ASPECTOS DA HISTÓRIA DAS LÍNGUAS INDÍGENAS DA AMAZÔNIA



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Transcrição:

ASPECTOS DA HISTÓRIA DAS LÍNGUAS INDÍGENAS DA AMAZÔNIA Aryon Dall Igna Rodrigues (Laboratório de Línguas Indígenas, Instituto de Letras, Universidade de Brasília) Publicado em Simões, M. do S., org., Sob o signo do Xingu. Belém : IFNOPAP/UFPA. Pp. 37-51 1. Língua, cultura e constituição física. É fato bem estabelecido e facilmente demonstrável que língua, cultura e constituição física, embora com freqüência historicamente associadas, são propriedades independentes nos seres humanos (veja-se, p. ex., F. Boas, Race, language, and culture, New York: Macmillan, 1940). Na Amazônia um bom exemplo é o povo Kamayurá: suas características físicas externamente observáveis são as mesmas de outros povos do Alto Xingu como os Waurá ou os Kuikúru, e sua cultura está completamente integrada no complexo cultural alto-xinguano, mas sua língua é a única representante, nesse complexo, da família lingüística Tupi-Guaraní, que inclui um grande número de povos amazônicos de línguas estreitamente aparentadas, porém física e culturalmente distintos dos Kamayurá. 2. As línguas amazônicas hoje: quantidade e diversidade. Hoje são faladas na Amazônia cerca de 250 línguas indígenas, sendo que cerca de 150 em território brasileiro. Embora aparentemente altos, esses números são o resultado de um processo histórico a colonização européia da Amazônia que reduziu drasticamente a população indígena nos últimos 400 anos. Estima-se que, só na Amazônia brasileira, o número de línguas e de povos teria sido de uns 700 imediatamente antes da penetração dos portugueses (cf. Rodrigues 2001). Apesar da extraordinária redução quantitativa, as línguas ainda existentes apresentam considerável diversidade, caracterizando a Amazônia como uma das regiões de maior diferenciação lingüística do mundo, com mais de 50 famílias lingüísticas. 3. O estudo comparativo e classificatório das línguas: as famílias lingüísticas e os troncos lingüísticos. O conhecimento científico das línguas é adquirido basicamente pela lingüística descritiva, cujo objetivo é documentar, analisar e descrever as línguas, de modo

a torná-las objetos comparáveis, tanto para estudos classificatórios, como para estudos teóricos. As classificações lingüísticas podem ser tipológicas ou genéticas. Estas últimas consistem em agrupar as línguas em conjuntos para os quais se pode estabelecer uma bem fundada hipótese de comum origem no passado. Esses agrupamentos genéticos são chamados famílias lingüísticas e sua identificação fornece um critério classificatório de natureza histórica, que é utilizado não só pelos lingüistas, mas também pelos antropólogos como indicativo de relações históricas entre os povos. O número de línguas numa família pode variar de muitas dezenas a apenas uma. Famílias com apenas uma língua são freqüentemente chamadas de línguas isoladas ou isolados lingüísticos. Na Amazônia, como em toda a América do Sul, é provável que a maioria dos isolados lingüísticos representem sobreviventes de famílias maiores, reduzidas durante o processo de colonização européia. A constituição de uma família com diversas línguas, o que é o caso mais comum, implica em que houve em algum tempo do passado uma língua ancestral, da qual as línguas atuais são modificações diferenciadas. A essa língua ancestral, inferida e reconstruída a partir da comparação das línguas atuais, é dado o nome de proto-língua. Uma vez estabelecidas diversas famílias lingüísticas, pode surgir evidência de que algumas delas e suas respectivas línguas ancestrais provêm de outra língua ancestral, outra protolíngua, mais antiga. A um conjunto de famílias nessa situação tem-se chamado de tronco lingüístico. Como todo procedimento classificatório, a classificação das línguas em famílias e troncos genéticos organiza nosso conhecimento sobre elas e sobre os povos que as falam. 4. A reconstrução de traços culturais do passado. São reconstruíveis para as protolínguas as palavras e outros elementos lingüísticos que se encontram preservados em todas ou na maioria das línguas de uma família ou das famílias de um tronco com forma e significado regularmente deriváveis de uma só forma mais antiga. A comparação da palavra para faca nas línguas da família Tupi-Guaraní, p. ex., Tupinambá kysé, Guaraní antigo kytsé, Mbyá kytxé, Ka apór kyhé, etc., leva à reconstrução para o Proto-Tupí-Guaraní da forma *kytxé com o mesmo significado de faca. Por aí podemos concluir que os falantes pré-históricos da proto-língua da família Tupí-Guaraní utilizavam facas como instrumentos cortantes, embora nada possamos dizer sobre a natureza de tais facas (é possível que se tratasse de facas feitas de taquara, já que nas línguas da família Tuparí aparentada com a

família Tupí-Guaraní dentro do tronco Tupí a forma correspondente, kyté na língua Tuparí, significa taquara ). A presença não ambígua de um conceito numa proto-língua implica a existência da coisa correspondente, de modo que, ao reconstruir formas lingüísticas, estamos reconstruindo também fragmentos de cultura pré-histórica. Na Amazônia, um caso particularmente interessante é o da reconstrução de palavras relacionadas à agricultura na proto-língua do tronco Tupi. A comparação das línguas das dez famílias que constituem esse tronco permite a reconstrução das palavras para roça, cavador de cova, mandioca, batata doce, cará, abóbora, cabaça, socar e outras que indicam claramente que o povo pré-histórico que falava aquela língua já era agricultor como seus descendentes modernos. Note-se que a idade estimada para o Proto-Tupí é de cerca de 5.000 anos. Se essa estimativa estiver correta, temos um dado que reforça outras informações, menos claras do que essa, da antigüidade da agricultura na Amazônia e, particularmente, entre os povos Tupí. 5. A família Tupí-Guaraní e o tronco Tupi. A família Tupí-Guaraní, com mais de trinta línguas, é uma das maiores da América do Sul e tem a maioria de seus povos na Amazônia. Seu reconhecimento como família genética data já do século XIX (Martius 1867, Steinen 1882, Adam 1896), mas só em meados do século XX é que se reconheceu que ela faz parte de um conjunto de dez famílias amazônicas, bastante diferenciadas entre si, mas cuja remota origem comum pode ser demonstrada (Rodrigues 1955). Esse conjunto recebeu o nome de tronco Tupí (Rodrigues 1958a, 1958b, 1964) e as outras nove famílias que o integram são a Awetí no Alto Xingu, a Jurúna no médio e baixo Xingu, a Mawé e a Mundurukú no Tapajós, a Mondé, a Ramaráma, a Puruborá, a Arikém e a Tuparí na bacia do Madeira, especialmente entre seus afluentes Aripuanã e Guaporé. Como se vê, todas essas nove famílias estão na Amazônia e, como aqui está também a maioria das línguas da Tupí-Guaraní, o tronco Tupí é essencialmente amazônico. 6. Possíveis conexões entre troncos lingüísticos. Os troncos lingüísticos, enquanto conjuntos de famílias oriundas de uma mesma proto-língua mais remota, podem ainda mostrar relações genéticas com outros troncos ou com famílias não classificadas em nenhum tronco, as quais podem no fundo ser consideradas como troncos com uma só

família. Dado o maior distanciamento genético, os indícios dessas relações são muito mais raros e mais difíceis de perceber. Assim mesmo, no que toca ao tronco Tupí, foram detectados sinais de parentesco com a família Karíb e com o tronco Macro-Jê (Rodrigues 1985, 2000a). A família Karíb é também essencialmente amazônica, estendendo-se do Alto Xingu à costa do Mar Caribe, e a hipótese de uma origem comum com o tronco Tupí não nos afasta da Amazônia. Já do tronco Macro-Jê pode-se dizer que, ao contrário, é tipicamente não amazônico, pois das doze famílias nele incluídas, apenas duas, Rikbaktsá e Jê, têm línguas dentro da Amazônia, mas esta última, cujos povos são habitantes típicos dos campos cerrados e dos campos do sul do Brasil, está representada na Amazônia por apenas três povos e as respectivas línguas (Suyá, Panará e Kayapó), que aí penetraram em épocas relativamente recentes. Sendo as línguas do tronco Macro-Jê faladas por povos tipicamente não amazônicos, parentesco genético entre elas e línguas amazônicas como as do tronco Tupi, se confirmado, é indicativo de movimentos populacionais para dentro ou para fora da Amazônia em tempos muito mais antigos que o da diversificação do tronco Tupí. 7. As línguas não amazônicas da família Tupi-Guaraní. A constatação de que o tronco Tupí é essencialmente amazônico dá lugar a uma outra questão interessante: e as línguas da família Tupí-Guaraní situadas fora da Amazônia, na bacia dos rios Paraná e Paraguai, como a Guarani, e na costa leste do Brasil, como a Tupí e a Tupinambá? Na primeira metade do século XX pensava-se que a família Tupí-Guaraní fosse toda oriunda da bacia platina, do espaço entre os rios Paraná e Paraguai, e que daí tivesse penetrado na Amazônia. Essa concepção mudou com o avanço dos conhecimentos lingüísticos e dos estudos arqueológicos. Lingüistas e arqueólogos concordam agora em que os antepassados dos Guarani devem ter passado dos formadores dos rios Tapajós e Madeira para o alto rio Paraguai e daí para o sul. Entretanto, não há ainda consenso entre arqueólogos e lingüistas quanto à rota seguida pelos antepassados dos Tupí e Tupinambá da costa atlântica. A hipótese levantada por alguns arqueólogos (Lathrap 1980, Brochado 1984, Noelli 1996) é a de que esses povos teriam deixado a Amazônia migrando para leste a partir do médio Amazonas, passando para a costa do Pará e do Maranhão e ocupando o litoral atlântico até à altura do atual Estado de São Paulo. Entretanto, uma hipótese baseada em evidências lingüísticas (Rodrigues 2000) indica um caminho quase inverso: os antepassados dos Tupí

e dos Tupinambá teriam deixado a Amazônia migrando para o sul, tal como os antepassados dos Guarani não juntamente com estes, mas provavelmente um pouco antes deles e teriam passado para o alto rio Paraná, a partir do qual teriam tomado um ou mais de seus grandes afluentes orientais, como o rio Grande e o Tietê, que teriam subido até chegar à Serra do Mar e ao litoral sueste. Os Tupi teriam ficado no alto Tietê, na região de Piratininga e de São Vicente, ao passo que os Tupinambá teriam alcançado, pelo Paraíba do Sul, o litoral do Rio de Janeiro, expandindo-se daí para o nordeste e o norte, até penetrar de novo na Amazônia pela costa do Maranhão e do Pará. Independentemente dos Guaraní e dos Tupí e Tupinambá, um terceiro povo Tupí-Guaraní, provavelmente mais próximo destes do que daqueles, migrou para o sul, mas na altura do rio São Miguel, afluente do rio Mamoré, encaminhou-se para noroeste e reentrou na Amazônia, em sua parte sudoeste, na atual Bolívia. Descendentes dessa migração são os Guarayo. 8. As línguas tupi-guarani do nordeste da Amazônia. A região, que se estende do baixo Xingu para leste, passando pelo Tocantins e indo até além do Gurupi, até o Pindaré no Maranhão, e que alcança para o norte o Amapá e a Guiana Francesa, é a que estou chamando aqui de nordeste da Amazônia. Essa é uma região que foi habitada por muitos povos de línguas da família Tupi-Guaraní, os quais sofreram fortes conseqüências da colonização européia a partir do início do século XVII. Vários desses povos desapareceram no decorrer desses 400 anos e de outros sobreviveram apenas poucas famílias. Além das epidemias de novas doenças, os principais fatores de destruição dos povos e de apagamento de suas línguas foram os aldeamentos forçados para a doutrinação religiosa e para a utilização de sua força de trabalho, o recrutamento para as tropas e as obras do governo colonial e a venda para o trabalho escravo nas propriedades rurais e nos incipientes estabelecimentos urbanos. Alguns conseguiram escapar da ação colonialista em certos momentos, para serem novamente alcançados após poucos ou muitos anos. Um ou outro desses caíram de novo sob o controle dos não índios só na segunda metade do século XX, como os Araweté e os Asuriní do baixo Xingu, os Parakanã e os Asuriní do Tocantins, os Guajá do Maranhão ou os Jo é ou Zo é do Cuminapanema, no norte do Pará. É pela documentação atual das línguas destes sobreviventes da hecatombe colonial e pós-colonial e pelos registros lingüísticos, ainda que limitados, de viajantes e pesquisadores do século

