o contato horizontal propiciando a construção de vínculos, tanto com usuários (visando a ampliação da clínica) quanto com a equipe (favorecendo a construção de uma identidade profissional apta para esse tipo de trabalho). Elaboração de uma rede de cooperação entre Hospital Universitário e rede básica, respeitando-se as diretrizes de regionalização porventura existentes, mas facilitando o apoio de especialistas às Equipes de Saúde da Família. Montagem de dispositivos de Desenvolvimento Docente com apoio institucional, objetivando educação continuada dos docentes, contratados e tutores por meio de discussão de temas teóricos, de casos e problemas originários da própria experiência e também de outras experiências análogas. Definição de um Corpo Docente para cada um desses módulos, composto por professores, profissionais contratados e tutores recrutados entre o próprio pessoal da rede básica. Ainda que os papéis e responsabilidades sejam distintos, recomenda-se o funcionamento do CorpoDocenteemlógicadeequipecomcolegiadodegestão. Ainda que haja polêmica sobre o tema, seria conveniente remunerar a dedicação docente dos tutores. Apoiar docentes e alunos para que a rede básica se constitua em um campo de investigação e produção de conhecimento, sempre que possível e conveniente envolvendo parceiros do sistema de saúde. REFERÊNCIAS 1. World Health Organization. Primary Health Care. Genebra: WHO; 1978. 2. Campos GWS. Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec; 2003. 3. Starfield B. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília, DF: UNESCO/MS; 2002. 4. World Health Organization. Implementation of the global strategy for health for all by the year 2000. Copenhagen: WHO; 1994. 5. Brasil. Ministério da Saúde. Fundação Nacional de Saúde. Coordenação de Saúde da Comunidade. Saúde dentro de casa: programa de saúde da família. Brasília,DF: MS; 1994. 6. Machado MH. Programa de Saúde da família no Brasil: algumas considerações sobre o perfil de médicos e enfermeiros. In: Souza MF, org. Os sinais vermelhos do PSF. São Paulo: Hucitec; 2002. 7. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução n.4 CNE/CES de 7 de novembro 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para curso de graduação em Medicina. Diário Oficial da União. Brasília, 9 nov. 2001; Seção 1, p.38. 8. Marins JJN. Os cenários de aprendizagem e o processo do cuidadoemsaúde.in:marinsjjn,regos,lampertjb,araújojgc, orgs. Educação médica em transformação: instrumentos para a construção de novas realidades. São Paulo: ABEM/Hucitec; 2004. 10 Cadernos ABEM Volume 3 Outubro 2007