CIÊNCIA DO NARRADOR. Letras, 1990, p. 50. 1 CALVINO, Italo, Seis propostas para o próximo milênio, Rio de Janeiro: Ed Companhia das



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Transcrição:

CIÊNCIA DO NARRADOR Algumas questões tornaram-se claras após ter feito Guerra Fria Tropical a partir do seu resultado, a partir dos diálogos com a orientadora e com amigos e a partir dos diálogos e pontes que encontrei em leituras de outros textos. Sobre essa última influência, a de outros textos, quero traçar aqui semelhanças e diferenças com uma escrita que seguiu regras semelhantes às que pretendi seguir, com objetivos diferentes, mas nem tanto, como vou notar mais à frente. Refiro-me, sobretudo, à escrita e às propostas de Alain Robbe-Grillet. Mas não só ao francês: na verdade, a economia descritiva também já ganhou a defesa de Italo Calvino, que em seu ensaio Rapidez, publicado nas suas Seis Propostas para o Próximo Milênio, dizia que: A principal característica do conto popular é a economia de expressão: as peripécias mais extraordinárias são relatadas levando em conta apenas o essencial. 1 Além de relatar somente o que se pode ver e ouvir, a narração de Guerra Fria Tropical tem uma outra característica que foge à regra geral da ficção tradicional: os acontecimentos são narrados em tempo presente, ao invés da opção mais usual pelos tempos verbais do passado. Mas não convém ignorar a tradição: se essa é de fato uma escolha que foge à grande regra tradicional, seu uso já é bastante comum na literatura contemporânea. E neste conto o uso do tempo presente me pareceu ser uma boa escolha para contar uma história protagonizada por um estrangeiro que, ao final, refez uma série de escolhas pessoais a opção se 1 CALVINO, Italo, Seis propostas para o próximo milênio, Rio de Janeiro: Ed Companhia das Letras, 1990, p. 50.

42 tornou interessante justamente pelo efeito curioso que provoca ao apresentar os conflitos pessoais dos personagens, sugerindo ao mesmo tempo falta de mediação, pelo uso do tempo presente, e a frieza descritiva natural às regras de narração. Essa percepção de ação imediata, trazida pelo uso do presente verbal, de certa forma aproxima o leitor dos acontecimentos descritos, e isto me parecia atraente nessa história envolvendo um agente da CIA que mal sabe falar português. Portanto, uma vez que estava definida a regra de ponto-de-vista do narrador, uma questão que me interessou de imediato foi em torno do uso dos tempos verbais narrativos. Resolvi que cada um dos contos apresentados aqui teria a narração num tempo verbal diferente, definido em sintonia com o enredo. Em Guerra Fria Tropical usei o presente, com sua sensação de continuidade (vale lembrar que a língua inglesa, por exemplo, usa a expressão present continuous, presente contínuo, para designar o tempo verbal); nos outros contos, isso seria alterado. Com a leitura de Robbe-Grillet, vi que esta questão do uso dos tempos verbais já foi bastante discutida como se pode ver na sua coletânea de ensaios Por um Novo Romance, já foi muito questionada nos anos 1950 a predominância da narrativa no tempo passado. Ao me deparar com os textos do romancista e teórico francês, logo vi que, além de ter usado em alguns romances dos anos 1950 (como A Espreita e O Ciúme) regras idênticas com relação ao ponto-de-vista do narrador - que nestes romances observa os personagens sem dizer o que pensam, tal qual o fiz em Guerra Fria Tropical ele também fez uso do tempo presente, trazendo ao seu texto o clima de distanciamento e de obscuridade que o interessava aquilo que o crítico Jean-Pierre Vidal chama de esfriamento narrativo no seu estudo sobre O Ciúme. 2 O projeto de Robbe-Grillet apresentou-se com muita força na sua época, e ainda é fundamental nas discussões sobre experiências narrativas. Michel Foucault escreveu uma vez que: A importância de Robbe-Grillet é avaliada pela questão que sua obra coloca para qualquer obra que lhe seja contemporânea, 3 e 2 VIDAL, Jean-Pierre, La Jalousie, de Robbe-Grillet, Paris: Classiques Hachette, 1973, p. 60. 3 FOUCAULT, Michel, Distância, aspecto, origem, in: Ditos e Escritos, vol. IV, Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária. 2001, p. 60.

