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VII Encontro Nacional de Estudos do Consumo III Encontro Luso-Brasileiro de Estudos do Consumo I Encontro Latino-Americano de Estudos do Consumo Mercados Contestados As novas fronteiras da moral, da ética, da religião e da lei 24, 25 e 26 de setembro de 2014 Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (Puc-Rio) Prestígio, poder e memória nas tramas de um vestido Resumo Aline Lopes Rochedo 1 Esta comunicação aborda elementos de uma pesquisa etnográfica em andamento sobre a biografia de um vestido criado pelo costureiro gaúcho Rui Spohr, em 1971. Com modelagem reta e recortes geométricos nas cores verde, vermelha e preta, o longo foi comprado por Heloisa Brenner, integrante da aristocracia rural do Rio Grande do Sul, e a acompanhou a festas por quatro décadas, sendo escolhido por ela para celebrar seus 80 anos, em 2011. No ano seguinte, sintetizou quase 60 anos de carreira profissional de Rui numa exposição dedicada à moda nacional realizada no Museu da Arte Brasileira (MAB), em São Paulo. Desde que foi examinado para a elaboração do laudo técnico para o seguro, o vestido se tornou uma obra de arte, pelo menos aos olhos do criador e da proprietária. Guiada por autores como Igor Kopytoff, Arjun Appadurai, Pierre Bourdieu e Daniel Miller, entre outros, procuro articular a biografia deste objeto produzido para consumo das elites às trajetórias do costureiro e da dona, pensando sobre prestigio, poder e memória. A partir de Violette Morin e de Janet Hoskins, que utilizam a noção de objeto biográfico, arrisco afirmar que, ao falarem sobre o vestido, Heloisa e Rui estão falando sobre si. E a roupa fala sobre o criador e a proprietária, uma vez que contém uma dimensão política indicadora de dispositivos de distinção e poder. Palavras-chave: Distinção; Poder; Memória 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); alinerochedo@gmail.com. 1

1 Introdução Rui é o mais famoso costureiro do sul, com nome nacional. [...] No casarão belle époque da rua Pinto Bandeira, o costureiro mantém uma clientela tão importante quanto fiel. D. Miriam Obino Cirne Lima, esposa do ministro da Agricultura, periodicamente vem ao sul para novas encomendas. 2 Na têrça-feira da semana que passou, em estréia beneficente, Rui desfilou sua moda de outono-inverno nos salões da Associação Leopoldina Juvenil. No dia seguinte, suas freguesas e imprensa assistiram ao desfile desta mesma coleção na maison da Pinto Bandeira. 3 Trago acima fragmentos de duas reportagens repercutindo os dois desfiles de outono-inverno 1971 nos quais o costureiro Rui Spohr apresentou um vestido verde, vermelho e preto confeccionado em crepe madame e arrematado por Heloisa Pinto Ribeiro (hoje Heloisa Brenner) o primeiro se realizou num clube de elite de Porto Alegre, com convites pagos pelo público e renda revertida para uma ação beneficente; o segundo, na própria maison, exclusivo para as freguesas. Há mais matérias sobre os eventos, mas estas me parecem suficientes para se dimensionar o prestígio desfrutado pelo costureiro naqueles dias. No desfile promovido no ateliê, a convidada Heloisa se instalou na plateia em busca de algo colorido, clássico. Quando eu vi o vestido, fiz sinal para o Rui: Esse é meu, disse ela em junho de 2013. O vestido que a encantou fora concebido como um dos longos geométricos propostos pelo costureiro para aquele outono-inverno. Eram três versões, a mesma ideia em três versões diferentes, porque iguais não teriam graça, explicou-me Rui, que manteve a modelagem, variando as cores e os recortes. Heloisa até se recorda dos dois modelos irmãos, que não a agradaram um era muito claro ; o outro, sóbrio. Por este, me apaixonei. Adoro verde e vermelho, cores fortes, justificou. Já eu conheci o traje que alinhava esta pesquisa que resultará em minha dissertação de mestrado em Antropologia Social, a ser defendida em 2015 durante visita ao ateliê de Rui, em Porto Alegre, em 2012, quando realizava outro estudo sobre elites. Naquela ocasião, soube pela responsável pelo acervo que uma cliente do estilista chamada Heloisa celebrara havia poucos meses seus 80 anos trajando uma roupa que comprara quatro décadas antes. Comentei com minha orientadora, Dra. Maria Eunice Maciel, e ela me mostrou páginas de uma revista que guardava desde 2008. A reportagem versava sobre mulheres das elites paulistana e carioca que voltaram a colocar em circulação vestidos criados entre as décadas de 1960 e 1980 por costureiros brasileiros, peças mantidas nos roupeiros de família. Reproduzo abaixo o parágrafo de abertura da matéria: 2 Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1971, p. 3. 3 Correio do Povo, Porto Alegre, 1971, p. 31. 2

Foi mexendo no guarda-roupa da sogra, ajudando-a a eleger a melhor produção para sua festa de 40 anos, que a empresária Tânia Derani esbarrou em uma caixa marrom, grande e empoeirada. Ao olhar com mais atenção, pode ler em letras brancas, que quase saltavam: Dener. Abri a caixa e caí para trás!, lembra Tânia. Descansava na embalagem, quase intacto, um vestido de alta-costura do mais significativo costureiro brasileiro até o surgimento de uma nova geração de estilistas na década de 90 (JORDÃO, 2008, p. 68). A repórter define Tânia como uma das mulheres mais elegantes do país, e o criador da roupa de 1972, Dener Pamplona de Abreu (1937-1978), como o costureiro que vestiu socialites e a elegantíssima primeiradama Maria Teresa Goulart na década de 60. Esta e outras histórias sobre roupas criadas pela geração de grandes costureiros brasileiros da qual Rui faz parte (HERNÁNDEZ ALFONSO; POLLINI, 2012) instigam-me por envolver sujeitos cujas estratégias de distinção (BOURDIEU, 2008) passam por artefatos específicos e indicadores de dinheiro antigo. Na primeira conversa com Rui, em junho de 2013, ele acrescentou um novo capítulo: o estilista recebera, poucas semanas após a festa de Heloisa, o convite para participar de uma mostra de moda no Museu de Arte Brasileira (MAB) da Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), em São Paulo. A roupa seria exibida num módulo dedicado a costureiros de destaque entre 1950 e 1980. Tentado a indicar a criação repetida por Heloisa 40 anos após a criação, Rui pediu autorização à cliente, e ela emprestou o vestido. Em agosto de 2012, foram entregues na residência de Heloisa um catálogo de museu e um cartão assinado pelo estilista e pela esposa, Dóris: Veja o que aconteceu com o Nosso vestido. Ele agora é uma obra de arte. Objeto de consumo da cultura material das elites, o artefato foi desenvolvido para um tipo de consumidora mulheres urbanas e com posição social privilegiada. Antes mesmo de ser esboçado, era de luxo, modelo único, roupa singular destinada a conviver e esbarrar com outros trajes bem-nascidos em espaços distintos e situações extraordinárias, ou seja, em festas em salões nobres de grandes cidades. Ao seguir os ensinamentos de Daniel Miller sobre materialidade (2013), as proposições de Arjun Appadurai (2008) e Igor Kopytoff (2008) sobre a vida social e biografia cultural das coisas e a proposta de Alfred Gell (2013) sobre agência objetos materiais incorporam intencionalidades e mediam relações, percebemos humano e não-humano entrelaçados e agindo dialeticamente sobre o ambiente num processo de construção mútua. O vestido assinado por Rui e de propriedade de Heloisa exposto no MAB não existiria sem o estilista, e talvez não sobrevivesse sem a dona é certo que sua biografia teria sido diferente se as variáveis não fossem as mesmas. Mas o longo não é passivo, tampouco inocente. Pessoas interagem com ele, e ele interage com as pessoas; as pessoas lhe atribuem sentido, e ele retribui na mesma moeda; pessoas o fazem, e ele faz pessoas. 3

2 Uma vida de memória, poder e prestígio No final dos anos 1960 e início dos 1970, geometria e cores vibrantes era tendência chegada de fora para um grupo social brasileiro que consumia padrões de alta-costura parisiense. O franco-argelino Yves Saint Laurent (1936-2008) criara anos antes propostas orientadas pela pop art, por cores e linhas retas, como o modelo Mondrian 4. Rui também fora lapidado alhures, estudara em Paris nos anos 1950, na mesma instituição frequentada e ele insiste neste ponto por Saint Laurent. Ao importar o sistema fabril e mercadológico da alta-costura parisiense, o profissional gaúcho recriou em Porto Alegre uma forma particular de socialização para fazendeiras ricaças e mulheres de elevado capital simbólico. E, em 1971, ele aderiu às formas geométricas, elaborando o vestido que encantou Heloisa. Na lembrança de Rui, o traje teve um impacto muito grande. Primeiro, porque traduzia bem o meu estilo, uma coisa muito clean, muito limpa e ao mesmo tempo presente, assim, dava um impacto pela simplicidade e de mensagem pela conjugação de cores. [...] Não pode ser mais simples. Um vestido reto, de mangas compridas e decote bobo. 5 O longo foi criado por Rui num registro econômico em que circulam valores e configurações éticas e políticas de determinado contexto e estavam para além das características estéticas. A própria materialidade (MILLER, 2013) do artefato apresenta elementos que objetificam dispositivos de distinção e poder e condensam a memória (HALBWACHS, 1990) de uma época em que o estilista detinha grande capacidade simbólica para mobilizar a mídia e atuar como conselheiro de bom gosto entre mulheres de várias camadas sociais do Rio Grande do Sul, sendo ele colunista de moda e costumes em TV, rádio e jornal. A partir de Bourdieu (2008), vejo Heloisa inserida numa rede de relações de prestígio em que seu estilo de vida e seus padrões de consumo se objetivam na apropriação e na forma como dispõe desses bens. Gostos e preferências naturalizados por esses sujeitos são acionados numa espécie de arena de disputas por status. Heloisa, quando sinalizou o interesse pelo vestido geométrico, por exemplo, não estava apenas firmando um compromisso de compra de mais uma roupa da grife Rui. Então casada com psicanalista renomado, ela reafirmava prestígio num círculo predisposto a cultuar a assinatura do estilista. Como atestou Rui, era comum mais de uma cliente se interessar por um modelo do desfile, e cópias não eram permitidas não naquele ateliê, num período em que a empresa ainda não tinha se rendido à produção em série. Portanto, arrematar o exemplar exclusivo visto já na passarela e estampado em jornais fazia parte do jogo disputado entre as clientes do costureiro. Acheter alors n est pas seulement manifester un goût pour ses oeuvres, mais aussi exercer une rivalité avec les acquéreurs potentiels (HEINICH, 1991, p. 154). Quatro décadas depois, já casada com o segundo marido, também médico, Heloisa decidiu celebrar seus 80 anos trajando uma das roupas que guardava. A eleita teria de favorecer a silhueta, e decotes seriam 4 Vestido de Yves Saint Laurent inspirado em uma tela do pintor holandês Piet Mondrian (1872-1944) e apresentado em 1965 (NORONHA, 2013). 5 Trecho de entrevista com Rui Spohr em junho de 2013. 4

descartados. O longo geométrico comprado de Rui em 1971 era perfeito pelas mangas compridas e pelo corte reto. Achou-o justo nos quadris, então o levou a uma costureira de confiança para alargar. Roupas de alta-costura sempre têm uma sobra para dentro para fazer os ajustes, explicou-me. Como não usa mais sapatos de salto, subiu alguns centímetros da barra. Em 21 de junho de 2011, na Associação Leopoldina Juvenil, clube de elite de Porto Alegre, a aniversariante recebeu seus convidados portando o vestido ao lado de um retrato seu com a roupa 40 anos antes. Eu fiz questão de expor a foto, enfatizou. Na festa de 80 anos, o vestido dançou no salão, apareceu nas fotografias e foi assunto em colunas sociais, como a que reproduzo abaixo: Heloisa e Carlos Brenner receberam com os filhos e noras dela, os casais Hugo, Luiz, Jorge e Sergio Pinto Ribeiro, para o jantar dançante de comemoração do aniversário de Heloisa. A entrada do salão da Leopoldina Juvenil contava com um cavalete com fotografia da aniversariante, usando modelo criado pelo designer Rui, na década de 1970, o que ela, garbosamente, repetia na festa (GASPAROTTO, 2011, p. 3). A consagração seguinte da roupa foi em 2012, com a transformação simbólica operada pela pessoa contratada pela Faap para elaborar o laudo técnico antes do embarque do artefato de Porto Alegre para São Paulo para participar da exposição no MAB. Como se recorda o estilista: a museóloga e os ajudantes colocaram luvas brancas de algodão e começaram a olhar o vestido por dentro e por fora. Que acabamento bonito, isso é alta-costura, agora entendo o que é alta-costura [...]. Aí veio um cartão grande, duro, do tamanho do vestido. Aí abriram outra coisa e tiraram um papel de seda. Daí dobraram, cobriram, colocaram uns mini alfinetes, ficou duro, como uma múmia, e saíram com ele assim, dois homens. [...] E a museóloga disse que a partir daquele momento era uma obra de arte. [...] Chamei todo mundo na hora para ver o que estava acontecendo. 6 Com apólice de 9,5 mil reais, a roupa foi para São Paulo em maio de 2012 e retornou a Porto Alegre em outubro daquele ano. Foi exposta ao lado de criações de Zuzu Angel (1921-1976), Clodovil Hernandes (1937-2009) e Dener Pamplona de Abreu (1937-1978), entre outros. 3 Biografia e agência Apesar de sua textura ser fosca característica do crepe madame, o longo verde, vermelho e preto reluz entre pessoas que conhecem e reconhecem as credenciais biográficas da roupa, da proprietária e do criador. O brilho se intensifica a partir da justaposição de camadas de consagração na moda, na alta sociedade e nas artes, todas resultantes do curso percorrido em sua vida social enquanto coisa transitando dentro de fora do 6 Trecho de entrevista realizada com Rui Spohr em junho de 2013. 5

estado de mercadoria (APPADURAI, 2008; KOPYTOFF, 2008) e interagindo com as pessoas que o contemplam, vestem, possuem, querem possui-lo ou desejam nele se perpetuar. Percebido como obra de arte em novos circuitos sociais e culturais, é difícil em termos simbólicos e morais acionar o dispositivo de mercadoria do vestido numa troca comercial, pois a participação na exposição em São Paulo potencializou a sua singularização e ampliou significados para além da especulação de valores econômicos uma vez dentro da alta cultura, seu valor passa a ser cultural. Mesmo assim, ainda pode ser negociado, pois a fase mercantil é culturalmente regulada (KOPYTOFF, 2008). Rui, que criou e vendeu o vestido há quatro décadas, assistiu à alquimia social (BOURDIEU; DELSAUT, 2008) da museóloga e ressignificou sua percepção sobre o traje: já não era mais uma de suas criações, mas se tornara sua extensão, um objeto portador da sua memória e reflexo da sua personalidade, ainda a roupa tenha passado a maior parte da vida no roupeiro da cliente. Heloisa, por sua vez, retirou o vestido do estado de mercadoria, colocando-o no registro de objeto singularizado e acrescentando a ele uma dimensão de portabilidade. Coube a ela regular os usos do artefato de festa, ainda que ele já tenha sido criado para circular por eventos extraordinários. O vestido Rui exibido na exposição em São Paulo é também o vestido de Heloisa. No processo de ir para o MAB e na sua volta, a roupa acabou ressignificada pelo criador e pela proprietária. Para Rui, é uma obra de arte; para Heloisa, colecionadora de arte e antiguidade, trata-se de um objeto especial pelo tempo e pela memória acumulada. De acordo com Hoskins, quando Gell fala sobre obras de arte, fala também sobre outros objetos produzidos para influenciar pensamentos e ações, e me parece que o vestido desta pesquisa pode ser pensado neste registro, porque porta intencionalidade e, em sua interação com pessoas, provoca e atua na mediação de relações sociais, ou seja, faz mais do que transformar a própria identidade (HOSKINS, 2013, p. 75). Hoskins ainda traz outros insights: considerando que objetos específicos ajudam a constituir narrativas pessoais, ela recupera o trabalho de Violette Morin (1969), que dividiu objetos em duas categorias: protocolares e biográficos. Estes se diferem na relação com o portador enquanto o objeto biográfico envelhece com o dono e lhe confere uma identidade, o objeto protocolar está em toda parte, não proporciona uma experiência personalizada e não envelhece com o dono, sendo facilmente substituído. Trago estas duas autoras como inspiração para pensar nas construções narrativas dos meus interlocutores sobre suas vidas através do vestido verde, vermelho e preto Rui e Heloisa reificam características de suas personalidades e vidas na medida em que produzem narrativas de prestígio e distinção em torno do vestido que guia esta pesquisa. 4 Considerações finais A exploração da biografia cultural do vestido de Rui e Heloísa me faz concordar com Miller que roupas importam e importam de formas distintas para pessoas diferentes em tempos e locais diversos (MILLER, 1998). Se para Heloisa é uma peça através da qual ela narra se narra e narra momentos festivos de sua vida 6

ao lado de familiares e amigos, para Rui, o vestido sintetiza sua carreira e afirma sua condição de artista, como ele me disse num de nossos encontros, quando recordava a abertura da exposição do MAB: Da parte de alta-costura, sem falsa modéstia, o vestido mais perfeito representando a história de uma sociedade era o meu. [...] esse é o exemplo típico da minha verdade sobre moda, que é a seguinte: a sofisticada originalidade do simples. Somente a simplicidade pode ser sofisticada. Um toque de genialidade é interessante também. [...] eu sinto que se a moda não é arte, mas precisa de um artista, esse trabalho, essa minha verdade sobre a maneira de fazer moda, de enxergar moda, é um trabalho de artista. 7 Aos 84 anos, Rui espera receber o vestido como doação para o acervo e entende que o mérito da peça está no fato de ela ter se transformado num objeto de museu. Heloisa tem apenas filhos homens, mas não decidiu qual destino dará ao vestido: Só não quero que me vistam com ele quando eu morrer. Quero ser cremada, e não seria bom queimarem uma obra de arte. Em seguida, sentenciou, rindo: Terás que continuar seguindo o vestido. Referências Bibliográficas A moda que vem do Sul. Correio da Manhã, Caderno Bela. Rio de Janeiro, 18 e 19 de abril de 1971. APPADURAI, Arjun. Introdução: mercadorias e a política de valor. In.: APPADURAI, Arjun (org.). A vida social das coisas. Niterói, RJ: Eduff, 2008. BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica social do julgamento. Porto Alegre, RS: Zouk, 2008. BOURDIEU, Pierre; DELSAUT, Yvette. O costureiro e sua grife: contribuição para uma teoria da magia. In.: BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. Porto Alegre, RS: Zouk, 2008. GASPAROTTO, Paulo. O Sul, Porto Alegre, 23 de junho de 2011. Magazine. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990. HEINICH, Nathalie. Réparation par l argent: l achat et le rachat. In.:. La glorie de Van Gogh: essai d anthropologie de l admiration. Paris: Minuit, 1991. HERNÁNDEZ ALFONSO, José Luiz; POLLINI, Denise. Moda no Brasil: criadores contemporâneos e memórias. São Paulo: FAAP, 2012. HOSKINS, Janet. Agency, biography and objects. In: TILLEY, Chris et al (org.). Handbook of material culture. s.l. Sage, 2013. 7 Trecho de entrevista com Rui Spohr em abril de 2014. 7

JORDÃO, Claudia. Clássicos da moda brasileira. IstoÉ, nº 2206, 3 de setembro de 2008. KOPYTOFF, Igor. A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo. In.: APPADURAI, Arjun (org.). A vida social das coisas. Niterói, RJ: Eduff, 2008. Rui: a moda do corte. Correio do Povo, Porto Alegre, 18 de abril de 1971. MILLER, Daniel. Material Cultures: Why somethings matter. s.l.: UCL Press, 1998.. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. MORIN, Violette. L object biographique. Communications. Paris: École Pratiques des Hautes Études, Centre d Études des Communications de Masse, n. 13, 1969. NORONHA, Renata Fratton. A identidade regional celebrada no vestir: Rui Spohr e a moda que vem do Sul. Dissertação (Mestrado em Processos e Manifestações Culturais) Feevale, Novo Hamburgo, RS, 2013. 8