O Corte e o Corpo Lesões de Órgão e Intervenções Corporais



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O Corte e o Corpo Lesões de Órgão e Intervenções Corporais Heloísa Helena Aragão e Ramirez Christian Ingo Lenz Dunker A partir do trabalho de pesquisa que vem acontecendo na Rede Clínica de Psicossomática temos nos deparado com diferentes modos de relação do sujeito com a lesão no corpo. Na bibliografia analítica encontramos esta categoria como uma espécie de ponto limite da investigação psicossomática. A lesão de órgão é uma categoria que possui um valor etiológico e diagnóstico nos textos psicanalíticos, mas nos surpreende como ela foi tão pouco estudada pelos próprios psicanalistas, que em geral se conformam com sua descrição médica, como se a pudéssemos usar sem mediação ao nosso próprio campo. Foi neste contexto que surgiu a idéia de investigar o estatuto da lesão de órgão, tal como se mostra em certos fenômenos psicossomáticos, comparando-o com a lesão de órgão que decorre de manipulações e intervenções intencionais sobre o corpo, tal como encontramos em práticas como a suspensão, o cutting, a tatuagem e a body art. Comecemos pelo caso de um jovem que pode ser apresentado como um portador contumaz de lesões corporais: cabelos longos e trançados, nove piercings espalhados pelo corpo, um punch na orelha direita, cinco tatuagens, um branding na perna esquerda, uma escarificação na coxa direita, alargadores nos dois lóbulos das orelhas, além de ser o primeiro a suspender-se pelo joelho no nordeste No depoimento do jovem, retirado de um site sobre intervenções voluntárias do corpo, ele explica que é uma questão estética, como afiar os dentes, bifurcar a língua e dilatar o lóbulo da orelha, outras das novas tendências corporais. 1

A adrenalina é altíssima, o tempo parece passar mais rápido, é divertido Sobre o fato de suspender o próprio corpo, preso em anzóis que perfuram sua pele, ele diz que é uma prática milenar surgida entre indígenas norte-americanos. Naquele tempo só os homens podiam suspender-se num ritual pelo qual ofereciam o seu sangue, dor e sofrimento à mãe Terra. Às mulheres era vedada a prática, já que elas prestavam sua homenagem na menstruação e no parto. O fenômeno social dos grupos de suspensão e intervenção sobre o corpo é freqüentemente interpretado como vanguardismo ou rebeldia juvenil. Como se o que levasse a transformar o próprio corpo se reduzisse ao apelo de inscrição social. Para alguns se trata do ressurgimento de práticas milenares, de rituais baseados no prazer e na dor, de experiências estéticas radicais que questionam inclusive o sentido da arte (Cesar 1 ). A suspensão: começa com perfurações leves, por meio de desenhos e agulhas, até que no final as pessoas aparecem penduradas por anzóis de pescar tubarões, ganchos de açougueiro... Quem se submete à prática adquire outra forma, outra consciência e uma outra realidade para o seu corpo, relacionando-se consigo mesmo de forma diferente 2. Ao nos depararmos com imagens impactantes de corpos suspensos no ar elevados por ganchos de ferro presos à pele, tal qual uma libra de carne exposta, como se, nas vitrines de um açougue, se é tomado pelo horror da imagem da carne viva. Angústia 1 César, João Batista, Transgressão ou Arte? Comunicação Eletrônica. http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/dez2001/unihoje_ju169pag04.html 2 Depoimento: A semana que antecedia a Suspensão vinha com muita ansiedade e um ligeiro medo que persistia em andar ao meu lado. Por não saber minha reação ao voar, não queria muita gente no dia e as poucas pessoas que eu convidara, recusaram o convite, alegando que não iriam suportar!!! Até o primeiro gancho ser atravessado nas minhas costas. Ao todo foram quatro lindos ganchos... Eu particularmente não gostei muito da parte das perfurações. Então, chega a hora e tudo depende única e exclusivamente de mim... Como um suicídio mesmo. Parcialmente suspenso, só precisava tirar os meus pés do chão e pronto: estaria voando. Com a impressão que minhas costas iriam rasgar, depois de um certo tempo, estava no ar... Suspenso... Livre. Meu corpo balançava bastante, e por incrível que possa parecer, a dor acabou!!! 2

semelhante a que senti, quando acompanhando a uma consulta médica me deparei com um corpo inteiro recoberto por placas avermelhadas e escamosas de uma psoríase gravíssima. Fiz então uma primeira aproximação dentre aquilo que é da ordem da manifestação no corpo (psoríase) com a intervenção no corpo (suspensão). Observe-se que o fenômeno visual é o mesmo, nada nos impede de imaginar uma próxima forma de intervenção corporal baseada na escarificação completa do corpo, produzindo assim uma mimese perfeita do fenômeno da psoríase. O que dizer então desta mulher que literalmente transformou-se na imagem mimética de uma vaca, reproduzindo suas manchas, pretas e brancas ao longo da superfície completa de sua pele? Uma forma de vitiligo experimental? Vitiligo voluntário? É claro que se poderia distinguir o fenômeno pela sua causalidade etiológica diferencial e aos olhos de um bom dermatologista a diferença seria facilmente reconhecível. Mas aqui também um psicanalista reconheceria a diferença pela posição subjetiva distinta diante dos dois fenômenos. Há ainda uma oposição entre as formas de gozo que se realizam na devolução ao sujeito de seu efeito de imagem. As formações dermatológicas são feitas para esconder, as intervenções sobre o corpo para mostrar. A lição freudiana elementar sobre a gramática das pulsões nos ensina a procurar neste tipo de oposição a identificação que articula a passividade com a atividade da pulsão. Aprendemos com Lacan que este ponto de transposição da pulsão tem a estrutura de um corte, uma punção (< >). Todavia se tratam de sujeitos diferentes e é essa diferença que nos interessa inicialmente. A observação clínica superficial sugere uma primeira regularidade curiosa: pacientes acometidos por fenômenos psicossomáticos de tipo dermatológico raramente incorrem em intervenções corporais irreversíveis. Segundo nossa hipótese é possível que a relação reversa se verifique também, ou seja, nos praticantes de manipulações corporais encontraremos pouca ou nenhuma história de manifestações dermatológicas. Paola Miele 3, observa que essas intervenções no corpo se impõem como uma necessidade, como uma tentativa de estabilizar uma forma que oscila no próprio corpo e é 3 Mieli, Paola, Sobre as Manifestações irreversíveis do corpo e outros texto psicanalíticos, 2002, Ed. Contra Capa. 3

fonte de perturbação. Ou seja, trata se sempre de um corte sobre o corpo que é realizado de forma ativa, interrompendo e invertendo uma forma passiva de sofrimento ou insatisfação. No meu caso, recorro a esse tipo de coisa quando eu estou com a mente meio desorganizada ; Muita gente vai ao salão de beleza, mas quando me sinto meio mal vou ao estúdio pra me sentir melhor e faço alguma mudança. Ajuda por fora e por dentro. 4. Essa mesma autora diz que as intervenções irreversíveis no corpo acontecem por meio de cortes que levam à constituição de uma marca. Esta inscrição pode funcionar como um apagamento ou como um marco. Landmark, é o nome dado por ela para dizer da invocação do traço: a procura de um corte simbólico, que dá forma definida a um contorno flutuante, e envolve a suspensão de um olhar que torna sua própria forma vã. Mieli postula que essas marcas (Landmarks) dizem respeito à urgência de uma inscrição simbólica representativa, uma realização em ato, de um traço da função paterna. O paradoxo desta estratégia de re-alienação é que ao se subjetivar em uma forma narcísicosocial esta identificação fracassa em seu propósito de provocar um corte irreversível. Isso explica porque as intervenções tendem a se multiplicar. É um saber corrente entre os praticantes de cirurgias plásticas recorrentes e da prática da tatuagem que se deve ponderar muito, principalmente, em fazer a segunda intervenção, mais do que na primeira. Isso porque a presença de uma segunda intervenção costuma desencadear uma série que muitas vezes leva a conseqüências trágicas. Isso corrobora a tese de Mieli pois a incidência do traço paterno deve ser, por estrutura, única; sua multiplicação corrompe sua função. Assim como na teoria lacaniana do traço, a sua repetição o transforma em significante e como tal exposto a imaginarização de sua significância. Com o fenômeno psicossomático parece acontecer algo semelhante, mas inverso à intervenção voluntária no corpo. Em autores como Guir 5 encontramos a idéia recorrente de 4 Depoimentos recolhidos na Internet. http://www.aeso.br/oxente/anteriores/21/vinteeum_comportamento_experiencias.php. 5 Guir, J. Psicosomática e Psicanálise, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1989. 4

que o paciente psicossomático busca traços de identificação com o pai, em uma espécie de recomposição artificial do traço-unário. A lesão psicossomática funcionaria como este traço, como um significante, não de uma presença, mas de uma ausência apagada (Lacan, Seminário 9, 1961-1962). Isso levou a uma aproximação clínica entre a formação psicossomática e um tipo de marca que passa necessariamente pelo ponto de apagamento. Uma marca de uma história posta fora da memória. Se as intervenções sobre o corpo são da ordem no número contável, as formações psicossomáticas são da ordem do número incontável. Essa distinção hipotética poderia ser acrescentada à tese de Lacan sobre a formação psicossomática, expressa na Conferência de Genebra: o corpo se deixa escrever alguma coisa que é da ordem do número 6. A relação entre o número contável e o número incontável traz imediatamente um paralelo com as duas formas de gozo distintas por Lacan em sua teoria da sexuação. O gozo feminino é não todo, e entendemos que sua principal propriedade decorrente não reside no fato dele ser indizível, mas dele não ser contável. Inversamente o gozo fálico se exprime justamente pela sua função de discriminação e significantização contável do gozo. Em ambos o sujeito se inscreve como zero, mas na função ordinal este zero é contável e na função cardinal é incontável (transfinito). Aqui poderíamos introduzir uma outra regularidade curiosa acerca das práticas de intervenção sobre o corpo. A modalidade concernente à suspensão, onde o corte ocorre principalmente na forma de furos, é virtualmente praticada por homens. Na modalidade chamada de cutting, o sujeito corta-se com lâminas e a visão do sangue escorrendo sobre a pela geralmente ocupa uma função erótica característica, há uma absoluta predominância de mulheres. É uma insistência empírica, os homens se furam e apreciam suas ereções corporais, as mulheres se cortam e apreciam a sua própria detumescência. A incidência da cicatriz também é diferencial, no homem cumpre a função mais ou menos simbólica de testemunho da operação, na mulher, ao contrário, quando as cicatrizes começam a se tornar visíveis demais, a prática é questionada passando então ao estatuto de um sintoma. Note-se bem o sintoma está nas cicatrizes, não nos cortes. As cicatrizes são uma função contável do corte, uma maneira de torná-lo fálico, por assim dizer. 6 Lacan, J. - Conferência de Genebra, (1975), in Opção Lacaniana, 1998, n 23 5

Se esta separação entre corte contável e o corte incontável é encontrada nas intervenções corporais, e se esta separação reflete modos distintos de inscrição do gozo, não se poderia verificá-la também nas formações psicossomáticas? Não seria a passagem de uma a outra forma de corte algo que se deveria procurar na intervenção analítica nestes casos? Um breve fragmento clínico pode ilustrar esta passagem. Trata-se de uma paciente acometida pela psoríase que associa o início da doença ao momento em que seu pai abandona, subitamente, a família. Como muitos outros casos a lembrança de uma situação traumática na origem ou nas recidivas dos sintomas não é feita sem grande dificuldade pela paciente. Ocorre que esta lembrança funciona como uma espécie de bloco isolado, fazendo uma lembrança que não é encobridora, no sentido freudiano. É uma lembrança de um fato não acontecido, uma memória da ausência, posto que não integrado subjetivamente. Mas como esforço do tratamento analítico esta paciente começa a recuperar outros significantes ligados à série paterna. Este trabalho a leva ao reconhecimento de que ela possui uma outra lembrança do pai, uma lembrança, aliás, esquecida. Trata-se de um pequeno colar que sustenta a imagem de uma santa. Como é comum acontecer, nos primeiros movimentos do tratamento os sintomas de psoríase desapareceram. Ocorre que depois de algum tempo ela perde o colar dado pelo pai. Alguns dias depois surge uma nova formação da psoríase. Em um lugar do corpo no qual ela jamais havia se manifestado antes: em volta de seu pescoço, recobrindo exatamente o formato do colar desaparecido. À par da relação mais ou menos evidente entre a formação psicossomática e a filiação paterna, o tipo específico de identificação e o trabalho do simbólico envolvido nesta operação, o que pretendemos é chamar a atenção para um outro aspecto desta seqüência clínica. O fato importante é que esta aparição das escarificações faz número contável. Ela distingue-se de todas anteriores que se inscreviam apenas na gramática da ausência ou presença e apontavam para o retorno do mesmo, como tal incontável. A mancha avermelhada sobre a superfície do pescoço tem um nome, é um colar. Ela seria então abordável como uma intervenção voluntária do corpo? 6