OS EFEITOS DA COISA JULGADA NAS AÇÕES COLETIVAS



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Transcrição:

OS EFEITOS DA COISA JULGADA NAS AÇÕES COLETIVAS Camila Dozza Zandonai RESUMO: A importância conferida à tutela coletiva na contemporaneidade, em razão do aumento da massificação da sociedade, exige, por conseqüência, uma mudança na concepção estritamente individualista do direito. O ordenamento jurídico brasileiro, diante dessa nova realidade, vem se preocupando, cada vez mais, em aperfeiçoar os instrumentos de proteção dos direitos coletivos, chegando-se a falar sobre a existência de um microssistema processual coletivo. Nesse contexto de processo coletivo, o presente trabalho buscará compreender a formação da coisa julgada nas ações coletivas, estabelecendo uma diferenciação em relação ao processo individual e identificando suas particularidades. Para a pesquisa serão estudados alguns princípios e institutos necessários para entender o alcance da coisa julgada no cenário jurídico e analisadas doutrinas, jurisprudências e legislações pertinentes. A partir da reunião de um amplo material doutrinário e jurisprudencial, verifica-se que a coisa julgada atribui autoridade e eficácia à decisão judicial final visando evitar a incerteza, buscar estabilidade e segurança às relações sociais. E no que diz respeito à coisa julgada nas ações coletivas, muito importante é identificar seus limites e a natureza dos bens jurídicos protegidos, pois são aspectos que influenciarão no regime jurídico adotado pelo ordenamento jurídico pátrio. Palavras-chave: coisa julgada ações coletivas regime jurídico INTRODUÇÃO O presente artigo científico tem como principal objetivo analisar a relevância da coisa julgada nas ações coletivas, demonstrando aspectos gerais e particularidades capazes de torná-la um dos maiores diferenciadores do processo coletivo em relação ao individual. Serão utilizadas doutrinas tradicionais e autores modernos que buscam, através de lições clássicas e jurisprudência recente, escrever uma doutrina aprofundada sobre diversos temas. Importante ressaltar a importância de ser realizado um breve estudo sobre a jurisdição no âmbito da tutela coletiva, bem como de serem analisados alguns princípios do Processo Civil, tais como o devido processo legal, acesso à justiça e segurança jurídica, uma vez importarem no correto desenvolvimento processual e na estabilidade das relações jurídicas. Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial à obtenção do grau Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e aprovado, em grau máximo, pela banca examinadora composta pelo Orientador Luis Gustavo Andrade Madeira, Professora Letícia Correa e Professor Alvaro Paranhos Severo, em 16 de junho de 2009. Bacharel em Ciências Jurídicas e Socias pela PUCRS. E-mail: camiladozza@hotmail.com.

A coisa julgada, como meio de garantir a estabilidade das decisões judiciais que põem fim à relação processual, será relacionada ao processo coletivo, estabelecendo-se a sua forma de produção, bem como seus limites objetivos e subjetivos. Ainda serão traçadas algumas características acerca do regime da coisa julgada nas class actions norte-americanas, ações essas que influenciaram muito a tutela coletiva no Brasil, observada a forma pela qual o instituto é apresentado nos atuais Projetos de Código de Processo Coletivo e qual o seu alcance sobre cada espécie de direito coletivo: direitos difusos, direitos coletivos stricto sensu e direitos individuais homogêneos. 1. A FUNÇÃO JURISDICIONAL NO ÂMBITO DA TUTELA COLETIVA A jurisdição, historicamente, foi concebida no pressuposto da ocorrência de litígio, isto é, de conflito entre interessados que disputam o mesmo bem da vida. Sem tal disputa, necessariamente individual, a atividade jurisdicional não era admitida. Entretanto, modernamente, a jurisdição assume dimensões muito mais amplas, e a sua tarefa de manter a paz social passa a compreender, também, os fenômenos coletivos, em que os interesses transcendem a esfera do indivíduo e, de maneira difusa, alcançam toda a comunidade ou grandes porções dela. 1 Bens coletivos como o meio ambiente, patrimônios histórico e cultural, e as relações consumeristas tornaram-se objeto de tutela jurisdicional, surgindo um sistema de direito processual coletivo, cujo início ocorreu com a edição da lei da ação popular (lei 4.717/1965) seguida da lei da ação civil pública (lei 7.347/1985), Constituição Federal de 1988, que instituiu o mandado de segurança coletivo, do estatuto da criança e do adolescente (lei 8.069/1990), do Código de Defesa do Consumidor (lei 8.078/1990) e da lei que regula a ação de improbidade administrativa (lei 8.429/1992). As ações coletivas visam à tutela da coletividade, categorias ou grupos de pessoas acima da proteção individual de cada um de seus componentes. O desenvolvimento dessa legislação, de acordo com Cândido Dinamarco, é um reflexo brasileiro de uma das ondas renovatórias 2 que na segunda metade do século XX atingiram o 1 THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do Direito Processual Civil e Processo de Conhecimento. 47ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 45. 2 A expressão ondas renovatórias foi criada pelo processualista italiano Mauro Cappelletti ao explicar o movimento para o acesso à justiça ocorrido na criação do Estado Social. O autor refere que o acesso à justiça evoluiu em ondas: a primeira procurou superar os obstáculos apresentados pela pobreza; a segunda tratou de fazer acessível à

