1. Arte africana - Brasil. 2. Arte negra - Brasil.. 1. Ribeiro, Marília Andrés -. li. Silva, Fernando Pedro da -. Ili. Título. IV. Série. CDD: 709.

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Transcrição:

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Editora C/Arte Editor Fernando Pedro da Silva Coordenação Editorial Fernando Pedro da Silva Marília Andrés Ribeiro Conselho Editorial Eliana Regina de Freitas Outra João Diniz Ligia Maria Leite Pereira Lucia Gouvêa Pimentel Maria Auxiliadora de Faria Marllia Andrés Ribeiro Marllia Novaes da Mata Machado Otávio Soares Dulci Orientações Pedagógicas lucia Gouvêa Pimentel e Alexandrino Ducarmo Assistente de Produção Jacqueline Prado de Souza Revisão Alexandre Vasconcellos de Melo Projeto gráfico e capa Poliana Perazzoli Imagem da capa Junior de Odé. Fios de contas de Ogum, Oxossi, /ansá e Oxum, Rio de Janeiro, 2004. Foto: Francisco Moreira da Costa, acervo do Museu do Folclore Edison Carneiro, CNFCP/IPHAN. Publicação referendada pelo Comité Brasileiro de História da Arte - CBHA Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito. Direitos exclusivos desta edição: Editora C/Arte Av. Guareperi, 464 Cep 31560-300 - Belo Horizonte MG Pabx: (3113491-2001 com.arte@comartevirtual.com.br www.comarte.com C746A Conduru, Roberto, 1964- Arte Afro-Brasileira./ Roberto Conduru. Projeto Pedagógico: Lucia Gouvêa Pimentel e Alexandrino Ducarmo; Coordenação Editorial: Fernando Pedro da Silva e Marília Andrés Ribeiro. - Belo Horizonte : C / Arte, 2007. 128 p. il. : 16x24cm. - (Coleção: Didática) ISBN: 978-85-7654-047-2 1. Arte africana - Brasil. 2. Arte negra - Brasil.. 1. Ribeiro, Marília Andrés -. li. Silva, Fernando Pedro da -. Ili. Título. IV. Série. CDD: 709.81

Ronald Duarte. Nimbo/ Oxalá, performance, Rio de Janeiro, 2004. Fotos: Pedro Stephan.

CAPÍTULO 5: DIÁLOGOS CONTEMPORÂNEOS Heterogêneas e dispersas, embora apareçam com força aqui e ali, as conexões estabelecidas com as culturas africanas e afro-brasileiras não chegam a constituir uma vertente específica, nem um conjunto imediatamente destacável na produção de arte contemporânea no Brasil. Conscientes ou não, difusos territorialmente, muitas vezes pontuais, esses diálogos focam em questões étnicas, religiosas, estéticas, artísticas, sociais e políticas, delineando o campo da afro-brasilidade. O que enseja e demanda sua problematização. Como na história da arte européia, em que o encontro com a produção artística das culturas qualificadas como primitivas é constantemente mitificado 1, também na história da arte do Brasil o contato com a arte da África algumas vezes ganha aura de experiência crucial com forças artísticas genuínas. Na orelha de um livro sobre a obra de Artur Barrio é dito que, após ter "intensa ligação com a vida do campo e com as brincadeiras dos meninos no Porto, em Portugal, onde o artista nasceu em 1945, e antes de viver na rua onde surgiu a Bossa Nova, no Rio de Janeiro, Brasil, para onde sua família emigrou em 1955, Barrio teve outra experiência marcante: "Em 1952 passa todo o ano em Angola, tomando contato com a arte primitiva africana." 2 Ou seja, com sete anos, entre a lúdica infância portuguesa e a boemia carioca dos anos 1950, Barrio teria conhecido, in loco, e experimentado diretamente o 1 A esse respeito, ver: GOMBRICH, E. H. The preference for the primitive: episodes in the history of western taste and Art. Oxford: Phaidon, 2002; PERRY, Gill. O primitivismo e o "moderno". ln: FRASCINA, Francis; HARRISON, Charles; PERRY, Gill. Primitivismo, cubismo, abstração. Começo do século XX. São Paulo: Cosac & Naify, 1998 2 BARRIO, Artur Alípio. Barrio. Rio de Janeiro: Funarte, 1978. (orelha)

