A cidade nas fronteiras do legal e ilegal



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Transcrição:

Paulo, ao longo dos anos 1990 e 2000, de um vasto mercado informal de bens de consumo e serviços orientados para o mundo popular favoreceu a expansão de oportunidades não assalariadas de trabalho trabalho autônomo, conta própria. (...) O terceiro parâmetro em torno do qual o livro se organiza remete à maneira pela qual a globalização transformou a vida urbana através da financeirização do consumo popular, com a generalização do uso dos cartões de crédito, mesmo entre os segmentos mais pauperizados, e com a consequente generalização do endividamento, conforme mostra a pesquisa de Claudia Sciré. Como não reconhecer nesse fenômeno a marca da indústria financeira a financial industry, como se designa o mercado financeiro no mundo anglo-saxônico com seus produtos adaptados aos mais diversos tipos de público, inclusive os mais pobres? O quarto parâmetro é provavelmente o mais importante, posto que também o mais transversal: refere-se ao embaralhamento e a expressão é particularmente oportuna neste caso das fronteiras da legalidade. Do trabalhador honesto que, nas horas vagas, enrola papelotes de cocaína para melhorar a renda no fim do mês ao comerciante que altera o preço dos produtos conforme sejam, ou não, faturados, a cidade que Vera Telles nos dá a ver transita descomplexada entre práticas legais e ilegais, lícitas e ilícitas. (...) A importância desses cruzamentos entre o legal e o ilegal, entre o lícito e o ilícito na caracterização da vida urbana paulistana corre o risco de dar ao leitor uma imagem negativa e desesperada da cidade. Tanto mais que o livro resgata uma literatura que acompanhou a autora ao longo desses dez anos e com a qual ela dialogou. Vera Telles flagra uma dinâmica de mudança, entre o que desaparece e o que se reconstrói. O processo é desconcertante, às vezes violento, mas a esperança vem da história. É ela que anuncia dias melhores no nosso caminhar. Angelina Peralva Socióloga, professora da Universidade de Toulouse Le Mirail, França Durante dez anos, em diálogo intenso com uma equipe de jovens pesquisadores, Vera Telles interrogou as tramas, as dobras e os percursos que formam a tessitura de São Paulo. O pressuposto era de que a cidade havia mudado; e, para entender essa mudança, seria preciso produzir descrições significativas, flagrar cenas capazes de pôr em evidência certas linhas pouco visíveis da dinâmica urbana. Iniciou-se assim um trabalho cumulativo, de clara inspiração antropológica, com um apelo forte em direção a uma etnografia experimental uma etnografia capaz de inventar seus próprios parâmetros no ato mesmo da investigação; capaz de construir experimentalmente seu próprio objeto, como relembra a autora em diversos momentos. Uma imagem surpreendente de São Paulo se desenha a partir daí. Mas não só. Emerge também um objeto cidade, construído graças aos parâmetros que a pesquisa ajudou a revelar. (...) Angelina Peralva Socióloga, professora da Universidade de Toulouse Le Mirail, França Vera da Silva Telles A cidade nas fronteiras do legal e ilegal ARGVMENTVM A cidade nas fronteiras do legal e ilegal ARGVMENTVM Editora Vera da Silva Telles Durante dez anos, em diálogo intenso com uma equipe de jovens pesquisadores, Vera Telles interrogou as tramas, as dobras e os percursos que formam a tessitura de São Paulo. O pressuposto era de que a cidade havia mudado; e, para entender essa mudança, seria preciso produzir descrições significativas, flagrar cenas capazes de pôr em evidência certas linhas pouco visíveis da dinâmica urbana. Iniciou-se assim um trabalho cumulativo, de clara inspiração antropológica, com um apelo forte em direção a uma etnografia experimental uma etnografia capaz de inventar seus próprios parâmetros no ato mesmo da investigação; capaz de construir experimentalmente seu próprio objeto, como relembra a autora em diversos momentos. Uma imagem surpreendente de São Paulo se desenha a partir daí. Mas não só. Emerge também um objeto cidade, construído graças aos parâmetros que a pesquisa ajudou a revelar. Primeiro parâmetro, a mobilidade. Sua importância atual sinaliza o fim da cidade fordista metáfora através da qual se designou um mundo urbano-industrial organizado em torno do trabalho assalariado, em torno da relação binária casatrabalho, da ordenação hierárquica dos territórios e dos efeitos de segregação que dali derivavam. Tais clivagens se embaralharam. Circular na cidade (e alhures) é uma resposta aos tempos que correm, em que competências novas e especiais transitar em meios sociais heterogêneos, cavar oportunidades, construir redes de sociabilidade e espaços de iniciativa são estratégias de sobrevivência e participação requeridas dos pobres, como dos ricos. No mundo popular, a mobilidade é uma característica geracional: ela define a experiência de uma juventude que já não hesita em atravessar as fronteiras de seu meio social de origem, premida pelas novas e precárias formas de trabalho (muito diferentes das que conheceram seus pais), e também marcada pelas possibilidades de acesso a novos equipamentos urbanos. O segundo parâmetro para o qual o livro aponta é o da relevância do consumo do ponto de vista do reordenamento da vida urbana. O tema em pauta não é o da sedução inerente às chamadas sociedades de consumo é sim, mais bem, o do impacto econômico dos mercados de consumo popular e o da importância que eles adquirem no contexto da mundialização. A progressiva expansão em São

Vera da Silva Telles A cidade nas fronteiras do legal e ilegal O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do Governo Brasileiro voltada para a formação de recursos humanos. ARGVMENTVM Belo Horizonte 2010

Todos os direitos reservados à ARGVMENTVM Editora Ltda. Vera da Silva Telles As ideias contidas neste livro são de responsabilidade de seu autor e não expressam necessariamente a posição da editora. CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVRO, RJ. CONSELHO EDITORIAL COLEÇÃO SOCIEDADE & CULTURA Elisa Pereira Reis UFRJ Leopoldo Waizbort USP Renan Springer de Freitas UFMG Ruben George Oliven UFRGS ARGVMENTVM Editora Ltda. Rua dos Caetés, 530 sala 1113 Centro Belo Horizonte. MG. Brasil Telefax: (31) 3212 9444 www.argvmentvmeditora.com.br

Sumário Apresentação...7 Introdução...9 PRIMEIRA PARTE Experimentações CAPÍTULO 1 A cidade e suas questões...55 Interrogando realidades urbanas em mutação... 68 Pontos de infl exão, questões em discussão...72 CAPÍTULO 2 Perspectivas descritivas...81 A cidade em perspectiva: seguindo os fl uxos das mobilidades urbanas... 86 Deslocamentos: a produção do espaço... 86 Confl itos e disputas no e pelo espaço... 88 Temporalidades urbanas... 89 O tempo político da cidade... 90 Percursos: trabalho e as tramas da cidade... 93 Modulações: os fl uxos urbanos entre espaços, territórios e cidade... 96 Histórias de um perueiro... 100 Histórias de um motoqueiro... 103 Reatando pontos e linhas: os elos perdidos da política...106 CAPÍTULO 3 Deslocamentos: percursos e experiência urbana...109 Trabalho e cidade: relações redefi nidas...111 Personagens urbanos e seus percursos...121 O cenário: nas franjas da cidade global...122 A cartografi a dos empregos... 123 Os tortuosos caminhos das melhorias urbanas... 124 O Xerife... 125 Diferenças de tempos, diferenças de geração...127 O patriarca Genésio e sua extensa família... 128

Trabalho, moradia e os tempos da cidade... 128 Na virada dos tempos... 132 Os jovens empreendedores: nos circuitos faiscantes dos serviços globalizados... 132 O trabalhador precário: no circuito fechado das agências de trabalho temporário... 136 O segurança: nos circuitos da segurança privada, onde todos os fi os se cruzam... 140 CAPÍTULO 4 SEGUNDA PARTE Deslocando o ponto da crítica Tramas da cidade: fronteiras incertas do informal, ilegal, ilícito... 147 CAPÍTULO 5 Nas dobras do legal e ilegal: ilegalismos e jogos de poder...169 Nas fronteiras incertas do informal, ilegal e ilícito...172 Formas contemporâneas de produção e circulação de riquezas... 174 Dinâmicas urbanas redefi nidas...183 A gestão diferencial dos ilegalismos...187 Comércio informal e mercadorias políticas... 190 A periferia é o lugar onde há ou o acerto ou a morte, mas não a prisão... 194 CAPÍTULO 6 Ilegalismos e a gestão (em disputa) da ordem...203 Primeiro momento, anos 1980: o mundo do trabalho e os justiceiros...219 Segundo momento, anos 1990: a erosão do mundo do trabalho e os matadores...234 Terceiro momento, anos 2000: novos ilegalismos e o trafi cante... 244 Nem conclusões nem considerações finais...259 Bibliografia...261

Apresentação Uma experimentação, é isto o que se vai encontrar ao longo das páginas deste livro. Não é uma coletânea de textos cuja articulação seria preciso arquitetar pelas vias de alguma unidade teórica exterior ao andamento de cada um, ao modo como cada qual foi produzido, às questões que moveram a sua escritura. Na verdade, o fio que os articula, todos eles, internamente e em diálogo uns com outros, é essa experimentação cujos sentidos se tenta esclarecer na introdução e, assim eu espero, explicita-se na própria escritura que tenta seguir, desdobrar e também deslocar as questões que não estavam previamente dadas, mas foram se formulando conforme seguíamos as pistas que a pesquisa nos entregava. Experimentação como prática de pesquisa, como forma de produção de conhecimento, também como experiência de pensamento. Não diria que isso seja uma tese a ser demonstrada. É uma aposta, uma tomada de posição e um exercício de pesquisa, também de escritura. A pesquisa que esteve na origem deste livro foi lançada em 2001. Uma pesquisa qualitativa, de forte conteúdo etnográfico, realizada em duas regiões da periferia paulista. Em seu ponto de partida, uma dupla inquietação. Um mundo urbano muito alterado em relação às décadas passadas e que implodia as categorias e referências pelas quais se discutiam a cidade e seus problemas, a questão urbana. Mas também um mundo urbano que encenava problemas e dramas sociais que pareciam transbordar os modos como os temas da exclusão social, segregação urbana, pobreza e vulnerabilidade social eram postos, eram tipificados e pautavam a pesquisa acadêmica. Era preciso prospectar as linhas que se conjugavam nas tramas da cidade e construir outros parâmetros descritivos para colocar em perspectiva (e sob perspectiva crítica) realidades urbanas em mutação. Essa a questão que conduz a primeira parte desse trabalho. A pesquisa prolongou-se por oito anos, porém não diria que tenha chegado a um ponto fi nal. Abriu-se a um leque de questões que pautam, agora, no momento em que estas linhas estão sendo escritas, um programa de investigação empírica e teórica que apenas se inicia. As inquietações de antes persistem, porém, no seu foco, está a teia de ilegalismos, novos, velhos ou redefi nidos que também tecem as tramas da cidade. No início, achados de pesquisa que preenchiam os nossos diários de campo. E a percepção de que estávamos frente a realidades que não mais poderiam ser discutidas (e descritas) nos termos consagrados nos estudos urbanos, os descompassos entre a cidade legal e ilegal, cifra de uma modernidade incompleta para evocar um tema que já foi alvo de discussões e polêmicas, por vezes ácidas, em décadas passadas. O mesmo se poderia se dizer em relação ao desde sempre expansivo mercado informal, agora inteiramente redefi nido e reconfi gurado, pois conectado aos circuitos transnacionais de uma economia globalizada. No centro dinâmico da vida urbana da muito moderna 7

São Paulo dos anos 2000, uma transitividade entre o informal, o ilegal e o ilícito. Nas suas dobras, jogos de poder e relações de força nos quais se tem uma chave de inteligibilidade da violência que atravessa a experiência urbana. E que se desdobra no que o fi lósofo Agamben chama de estados de exceção, práticas e situações instauradas no centro da vida política (e da normalidade democrática), fazendo estender uma zona de indeterminação entre a lei e a não-lei, terrenos de fronteiras incertas e sempre deslocantes que produzem as fi guras do homo sacer, vida matável, em situações entrelaçadas nas circunstâncias de vida e trabalho dos que habitam ou transitam nesses lugares. Porém, essa a questão que se coloca em discussão na segunda parte: esses espaços de exceção não são lugares vazios, é aí que se fazem a experiência da lei, do Estado, da autoridade, da ordem e seu inverso. Campos de disputa, campos de experiência, talvez se possa dizer, no sentido que Thompson dá a esse termo. Acontecimentos, fatos, experiências que se processam no centro dinâmico da São Paulo globalizada, talvez se tenha aí pistas a serem seguidas se quisermos formular questões que se abram aos problemas postos em nossa atualidade. Em sua primeira fase, lançada em 2001, a pesquisa contou com a parceria com Robert Cabanes que esteve presente, todos esses anos, nessa prospecção das tramas da cidade, contando com as condições as mais favoráveis propiciadas por um Convênio CNPq-IRD. A partir de 2007, um programa de cooperação franco-brasileiro (Convênio Capes-Cofecub), coordenado em conjunto com Angelina Peralva, foi especialmente importante para colocar a situação brasileira sob um jogo ampliado de referências, em sintonia com processos semelhantes em curso nos chamados países do Norte (e outros lugares do planeta), o que altera o modo de discutir as questões postas, sobretudo, na segunda parte desse texto. Um jogo de referências que permite circunscrever o plano de atualidade em que as realidades descritas se inscrevem. A pesquisa realizada em conjunto com Robert Cabanes resultou em um livro, Nas tramas da cidade: trajetórias urbanas e seus territórios (Humanitas, 2006). Três de seus capítulos foram retrabalhados e incorporados na primeira parte desse texto. Na segunda parte, o capítulo 4 é uma versão bastante ampliada de artigo publicado em 2007. 1 O capítulo 5, em sua primeira parte, recupera artigo publicado em 2009 2 e segue com um texto inteiramente novo. O capítulo 6 foi especialmente produzido para compor esse trabalho. 1 Telles, Vera S. Transitando na linha de sombra, tecendo as tramas da cidade. In: Oliveira, Francisco & Rizek, Cibele S. A era da indeterminação. São Paulo: Boitempo, 2007. 2 Telles, