COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO STF

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Transcrição:

UnB NILDA TATIANE MOREIRA COSTA COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO STF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 ADI 4277 BRASÍLIA 22/04/2014

UnB NILDA TATIANE MOREIRA COSTA COMENTÁRIO AO ACÓRDÃO DO STF Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 ADI 4277 BRASÍLIA 22/04/2014

EMENTA 1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições da ação. 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO- POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de promover o bem de todos. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana norma geral negativa, segundo a qual o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da dignidade da pessoa humana : direito a autoestima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos

planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea. 3. TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO FAMÍLIA NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO- REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizarse da expressão família, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria Constituição designa por intimidade e vida privada (inciso X do art. 5º). Isonomia entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo. Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito quanto à orientação sexual das pessoas.4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER

RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE ENTIDADE FAMILIAR E FAMÍLIA. A referência constitucional à dualidade básica homem/mulher, no 3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros. Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia entidade familiar, não pretendeu diferenciá-la da família. Inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. Emprego do fraseado entidade familiar como sinônimo perfeito de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos homoafetivos. Aplicabilidade do 2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição, emergem do regime e dos princípios por ela adotados, verbis: Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo, reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma

de entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição. 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA INTERPRETAÇÃO CONFORME ). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de interpretação conforme à Constituição. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. ANÁLISE Na Arguição de Preceito Fundamental nº132 conexa com a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277 julgou-se a ofensa ao princípio constitucional da igualdade manifestada no plano fático pela falta de menção a união entre pessoas do mesmo sexo na redação do artigo 226 da Constituição Federal de 1988. Durante todo o processo, não apenas na decisão do colegiado de ministros, é possível observar vários princípios que são inerentes ao direito processual, uma vez que são preceitos básicos do ordenamento jurídico, bem como o devido processo legal, a ampla defesa, o contraditório, juiz natural, razoável duração do processo e publicidade. Verifica-se o princípio do devido processo legal, base legal para aplicação de todos os demais princípios, uma vez que é observado no caso concreto o cumprimento de todas as exigências e pressupostos relativos ao direito processual, buscando manter-se dentro da legalidade. Além disso, a própria natureza do processo é de busca e proteção da legalidade, uma vez que trata-

se de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ou seja, busca-se reparar uma lesão a um preceito fundamental da Constituição, buscase garantir uma liberdade, garantir um direito fundamental, a igualdade. A observância desse princípio processual no plano concreto é importante para a própria manutenção, legitimação e eficácia do Estado Democrático de Direito, pois este nem mesmo existe a margem da legalidade. Derivados do próprio devido processo legal estão os princípios do juiz natural e da ampla defesa e do contraditório, os quais também são observados no processo analisado. O princípio do juiz natural é observado à medida que o processo é julgado por órgão competente e para esse fim designado, tendo em vista que se trata de uma Arguição de Preceito Fundamental, por se tratar de matéria constitucional, é julgado pelo Supremo Tribunal Federal, como deve ser. Assim como na maioria dos processos, em que o devido processo legal é observado, nota-se a presença da ampla defesa e do contraditório. Tratando-se de uma decisão de um colegiado de ministros, acredito eu que não se possa falar do livre convencimento de um juiz, mas do livre convencimento. Sendo uma decisão conjunta, os ministros deliberam e posicionam-se fundamentando suas motivações para que no momento de discussão, do debate que antecede a decisão colegiada, possa haver ampla defesa de suas perspectivas e abrir espaço para o contraditório, inerente ao livre discurso; de modo a chegar a uma decisão, pretendida a melhor possível. Nesse caso, verifica-se a fundamentação da decisão no voto de cada ministro, tendo sido inclusive parcialmente contra o pedido de equiparação da união estável homoafetiva à heteroafetiva os ministros Marco Aurélio, Cármem Lúcia e Ricardo Lewandowski, o que ilustra nesse processo a presença da ampla defesa e do contraditório, uma vez que os demais ministros posicionaram-se favoravelmente a essa equiparação. É possível notar também uma preocupação com a celeridade processual, uma vez que tanto é urgente uma resolução quanto à matéria dessa Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, pois enquanto não há decisão a respeito dessa lesão ao princípio da igualdade, pessoas são privadas de direitos que deveriam possuir; quanto verifica-se artifícios utilizados para garantir uma razoável duração do processo, bem como a conexão da Ação de