Artur Barrio. Máscaras - Série Africana, técnica mista s/papel cartão, 36x27 cm, 1974. Coleção de Delcir e Regina da Costa. primitivismo da arte africana. Obras de Barrio, como Máscaras - Série Africana, de 1974, Marfim africano..., de 1980-1981, e a Série Africana n º 1, apresentada na XIX Bienal Internacional de São Paulo, em 1983, podem até atestar a pertinência da valorização desse dado biográfico. Entretanto, caso se aceite essa hipótese, é preciso abandonar as concepções dominantes no imaginário mundial da África como lugar isolado onde se poderia experimentar ainda pulsante o passado mais remoto da humanidade e da arte do continente como expressão pura e intacta da vida humana ancestral. Tendo isto em mente e com um olhar menos viciado, é possível propor que o trabalho de Barrio, a partir de sua experiência quando menino, foi marcado menos pela suposta pureza africana e mais pela heterogeneidade cultural de Angola nos anos 1950. Além disso, uma anotação existente no Cadernolivro de 1973- "Expressionismo Cubismo: África/ Surrealismo: Oceania" 3 - indica que a relação de Barrio com a África é tanto a persistência de uma vivência infantil recuperada pela memória, quando a relação com uma força artístico-cultural que emerge do contexto da arte, sua história e sistema. 3 BARRIO, Artur. Cadernolivro. ln: CANONGIA, Ligia (Org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Modo, 2002. p. 140. 80 ROBERTO CONDURU

Máscara policromada. Tribo Bakuba, República Democrática do Congo. Acervo do Museu Real da África Central, Tervuren, Bélgica. Também mediado pela arte e suas instituições foi o encontro de Cildo Meireles com a África, como ele relata: "Meus desenhos figurativos do começo dos anos 60 derivaram do impacto de uma exposição de máscaras e esculturas africanas da coleção da Univers idade de Dakar, Senegal, que vi na UnB em 1963." 4 Em outro depoimento, ele acrescenta: Fique profundamente tocado pela mostra, que exerceu uma influência fundamel'ltal na minha formação, redirecionando o meu desenho. Eu me senti estimulado a enfrentar qualquer superfície com o intuito de resolver o problema da representação, a figura transportada para outro plano. Eu estava diante da arte africana sem a mediação do Cubismo. O que me atraiu na arte africana foi o modo forte e elegante como a questão formal era resolvida. E, também, o fato que ela falava de coisas imateriais, mas de modo muito vital. 5 O expressionismo que o artista vê normalmente nesses afro-desenhos, como os chama 6, não derivou, contudo, apenas da arte africana. O 4 MEIRELES, Cildo. Entrevista. Gerado Mosquera conversa com Cildo Meireles. ln: MEIRELES, Cildo. Cildo Meireles. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. p. 9. 5 lbidem. Entrevista (a Frederico Morais). ln: MORAIS, Frederico (Org.). Cildo Meireles: algum desenho [1963-2005]. Rio de Janeiro: CCBB, 2005. p.60-62. 6 lbidem. Pano-de-roda. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da EBA/UFRJ, ano VII, n. 7, 2000, p. 11. Arte Afro-Brasileira 81

próprio artista indica: "Outra de minhas influências, em meados dos anos 60, foi o cinema de animação, particularmente o da Europa Central; havia ali uma energia e uma qualidade gestual que eu queria incorporar ao desenho figurativo." 7 Como na maioria dos diálogos artísticos com a cultura material e simbólica da África, raramente a referência africana é exclusiva. Naquelas máscaras e esculturas, como no cinema de animação centro-europeu e em outras fontes, Cildo Meireles encontrava estímulos para o caminho que desejava seguir. Mas havia e há outras Áfricas disponíveis à experiência artística "sem a mediação do Cubismo" e de exposições de arte africana. Sua imagem aparece na crítica político-poética da cartografia feita por Anna Bella Geiger. E na revisão da história da Natureza feita por Denise Millan, que imagina reunificação geológico-cultural com um novo continente, escultórico: Améfrica. 8 Imagem presente por sua ausência no Desenho (África) de Waltercio Caldas, de 1972, no qual o nome do continente participa da discussão poética de estereótipos culturais, conceito e campo artístico. 9 De outra ordem, em diálogo com suas paisagens e cultura material, é a África traduzida em telas de Gonçalo Ivo como Pano da Costa, Rio Zaire, Tíssu d'afrique. No modernismo paulista dos anos 1920, artistas e intelectuais viajaram ao interior do país para conhecer arte e cultura populares; nesse trânsito, para reafirmar a condição da capital paulista como metrópole moderna, eles deixaram de olhar a afro-descendência nela presente, para encontrá-la nas Minas Gerais, no Norte e Nordeste, experimentando-a no carnaval do Rio de Janeiro. Contemporaneamente, artistas têm se aberto a vivências outras em suas próprias cidades, a partir de seus mundos, experimentando múltiplas Áfricas impregnadas no cotidiano das cidades brasileiras. Segundo Yvonne Maggie, houve uma "celebração das religiões afro-brasileiras" nos anos 1970, quando passaram por "uma espécie de reviva!', que atingiu diversos campos: cinema, música, teatro, artes plásticas, ciências sociais. 1 Com o refluxo das vogas 7 MEIRELES, Cildo. Entrevista. Gerado Mosquera conversa com Cildo Meireles. ln: MEIRELES, Cildo. Cildo Meireles. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. p. 9-10. 8 MILLAN, Denise. Améfrica. São Paulo: CCBB, 2003. 9 DUARTE, Paulo Sérgio. Wa/tercio Caldas. São Paulo: Cosac & Naify, 2001. p. 200, 205. 10 MAGGIE, Yvonne. Posfácio. ln:.guerra de Orixá: um estudo de ritual e conflito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. p. 158. 82 ROBERTO CONOUAU