43 talvez esse próprio ensaio aqui seja uma evidência de que essa importância não desapareceu. Entre várias outras diferenças, a mais perceptível que noto entre o projeto estético de Robbe-Grillet e estes ensaios de ficção que apresento é justamente em torno da relação entre clareza e obscuridade. Cabe lembrar novamente Umberto Eco, que apontou, ao relembrar a idéia da máquina de gerar interpretações em Seis passeios pelos bosques da ficção: Qualquer tentativa de ficção é necessária e fatalmente rápida porque, ao construir um mundo que inclui uma multiplicidade de personagens, não pode dizer tudo sobre esse mundo. Alude a ele e pede ao leitor que preencha uma série de lacunas. Afinal (como já escrevi), todo texto é uma máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte do seu trabalho. 4 Há uma diferença decisiva entre o que pretende a proposta dessa pesquisa com relação às lacunas abertas e o que pretendia Robbe-Grillet. Em Por um novo romance, o romancista francês, apesar de dizer desde o início que não é um teórico do romance, questiona a valorização de alguns conceitos ( noções, na tradução) que lhe parecem obsoletos, a saber: o personagem; a história (o enredo, para ser mais exato); o compromisso (com propostas políticas ou visões de mundo, por assim dizer); e a separação entre forma e conteúdo. Sob este aspecto, é preciso apontar a diferença principal que vejo em torno da clareza das ações: os obscuros e instigantes romances de Robbe-Grillet mostram um forte jogo entre a opacidade e a transparência dos movimentos dos personagens, um jogo com objetivos fascinantes mas em nenhum momento me interessou repetir que a escolha de um olhar limitado do narrador sobre os personagens (uma vez que ele não sabe o que pensam) se estendesse à ação. Na verdade, a estruturação da máquina preguiçosa que fiz teve em vista privilegiar o movimento dos corpos em detrimento da ambientação, ao contrário do que fizeram as ficções de Robbe-Grillet. 4 ECO, Umberto, Seis passeios pelos bosques da ficção, p. 9.

44 Além disso, o escritor francês apostava na compreensão do discurso do narrador como um discurso inteiramente subjetivo, apesar de frio (para usar o termo de Jean-Pierre Vidal). Em O Ciúme, o narrador se confunde parcialmente com um personagem, por exemplo. Mesmo a relação evidente com a narrativa cinematográfica era colocada a partir de outra perspectiva. Sobre isso, Robbe- Grillet escreve que: A atração indubitável que a criação cinematográfica exerce sobre muitos dos novos romancistas deve ser procurada noutro lugar. Não é a objetividade da câmera que os apaixona, mas sim suas possibilidades no domínio do subjetivo, do imaginário. 5 Essas diferenças entre as propostas de tessitura narrativa de Robbe-Grillet e as que escolhi seguir talvez possa ser atribuída a contextos históricos embora isso por vezes conduza a interpretações de certa maneira anteriores aos fatos, já que as escolhas poderiam ser outras dentro dos mesmos contextos históricos. De todo modo, é preciso ter em mente que a produção do escritor francês se concentra nos anos 50 e 60, época em que, como se sabe, a crise se instaura no projeto modernista e o chamado Novo Romance, como o próprio nome consagrado evidencia, é uma tentativa radical de produzir arte moderna. Mas falei das diferenças entre o caminho que escolhi e as exigências do projeto estético de Robbe-Grillet justamente para poder buscar agora as semelhanças evidentes. Desse modo, posso apontar alguns aspectos que mostrem de que forma o narrador se apresentou dentro da estrutura criada pelo francês, e que mostrem também de que forma esta proposta narrativa se aproxima do meu exercício de criação literária. Robbe-Grillet investiu decisivamente contra o valor do personagem e do enredo porque sua compreensão do gesto criativo exigia que a literatura não fosse apenas nova, mas criadora de um novo leitor e, por conseqüência, um novo homem, que não espera mais da literatura a oferta de clichês romanescos confortáveis a partir da psicologização de personagens. Em Para que servem as 5 ROBBE-GRILLET, Alain, Tempo e descrição no romance atual, In: Por um novo romance, pp. 99-100.