Processo Civil de origem romano-germânica, tradicionalmente apegado a certas premissas individualistas, como a da legitimidade individual para demandar em juízo e da rigorosa limitação subjetiva da coisa julgada, que jamais poderia aproveitar nem prejudicar quem não houvesse sido parte no processo 3. Com base no modelo americano das class action, o legislador brasileiro percebeu que para alcançar uma tutela jurisdicional completa seria necessário criar institutos jurídicos novos e instrumentos processuais próprios de realização dos direitos coletivos advindos da sociedade moderna. Os direitos relacionados ao meio ambiente, patrimônios histórico e cultural, saúde pública, segurança coletiva, relações de consumo e ordem urbanística, embora digam respeito a todos os indivíduos, não são suscetíveis de divisão para defesa individual. Por essas características de transindividualidade e indivisibilidade, são chamados direitos difusos ou, conforme a situação, coletivos stricto sensu. Existem, ainda, aqueles direitos que podem ser individualizados e os seus titulares determinados, mas em razão de muitas pessoas encontraremse na mesma situação fática-jurídica, torna-se mais rápido e efetivo serem defendidos em juízo por órgãos ou entidades. Esses últimos são chamados direitos individuais homogêneos. Cabe neste momento referir que processo coletivo, segundo Fredie Didier JR. 4, é aquele instaurado por ou em face de um legitimado autônomo, em que se postula um direito coletivo lato sensu ou se postula um direito em face de um titular de um direito coletivo lato sensu, com o fito de obter um provimento jurisdicional que atingirá uma coletividade, um grupo ou um determinado número de pessoas. Hoje, a atividade jurisdicional focada na tutela de direitos transindividuais mostra-se firme e dedicada no Brasil. Tanto os doutrinadores quanto os operadores do direito tratam o assunto com a importância devida, de modo que muitos são os resultados práticos que vêm sendo obtidos. Instituições encarregadas de defender os interesses da sociedade, como o Ministério Público, não podem deixar de ter seu trabalho mencionado, pois através delas a tutela coletiva deixou de estar apenas prevista em leis ou discutida na doutrina para efetivar-se na realidade social. Também é necessário dizer, apesar de ser analisado mais detalhadamente no capítulo quatro, que as leis disciplinadoras das ações coletivas delinearam a essência do sistema de tutela jurisdicional aqueles direitos e interesses difusos, garantindo o acesso aos seus representantes; e a terceira diz respeito à necessidade de adaptar o Processo Civil ao tipo de litígio. 3 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 174. 4 DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. V.4. Salvador: Editora JusPodivm, 2007, p. 44.

processo coletivo e, em razão disso, já existem Modelos de Código de Processo Coletivo que dispõem acerca de regras processuais específicas. 2. PRINCÍPIOS DO PROCESSO CIVIL 2.1 Princípio da inevitabilidade da jurisdição A jurisdição se impõe por poder próprio, independentemente da vontade das partes. Este princípio existe como conseqüência da prevalência da natureza publicística do processo 5. As partes estão em situação de sujeição inevitável frente ao poder jurisdicional do Estado. O princípio da inevitabilidade significa que a autoridade dos órgãos jurisdicionais, sendo uma emanação do próprio poder estatal soberano, impõe-se por si mesma, independentemente da vontade das partes ou de eventual pacto para aceitarem os resultados do processo; é impossível evitar que sobre a esfera de direitos das partes seja exercida a autoridade estatal 6. Nas palavras de Cândido Dinamarco 7, a inevitabilidade da jurisdição manifesta-se pela dispensa de qualquer ato de anuência do demandado para figurar no processo: a citação basta para fazê-lo parte neste e, com isso, pô-lo em estado de sujeição o mesmo estado em que, mercê da propositura da demanda, também o demandante se coloca. Os resultados do processo e os efeitos do exercício da jurisdição serão impostos, através do poder de império do Estado, para ambos os litigantes. Contudo, o doutrinador citado coloca em sua obra Instituições de Direito Processual Civil duas exceções à inevitabilidade da jurisdição. A primeira diz respeito ao terceiro que, citado na nomeação à autoria (espécie de intervenção de terceiros) feita pelo réu, só prosseguirá na causa se assim preferir; e a segunda trata das imunidades à jurisdição, em que determinadas pessoas consideradas imunes por questões diplomáticas não serão suscetíveis de serem demandadas na Justiça brasileira contra a sua vontade. 5 PORTANOVA, Rui. Princípios do Processo Civil. 6ª ed. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2005, p. 95. 6 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 153. 7 DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. 5ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2005, p. 332.

Além disso, cumpre ressaltar que a inevitabilidade da jurisdição não obriga ao demandante o seu ingresso ao Judiciário, pois, como já visto anteriormente, a atividade jurisdicional só é realizada mediante provocação (princípio da inércia da jurisdição). 2.2 Princípio do acesso à justiça A expressão acesso à justiça não diz respeito apenas ao acesso à justiça na figura da instituição Poder Judiciário, mas ao que a doutrina denominou acesso à ordem jurídica justa. A mera admissão ao processo, ou a possibilidade de ingresso em juízo, não identifica o acesso à justiça, pois é indispensável que o maior número possível de pessoas seja admitido a demandar e a defender-se adequadamente, sendo também condenáveis as restrições quanto a determinadas causas (pequeno valor, interesses difusos) 8. O acesso à justiça significa o ingresso a um sistema de garantias capaz de atender as pretensões do autor sem lesionar a esfera jurídica do demandado. Mesmo quando a pretensão de direito material não existir, ainda assim existe o direito de ação (direito público subjetivo que o particular tem contra o Estado). Além disso, para a plenitude do acesso à justiça importa remover os males existentes à universalização da tutela jurisdicional e aperfeiçoar internamente o sistema, a fim de ser mais rápido e mais capaz de oferecer soluções justas e efetivas. 9 Portanto, a correta aplicação do princípio em análise ocorre com a concretização de dois outros princípios estudados logo a seguir: devido processo legal e efetividade. 2.3 Princípio do devido processo legal Está expresso no artigo 5º, inciso LIV da Constituição Federal: ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal 10, mas tem seu desdobramento em outros incisos do mesmo artigo em comento, os quais tratam do direito de petição aos poderes públicos, da não-exclusão da apreciação do Poder Judiciário de lesão ou ameaça a direito, do juiz natural, da igualdade de tratamento das partes, do contraditório, da ampla defesa e, recentemente 8 CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 22ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 39. 9 Ibid, p. 133. 10 BRASIL. Constituição (1988). 8ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2007.

acrescentado pela Emenda Constitucional n.º 45/2004, da razoável duração do processo e celeridade de sua tramitação. Também outras garantias previstas na Constituição levam ao cumprimento do devido processo legal: a obrigatoriedade das decisões judiciais serem fundamentadas, a assistência judiciária gratuita, publicidade, entre outras. O devido processo legal não é somente uma garantia às partes envolvidas no litígio. A partir de uma perspectiva não tão individual e, considerando o escopo social da jurisdição, notase que a obediência a um processo ordenado e cercado de garantias resulta em mais justiça nas decisões e confiança no Poder Judiciário como órgão protetor dos interesses dos cidadãos. 2.4 Princípio da efetividade Assegurado o acesso à jurisdição, em caso de lesão ou ameaça de lesão a direito, constituiria evidente incongruência não ser exercitado o direito de invocar e obter tutela jurisdicional adequada e efetiva. Para o professor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, a efetividade constitui-se de várias formas. A primeira delas diz respeito ao direito da parte de obter do juiz uma decisão de mérito, de modo a satisfazer a necessidade de tutela 11. Em segundo lugar, a efetividade deve ser alcançada com a preservação de outros direitos fundamentais, a exemplo do direito ao processo justo. Também é necessário que sejam elásticas e diferenciadas as formas de tutela, abarcando todas as formas de direito material e as crises por ele sofridas (direito individual ou coletivo, condenação, constituição, declaração, mandamento e execução). Por fim, é indispensável que a tutela possa se refletir efetivamente no mundo social, realizando o direito faticamente, quando necessário. A tutela jurisdicional coletiva possui sua principiologia própria, na qual encontra-se o princípio da máxima efetividade ou acesso eficaz à justiça 12. Está expressamente previsto no art. 11 Tutela significa o resultado jurídico-substancial do processo, representando o impacto do processo no plano de direito material. (MARINONI, Luiz Guilherme (coord). Estudos de Direito Processual Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 60). 12 Esta é a expressão adotada por Fredie Didier JR. ao referir-se sobre o princípio da efetividade como subprincípio do acesso à justiça. E segue explicando a fórmula clássica de Chiovenda: o acesso à justiça só pode ser satisfatório quando for entregue ao autor tudo aquilo e exatamente aquilo a que tenha direito. (DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. V.4. Salvador: Editora JusPodivm, 2007, p. 113).

83 do Código de Defesa do Consumidor 13, o qual dispõe: para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este Código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela. O Poder Judiciário deve, através do sistema integrado de processo coletivo (interação existente entre a lei da ação civil pública e o Código de Defesa do Consumidor), se valer de todos os instrumentos necessários e eficazes para alcançar a verdade real e propiciar a tutela adequada e efetiva dos direitos transindividuais. 3. CONCEITO E FINALIDADE DA COISA JULGADA O Código de Processo Civil contém, em seu artigo 467, a definição de coisa julgada como sendo a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário. Vencido o termo legal, ou depois de decididos todos os recursos interpostos, sem possibilidade de novas impugnações, a sentença torna-se definitiva e imutável. Nesse momento, ocorre o trânsito em julgado da decisão. Assim, diz-se que uma decisão transita em julgado e produz coisa julgada quando não pode mais ser modificada pelos meios recursais de impugnação, o que ocorre através da técnica da preclusão 14. No caso de sentenças terminativas, a imutabilidade fica adstrita ao próprio processo, caracterizando a coisa julgada formal, ao passo que quando a sentença for definitiva, essa imutabilidade se projetará para fora do processo e impedirá o rejulgamento da causa, denominando-se coisa julgada material. A finalidade presente na coisa julgada é a mesma objetivada pelo Estado: estabilidade e segurança social. A imutabilidade da norma jurídica concreta é fator de equilíbrio social, na medida em que os litigantes obtêm a última e decisiva palavra do Judiciário acerca do conflito posto em causa. Mas a coisa julgada ainda possui outras finalidades, embora todas ligadas ao objetivo principal de promover segurança jurídica. Uma primeira delas reside na busca da harmonia dos julgados. A indiscutibilidade do conteúdo da decisão judicial, em razão da coisa julgada, impede que sejam proferidas decisões contraditórias sobre o mesmo pedido. Esse fato gera segurança, na medida em que promove a certeza jurídica, pois as decisões contraditórias colocam em descrédito a atividade jurisdicional, trazendo insegurança aos jurisdicionados. E por 13 BRASIL, Lei 8.078/1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. 5ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006. 14 FUX, Luiz. Curso de direito processual civil. 3ª ed. V. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 821.

fim, tornado o conteúdo da decisão judicial indiscutível, a coisa julgada enseja a economia de processos, pois impede que a mesma pretensão seja veiculada em processos posteriores 15. 3.1 Limites objetivos e subjetivos da coisa julgada A questão dos limites objetivos da coisa julgada relaciona-se com as partes da sentença que ficarão acobertadas pela coisa julgada material. A matéria está disciplinada nos artigos 468, 469, 470 e 471 do Código de Processo Civil. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas. Nesse sentido, observa-se que os limites objetivos da coisa julgada correspondem ao objeto da demanda e ao objeto da sentença. O que individualiza a lide é o pedido e a causa de pedir. Assim, é o objeto do processo, formado pelo pedido e sua causa de pedir, que estabelece os limites objetivos da coisa julgada material. O Código de Processo Civil, em seu artigo 469, exclui do âmbito da imutabilidade os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva; a verdade dos fatos e a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentalmente no processo. Apenas o comando concreto pronunciado pelo juiz torna-se imutável por força da coisa julgada. No que tange aos limites subjetivos da coisa julgada, refere-se a quem é atingido pela imutabilidade do comando sentencial. O artigo 472 do Código de Processo Civil diz que a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando nem prejudicando terceiros. Essa regra que estabelece a coisa julgada inter partes faz parte de uma tradição romano-germânica herdada pelo nosso sistema. Mas não há mais, sob o aspecto dos limites subjetivos, uma única concepção do instituto da coisa julgada, mas tantas quantas reclamar a natureza do direito posto em causa. Assim, a coisa julgada está diretamente relacionada ao direito afirmado, na medida em que, se este for individual heterogêneo, aquela se limitará às partes; se este for individual homogêneo nas relações de consumo, erga omnes, nos casos de procedência (secundum eventum litis); se o direito for coletivo propriamente dito nas relações de consumo, ultra partes, se for difuso, nas demandas públicas, populares e de consumo, erga omnes 16. 15 MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro.Coisa Julgada. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 117. 16 PORTO, Sérgio Gilberto. Coisa Julgada Civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora AIDE, 1998, p. 72.