da abstração e do concretismo, essas religiões e a causa negra ressurgiram nas artes plásticas. Mas o interessante é observar como elas foram incorporadas à reflexão, ao fazer, nas obras, em meio ao processo de questionamento da arte e sua inserção sociocultural, de modo figurativo ou estrutural, explícito, pouco evidente ou subliminar. Ainda que seja um tanto romanceado pela crítica, o encontro de Hélio Oiticica com o universo afro-brasileiro se deu cotidianamente e, para ele, não parecia ter o peso da alteridade cultural que a história foi construindo. Os outros, para ele, tinham nome, ou apelido - Jerônimo, Mosquito, Cara de Cavalo, Luiza, Roberto, Nildo, Roseni, Magnólia 11 - e endereço: Mangueira. Não podia ser diferente, já que a chave de sua leitura da condição da arte contemporânea no Brasil - "Da adversidade vivemos!" 12 - é, desde sempre, a do mundo afro-brasileiro. A edição número 5 da revista Item, com o tema Afro-Américas, justapõe uma foto do Parangolé Xoxôba P25 capa 21, de 1968, a Vestimenta de Egum na África, uma imagem feita por Pierre Verger na década de 1950. 13 A associação é pertinente, embora também parcial, abrindo um caminho para outras conexões. Os Parango/és estão longe de serem vestimentas religiosas, muito menos de divindades. Também não são utilitárias. Pertencem ao mundo da arte, de onde partem em diálogo com outras instâncias da vida. Além das várias experiências com indumentária no Construtivismo, é possível e necessário conectar o Parangolé às vestimentas de Baba-Egum, às fantasias usadas nos desfiles das escolas de samba. às vestimentas das populações de rua marginalizadas, com sua capacidade de transformar matérias e elementos em coisas outras, excepcionais. Ou seja: arte, religião, carnaval, conjuntura social - são múltiplas as referências e articulações possíveis com a Africa e o afro-brasil, mas não só a eles. Também Lygia Pape empreendeu alguns diálogos com manifestações culturais urbanas mais ou menos vinculadas à problemática afro-brasileira. Pouco românticos, ainda que fortemente empáticos, são seus encontros com esse universo. No texto "Morar na cor", parte de sua dissertação de mestrado - Catiti-Catiti na terra dos Brasis -, ela 1101TICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. (organização Luciano Figueiredo, Lygia Pape e Waly Salomão). Rio de Janeiro: Rocco, 1986. 12 lbidem, p. 98. 13 BASBAUM, Ricardo, COIMBRA, Eduardo (Org.). Afro- americas. Item, revista de Arte, Rio de Janeiro, Espaço Agora / Capacete, 2002, n. 5, p. 52-53. Arte Afro-Brasileira 83

Alexandre Vogler/RRadial. Fumacê do descarrego, intervenção urbana, Rio de Janeiro, Carnaval de 2007. Foto: André Sheik. expressa o quanto admira a construção de identidades na vivência da cor na "chamada 'não arquitetura "', como qualifica "manifestações arquitetônicas do entorno da cidade do Rio de Janeiro": "Somente nas áreas de geografia suburbana e rural podemos encontrar essa liberdade existencial - o expressar-se no espaço coletivo - virado para fora, aberto ao mundo como uma fruta que rompeu a casca; o dentro e o fora como iguais: uma 'fita de Moebius 111 Pensa esse "uso profuso da cor de forma expressiva: como um inconsciente coletivo por impregnação", como "fenômenos espontâneos" e diz que "conceituá-los como objetos dá-lhes uma conotação de mágica irreverência, como em 'Dada 111 14 Procedimento similar ao empregado pela artista nos Espaços imantados, de 1968, dos quais um é a apropriação fotográfica do pulsar de uma roda de capoeira no centro do Rio de Janeiro 15 - ao transpor registros documentais à condição de trabalhos artísticos, ela deixa entrever proximidade e distância, incorporação e reprocessamento, o resignificar. 14 PAPE, Lygia. Morar na cor. Arquitetura Revista, Rio de Janeiro, FAU/UFRJ, n. 6, 1986, p. 29-32. 15 PAPE, Lygia. Gávea de tocaia. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2000. p. 52-53 84 ROBERTO CONDURU

Um tópico especial dos diálogos com a cultura afro é a máscara. Apesar de não existir unicamente na África, já que constitui uma categoria universal, a máscara pode ser um ponto de conexão forte da arte contemporânea do Brasil com as culturas africanas e afro-brasileiras, permitindo chegar a obras de Lygia Clark, Mário Cravo Junior e Laura Lima. No caso de Máscaras - Série Africana, a série feita por Barrio em 1974 que indicam, a princípio, uma relação direta com a produção tribal africana, é produtivo, contudo, pensar menos em relações icônico-estilísticas e mais em associações interdependentes entre configurações plásticas e ritos, em formas que exalam a energia de sua fabricação. Relação entre ritual e plasticidade nas práticas religiosas afro-brasileiras que é fácil e potentemente conectável às intervenções feitas por Barrio - como "ldéiasituação: lnterrelacionamento Subjetivoübjetivo", realizada em 2002, na Documenta 11, em Kassel - e às instaurações de Tunga. Nesse sentido, é interessante rever o texto de Barrio sobre Deflagramento de Situações sobre Ruas, que, em 1970, lançou pelas ruas do Rio de Janeiro 500 sacos de plástico contendo materiais diversos ("Sangue, Pedaços de unha, Saliva (escarro), Cabelos, Urina (mijo), Merda, Meleca, Ossos, Papel higiênico, utilizado ou não, Modess, Pedaços de algodão usados, Papel úmido, Serragem, Restos de comida, Tinta, Pedaços de filme (negativos), etc." 16 : "Numa das intervenções, numa rua da Tijuca, um transeunte interessou-se vivamente pelos sacos {objetos deflagradores) e pediu-me um perguntando o que representavam, já que em princípio pensou que eram despachos; respondi-lhe que não, que o que ele tinha nas mãos era arte, ao que prontamente respondeu-me que tinha gostado e que, portanto, iria levá-lo para casa." 17 Retornar à interpretação primeira do transeunte tijucano, indo contra à resposta de Barrio, é perceber como, no contexto das cidades brasileiras, tendo em vista a problemática afro, esses sacos com materiais orgânicos e inorgânicos lançados nas ruas podem ser vinculados a certas práticas das religiões afrobrasileiras, especialmente aos despachos ou sacrfficios, oferendas e ebós: configurações plástico-sensórias compostas pelos mais diferentes elementos e matérias, que resultam de rituais, visam a diferentes fins (purificação espiritual, riqueza, atração afetivo-sexual, trabalho) e 16 BARRIO, Artur. DFL... SITUAÇÃO... +S+... RUAS... ABRIL...1970. ln: CANONGIA, Ligia (Org.). Artur Barrio. Rio de Janeiro: Modo, 2002. p. 26. 17 /dem. Arte Afro-Brasileira 85

Antonio Dias. Gigante dormindo e cachorro latindo, bronze policromado, 29x43x15 cm, 2002. Foto: Vicente de Mello. são dispostas em estradas, esquinas, praças, jardins, praias e matas, entre outros lugares. 18 Também é sedutor vincular os ebós e rituais às práticas de Lygia Clark com seus Objetos relacionais, criações de alto estímulo estético que subsidiavam sua singular terapêutica. Indicação que pode oferecer um caminho para pensar essas experiências, as quais os críticos têm dificuldade em situar no campo artístico. Nesse sentido, suas Máscaras sensoriais, de 1967, feitas com tecidos, e as Máscaras abismo, de 1968, produzidas com sacos em rede de 18 Apud PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 565. 86 ROBERTO CONDURU

