ENTRE DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO E GESTÃO DAS CIDADES:

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ENTRE DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO E GESTÃO DAS CIDADES: competências municipais para ordenação do solo rural e agrário e seu papel na efetivação do direito humano à Cidade sócio-ambientalmente sustentável Rafaela Pereira Morais 1 Saulo de Oliveira Pinto 2 Resumo: O artigo tem o fim de traçar linhas metodológicas de investigações para a verificação, avaliação e delimitação da competência municipal prevista na Constituição Federal, para a ordenação sustentável do solo rural e agrário. O temário proposto está relacionado tanto com o estudo dos instrumentos constitucionais de efetivação dos direitos humanos quanto com a investigação do papel dado ao poder público municipal. Palavras-chave: federação; município; autonomia; repartição de competências; princípio da dignidade da pessoa humana. Introdução O constituinte de 1988 deu ao município legitimidade para legislar sobre assuntos de interesse local e de efetivar planos diretores como forma de cumprimento da função social da propriedade pública e privada, atribuindo-lhe, assim, consonância com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Trata-se, portanto, de analisar as competências constitucionais municipais para ordenação das espacialidades, para compreender as possibilidades e os limites dessas competências para ordenação sustentável dos espaços rural, agrário e da expansão urbana, para tanto levando em consideração a análise de toda a sistemática constitucional de distribuição de competências, bem como toda a legislação infraconstitucional desdobrada dessa sistemática, pertinente à correta delimitação das competências municipais para este assunto. O Poder Público municipal é o poder mais próximo do cidadão. Delimitar sua competência, considerando a ordem constitucional agrária e ambiental é fundamental para a percepção do papel que a Constituição Brasileira atribui aos municípios na busca por efetivação da realidade de justiça social e equilíbrio socioambiental que ela projeta como a meta legítima 1 Mestranda em Direito na Universidade Federal de Goiás (UFG). E-mail: rafelamoraisadv@terra.com.br 2 Orientador e coautor da pesquisa. Professor na Faculdade de Direito da UFG. E-mail: saulocoelho@direito.ufg.br 1

para as políticas públicas; estas, na prática dos municípios, nem sempre condizentes com o projeto constitucional. No atual estágio das investigações sobre o uso do solo municipal, abrangendo o solo rural, agrário e a expansão urbana do município, pode-se inferir que a questão da ordenação dos espaços urbanos não pode ser tratada de modo isolado da questão da ordenação do uso dos espaços e solo rural e agrário, pois ambas as questões se implicam na problemática geral do uso racional e sustentável do solo em razão do mandamento constitucional de busca por garantia das condições de qualidade de vida. Chama-se a atenção para o fato de que o território de um município não é, porém, apenas o seu perímetro urbano; abrange, igualmente, as áreas rurais dentre as quais o solo agrário. Nas regiões em que a expansão da fronteira agrária brasileira já se consolidou há algumas décadas, existe agora um consequente processo de expansão urbana, que se soma a um processo de modernização, diversificação e industrialização das práticas agrárias, gerando alta demanda por planejamento sustentável do uso das especialidades nas localidades pólo dessas áreas. Dentre os mecanismos normativos constitucionalmente estabelecidos para a concretização de um planejamento sustentável e inclusivo do desenvolvimento, a competência constitucional dada aos municípios e às regiões metropolitanas para estabelecimento de Planos Diretores ganha destaque. O município como ente federado na Constituição Federal de 1988 Ao definir Estado federal, Le Fur (apud Baracho, 1986, p. 47) acentua que esta conceituação decorre do estudo da organização do poder público e da participação dos Estados particulares na soberania federal. Acrescenta que a organização estatal deve conter a menção de pelo menos um elemento que seja exclusivamente próprio desta forma de Estado permitindo a sua distinção. Bennoit Jenneau apud Baracho (1986, p. 47-48), ao definir Estado federal como um agrupamento de coletividades políticas que abandonam, sob uma base igualitária, parte de suas competências em benefício da comunidade, cita características fundamentais que todo Estado federado deve conter: 2