4. O REGRAMENTO DA COISA JULGADA NA TUTELA COLETIVA Como dito em tópicos anteriores, a evolução da sociedade, com o aparecimento de novos interesses e questões complexas, influenciou fortemente a ciência do direito, em especial o direito processual civil, que teve seus institutos adaptados a essa nova realidade social e jurídica. Aos poucos, instrumentos legais isolados passaram a formar um sistema, tendo em vista suas mesmas características e objetivos. Houve o surgimento de um direito processual coletivo, com princípios, regras e institutos próprios, podendo-se destacar, entre esses últimos, os institutos da legitimidade, competência, litispendência, liquidação e execução de sentença e coisa julgada. A proteção aos direitos coletivos lato sensu, constitucionalmente afirmados desde 1988, integra a função jurisdicional do Estado, de forma a aproximar o poder público da sociedade como um todo titular de direitos reivindicáveis. Mas é a formação e os efeitos da coisa julgada nesse microssistema processual coletivo que interessa analisar nesse trabalho. Trata-se de instituto que, diversamente do que ocorre no processo individual, quando relacionado ao processo coletivo assume diversos atributos especiais, como a extensão de sua eficácia e seu modo de produção, os quais variam conforme a espécie de direito coletivo posto em causa. O regramento diferenciado da coisa julgada nas ações coletivas rompe com a idéia individualista presente do Código de Processo Civil, na medida em que seus efeitos atingem pessoas que não participaram diretamente do processo, mas que são as principais interessadas pela decisão judicial. Os artigos 103 e 104 do Código de Defesa do Consumidor estabelecem regras específicas sobre a coisa julgada, indicando o caput do artigo 103 que as regras ali disciplinadas referem-se às ações coletivas previstas para defesa do consumidor em juízo. Porém, como explica o autor Pedro Lenza, o artigo 117 daquele mesmo Código acrescentou o artigo 21 à lei 7.347/1985, estabelecendo aplicar-se o Título III do Código de Defesa do Consumidor, que dispõe sobre a defesa do consumidor em juízo, à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos de que trata a lei da ação civil pública. E o artigo 90 do CDC permite a aplicação, no que couber, das normas previstas no Código de Processo Civil e na lei da ação civil pública às ações coletivas do Código de Defesa do Consumidor. Portanto, as regras a respeito da coisa julgada e seus limites previstas no Código de Defesa do Consumidor, na lei da ação civil pública e nas demais leis que formam esse microssistema processual coletivo servem para todas

as ações coletivas que busquem a proteção de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos 17. O Código de Defesa do Consumidor, com aplicação, cumpre ressaltar, em qualquer ação civil pública ou coletiva que trate de direito metaindividual, disciplinou de forma coerente e integrada a formação e os efeitos da coisa julgada nas ações coletivas, assim expondo em seu artigo 103, caput 18 : Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este Código, a sentença fará coisa julgada: I erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação, com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova, na hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81; II ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo improcedência por insuficiência de provas, nos temos do inciso anterior, quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81; III erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo único do art. 81. O parágrafo primeiro do artigo em questão ainda menciona que no caso de ação em defesa de direitos difusos e coletivos stricto sensu, a coisa julgada não prejudicará os direitos individuais dos integrantes da coletividade, do grupo, categoria ou classe. E o parágrafo segundo do mesmo dispositivo diz que quando se tratar de direitos individuais homogêneos e houver improcedência da demanda, só não serão atingidos pela coisa julgada aqueles que não participaram do processo como litisconsortes. Outro dispositivo legal acerca da matéria é o artigo 16 da lei da ação civil pública lei 7.347/1985, cuja redação será referida mais adiante em estudo próprio, tendo em vista tratar-se de dispositivo que traz norma irrazoável e inconstitucional ao estabelecer limite territorial à coisa julgada formada no processo coletivo. 5. OS LIMITES SUBJETIVOS DA COISA JULGADA NAS AÇÕES COLETIVAS 17 LENZA, Pedro. Teoria Geral da Ação Civil Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 225. 18 BRASIL, Lei 8.078/1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. 5ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006.

Quando falamos em limites subjetivos da coisa julgada referimo-nos, na verdade, a quais as pessoas ficarão submetidas à imutabilidade do comando jurisdicional. Esse vem a ser um dos aspectos mais importantes do regime da coisa julgada nas ações coletivas, visto não haver limitação às partes da relação processual, estendendo-se àqueles substituídos que tiveram seus direitos defendidos por outra pessoa. Cumpre lembrar que o artigo 472 do Código de Processo Civil dispõe que a coisa julgada atinge apenas quem foi parte no processo, não beneficiando nem prejudicando terceiros. Trata-se de coisa julgada inter partes, pois apenas quem participou da relação processual sofrerá os efeitos da coisa julgada, a qual será formada apenas quando houver decisão de mérito. Assim, como já estudado no segundo capítulo desse trabalho, a regra geral do Código é puramente individualista, não havendo extensão da coisa julgada para terceiros, exceto nas situações em que figurem no processo substitutos e sucessores processuais, existindo, contudo, discussão na doutrina a respeito dessas hipóteses. O Código de Defesa do Consumidor consagrou a eficácia erga omnes para as decisões que contemplem a procedência ou improcedência, salvo por insuficiência de provas, das demandas envolvendo interesses ou direitos difusos e eficácia ultra partes para as demandas que versem sobre interesses ou direitos stricto sensu. Em relação aos interesses ou direitos individuais homogêneos, o Código também contemplou a coisa julgada erga omnes. No que tange à expressão erga omnes, cumpre mencionar a observação feita pelo professor Antônio Gidi acerca da distinção entre eficácia de sentença e imutabilidade dos efeitos da sentença. A sentença, como ato de império do Estado, estende a força de seu comando perante toda a sociedade, produzindo, dessa forma, sempre efeito erga omnes. Mas o Código, quando utiliza a expressão erga omnes, se refere à extensão da imutabilidade dos efeitos da decisão judicial, pois a eficácia da própria sentença atinge a todos indistintamente, seja a ação coletiva, seja a ação individual 19. Apesar de erga omnes e ultra partes serem expressões que, isoladamente consideradas, não se distinguiriam, tendo em vista que ambas transmitem a idéia de que a imutabilidade da sentença ultrapassa as partes do processo, a realidade é que o legislador tratou de forma diversa seus efeitos. Explica o autor e promotor de justiça Hugo Nigro Mazilli que, ao estipular as regras informantes de uma e outra das hipóteses (art. 103, incisos I a III do CDC), o legislador mostrou que quis efetivamente diferenciá-las: com coisa julgada erga omnes, quis alcançar a 19 GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 107.