naylon, pedras e sacos plásticos cheios de ar, aproximam-se ao contexto afro-brasileiro, menos por reporem a questão da máscara do que por também serem objetos só compreensíveis se estiverem promovendo experiências sensoriais, ainda que não religiosas. Ainda nessa trilha, é instigante aproximar Cabeça coletiva, de 1975, uma peça de madeira estruturada com materiais variados que as pessoas vestem, cobrindo toda a cabeça, à cerimónia de bori (dar comida à cabeça) realizada no Candomblé, na qual a cabeça da pessoa é alimentada, fortificada. As Máscarasde Lygia e os Parangolésde Hélio Oiticica abrem caminho para experiências contemporâneas com vestes como elementos detonadores de performances como o Ambiente curto (bucha) de Jarbas Lopes, de 1998, e as vestes elaboradas por Laura Lima: Capuzes (homem=carne/mulher=carne), 2001. De Laura Lima, também, as aves enfeitadas ressoam mais quando aproximadas do contexto religioso afro-brasileiro, fazendo lembrar a preparação dos animais para os rituais de comunhão coletiva entre humanos e divindades. É possível encontrar a ambigüidade significativa de que fala Yve-Alain Bois - a ancoragem dos signos a significados em função do contexto de aparecimento - em obras de Antonio Dias, como Poeta/Pornografo, de 1973, e Home ofthe dead, de 1981, que exemplificam bem os sentidos abertos de sua bandeira-casa-galeria e de seus ossos-ferramentas-falos. Essa abertura semântica da obra de Antonio ffas incentiva a fazer uma conexão mais direta com o universo afro-brasileiro. Em especial, a recorrência ao falo, mais ou menos alusiva, permite e estimula associar alguns trabalhos - Dans mon jardine Solitário, de 1967, Duelo, de 1976, Sem título (grafite, madeira e rodo sobre tela), de 1985, Todas as cores dos homens, de 1996, e Seu marido, de 2002 - com Exu, com o orixá da potência, do sexo, do movimento e da comunicação para os nagôs, um mito fundamental na cultura afro-brasileira. Seu marido traz duplamente o desenho de tridente, permitindo remeter diretamente às representações em metal de Exu, enquanto as outras obras citadas do artista se conectam de modo mais enviesado com o universo mítico das religiões afro-brasileiras. A recorrência fálica incentiva leituras abrangentes, universalizantes, ainda que não inviabilize, muito menos iniba conexões culturais mais localizadas. Contexto, aqui, é o da leitura, mas também o da cultura onde a obra é gerida e atua. Arte Afro-Brasileira 87

Chico Tabibuia. Exus, escultura em,,,adeira, 1995. Acervo do Museu de Folclore Edison Carneiro, CN ;::c-:>?han. Foto: Décio Daniel. Assim, também, algumas obras produzidas em 1973 por Antonio Manuel ampliam seus sentidos se aproximadas do universo cultural afro-brasileiro. É o desafiador Exu quem mais uma vez ronda o trabalho. A começar pela performance do artista nu, com falo à mostra, em 1970, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em protesto contra a recusa por parte do júri de aceitar seu corpo como obra. Outra obra é Bode, de 1973, que também aconteceria no MAM/RJ, mas foi censurada e acabou transformada, aparecendo nos Super Jornais - Clandestinas, publicados no jornal O Dia. O artista relaciona o bode à liberdade de sua infância em Portugal, à body arte ao bode, gíria da época que se refere ao estado causado pelo fumo da maconha, mas que ele conecta ao ambiente repressivo do Brasil à época. Tomando a afro-brasilidade como contexto que se infiltra a partir das notícias sensacionalistas que descrevem macabros rituais nas páginas de O Dia, manipuladas e transformadas por Antonio Manuel, o bode preto de Bode pode ser, também, tão-somente um animal, o bode, que, assim como o galo - também representado pelo artista em O galo ( The cock of the golden eggs), de 1972- os quais são muitas vezes sacrificados para serem ofertados aos deuses nas religiões de matrizes africanas. 88 ROBERTO CONDURU

Falar de Exu remete obrigatoriamente a Chico Tabibuia e sua relação ambígua com essa poderosa entidade; no seu próprio dizer, ele tem "Exu na cabeça e deus no coração". Ao corporificar Exu, Tabibuia "faz com que fique aprisionado na escultura, 'para não fazer mais mal ao povo', ficando cada vez mais 'fugido das matas', onde poderia atuar em liberdade." 19 Tentativa de aprisionamento e controle que não deixa de ser incorporação, vivência profunda de tensões duais contemporâneas porque atemporais: cidade e campo, religião e erotismo, cultura e natureza, masculino e feminino, bem e mal. Fé em Deus -Fé em Diabo é o título de um trabalho de outro artista com obras diretamente conectadas ao onipresente Exu: Alexandre Vogler. Er, Macumbanonsite - trabalho para Maria Padilha, Rainha da encruzilhaaa, a referência é explícita. Superpondo a noção de obra artística com a de trabalho religioso, misturando instalação, macumba e rap, arma com reverência bem-humorada algumas perguntas: para qual divindade trabalha o artista? É a arte sua rainha, sua pomba-gira? Quer agradar ao público? É para seu próprio proveito o trabalho? Aumentando o tom e o risco, sem abandonar a ironia crítica, ele parece propor Exu como patrono das mídias táticas ao pintar um tridente na encosta da serra do Vulcão, atrás e acima do Mirante do Cruzeiro, em No a guaçu. Assim, explora a ambigüidade do signo, que remete ao cetro mitológico de Netuno, mas também ao tridente dos Exus a7o-brasileiros, para desafiar a intolerância religiosa e o populismo polrtico. A questão do contexto e do sacrifício traz novas ressonâncias para urf\ trabalho de Cildo Meireles como Tiradentes: totem-monumento ao preso-político, que foi realizado em abril de 1970, por ocasião das comemorações da semana da Inconfidência Mineira, na exposição de inauguração do Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Nessa obra, sobre um quadrilátero marcado por um pano branco e atadas a uma estaca de 2,59 m de altura em cujo topo havia um termômetro clínico, foram dispostas dez galinhas molhadas com gasolina, às quais foi ateado fogo. Esclarece o artista: A imagem da explosão, que em primeira instância aludia ao auto-sacrifício dos bonzos durante a guerra do Vietnam, fundamentalmente remetia a: 1) visão irânica da situação vernissage (atitude retomada pelo artista 19 FROTA, Lélia Coelho. Pequeno dicionário da arte do povo brasileiro, século XX. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2005. p. 139. Arte Afro-Brasileira 89

Cildo Meireles. Inserções em circuitos antropológicos: Black Pente, 1971/73. Arquivo do artista. em 1979, na exposição "Sermão da Montanha: Fiat Lux", Centro Cultural Cândido Mendes, Rio ) ; 2 ) processo de desmetaforização, a nível de linguagem, procurando utilizar o que seria tema como matéria-prima. Num terceiro nível, seria possível apreender a ironia básica da proposta, pois se em termos de linguagem era um trabalho não-metafórico, por outro lado trabalhava a metáfora de um acontecimento mais amplo: a situação nacional nesse penado de violenta repressão política. 20 A princípio, nada no trabalho remete ao universo cultural afro-brasileiro. No entanto, usr comentário do artista, quase 30 anos depois, permite uma associação. :>iz ele: "Claro que jamais repetiria um trabalho como Tiradentes... Ai,...oa posso ouvir as pobres galinhas em minha memória psicológica. as em 1970 senti que aquilo tinha que ser feito." 21 O sofrimento e a eu pa que o artista possa ainda sentir pela violência extrema no trato cort"' os animais podem ser atenuados se forem pensados a partir das re!fóes afro-brasileiras, nas 2 ºMEIRELES, Cildo. Cildo Meireles. Rio de Janeiro: Funane 1981. p. 19. 21 ldem. "Entrevista. Gerado Mosquera conversa com Cildo Meireles. Op. cit., p. 15. 90 ROBERTO CONDUAU

quais o sacrifício de animais é uma prática vinculada às oferendas que são feitas para os orixás e partilhadas entre eles e os fiéis, embora não pressuponham uma relação estética contemplativa. O sacrifício de animais, injustificado por si só, teria sentido, como diz Meireles, no contexto artístico e político brasileiro dos "anos de chumbo" da ditadura militar, como nos cultos afro-brasileiros quando é feito para estabelecer a comunhão entre fiéis e deuses, agregando a comunidade. 22 Em sentido oposto, é bastante direta a vinculação com a cultura afro-brasileira de outra obra de Cildo Meireles, Inserções em circuitos antropológicos: 8/ack Pente, de 1971-1973: Projero oe produção e distribuição a preço de custo de pentes para negros. a serie "Inserções em circuitos ideológicos" o dado fundamental é a co ção da existência do(s) circuito(s), e a inserção verbal constitui uma "'t=rferência nesse fluxo de circulação, isto é, sugere um ato de saborage,... ideológica contra o circuito estabelecido. Já nas 'Inserções em circu,:os antropológicos' ("Black Pente", "Token"), importa mais a noção de riserção' do que a de circuito: a confecção de objetos, elaborados em ana.a com os do circuito institucional, tem por objetivo induzir a um LOJ AF Leandro Machado. Lojas Africanas. Imagem digital, 2003. Arquivo do artista. 22 Uma aproximação dessa obra de Cildo Meireles com os cultos afro-brasileiros foi feita, também, em MAGGIE, op. cit. Arte Afro-Brasileira 91

Frente 3 de fevereiro, BRASIL NEGRO SALVE, São Paulo, Estádio Morumbi, 14 de julho de 2005. Frente 3 de fevereiro, ONDE ESTÃO OS NEGROS?, Campinas, Estadia Moisés Lucarelli, 14 de agosto de 2005. Frente 3 de fevereiro, ZUMBI SOMOS NÓS, São Paulo, Estádio do Pacaembu, 20 de novembro de 2005. Fotos: Daniel Correia Ferreira Lima. 92 ROBERTO CONDURU

hábito e, dai, à possibilidade de caracterizar um novo comportamento. No caso específico de "Black Pente", o projeto trabalharia no sentido de afirmação de uma etnia. 2 3 Esse estímulo à afirmação étnica tinha enorme sentido político na conjuntura da ditadura militar e grande originalidade no contexto brasileiro por sua defesa de uma causa social com a arte. Obra e ação que ajudam a compreender a amplitude das aproximações da arte contemporânea no país com o universo cultural afro-brasileiro. Variam quanto à origem e ao modo as ações integradas à causa da negritude. É crítica a brincadeira de Leandro Machado com o nome e o logotipo das Lojas Americanas em suas sacolas e camisetas das fictícias "Lojas Africanas". Se, em Porto Alegre, o mesmo Machado pinta com henê (cremes para alisamento de cabelos) e, em Salvador, Ayrson Heráclito o faz com azeite de dendê, é certo que agregam ressonâncias culturais às obras, em suas relações críticas com os meios de produção pictórica. Como visto, no Rio de Janeiro, Cabelo, funde Tio Sam e Zumbi em sua convocatória urbana à luta, enquanto, em São Paulo, o coletivo Frente 3 de Fevereiro questiona também publicamente, em estádios de futebol, a visibilidade e a condição social dos afro-descendentes. Em clave pessoal, também de São Paulo, Rosana Paulino, aborda com Parede de memória, de 1994, questões da mulher afro-descendente a partir da memória familiar, enquanto, de fora do país, Vik Muniz parece retornar, em tom compungido e humanitário, à figuração dos marginalizados urbanos em obras como Valentine, a mais rápida e Jacinte adora suco de laran j a, ambas de 1996. Contudo, a vertente mais freqüente de conexão dos artistas contemporâneos à cultura afro-brasileira ainda é o imaginário religioso. Nesse sentido, é interessante aproximar o trabalho de Nelson Leirner ao universo afro por meio de instalações que se valem de imagens de diferentes religiões e âmbitos culturais. Também Regina Vater reporta-se a divindades afro-brasileiras em várias de suas realizações. Caminho seguido por Rodrigo Cardoso, que usa imagens de lemanjá, Oxumarê e outras divindades e santos, na obra Invocações, de 2003, e em leman j á posto 6, de 2006. Mônica Nador, no JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube) também usa figuras de orixás como elementos de painéis decorativos na renovação comunitária de fachadas da periferia paulistana. 2 3 MEIRELES, op. cit., 1981, p. 26. Arte Afro-Brasileira 93

Rosana Paulino. Parede de Memória, técnica mista, 8x8x3 cm (cada elemento), 1994. Arquivo da artista. Rodrigo Cardoso. Invocações, lemanjás, fundição em alumínio 26x16x11 cm, 2003. Foto: Wilton Montenegro. 94 ROBERTO CONDURU..