a) Uma repartição das competências estatais entre duas espécies de órgãos superpostos: - uns situam-se em nível de Estados membros; - os outros a nível da Federação (...) b) A participação das coletividades integrantes nas decisões tomadas pelos órgãos comuns efetivam-se por meio de uma Câmara que representa especialmente os Estados: c) Igualdade entre as coletividades que participam dessa união: consagrada na maioria dos Estados federais pela regra de que, em cada Estado membro, qualquer que seja a sua população ou a extensão de seu território, terá um número igual de representantes na Câmara dos Estados. A federação brasileira, traçada pelo Constituinte Originário de 1988, nos termos dos arts. 1º e 18 da Constituição Federal, é denominada República Federativa do Brasil e se compõe pela união indissolúvel dos Estados membros, Municípios e do Distrito Federal, sendo que a sua organização político-administrativa compreendida pela União, Estados membros, Municípios e Distrito Federal, todos autônomos entre si. Partindo do conceito de federalismo, nos moldes de sua teoria geral, e dos dispositivos constitucionais citados, Alexandrino e Paulo (2008, p. 262) afirmam que a federação brasileira não é um típico Estado federado vez que possui quatro entes federados autônomos. Assim, a federação brasileira é composta de um poder político central (União) e centros regionais de poder (Estados membros), entretanto, além destes entes federativos típicos, são incluídos entes federativos atípicos (Distrito Federal e Municípios) que possuem competências regionais e locais peculiares nos moldes da atual Constituição. Para Meirelles (1998, p. 39) a Constituição consagrou a tese daqueles que sustentavam que o Município brasileiro é entidade de terceiro grau, integrante e necessária ao nosso sistema federativo. Considerando a Constituição Federal de 1988 e a inclusão dos Municípios como entes federados, Bonavides (2010, p. 344) afirma: As prescrições do novo estatuto fundamental de 1988 a respeito da autonomia municipal configuram indubitavelmente o mais considerável avanço de proteção e abrangência já recebido por esse instituto em todas as épocas constitucionais de nossa história. Entretanto, este avanço constitucional não é entendimento de todos. Autores como José Afonso da Silva (2006, p. 101) entendem ser um equívoco do constituinte originário a inclusão 3

dos municípios como componentes da federação. Para esta parcela da doutrina, o Município é mera divisão política do Estado-membro devendo a atual Constituição ser interpretada no sentido de considerar o Município como componente da federação, mas não como entidade federativa. Apesar do respeitável entendimento da doutrina que não conclama o Município como ente federativo, a atual Carta Política é expressa quanto ao seu enquadramento como ente federativo. Os arts. 18, 29 e 30 da Constituição Federal delimitam a autonomia municipal e deixam claro a sua capacidade de autogoverno (eleição do Prefeito e Vereadores), autolegislação (Lei Orgânica Municipal e leis municipais de interesse local) e auto-administração (autonomia de gestão dos serviços e competências). Enquadrando o Município como ente federativo, o Supremo Tribunal fixou entendimento. Na ADIN 3549-5, rel. Ministra Cármen Lúcia (DJ 31/10/2007) foi fixado entendimento de que a República Federativa do Brasil possui como forma de Estado o federalismo há mais de um século. Com a Constituição da República de 1988 foi estabelecida nova relação entre os entes federados, passando-se a considerar o Município componente da estrutura federativa e, nessa condição, dotando-o de competências exclusivas que traçam o âmbito de sua autonomia política. Além disso, o Município assume grande importância na federação brasileira por ser o poder mais próximo do cidadão. O poder municipal e a proximidade com o cidadão são fatores que permitem ao Município dar plena efetividade a mandamentos constitucionais como a garantia das condições de qualidade de vida; mandamento que está diretamente relacionado com a dignidade da pessoa humana, fundamento da nossa federação e do direito humano internacional. Repartição de competências na Constituição Federal de 1988 A repartição de competências é o ponto central de um Estado do tipo federal. Silva apud Horta (2006, p. 477) afirma que a autonomia das entidades federativas pressupõe repartição de competências para o exercício e desenvolvimento de sua atividade normativa. Existe uma dificuldade do legislador constituinte em distinguir as competências da União, dos Estados e, no 4