imutabilidade da decisão em relação a todo o grupo social, e com a coisa julgada ultra partes quis alcançar mais do que as meras partes da ação coletiva, mas menos do que todo o grupo social, porque limitou a imutabilidade ao grupo, categoria ou classe de pessoas atingidas 20. Imperioso se faz expor a crítica realizada por Antônio Gidi a respeito da terminologia adotada pelo Código de Defesa do Consumidor. Diz o autor que a expressão erga omnes não significa exatamente contra todos, como poderia parecer, porque limitada à comunidade titular do direito supraindividual e, na eventualidade de procedência, aos titulares dos correspondentes direitos individuais homogêneos. Para o autor, o CDC poderia ter utilizado a expressão ultra partes nas três hipóteses previstas em seu artigo 103, pois a coisa julgada nas ações coletivas não atinge todos os seres humanos existentes no planeta, mas tão só e exclusivamente a comunidade lesada, o grupo, categoria ou classe lesados e as vítimas e seus sucessores 21. Mas não concordamos, em parte, com a crítica supramencionada realizada por Antônio Gidi, pois os direitos difusos possuem como titulares pessoas indeterminadas e indetermináveis, cuja esfera jurídica individual poderá ser modificada pela ocorrência de um dano muito abrangente. Assim, diferente do que ocorre com os direitos coletivos stricto sensu, os direitos difusos não podem, devido a sua natureza, ser restritos a um grupo, categoria ou classe, sendo acertada a terminologia coisa julgada erga omnes utilizada pelo CDC. No entanto, no que tange aos direitos individuais homogêneos, mais adequada seria, realmente, a expressão ultra partes, ao invés de erga omnes, pois a defesa desses interesses ou direitos abrange apenas os integrantes do grupo, categoria ou classe de pessoas lesadas, da mesma forma que acontece com os direitos coletivos stricto sensu. Ainda que o grupo seja indeterminável, a imutabilidade da decisão não ultrapassará as pessoas lesadas ou seus sucessores. Em sede de direitos individuais homogêneos, a norma contida no inciso III do artigo 103 do CDC garante a eficácia da coisa julgada apenas na hipótese de procedência da demanda, fugindo à regra do esquema tradicional, em que a decisão, não importa o seu conteúdo, se estende ao substituído no caso de substituição processual. Por conseguinte, a decisão desfavorável não prejudicará os substituídos em seus direitos individuais (ao menos que tenham ingressado na 20 MAZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: maio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 423. 21 GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 111.

demanda coletiva como litisconsortes, nos termos do artigo 94 do CDC), restringindo seus efeitos entre as partes do processo 22. Interessante lembrar que as normas referentes aos limites subjetivos da coisa julgada nas ações coletivas existiam antes mesmo da entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, com a regência da lei da ação popular e da lei da ação civil pública. A inovação trazida pelo CDC foi a coisa julgada ultra partes no caso de ação cujo objeto seja interesse ou direito coletivo stricto sensu. Como será falado posteriormente, quando tratado sobre os efeitos da coisa julgada sobre cada espécie de direito coletivo, o sistema processual coletivo brasileiro inseriu a coisa julgada secundum eventum probationis para a defesa de direitos difusos e coletivos stricto sensu. Assim, se o pedido for julgado improcedente com insuficiência de provas, não ocorrerá extensão da coisa julgada aos substituídos na relação processual. A ação, conforme visto linhas atrás, poderá ser reproposta, inclusive pelo mesmo autor da demanda julgada improcedente, desde que amparado em novas provas. Contudo, se o direito controvertido for individual homogêneo, o julgamento com insuficiência de provas não autorizará a repropositura da ação coletiva, tanto para seus legitimados, quanto para os titulares desses direitos que ingressaram como litisconsortes. Ainda, conforme explica o autor Roberto Carlos Batista, a doutrina, partindo de uma interpretação sistemática, constata que a extensão subjetiva do julgado em estudo se opera não apenas quando a sentença for condenatória, mas quando contemplar obrigações de fazer ou não fazer. Isso acontece pelos seguintes motivos: por natureza, a ação civil pública se destina à recomposição do bem lesado (obrigação de fazer ou não fazer) e somente na inviabilidade real dessa medida impõe-se a condenação em dinheiro. O artigo 3º da lei 7.347/1985 contempla a possibilidade de que o objeto da ação seja a condenação em dinheiro ou a obrigação de fazer ou não fazer 23. Por fim, a eficácia da coisa julgada opera-se secundum eventum litis, ou seja, os titulares dos direitos coletivos serão atingidos pela imutabilidade do julgado somente quando a ação for procedente. A coisa julgada em si é formada independentemente do resultado do processo, no entanto, os substituídos não serão atingidos por uma decisão desfavorável aos seus interesses. 22 BATISTA, Roberto Carlos. Coisa Julgada nas Ações Civis Públicas: direitos humanos e garantismo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p. 158. 23 BATISTA, Roberto Carlos. Coisa Julgada nas Ações Civis Públicas: direitos humanos e garantismo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2005, p. 162.