Viga Gordí ro. MJda Memória (detalhe). Transfer de imagens fotográficas do fazer e do prazer de rnu lieres africanas e brasileiras, fibra de algodão, cera e oxidação, 4x4x3 m, 2002.!..rquivo da artista. Nelson Leirner. Missamóvel, gesso, plástico, tecido e madeira, 41x66x103 cm, 2000. Coleção Ana Maria Tavares. Arte Afro-Brasileira 95

Ayrson Heráclito. Odé no Epô, fotografia, 160x110 cm, 2007. 96 ROBERTO CONDUAU

Se esses artistas dialogam com o imaginário, os mitos e ícones difundidos na paisagem e na cultura contemporânea do país, outros chegam mais próximo e se envolvem com a questão dos ritos religiosos. Em Nimbo/Oxalá, Ronald Duarte remete a performance de pessoas com equipamentos extintores de incêndio e fumaça ao orixá da criação através de alguns de seus atributos: dia (sexta-feira), cor (branco) e elemento (nuvem), explorando a multiplicidade semântica dessas religiões e a sua difusão subreptícia em meio aos códigos culturais brasileiros. De modo semelhante - sem representações icónicas, com signos ambíguos e intervenção performática - Marepe realizou Pérola de água doce, em 2006, lançando 13 mil pérolas de água doce no rio Tietê, em São Paulo: um ritual de oferenda a Oxum, divindade das religiões afro-brasileiras associada às águas doces, que é também um manifesto contra a poluição do rio e à degradação ambiental. Essas ações de Ronald Duarte e Marepe se conectam mais diretamente com obras de artistas que vivenciam as religiões afro-brasileiras, sem que isso implique iniciação nas mesmas e afastamento da problemática da arte contemporânea. Nesse caminho estão o já citado Ayrson Heraclito, de quem se poderia falar das cerimónias coletivas Martinho Patrício. Danúbio Azul, cetim, fita de cetim, renda, cambraia bordada e madeira, 260x260 cm, 1996. Acervo do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães, Recife. Foto: Flávio Lamenha. Arte Afro-Brasileira 97

preparatórias e de degustação de comida. Da Paraíba, Martinho Patrício é outro, com seus panos dobrados, ou estendidos, que remetem aos altares de Umbanda. A partir do Pará, Arthur Leandro propõe vínculos, rebatimentos entre artístico e cultural, universal e local, ao conectar a reflexão sobre a morte contemporânea do artista à cerimônia do axexê, ritual fúnebre do culto nagô, em suas Notícias falsas da própria morte implantadas no obituário do jornal O Liberal e pagas com cheque, débfto em conta telefônica ou cartão de crédito do pretenso falecido. Poética para futuros historiadores... Nesse âmbito, destaca-se a obra de Mario Cravo Neto. Algumas de suas fotos referentes às religiões afro-brasileiras aparentam retratar cenas como os desenhos de Carybé e as fotos de Verger: uma baiana fazendo acaraje, pessoas incorporadas de orixás, assentamentos, outros espaços e detalhes dos terreiros, de seus rituais. Contudo, é um equívoco se prender às aparências, pois seu trabalho recusa tacitamente a etnografia, procura ir além da linguagem fotográfica e das práticas religiosas para se encontrar na confluência entre artístico e espiritual. Com efeito, tanto ha séries explicitamente alegóricas, quanto obras nas quais a representação é indireta, revelando seu profundo vivenciar da fotografia, da religião e da arte. Como disse lldásio Tavares: Quando Mariozinho está lidando com a realidade cotidiana, pode-se facilmente notar a intenção de transgredir o código convencional, o novo ângulo ou ângulos que ele focaliza para capturar o fugaz, no processo de congelar o tempo que é a fotografia. É quando o mágico transforma a realidade em magia, no que podemos chamar de procedimento alquímico, metamorfose que ocorre claramente quando o alvo do fotógrafo é o mundo móvel do Candomblé. Aí, Mariozinho não intenta capturar apenas uma realidade transitória. Mais que isso, ele ambiciona penetrar no mistério imponderável que jaz muito além de meras imagens enigmáticas. 24 Nesse sentido, é emblemático laroyé, seu livro trabalho oferenda homenagem a Exu 25 no qual ele diz muitas coisas com outras - lidando com signos plurais, jogando com significações latentes no visível, faz ressoar a leitura aberta, fluida, que adeptos das religiões afro-brasileiras têm no ver e sentir, no viver. Livro encruzilhada de caminhos artísticos afro-descendentes no Brasil. 24 TAVARES, lldásio. O Mágico e a Magia. ln: CRAVO NETO, Mario. O Tigre do Dahomey_A Serpente de Whydah. Salvador: Áries Editora, 2004, p. 10. 25 CRAVO NETO, Maria. Laroyé. Salvador: Áries Editora, 2000. 98 ROBERTO CONDURU

Mário Cravo Neto. Laroyé, fotografia, 2001. Arquivo do arnsta. Arte Afro-Brasileira 99