45 teorias, ele escreve que: O termo Novo Romance (...) se trata apenas de um rótulo cômodo que engloba (...) todos aqueles que se decidiram a inventar o romance, isto é, a inventar o homem. 6 No texto Sobre algumas noções obsoletas, ele faz uma exposição histórica da crise do enredo e das características (os elementos técnicos ) de uma literatura tradicional a ser ultrapassada: Todos os elementos técnicos da narrativa emprego sistemático do passado perfeito e da terceira pessoa do singular, adoção incondicional do desenrolar cronológico, intrigas lineares, curva regular das paixões, tensão de cada episódio na direção de um fim, etc. tudo objetivava impor a imagem de um universo estável, coerente, contínuo, unívoco, inteiramente decifrável. (...) Mas eis que, a partir de Flaubert tudo começa a vacilar (...) As exigências da anedota são, sem dúvida alguma, menos constrangedoras para Proust do que para Flaubert, para Faulkner do que para Proust, para Beckett do que para Faulkner... Doravante, trata-se de uma outra coisa. Contar tornou-se literalmente impossível. 7 O vigor das propostas de Robbe-Grillet é considerável, é um admirável movimento-limite modernista, mas de certo modo são outras as forças que provocaram minha curta pesquisa literária. O movimento-limite de Robbe-Grillet já foi feito, e é necessário apontar que o movimento que eu quis fazer aqui é muito mais táctil do que desbravador um exercício literário, antes de se pretender um enfrentamento histórico. Talvez isso traga à tona a velha questão da criatividade e da vontade de criar um novo leitor. Parece-me evidente que qualquer escrita que se proponha literária ainda precisa recriar a própria noção do que seja literatura, como afirmou Michel Foucault uma vez, ao notar que pode-se dizer que toda obra diz o que ela diz, o que ela conta, sua história, sua fábula, mas, além disso, diz o que é a literatura. 8 6 ROBBE-GRILLET, Alain, Para que servem as teorias, In: Por um novo romance, p. 8. 7 Idem, Sobre algumas noções obsoletas, p. 25. 8 FOUCAULT, Michel, Linguagem e literatura, In: MACHADO, Roberto. Foulcaut, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000, p. 146.

46 Mas muito já se escreveu também sobre a crise do conceito de originalidade. Sobre isso, vale a pena lembrar o que diz Poe: A verdade é que a originalidade (a não ser em espíritos de força muito comum) de modo algum é uma questão, como muitos supõem, de impulso ou de intuição. Para ser encontrada, ela, em geral, tem de ser procurada trabalhosamente, e embora seja um mérito positivo da mais alta classe, seu alcance requer menos invenção que negação. 9 Era necessário ao momento de Robbe-Grillet que se produzisse uma literatura para negar inteiramente estas características, como um gesto radical em nome da invenção do novo leitor mas este movimento já está feito e convém notar que o contexto cultural de Robbe-Grillet é específico de um europeu de meado do século XX. Este projeto ultra-modernista da formação de um novo leitor (logo, novo homem ) como intenção última da criação artística, tese defendida Robbe-Grillet, ainda mantém inteiramente seu vigor (e, vale lembrar, Umberto Eco defende idéia idêntica no Pós-escrito a O Nome da Rosa, que data de meados dos anos 80). No entanto, é evidente que aceitar como regra absoluta a negação de todas essas regras prévias apontadas pelo escritor francês seria um equívoco tão grande quanto ignorar que elas podem engessar a criação. Parece-me razoável considerar que rupturas com as regras da tradição são necessárias em certos momentos e podem ser deflagradoras a qualquer momento, mas nenhuma ruptura acontecida pode se tornar uma obrigação, uma nova regra (o que seria um contra-senso). Na verdade, diante da lógica apresentada por Robbe-Grillet, é o caso de argumentar que, depois da crise gerada pelas suas idéias, o que interessa agora é justamente que o gesto de contar volte a se tornar possível e essa tarefa enorme não cabe somente a pequenas dissertações, mas a toda nova literatura que se fizer nos dias de hoje. Com relação à postura do narrador, no entanto, o que o francês escreveu vale para esse texto a restrição a descrições psicológicas aqui ambiciona provocar efeito de estranhamento e, preguiçosamente à moda de Eco, procurar 9 POE, Edgar Allan, A Filosofia da composição, p. 46.

