SOBRE O MASOQUISMO FEMININO E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A LEI MARIA DA PENHA.



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Transcrição:

SOBRE O MASOQUISMO FEMININO E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A LEI MARIA DA PENHA. Evaristo Magalhães 1 RESUMO: Este artigo tem como objetivo tecer algumas considerações sobre o masoquismo e a violência contra a mulher. Para tanto, lançou-se mão das reflexões freudianas acerca do Complexo de Édipo feminino, com o intuito de compreender como o masoquismo possui a dupla função de dar prazer e de punir diante da impotência do vazio de viver. Palavras-chaves: violência, masoquismo, complexo de Édipo, prazer, dor. Abstract: This article to make some consirations about masochism and violence against women. To this end, it employed Freudian reflections about the complex feminine Oedipus, in order to understand how masochism has the dualfunction of providing pleasure and punishment before the impotence of the voidoflife. Keywords: violence, masochism, Oedipal complex, pleasure, pain. No Jornal de Debates, no google, encontramos a seguinte pesquisa: Cerca de 70% das mulheres vítimas de violência perdoam os seus parceiros, segundo o Centro Integrado de Atendimento à Mulher (CIAM-RJ). A estatística foi engrossada por Cristina Ribeiro que perdoou o marido, oito meses depois de ter sido refém dele num atentado de ônibus no Rio de Janeiro. Cristina Ribeiro passou dez horas sob a mira de um revólver empunhado pelo marido e, apesar da possibilidade de ser hostilizada, decidiu 1 *Filósofo, Psicanalista e Doutorando em Medicina pela UFMG. Email: etnm90987@yahoo.com.br

voltar a viver com ele. O Jornal de Debates pergunta: por que as mulheres vítimas de violência perdoam os seus parceiros. La boétie, no século XVI, cunhou a expressão servidão voluntária para manifestar seu susto diante do fenômeno da servidão, especialmente quando a pessoa demonstra a vontade de estar nesta posição. Como pode um indivíduo submeter-se a outro, não por medo ou por não ter outra opção, mas por desejar mesmo a subserviência? Perguntava La Boétie. Fortes (2009), também pergunta: o que leva um sujeito a se colocar nesta posição, ou seja, ele não é colocado ali por outra pessoa, mas ele mesmo se dirige para esta região subjetiva. Essa forma de compreender a questão aponta para a responsabilidade do sujeito nas posições de gozo que ocupa, retirando-o do papel de vítima, tão mais aceito pelo senso comum. Pode-se falar de uma erotização da dor? Como uma dor pode suscitar uma satisfação? Pergunta Nasio (1996). Violência contra a mulher é aquela explícita ou velada, literalmente praticada dentro de casa ou em outros âmbitos, entre indivíduos unidos ou não por parentesco. Incluem diversas práticas físicas, morais ou psicológicas dentro ou fora dos processos de separação litigiosa. Antes de iniciarmos a discussão específica sobre a violência contra a mulher, faz-se necessário fazermos algumas pontuações sobre o conceito de sexualidade ou pulsão sexual em Freud. Para ele, é da natureza da sexualidade poder se acoplar a vários destinos às vezes diferentes e até contraditórios. Ou seja, o indivíduo pode vincular sua libido tanto ao prazer quanto à dor. O descobrimento por Freud (1905), das vias perversas da sexualidade, das dissonâncias da satisfação sexual, mostra-nos a capacidade do deslizar da libido, suas voltas que, ao serem vias de sofrimento, são encontros com a satisfação. Nesta perspectiva, o objeto da sexualidade, diferente do instinto animal, é plástico. Daí, a natureza do desejo que pode ser o nosso paraíso, mas que também pode ser o nosso inferno. O que dá à nossa sexualidade uma conotação trágica, conforme afirma Azambuja (2010).