caso do Brasil, dos Municípios sendo que os limites dessa repartição de competências dependem da natureza e do tipo histórico de federação. Nos dizeres de Petrônio Braz (2001, p. 90), a Constituição Federal de 1988 prezou pelo federalismo cooperativo, ou seja, por um federalismo sem a rigidez do federalismo clássico, estabelecendo formas de relacionamento entre os entes federativos. Assim, podemos afirmar que os níveis de competência se entrelaçam visando o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional (art. 23, parágrafo único da CF). O constituinte originário brasileiro, ao fundar a Carta de 1988 prezou como características fundamentais da nossa federação a indissolubilidade e autonomia dos entes federativos (arts. 1 e 18 da Constituição Federal). A autonomia do ente federado está diretamente relacionada com o fator repartição de competências. Almeida (2010, p.14) afirma que é a repartição de competências que dá substância à descentralização da federação em unidades autônomas: Com efeito, a autonomia, no seu aspecto primordial, que a etimologia do termo naturalmente indica autonomia, do grego autos (próprio) + nomos (norma), significa edição de normas próprias -, corresponde, no caso dos Estadosmembros, à capacidade de se darem as respectiva Constituições e leis. Ora, destituído de significado prático seria reconhecer essa capacidade de autoorganização e autolegislação, sem que houvesse uma definição do objeto passível de normatização pelos Estados. Ao diferenciar soberania de autonomia, Celso Bastos (apud Alexandrino e Paulo, 2008, p. 263), traça uma direta relação da repartição de competências com a autonomia ressaltando a importância do texto constitucional como fruto da vontade soberana da nação numa federação: Autonomia, por outro lado, é a margem de discrição de que uma pessoa goza para decidir sobre os seus negócios, mas sempre delimitada essa margem pelo próprio direito. (...) autonomia, pois, não é um amplitude incondicionada ou ilimitada de atuação na ordem jurídica, mas, tão-somente, a disponibilidade sobre certas matérias, respeitados, sempre, os princípios fixados na Constituição. (...) Fica claro, pois, que os Estados-membros não são soberanos, como, de resto, não o é a própria União. (...) Tanto o primeiro quanto os segundos haurem sua esfera de competência do próprio texto constitucional, fruto da vontade soberana da Nação. Partindo da relevância da autonomia num Estado do tipo federativo e sua relação com a repartição de competência, Pinto Ferreira (apud Baracho, 1986, p. 51) afirma que a repartição de 5

competências é ponto fundamental para a doutrina jurídica do federalismo. Vale dizer que, no Brasil, a repartição de competências está prevista no texto constitucional, o que consubstancia uma importante garantia, em virtude da rigidez da Constituição da República. Porém, o modelo delineado pelo legislador constituinte não é perpétuo, pois não integra o núcleo inabolível da Constituição, ou seja, não está protegido pelo manto da cláusula pétrea. O modelo de repartição de competências estabelecido pelo poder constituinte originário pode ser modificado por meio de emenda à Constituição. Segundo Almeida (2010, p. 58), o sistema de repartição de competências adotado na Constituição Federal de 1988 é um sistema complexo em que convivem competências privativas, repartidas horizontalmente, com competências concorrentes, repartidas verticalmente. Mas, nos dizeres de Silva (2006, p. 478), o princípio geral que norteia a repartição de competências entre as entidades componentes do Estado federal brasileiro é o da predominância do interesse, segundo o qual à União caberão aquelas matérias e questões de predominante interesse geral, nacional, ao passo que aos Estados tocarão as matérias e assuntos de predominante interesse regional, e aos Municípios concernem os assuntos de interesse local. O sistema de repartição de competências adotado pelo legislador constituinte originário de 1988, ainda segundo Silva (2006, p. 479), é complexo, buscando realizar o equilíbrio federativo por meio de uma repartição de competências que se fundamenta na técnica da enumeração dos poderes da União (arts. 21 e 22), com poderes remanescentes para os Estados (art. 25, 1º) e poderes definidos indicativamente para os Municípios (art. 30) prevendo a possibilidade de delegação, de áreas comuns e áreas concorrentes. Assim, além das competências privativas e exclusivas da União, ainda podemos citar as competências comuns (art. 23 da Constituição Federal) designadas a União, Estados, Municípios e Distrito Federal, além das competências concorrentes (art. 24 da Constituição Federal) sobre as quais União, Estados e Distrito Federal podem legislar. Apesar de os Municípios não estarem contemplados expressamente no art. 24 da Constituição Federal como detentores de competências concorrentes, nos dizeres de Almeida (2010, p. 56) não ficaram eles dela alijados vez que no art. 30, II da Constituição Federal consta a competência suplementar dos Municípios. 6