47 uma outra relação com a imaginação do leitor. Dessa forma, a narrativa sugere a inviabilidade de uma compreensão totalizante do mundo. Quanto a isso, vale lembrar a ironia de Robbe-Grillet sobre a natureza metafísica do narrador clássico, ao responder à acusação de que seus textos pretendiam alcançar a objetividade total, no ensaio Novo Romance, homem novo: É fácil demonstrar que meus romances (...) são mais subjetivos mesmo que os de Balzac, por exemplo. Quem descreve o mundo nos romances de Balzac? Quem é esse narrador onisciente, onipresente, (...) que segue ao mesmo tempo os movimentos dos rostos e os das consciências (...)? Só pode ser um Deus. 10 A saída para fugir da sedução confortável das palavras de caráter visceral, analógico ou encantatório, segundo o francês, está no uso do adjetivo ótico, descritivo, aquele que se contenta com medir, situar, limitar, definir. 11 Neste aspecto, demarcadas todas as diferenças, pareceu-me evidente o parentesco entre essas ficções que apresento aqui e as propostas do escritor do outrora Novo Romance. Mas não me parece necessário que uma proposta de radicalização do ponto-de-vista do narrador obrigue o texto de ficção a manter sob o manto da invisibilidade o seu enredo e seus personagens. Na verdade, ao contrário, creio que é justamente o que é visível e parece superficial à primeira vista que, no sentimento de nossos dias, tem apresentado maior vigor e sobre isso vale a pena lembrar que a visibilidade foi uma das propostas de Italo Calvino nas suas lições americanas. Ali ele comenta, em certo ponto, sobre a capacidade que cada um tem de recriar mentalmente cenas cinematográficas descritas por um texto e percebe que: Esse cinema mental funciona continuamente em nós e sempre funcionou, mesmo antes da invenção do cinema e não cessa nunca de projetar imagens em nossa tela interior. 12 Mais à frente, ainda em sua defesa da visibilidade, ao apontar que atualmente a literatura já não se refere a uma autoridade ou tradição que seria sua 10 ROBBE-GRILLET, Alain, Novo romance, homem novo, In: Por um novo romance, pp. 92-93 11 Idem, Um caminho para o romance do futuro, p. 19 12 CALVINO, Italo, Seis Propostas para o próximo Milênio, p. 99.

48 origem ou fim, mas antes disso visa à originalidade, à invenção, Calvino afirma que: Parece-me que nessa situação o problema da prioridade da imagem visual ou da expressão verbal (que é um pouco assim como o problema do ovo e da galinha) se inclina decididamente para a imagem visual. 13 Umberto Eco, apesar de ter inúmeros pontos de vista próximos aos de Robbe-Grillet, defende coisa parecida no Pós-Escrito ao Nome da Rosa. Ali, depois de uma meditação sobre as características do pós-modernismo, ele rememora uma idéia apresentada por Renato Barilli numa reunião dos teóricos italianos que se autodenominaram Grupo 63: Na verdade, ninguém se lembra mais de tudo que aconteceu em 1965, quando o grupo [grupo 63] se reuniu novamente em Palermo, para discutir o romance experimental (e pensar que as atas ainda estão no catálogo da editora Feltrinelli sob o título Il Romanzo Sperimentale, com a data de 1965 na capa e 1966 como data de impressão). Ora, no decorrer daquele debate, surgiram muitas coisas interessantes. Principalmente a comunicação de abertura de Renato Barilli, que já era o teórico de todos os experimentalismos do Nouveau Roman.(...)E o que dizia Barilli? Dizia que, até então, tinha-se privilegiado o fim do enredo e o bloqueio da ação na epifania e no êxtase materialista. Mas que estava começando uma nova fase da narrativa, com a revalorização da ação, embora se tratasse de uma ação autre. 14 É evidente, portanto, que outros caminhos podem ser escolhidos a partir de questões muito próximas das apresentadas por Robbe-Grillet, e igualmente evidente que o privilégio da ação, que é o caminho aqui escolhido, não é uma opção estranha aos nossos dias. 13 Idem, p. 102. 14 ECO, Umberto, Pós-escrito ao Nome da Rosa, pp. 51-52.

49 Optei por fazer duas experiências na narrativa seguinte, ambas bastante simples. A primeira é que as ações são contadas no tempo verbal da terceira pessoa do passado (e não mais do presente), o tempo tradicionalmente percebido como literário, como já apontava o francês fiz essa escolha justamente para trabalhar o uso da regra dentro do modo tradicional de narração do conto. A segunda é que há dois tempos narrativos, ao invés de um único desenvolvimento cronológico sendo que um desses tempos parte da fala de um personagem. Assim, o narrador, se não pode contar o que os personagens pensam, tem a liberdade de alternar dois diferentes fluxos cronológicos. Seguiu-se, portanto, o conto O velho e o novo, dentro das mesmas regras de narração, mas alternando tempos e relatando as ações no passado.