É, neste contexto, que Freud concebeu o masoquismo, quando ele já se aproxima do conceito de pulsão de morte. É ela que introduz outro desejo humano, que é o de se destruir. Conforme Azambuja(2010), o caminhar para a morte é também o nosso desejo. Quando deparamos com uma pessoa que apresenta um comportamento psicopatológico faz-se necessário retomarmos à sua infância para obtermos alguns esclarecimentos. Freud afirma que as explicações para neuróticos, perversos e psicóticos podem ser encontradas no Complexo de Édipo. Neste caso, pretendemos compreender as mulheres que sofrem violência. De modo geral, as justificativas para a permanência das mulheres em relações violentas se resumem aos aspectos econômicos. Muitos teóricos, e até o senso comum, afirmam que as mulheres suportam a agressão por dificuldades de se manterem financeiramente. Existem também razões filiais, baixa escolarização e o medo da solidão. Neste artigo, discutiremos os aspectos emocionais que procuram explicar os motivos que contribuem para a continuidade de relações afetivas violentamente desiguais que conflituam com as explicações de ordem sócio-econômicas. Para entendermos os fatores emocionalmente legitimadores das condições da mulher agredida, faz-se necessário recorrermos a um texto de Freud de 1924, intitulado A dissolução do Complexo de Édipo. É o Complexo de Édipo que determina a qualidade da personalidade de todos os indivíduos. Quando o sujeito renúncia ao objeto amoroso em nome de um de seus progenitores ele tende a se adaptar bem à realidade. Quando ele rejeita, tende a desenvolver atitudes psicopatológicas. O Complexo de Édipo é marcado por sentimentos de amor e ódio da criança em relação a seus pais. No começo, a menina ama sua mãe. Com o tempo percebe que falta nela algo que os meninos possuem, ou seja, o pênis. Em função disso, o que era amor pela mãe vira ódio por ela lhe ter feito incompleta. Desapontada, a menina se apaixona pelo pai na expectativa que ele faça dela uma pessoa menos faltosa. O pai vira-se contra ela, acusando-a de querer tomar o lugar que pertence à sua mãe. A menina envolta neste impasse tende, aos poucos, aceitar sua condição de mulher marcada pela ausência de uma parte.

É importante pontuar que ausência do pênis, neste caso, funciona apenas como uma metáfora. Ele pode significar uma brusca sensação de não estar sendo amada e de impotência diante da vida e do mundo, dentre outros, fatos que dizem respeito a todos os seres humanos. Conforme vimos, o final do Complexo de Édipo coloca a vida da mulher numa condição desesperadora. Como ela vai fazer para se sentir mais inteira? Freud aponta três caminhos: procurará compensar sua debilidade ficando casta, achando que se basta e não precisa de sexo, ou o contrário disso, ficando viril e entendendo que é capaz de seduzir e ter todos os homens que desejar ou, provando seu valor na maternidade. Ou seja, em todas estas possibilidades, há uma renúncia ao pai e uma aceitação da ausência acompanhada de tentativas de supressão da falta. Como uma mulher que sofre de violência faz para sobreviver com sua falta sem enlouquecer ou colocar a própria vida em risco? Nela, todas as possibilidades mencionadas acima falharam. O único meio possível capaz de lhe dar alguma certeza de valia, é o masoquismo. Desse modo, a violência surge como um mecanismo de afirmação da completude. É pela via da agressão que ela se sente igual às outras mulheres que seduzem por vias culturalmente aceitas. Não tão incapaz, a mulher espancada, goza da tortura para se fazer existir, não conseguindo fazer de outro modo. É quase como se ela dissesse que triunfou sobre a mãe e agora domina o genitor paterno. Freud (1924), no texto sobre O problema econômico do masoquismo, afirma que o masoquismo que surge na clínica é denominado masoquismo moral e, assim como o masoquismo erógeno, caracteriza-se pelo prazer no sofrimento. No masoquismo moral, o próprio sofrimento é o que importa; sendo ele decretado por alguém que é amado ou por alguém que é indiferente. Pode mesmo ser causado por poderes impessoais ou pelas circunstâncias. O verdadeiro masoquista sempre oferece a face onde quer que tenha oportunidade de receber um golpe. De acordo com Freud (1919), a fantasia de espancamento tem sua origem na sensação de ser violentada, sendo amada. A forma que o masoquista encontra para não enlouquecer diante da falta e se sentir como pertencente ao mundo dos iguais é sendo maltratado, submetido incondicionalmente ao seu algoz, sendo pisado, sujado e