A Carta Constitucional de 1988 prezando por uma federação de dimensão trilateral, segundo Bonavides (2010, p. 344), alargou o raio da autonomia municipal, dando ao Município alcance e profundidade indissociável do próprio sistema federativo, conferindo a este ente federativo competências próprias para o devido exercício dessa autonomia. Competência constitucional municipal Conceituando competência municipal, Braz (1998, p. 90) afirma que entende-se como competência do Município, o somatório das atribuições que lhe são delegadas para o conseguimento de seus fins, como limite de sua atuação. Ao dizer da tríplice capacidade do Município, Meirelles (1998, 42) afirma que a Constituição Federal de 1988 concedeu ao município uma ampla autonomia num tríplice aspecto político, administrativo e financeiro (ou tributário) conforme estabelecido nos arts. 29 a 31, 156, 158 e 159, outorgando-lhe, inclusive, o poder de elaborar sua lei orgânica própria. Assim, o legislador constituinte originário prezou pela efetivação do Município como ente federativo autônomo dotado de competências próprias para efetivar os direitos e necessidades mais próximos da coletividade. Para Almeida (2010, p. 97) a Constituição de 1988 não se limitou a demarcar a área das competências municipais circunscrevendo-as à categoria genérica dos assuntos concernentes ao peculiar interesse do Município. A mesma autora afirma que o legislador constituinte optou por traçar competências privativas não enumeradas ou competências implícitas, cuja identificação será o vetor interesse local (art. 30, I da Constituição Federal), e competências municipais exclusivas, previstas em alguns incisos do art. 30 e em outros dispositivos constitucionais. Finalmente, vale ressaltar que o Município não foi contemplado no rol das competências concorrentes expressas no art. 24 da Constituição Federal. Entretanto, os Municípios possuem sim uma competência para suplementar a legislação federal e a estadual no que couber (art. 30, II da Constituição Federal). Caso exista lei federal e/ou lei estadual que regulamente matéria sujeita à competência concorrente, o Município apenas irá complementá-las. Quando não houver lei federal e/ou lei estadual que regulamente determinada matéria passível de competência 7

concorrente, questiona-se se o Município possuiria uma competência legislativa plena. Almeida (2010, p. 414) assim comenta a questão: Da mesma forma, inexistindo as normas gerias da União, aos Municípios, tanto quanto aos Estados, se abre a possibilidade de suprir a lacuna, editando normas gerais para atender a suas peculiaridades. Porém, se o Estado tiver expedido normas gerais, substituindo-se à União, o Município as haverá de respeitar, podendo ainda complementá-las. Não havendo normas estaduais supletivas, é livre então o Município para estabelecer as que entender necessárias para o exercício da competência comum. Mas a superveniência de normas gerais, postas pela União diretamente, ou pelos Estados supletivamente, importará a suspensão da eficácia das normas municipais colidentes. Assim, podemos afirmar que os Municípios possuem competências privativas, comuns e supletivas, que deverão ser exercidas nos moldes traçados pela Constituição Federal de 1988, inclusive, considerando sua supremacia e interpretação sistemática de seus dispositivos. Competência constitucional municipal para ordenação das espacialidades O poder público municipal, os termos do art. 182 da Constituição Federal, deverá promover a ordenação do solo através de uma política de desenvolvimento urbano conforme diretrizes a gerais a serem fixadas em lei, com o objetivo de desenvolver as funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. O plano diretor, nos moldes dos 1º e 2º do art. 182 da Constituição Federal, será o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana do município devendo ser cumprida suas premissas para que a propriedade urbana e assim, a cidade, cumpra sua função social. Considerando não apenas a cidade, mas a municipalidade (englobada pela área urbana e a área rural, inclusive a agrária), Costa (2010, p. 238) entende que a ordenação do solo é matéria de interesse local do Município que, através de seu poder de polícia, exerce este controle com medidas prescritas, quando prevê determinadas situações, propondo medidas para orientá-los, evitando distorções que tragam prejuízos à coletividade. Analisando a expressão interesse local Meirelles (1998, p. 110) afirma: Interesse local não é interesse exclusivo do Município; não é interesse privativo da localidade; não é interesse único dos munícipes. Se exigisse essa exclusividade, essa privaticidade, essa unicidade, bem reduzido ficaria o âmbito 8