XIX e da primeira metade do século XX, que sabemos não só que tal povo falava ou fala uma língua da família Tupi-Guaraní, mas ainda a que ramo mais particular desta essa língua pertence, isto é, com que outras línguas ela compartilha mais traços de herança comum. É pelo estudo comparativo sistemático e minucioso desses dados que também é possível para o lingüista assegurar que os povos indígenas desta região não são descendentes dos Tupinambá do Maranhão e do Pará, como havia sido suposto por diversos antropólogos em virtude de analogias culturais e do simples fato de que uns e outros são lingüisticamente tupi-guaranis. A língua Tupinambá, da qual havia falantes aqui no Pará ainda em meados do século XVIII, pertence a um daqueles ramos da família Tupi-Guaraní (o sub-conjunto III) que deixaram a Amazônia migrando para o sul em tempos préhistóricos e depois voltaram para o norte pela costa atlântica. Embora não seja raro um povo mudar de língua com exceção dos Fulniô, os povos indígenas do nordeste brasileiro falam hoje só a língua portuguesa as línguas normalmente ficam ligadas aos povos por muitos séculos, de modo que a história das línguas reflete a história dos respectivos povos. Anteriormente (seção 4 acima) dei a idéia de que a reconstrução de palavras de uma proto-língua leva à reconstrução de elementos da cultura pré-histórica dos que falavam essa, mas, além disso, o estudo comparativo das línguas permite obter mais informações históricas sobre contactos havidos entre povos de diferentes línguas e sobre as migrações que levaram um povo a entrar em contacto com outros. O estado atual de nosso conhecimento sobre as línguas tupí-guaraní revela, por exemplo, que tanto os povos dessa filiação hoje estabelecidos no Amapá, como os Wayampí, e os que agora vivem no Maranhão, como os Urubu-Ka apór, os Guajajára e os Guajá, são oriundos do Pará, os primeiros do baixo rio Xingu, os últimos do Tocantins. Em ambos os casos as evidências lingüísticas corroboram indicações etnográficas e históricas. Indicadores lingüísticos da história recente dos povos tupí-guaraní no nordeste da Amazônia são palavras provenientes da Língua Geral Amazônica, as quais denunciam o contacto desses povos com essa língua nos séculos XVII e XVIII, seja junto aos mamelucos, cafusos e brancos que a falavam mais que a portuguesa, seja em conseqüência da ação de missionários católicos que também a utilizavam.

9. A Língua Geral Amazônica. Um aspecto histórico importante da Amazônia brasileira é o desenvolvimento da Língua Geral Amazônica como produto da interação entre os Portugueses e os Tupinambá no século XVII. Os filhos de mestiços de homens portugueses e mulheres tupinambá, que logo passaram a constituir a maior parte da população não indígena da nova colônia, falavam a língua de suas mães, a qual, fora do contexto social e cultural indígena, foi-se diferençando mais e mais do Tupinambá falado pelos índios e no século XVIII já se distinguia nitidamente como uma nova língua. Como língua dos mamelucos, tornou-se a língua comum à população mestiça e não mestiça tanto nos incipientes núcleos urbanos como nos estabelecimentos do interior amazônico, de modo que também passou a ser a língua das missões religosas, onde eram reunidos índios originalmente falantes de muitas outras línguas. Por essa razão passou a ser tratada como língua geral. Hoje nós a chamamos Língua Geral Amazônica para distingui-la de outra, surgida em situação análoga, na Província de São Paulo, a Língua Geral Paulista. No final do século XIX foi introduzido o nome Nheengatu, com o qual se designa alternativamente a Língua Geral Amazônica. A partir da segunda metade do século XVII esta língua passou a ser o idioma dominante na conquista portuguesa da Amazônia, levada a todas as partes atingidas pelas tropas, pelos colonos e comerciantes e pelos missionários. Como língua dos colonizadores ela foi aprendida como segunda língua pelos índios contactados ao sul e ao norte do rio Amazonas, e seu uso se estendeu pelo Solimões até a Amazônia peruana e pelo Rio Negro até a Venezuela e a Colômbia. Ela foi, portanto, a língua predominante do que foi o Estado do Maranhão e Grão Pará, em detrimento da portuguesa, que só tardiamente veio a substituí-la. A situação de franco predomínio da Língua Geral Amazônica provocou fortes medidas em favor da língua portuguesa na administração do Marquês do Pombal em Portugal e de seu irmão Mendonça Furtado aqui na Amazônia. Entretanto, os fatores sociais que mais favoreceram a penetração e generalização da língua portuguesa na Amazônia, como a temos hoje, foram o genocídio da população falantes de língua geral durante a repressão à revolta da Cabanagem e, alguns anos depois, a importação maciça para os seringais amazônicos de trabalhadores nordestinos, falantes exclusivos da língua portuguesa. Mais recentemente, sobretudo no século XX, um outro fator terá sido a crescente escolarização unicamente em Português. A presença extensiva da Língua Geral Amazônica durante mais de duzentos anos

influenciou não só o Português amazônico, mas também muitas línguas indígenas de outras famílias, do tronco Tupí e de outras filiações genéticas, como o Jurúna do rio Xingu, o Mawé e o Mundurukú do rio Tapajós, o Pirahã (Múra) do rio Madeira, o Tikúna do rio Solimões e línguas da família Karíb ao norte do rio Amazonas. Na bacia do rio Negro várias línguas indígenas foram inteiramente substituídas pela Língua Geral Amazônica, como é o caso da língua dos Baré, no município de São Gabriel da Cachoeira. Realmente, a Língua Geral Amazônica foi a principal língua da colonização da Amazônia nos séculos XVII e XVIII, tendo se estendido para oeste até o limite com o Peru e para noroeste até as fronteiras com a Venezuela e a Colômbia. A constituição e a expansão dessa língua geral caracterizam um dos capítulos mais importantes e mais interessantes da história lingüística da Amazônia brasileira, uma história cujo estudo está apenas iniciado (Freire 1983, Rodrigues 1986, 1996, Cabral 2000, Felix 2002). Referências Adam, L. 1896. Matériaux pour servir à l établissement d une grammaire comparée dês langues de la famille Tupi. Paris: Maisonneuve. Brochado, J. P. 1984. An ecological model of the spread of pottery and agriculture into Easternn South America. Tese de doutorado, University of Illinois at Urbana- Champaign. Cabral, A. S. A. C. 2000. Algumas observações sobre a história social da língua geral amazônica. Em: Maria do Socorro Simões (org.), Memória e comunidade: entre o rio e a floresta, pp. 103-129. Belém Felix, M. I. de S. 2002. A Língua Geral Amazônica: contribuição para o estudo de suas variedades dialetais e faladas ao longo do rio Amazonas e seus tributários, nos séculos XIX e XX. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Pará. Belém. Freire, J. B. 1983. Da fala boa ao português na Amazônia brasileira. Ameríndia, revue d ethnolinguistique 8:39-83. Paris. Lathrap, D. 1970. The upper Amazon. Londres: Thames and Hudson. Martius, C. F. Ph. von. 1867. Beiträge zur Ethnographie und Sprachenkunde Amerika s

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