machucado. É neste sentido que Freud (1924), afirma que o masoquista pode ser comparado a uma criança travessa, uma vez que para se sentir bem provoca para si reações violentas no outro. Se observarmos atentamente, veremos que boa parte das mulheres vítimas de violência possuem histórias amorosas marcadas por situações de agressões de todo tipo. É comum ouvirmos histórias de mulheres que retiram a queixa depois de certo tempo, outras que não medem esforços para pagar a fiança, outras que simulam a agressão ou a amenizam quando ocorrem. Seriam estas mulheres histéricas, perversas ou psicóticas? Se recorrermos à literatura diríamos que são estruturalmente histéricas. Todo histérico é faltoso e por isso busca suprir seus desejos. Porém, em alguns, esta falta é vivenciada de modo radicalmente nebuloso, o que explica a recorrência a mecanismos estranhos de preenchimento. Diante da falta, se vêm sobremaneira incapazes, infelizes e insatisfeitos. As mulheres que sofrem violência perpetuam a agressão para não correrem o risco de enlouquecerem ou suicidarem diante de um encontro cru com a falta. Na opinião de Nasio (1993), os histéricos sofrem de uma fragilidade psíquica crônica e se sentem desprovidos de encontrar meios que lhes possibilitem relações menos assimétricas. O histérico, obstruído emocionalmente, escolhe seu senhor, supostamente completo, e serve-o incondicionalmente. É comum também vitimarmos estas mulheres, quando, na realidade ocorre exatamente o oposto. Se observarmos atentamente, veremos que parecem passivas, quando, ao contrário, conseguem manipular seus parceiros para fazerem-se bater. Os amos/senhores da cena masoquista são elas mesmas. Com o desejo de sofrer conseguem fazer seus supostos algozes trabalharem, dando ordens, controlando-os e manipulando-os. Muitas dessas mulheres buscam profissionais e, quando a relação é comercial, são elas que promovem tudo. Com isso a psicanálise evidencia o caráter fundamental do masoquista: mover os parceiros em benefício do próprio gozo. É só quando a servidão vira uma questão, que as mulheres resolvem procurar ajuda psicanalítica. É neste ponto que consiste o trabalho da clínica: oferecer um espaço para que possam compreender o sentido masoquista de suas relações para, a partir daí, produzirem atitudes consistentes e ressignificadas.

O trabalho da psicanálise consiste em substituir o ato pela palavra. Verbalizar a posição masoquista propicia certo distanciamento reflexivo de si e novos posicionamentos diante do problema universal da impotência de existir. No texto O recalque (1915), Freud explica que o masoquista supre uma dor que, sem ela, a vida estaria em risco. Ele a denomina formação substitutiva, que nas mulheres vítimas de violência doméstica possui uma dupla função: de proteção contra a loucura e a morte, e de punição pela culpa diante da impotência da vida. É por isso que Quinet (2005), vai afirmar que a dor oferece lucro ao neurótico que a ama e tem dificuldades de abandoná-la. Isso acontece com as mulheres vítimas de violência quando têm dificuldades em abandonar seus parceiros, pois, mesmo sofrendo física e moralmente, obtêm lucros secundários nesse tipo de relacionamento e têm dificuldades em abandonar a relação. Eis a dor que é prazerosa. E o prazer, nesse caso, é permanecer nesse tipo de relacionamento. Na psiquiatria estas mulheres, em geral, são diagnosticadas como loucas e tratadas com antidepressivos e ansiolíticos. Na psicanálise são ouvidas, o que aguça a percepção do sentido do masoquismo em suas vidas. Sendo assim, a dor ao ser compreendida como lucro de menos valia, provoca certo estranhamento e desencadeia mudanças na condução das relações. Estruturar o inconsciente como linguagem, possibilita ressignificar a vida a partir de critérios de qualidade e responsabilidade, garantidores de certo patamar de equilíbrio psicológico. Sabemos que a finalidade de uma análise é libertar o sujeito de toda forma psicopatológica de supressão da falta, deslocá-lo, mesmo que seja parcialmente, dos objetos equivocados que o escravizam e do quais ele não consegue se desprender. É tarefa essencial do analista refletir sobre o fenômeno do masoquismo, que no âmbito da psicanálise está circunscrito ao conceito de modo de vida. REFERÊNCIAS AZAMBUJA, S. Masculino/feminino uma questão intrigante. In. Jornal de Psicanálise. Acessado do Google em 20/10/2010.

FORTES, I. A presença do masoquismo na clínica e na cultura contemporânea. Acessado do Google em 15/05/2011. FREUD, S. A dissolução do complexo de Édipo. (1924). In. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas (ESB). Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1976, vol XVII.. O problema econômico do masoquismo (1924). In. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas (ESB). Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1976, vol XIX.. O recalque (1915). In. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas (ESB). Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1976, vol XVI.. Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo da origem das perversões (1919). In. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas (ESB). Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1976, vol XVII.. Três ensaios sobre a sexualidade infantil (1905). In. Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas (ESB). Rio de Janeiro: Imago Editora Ltda., 1976, vol IX. Jornal de Debates. Acessado do Google em 18/08/2011. LA BOÉTIE. De La servitude volontaire (1562). Paris, PUF, 1985. NASIO, J. D. A histeria: teoria e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1991.. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1996. QUINET, A. AS 4 + 1 condições de análise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2005.