6. REFERÊNCIAS ÀS ALTERAÇÕES DS NORMAS PREVISTAS NO ART. 16 DA LEI 7.347/1985 E ARTIGO 2º-A DA LEI 9.494/1997 A norma consubstanciada no caput do artigo 16 da lei da ação civil pública, com sua redação alterada pela medida provisória n. 1.570, de 26 de março de 1997, posteriormente transformada na lei n. 9.494, de 10 de setembro do 1997, é causa de perplexidade em grande parte da doutrina e dos operadores do direito que o consideram, como abaixo será visto, inoperante, irrazoável e inconstitucional, na medida em que impõe um limite territorial à coisa julgada formada nas ações coletivas, rompendo com a finalidade do microssistema processual coletivo e confundindo os institutos da competência e jurisdição com a imutabilidade dos efeitos oriundos de sentenças proferidas em ações coletivas. Para a melhor compreensão das conseqüências que a atual redação do artigo 16 da lei da ação civil pública ocasiona na abrangência e autoridade das sentenças coletivas, utilizaremos o esquema formulado pelo autor Pedro Lenza para apresentar as etapas de alteração da referida norma. A redação original do artigo em comento reproduzia a regra do artigo 18 da lei da Ação Popular (lei 4.347/1985), fixando o alcance erga omnes da autoridade da coisa julgada, exceto se a ação fosse julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderia intentar outra ação com idêntico fundamento, desde que se valesse de nova prova. Mas aos poucos, especialmente com o advento do Código de Defesa do Consumidor, a jurisprudência começou a assegurar o caráter regional e nacional das decisões proferidas em ações coletivas, o que levou o Chefe do Executivo, pelo intermédio da medida provisória n. 1.570, a alterar o artigo 16 da lei 7.347/1985 que, após cinco reedições, foi convertida na lei 9.494/1997, objetivando limitar a autoridade da coisa julgada coletiva 24. O artigo 16 da lei 7.347/1985 25, visando restringir a eficácia subjetiva da coisa julgada nas ações coletivas, assim dispõe: A sentença civil fará coisa julgada erga omnes nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por deficiência de provas, 24 LENZA, Pedro. Teoria Geral da Ação Civil Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 262. 25 BRASIL, Lei 7.347/1985. Disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meioambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e dá outras providências. 5ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006.

hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo de nova prova. Como dito no decorrer desse estudo, a lei da ação civil pública e o Código de Defesa do Consumidor interagem entre si, bem como com outras normas relativas à tutela coletiva, formando um conjunto de regras aplicáveis às relações coletivas, sendo, portanto, a norma contida no artigo supracitado aplicável não apenas às sentenças pronunciadas em ação civil pública, mas àquelas referentes a todas as demais ações coletivas. Existem poucos argumentos favoráveis à mudança legislativa ora em questão. Mas entre eles, o exposto pelo Ministro do STF Marco Aurélio, em sede do julgamento da ADI n. 1.576-1, refere ser a mudança pedagógica, a revelar o surgimento de efeitos erga omnes na área de atuação do Juízo e, portanto, o respeito à competência geográfica delimitada pelas leis de regência. Ainda o autor José dos Santos Carvalho Filho não vislumbra inconstitucionalidade no dispositivo, explicando que o limite da territorialidade apenas pretende demarcar a área em que poderão ser produzidos os efeitos da sentença, tomando em consideração o território dentro do qual o juiz de primeiro grau tem competência para processamento e julgamento dos feitos 26. Mas a maioria da doutrina é contrária à nova redação do artigo 16 da lei 7.347/1985. O maior fundamento dessa insurgência diz respeito à multiplicação de demandas com o mesmo pedido em diversas partes do território nacional, o que vai de encontro com a finalidade dos processos coletivos destinados, principalmente, a resolver molecularmente os conflitos com celeridade, evitar decisões contraditórias e desafogar o poder judiciário de ações que versam sobre objeto idêntico. Ada Pellegrini Grinover, expondo o autoritarismo presente nessa alteração legislativa, expõe duas questões que levam à ineficácia do artigo 16 da lei da Ação Civil Pública. Para tanto, a autora analisa o dispositivo em conjunto com os incisos I, II e III do artigo 103 e do artigo 93 do CDC. A nova redação só poderia ser aplicada ao tratamento da coisa julgada nos processos em defesa de direitos difusos e coletivos, sem nenhuma relevância ao regime da coisa julgada nas ações em defesa de direitos individuais homogêneos, pois para essas últimas o legislador não adotou a técnica da inexistência de coisa julgada para a sentença de improcedência por insuficiência de provas, como se infere artigo 103, inciso III do CDC, que se mantém inalterado. Além disso, a competência territorial nas ações coletivas é regulada expressamente pelo artigo 93 26 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente do patrimônio cultural e dos consumidores. 9ª ed. São Paulo: Revista do Tribunais, 2004, p. 397.