seguinte sentido: que faz praça a Constituição. Mesmo porque não há interesse municipal que não seja reflexamento da União e do Estado-membro, como também não há interesse regional ou nacional que não ressoe nos Municípios, como partes integrantes da Federação brasileira. O que define e caracteriza o interesse local, inscrito como dogma constitucional é a predominância do interesse do Município sobre o do Estado ou da União. Também Costa (2010, p. 62) comenta a expressão assuntos de interesse local no A competência expressa do Município é voltada para os assuntos de interesse local, devendo prevalecer sobre as competências federais e estaduais. O critério básico de distinção é do interesse predominante, isto é, frente aos interesses da União e dos Estados, em determinadas matérias, o interesse municipal deve ter um grau maior. Concluindo, Costa (2010, p. 239) defende que a fixação do perímetro urbano é competência exclusiva do Município que delimitará, além do perímetro urbano, as áreas de expansão urbana e os núcleos de urbanização. A ordenação das espacialidades está diretamente relacionada com a garantia de um meio ambiente saudável e, assim, com a garantia do bem-estar dos cidadãos dando efetividade ao cumprimento do princípio da função social. o constituinte de 1988 deu a o Município legitimidade para legislar sobre assuntos de interesse local e de efetivar planos diretores como forma de cumprimento da função social da propriedade pública e privada, atribuindo-lhe, assim, consonância com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Proteção ao meio ambiente: ordenação sustentável do solo x qualidade de vida Nos termos do art. 23, VI da Constituição Federal, é competência comum dos entes federativos proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas. O art. 225 da Constituição Federal defende que todos tem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, devendo o Poder Público e à coletividade defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. O art. 182 caput e 2º da Constituição Federal defendem a política de desenvolvimento urbano com foco 9

no cumprimento das funções sociais da cidade e da garantia do bem-estar de seus habitantes através do plano diretor que fixará o que é o cumprimento da função social da propriedade urbana (pública e privada). Analisando a Constituição Federal de forma sistemática, podemos afirmar que o município, através de seu plano diretor, deverá observar o meio ambiente, como componente essencial à garantia da qualidade de vida da população da cidade, para que esta cumpra sua função social e, assim, atenda as necessidades essenciais da população da municipalidade. O Poder Público Municipal nos moldes da atual Constituição foi um dos instrumentos traçados pelo constituinte originário como meio de efetivação dos direitos humanos como, por exemplo, o direito humano ao desenvolvimento sustentável (preceito de direito humano internacional). O desenvolvimento sustentável é um direito fundamental de terceira geração que, nos moldes traçados por Bonavides (2010, p. 569) são: Dotados de altíssimo teor de humanidade e universalidade (...) Tem primeiro por destinatário o gênero humano (...) Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade. Assim, desenvolvimento e meio ambiente devem ser almejados de forma sustentável para que as pessoas possam viver de forma digna com melhoria da qualidade de vida. Bonavides, (2010, p. 569) assim comenta: Desenvolvimento sustentável não significa somente a conservação dos nossos recursos naturais, mas, sobretudo um planejamento territorial, das áreas urbanas e rurais, um gerenciamento dos recursos naturais, um controle e estímulo às práticas culturais, à saúde, alimentação e, sobretudo a qualidade de vida, com distribuição justa de renda per capta. O desenvolvimento sustentável está intimamente ligado à teoria dos direitos fundamentais, uma vez que o crescimento econômico é fundamental para a existência digna do homem da mesma forma que a proteção e preservação dos recursos ambientais. O Município como ente federado dotado de autonomia nos moldes do art. 18 da Constituição Federal tem um relevante papel no cumprimento do direito fundamental ao desenvolvimento sustentável e, assim, à cidade sócio-ambientalmente sustentável. O art. 30, I da CF dá ao município o poder de legislar 10

sobre assuntos de interesse local e o inciso II dá o poder de complementar a legislação estadual e federal no que couber. Considerando que toda a legislação nacional deve ser lida a partir da Constituição Federal (princípio da supremacia constitucional), o município tem poder para legislar sobre o que quiser desde que não vá de encontro com a legislação estadual ou federal; no caso de omissão de quaisquer destas, poderá legislar sobre o que quiser, até porque, caso, posteriormente, venha uma legislação estadual ou federal que contrarie uma lei municipal, esta estará revogada. O poder público municipal é o poder mais próximo do cidadão; é o município quem conhece a necessidade da população local. Conclusão O constituinte originário de 1988 regulamentou para a República Federativa do Brasil um modelo trilateral de federação constituída pela união indissolúvel da União, Estados-membros, Municípios e Distrito Federal todos autônomos entre si. Toda a autonomia dos entes componentes da federação da federação brasileira está regulamentada no corpo da Constituição Federal através de um complexo sistema de repartição de competências. O fato de a distribuição das competências dos entes federativos estarem no corpo da Constituição Federal é uma das garantias do federalismo cooperativo brasileiro, que necessitará de regras rígidas para ser alterado. A inclusão dos Municípios como entes federativos dotados de autonomia fez com que a nossa federação fosse considerada atípica, vez que, regra geral, as federações são compostas de um poder central (União) e poderes regionais (Estado-membros). Apesar de entendimentos divergentes, tal característica é considerada um avanço; pensar no Município como um ente local dotado de autonomia facilita a aplicação efetiva de direitos humanos fundamentais como a dignidade da pessoa humana refletida no desenvolvimento sustentável. Na Carta atual o Município possui competências administrativas e legislativas, sob a técnica horizontal e vertical, denominadas pela Constituição Federal de 1988 como competências comuns, competências concorrentes e supletivas. O núcleo da competência municipal está no art. 30 e incisos da Constituição Federal. Este artigo, por meio de seu inciso I, concede ao município 11

competência constitucional suplementar de regulamentar (até mesmo de forma plena) matérias de interesse local. A partir desta premissa, a interpretação sistemática da constituição dá Poder Público Municipal ampla legitimidade de atuação. No caso das cidades, utilizando a interpretação sistemática dos arts. 23, VI, 182 caput e 2º, 225 e 30, I todos da Constituição Federal, chega-se à conclusão de que o Município tem legitimidade para regulamentar assuntos sobre o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável das espacialidades garantindo de forma efetiva à população municipal qualidade de vida e, assim, o direito humano à cidade sócio-ambientalmente sustentável. Referências ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes de. Competências na Constituição de 1988. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2010. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25ª ed. atual. SP: Malheiros, 2010. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, 5 de outubro de 1988. BRAZ, Petrônio. Direito municipal na constituição. 4ª ed. SP: Editora de Direito, 2001. COSTA, Nelson Nery. Direito municipal brasileiro. 4ª ed. RJ: Forense, 2010. D ISEP, Clarissa Ferreira Macedo; JUNIOR, Nelson Nery; MEDAUAR, Odete. Políticas públicas ambientais. Estudos em homenagem ao Professor Michel Prieur. SP: Revista dos Tribunais, 2009. FERNANDES, Jeferson Nogueira. O direito fundamental ao desenvolvimento sustentável. Revista de Direito Ambiental, SP, RDA 50, abr.-jun./2008. GRAZIERA, Maria Luiza Machado. Meio ambiente urbano e sustentabilidade. Revista de Direito Ambiental, SP, RDA 48, out.-dez. 2007. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito municipal brasileiro. SP: Malheiros, 1998. MUKAI, Toshio. Direito urbano e ambiental. 4ª ed. rev. ampl. Belo horizonte: Ed. Forum, 2010. PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 3ª ed. rev. atual. SP: Método, 2008. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27 ed. rev. atual. SP: Malheiros, 2006. 12

Abstract: the article has to draw lines methodological investigations for verification, assessment and delimitation of municipal competence provided for in the Federal Constitution, ordination and sustainable rural agricultural soil. The proposed agenda is related both to the study of constitutional instruments effective human rights with regard to research the role given to the municipal public power. Key words: Federation; Municipality; Autonomy; Division of powers; Principle of human dignity. 13