Direta de Inconstitucionalidade 4277 com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132, em razão da convergência de objetos entre essas ações, para julgamento conjunto. O princípio da publicidade também pode ser observado nesse processo, até mesmo de forma mais intensa que em processos de mesmo teor jurídico, dada a sua repercussão na sociedade e também a sua espera pela minoria que antes era privada de seu direito à igualdade, de forma que além da disponibilidade dos atos processuais em veículos de fácil acesso, bem como a internet, por meio dos órgãos competentes do judiciário, a sua divulgação, não tanto do trâmite, mas principalmente da decisão, foi intensa nos diversos meios de comunicação, tornando a ação pública não apenas aos interessados, mas a toda a sociedade. Não obstante, o princípio que teve maior destaque nesse acórdão e durante todo o processo foi o princípio da igualdade. O princípio mencionado, expresso no artigo 5º da Constituição Federal de 1988, assegura a igualdade perante a lei, sendo essa a pressuposição necessária à igualdade perante o juiz, igualdade processual. No caso concreto analisado, verifica-se um estado de inconstitucionalidade no plano fático. Tendo em vista que no artigo 226 da Constituição Federal, que versa sobre a família e o casamento não faz menção sobre a união entre pessoas do mesmo sexo, o que pode ser visto como uma lacuna técnica no ordenamento, a qual pode ter sido pretendida pelo legislador vislumbrando um momento de mudança social e de nova demanda como esse. Ao Supremo Tribunal Federal cabe deliberar e decidir sobre temas abstratos ou que ficam em aberto no texto constitucional. Nesse caso, diante da nova realidade social, coube ao Supremo reinterpretar e conferir novo sentido ao termo família, tendo esse passado a abranger não apenas aquela configurada pela união, seja ela pelo casamento ou união estável, entre homem e mulher e a monoparental, mas também aquela formada por casais de pessoas do mesmo sexo. E diante desse revisto conceito de entidade familiar conceder a casais homossexuais o reconhecimento de união estável. A situação de inconstitucionalidade que se dava anteriormente ao acórdão consistia no desrespeito ao princípio da igualdade. Visto que, nas letras do artigo 5º da Constituição todos são iguais perante a lei, sem distinção de

qualquer natureza, não obstante no artigo 226 também da Constituição onde se versa sobre a proteção da família (a qual previamente a interpretação do Supremo não incluía casais homoafetivos), base da sociedade, não há menção a uniões entre casais do mesmo sexo, excluindo e privando de diversos direitos uma parcela significativa da sociedade. O princípio da igualdade não era observado na realidade fática, tendo em vista que certos indivíduos podiam ter suas uniões e suas famílias reconhecidas pelo direito e outros não. Anteriormente ao acórdão analisado, porém, já estava se tornando comum casais de pessoas do mesmo sexo buscarem a tutela jurisdicional para requerer esse direito de reconhecimento de sua união e de sua família e os direitos desse advindos, o que contribuía ainda mais para essa situação de inconstitucionalidade e desrespeito ao preceito fundamental da igualdade e explicitava também a falta desse princípio desse no campo processual de forma estrutural, visto que à medida que esse direito era concedido a uns e negado a outros, de forma alguma era possível enxergar a igualdade perante o juiz que caracteriza esse princípio. E esse é o foco desse acórdão. A retomada plena do preceito que diz que todos os cidadãos são iguais perante a lei. Através da reinterpretação do termo entidade familiar e sua decorrente ampliação semântica do artigo 226 da Constituição, ampliação fundamentada doutrinariamente pela teoria kelseniana, visto que essa nega a existência de lacunas no ordenamento jurídico, de forma que não tendo sido juridicamente proibido, está juridicamente permitido esse reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo. A interpretação extensiva do termo abstrato família de forma a promover uma mudança de perspectiva jurídica, motivada por razões de justiça e equidade pode ser vista também sob uma inspiração dworkiniana. Esse acórdão é de grande importância para a sociedade civil e a mudança por ele promovida acompanha a mudança de pespectiva sócio-cultural por que passa a sociedade atualmente. Não obstante, a mudança não está completa ainda juridicamente, nem o principio da igualdade foi plenamente retomado ainda, visto que ainda é necessário a casais do mesmo sexo com uniões estáveis reconhecidas requisitar a tutela jurisdicional para a conversão de sua

união estável em casamento civil, sendo que essa conversão deve ser facilitada, como versa o artigo 226.