do CDC, o qual elege como competente a capital do Estado ou do Distrito Federal nas causas em que o dano ou perigo de dano for de âmbito regional ou nacional. A regra de competência contida no mencionado artigo, embora inserido no capítulo atinente às ações coletivas em defesa de interesses individuais homogêneos, rege todo e qualquer processo coletivo, inclusive aqueles cujo objeto são direitos difusos ou coletivos stricto sensu 27. Através de exemplos, Pedro Lenza demonstra o conflito prático que a norma em discussão pode causar 28 : Em ação coletiva movida em face de empresa prestadora de serviços de saúde, questionando eventuais aumentos abusivos nas prestações devidas pelos associados. Imaginemos ter a empresa-ré escritórios em diversos Estados, a sentença proferida em São Pulo, por exemplo, caracterizando o sobre-reajuste não autorizado por lei e nos contratos, atingiria somente os consumidores que assinaram os contratos de adesão no Estado de São Paulo? E os consumidores que assinaram os mesmos contratos no Estado do Rio de janeiro? Não seriam eles também atingidos? Outra decisão esdrúxula decorre, por exemplo, de decisão determinando a proibição da fabricação, venda e distribuição de determinada bebida alcoólica, comprovadamente nociva à saúde (interesse difuso). Essa decisão se restringiria ao órgão prolator; ou seja, em outro Estado, por exemplo, poderia a mesma bebida, já tida por nociva, ser comercializada? Os direitos perseguidos nas ações coletivas não podem ser divididos, por isso é que, justamente, são chamados meta ou transindividuais, não havendo como determinar a abrangência do dano. Por isso, a amplitude de uma sentença coletiva, bem como da qualidade agregada a seus efeitos, qual seja a coisa julgada, não pode ser restringida ao território de seu órgão prolator. Ademais, a competência territorial serve apenas para definir qual juízo processará a causa, e não para fixar o âmbito territorial em que os efeitos da sentença serão imutáveis. A competência será definida pelo local do dano. Mas a questão não é referente à jurisdição nem à competência, essa nada mais sendo do que a medida da jurisdição, e sim aos limites subjetivos da coisa julgada, que serão definidos a partir da espécie de direito coletivo discutido. Nesse contexto, são importantes as lições de Rodolfo de Camargo Mancuso. Para o autor, no atual estágio evolutivo da jurisdição coletiva, impende compreender que o comando judicial daí derivado precisa atuar de modo uniforme e unitário por toda a extensão do interesse metaindividual objetivado na ação, porque de outro modo esse regime processual não se 27 GRINOVER, Ada Pellegrini. O Processo: Estudos e Pareceres. São Paulo: Editora Perfil, 2006, p. 243-244. 28 LENZA, Pedro. Teoria Geral da Ação Civil Pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 267-268.

justificaria. A imutabilidade não será maior ou menor em decorrência da regra de competência: será mais ampla ou mais restrita de acordo com a natureza do direito controvertido e com o grupo social cujas relações se destina regular 29. A inconstitucionalidade do artigo 16 da lei 7.347/195 aparece na transgressão aos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e, de acordo o processualista Nelson Nery Junior, no fato de o Presidente da República ter editado a medida provisória sem que houvesse autorização constitucional para tanto, ou seja, sem a existência dos requisitos de urgência e relevância exigidos pelo artigo 62 da Constituição Federal 30. A matéria deveria ter sido tratada em processo legislativo ordinário, pois estava regulada desde 1985, com a lei da Ação Civil Pública, vindo a ser aperfeiçoada com a edição do Código de Defesa do Consumidor, do que se conclui não ter ocorrido a condição de urgência própria das medidas provisórias. Além disso, é vedada a edição de medida provisória sobre direito processual civil (artigo 62, 1º, I, b da Constituição Federal). Mas o STJ tem se manifestado pela eficácia e aplicabilidade da norma 31 : PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. SUS. CONVERSÃO DE VALORES EM CRUZEIROS REAIS PELO FATOR 2.750. PORTARIA MS Nº 86/94. IMPLANTAÇÃO DO PLANO REAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. RECONHECIMENTO. PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. (...) III. A decisão proferida no âmbito da ação civil pública tem seus limites de eficácia adstritos à competência territorial do órgão prolator, conforme o artigo 16 da Lei nº 7.347/85, alterado pela Lei nº 9.494/97. Precedente: REsp nº 253.589 /SP, Rel. Min. RUY ROSADO DE AGUIAR, DJ de 18.03.2002. No Tribunal Regional Federal da Quarta Região, duas recentes decisões exprimem entendimentos contrários. Assim 32 : 29 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação civil pública: em defesa do meio ambiente do patrimônio cultural e dos consumidores. 9ª ed. São Paulo: Revista do Tribunais, 2004, p. 404. 30 NERY JUNIOR, Nelson. Código de Processo Civil Comentado: e legislação extravagante. 10ª ed. Rev. Ampl. Atual. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 2008, p. 1557. 31 Recurso Especial n. 2002/0033314-3, do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 19/09/2006. In: http://www.stj.jus.br, acessado em 03/03/2009. 32 Agravo de Instrumento. Processo n. 2008.04.00.019149-7, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, julgado em 22/10/2008. In: http://www.trf4.jus.br, acessado em 03/03/2008 e Apelação/Reexame Necessário. Processo n. 2005.72.00.003846-9, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, julgada em 03/12/2008. In: http://www.trf4.jus.br, acessado em 03/03/2008.

PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTRATAÇÃO DE SEGURADORA EM MÚTUO PELO SFH. EXCEÇÃO DE INCOMPETÊNCIA. LOCAL DA OCORRÊNCIA DO DANO. ABRANGÊNCIA DA DECISÃO. Nas ações civis públicas, a teor do que dispõe o art. 2º da Lei nº 7.347/85, a competência firma-se pelo local da ocorrência do dano, regra especial que vai ao encontro da norma constitucional. A decisão proferida no âmbito da ação civil pública tem seus limites de eficácia adstritos à competência territorial do órgão prolator, conforme o artigo 16 da Lei nº 7.347/85, alterado pela Lei nº 9.494/97. Precedente do STJ. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA. FISCALIZAÇÃO DA ATIVIDADE DE MÚSICO. EFEITOS. LIMITE. ART. 16 DA LEI N.º 7.347/85 (...) A atividade do músico possui uma amplitude que impossibilita restrição normativa à sua manifestação profissional. Em sendo o alegado dano de âmbito estadual, estendendo-se por expressiva parcela do território catarinense (senão toda), os efeitos da decisão proferida em ação civil pública não podem ficar contidos apenas na circunscrição territorial do órgão prolator da decisão. Outra inconstitucionalidade inserida no ordenamento jurídico está relacionada ao artigo 2º-A e seu parágrafo único da lei 9.494/1997, acrescentados pela medida provisória n. 1.798-1, de 11 de fevereiro de 1999 e, posteriormente, inovados pela medida provisória n. 2.180-35, de 24 de agosto de 2001. Assim: Art. 2º-A: A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator. Parágrafo único: Nas ações coletivas propostas contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas autarquias e fundações, a petição inicial deverá obrigatoriamente estar instruída com a ata da assembléia da entidade associativa que a autorizou, acompanhada da relação nominal dos seus associados e indicação dos respectivos endereços. A norma em questão só poderia ter aplicação nas ações destinadas à defesa de direitos coletivos stricto sensu e individuais homogêneos, tendo em vista que os titulares de direitos difusos, nos termos do inciso I do parágrafo único do artigo 81 do CDC, estão interligados por circunstâncias fáticas, sem que possam ser determinados e identificados seus domicílios. Tudo que foi dito quanto ao artigo 16 da lei 7.347/1985 pode ser levado em conta na análise do art. 2º- A e seu parágrafo único da lei 9.494/1997. Dessa forma, a referida norma pode ser caracterizada como ineficáz e inconstitucional, segundo os motivos abaixo delineados. O artigo 82, inciso IV do CDC, que arrola entre os legitimados para a propositura de ações coletivas as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo Código, não impõe a necessidade de autorização assemblear. A doutrinadora Ada Pellegrini Grinover explica que tal

exigência, acompanhada da relação nominal dos associados e da indicação dos respectivos endereços, representa um obstáculo para as associações ao acesso à justiça. Não se trata de prerrogativa em face da complexa organização dos órgãos estatais ou paraestatais, pois nenhuma atividade defensiva surgirá para o Estado com essa exigência 33. Trata-se, dessa forma, de afronta aos princípios constitucionais do acesso à justiça (artigo 5º, inciso XXXV) e da igualdade processual (artigo 5º, caput). Também podem ser realizadas referências à falta de urgência e relevância na edição das medidas provisórias, desrespeito aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, bem como falta de entendimento quanto aos institutos da competência e jurisdição, na medida em que, novamente, há uma limitação à eficácia subjetiva da coisa julgada. O direito, mesmo sendo coletivo stricto sensu, pertence a todas as pessoas que fazem parte da associação, sendo a sentença e a coisa julgada formada estendidas para associados domiciliados em qualquer área do território nacional, pois devem ser tratados com homogeneidade. A Constituição Federal, no artigo 5º, inciso XXI, faz menção à expressa autorização que as entidades associativas precisam para a representação de seus filiados judicial ou extrajucialmente. Contudo, convém aqui ressaltar diferença realizada por Hugo Nigro Mazzilli entre representação processual e legitimação extraordinária. A Constituição se refere ao fenômeno da representação processual, quando alguém, em nome alheio, defende interesse alheio. Diferente é o que ocorre na tutela coletiva em que o autor coletivo possui legitimação extraordinária, defendendo interesse alheio, no caso, de toda a coletividade, em nome próprio 34. Por essas razões, deve ser dispensada a autorização assemblear e a indicação de todos os associados com seus respectivos endereços para que seja intentada a ação coletiva. Mas apesar de todos os motivos expostos para embasar a inconstitucionalidade do artigo 2º-A e seu parágrafo único da Lei 9.494/1997, o STJ mantém a aplicação do dispositivo, o que pode ser inferido através da ementa de acórdão relatado pelo Ministro José Delgado 35 : PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. APADECO. EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO DE COMBUSTÍVEIS (DL 2.288/86). EXECUÇÃO DE 33 GRINOVER, Ada Pellegrini. O Processo: Estudos e Pareceres. São Paulo: Editora Perfil, 2006, p. 246. 34 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: maio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 54. 35 Embargos de Declaração no Recurso Especial n. 2004/0055010-6, do Superior Tribunal de Justiça, julgado em 05/05/2005. In: http://www.stj.jus.br, acessado em 03/03/2009.

SENTENÇA. EFICÁCIA DA SENTENÇA DELIMITADA AO ESTADO DO PARANÁ. VIOLAÇÃO DO ART. 2º-A DA LEI Nº 9.494/97. ILEGITIMIDADE DAS PARTES EXEQÜENTES. 1. Impossibilidade de ajuizamento de ação de execução em outros estados da Federação com base na sentença prolatada pelo Juízo Federal do Paraná nos autos da Ação Civil Pública nº 93.0013933-9 pleiteando a restituição de valores recolhidos a título de empréstimo compulsório cobrado sobre a aquisição de álcool e gasolina no período de jul/87 a out/88, em razão de que em seu dispositivo se encontra expressa a delimitação territorial adrede mencionada. 2. A abrangência da ação de execução se restringe a pessoas domiciliadas no Estado do Paraná, caso contrário geraria violação do art. 2º-A da Lei nº 9.494/97, litteris: A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator. 3. Embargos de declaração acolhidos. Tudo que foi exposto sobre as alterações das normas contidas no artigo 16 da lei da Ação Civil Pública e no artigo 2ª-A e seu parágrafo único da lei 9.494/1997, referentes, inclusive, a sua ineficácia e inconstitucionalidade, tem amplo respaldo doutrinário e certa divergência jurisprudencial, na medida em que muitos tribunais vêm aplicando as mencionadas normas. Contudo, a conseqüência futura advinda da aplicação na prática dessas normas será o desvio da finalidade das ações coletivas e o desrespeito à natureza do objeto litigioso. As demandas coletivas, criadas para resolver de uma única vez problemas de vários indivíduos integrantes de uma coletividade, deixam de ter esse propósito e os direitos coletivos, naturalmente indivisíveis, por obra da lei passam a ser divididos. Não podemos esquecer que, apesar dessas incoerências presentes nos sistema normativo, a jurisdição é atividade una da qual resulta um comando decisório com força de lei para todo o território nacional. 7. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A COISA JULGADA NAS CLASS ACTIONS NORTE-AMERICANAS: UMA COMPARAÇÃO COM O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO As ações coletivas dos Estados Unidos influenciaram muito as ações coletivas previstas no ordenamento jurídico brasileiro. Desde 1833, naquele país, com a Equaty Rule 48, é admitida a propositura de ação por representante quando o número de partes é muito extenso, a ponto de dificultar o andamento processual. Mas foi com a adoção da Federal Rules of Civil Procedure e a edição da Regra 23 que as class actions ganharam relevo e se distinguiram em três modalidades, de acordo com a natureza do direito defendido. Posteriormente, em 1966, a Regra 23 sofreu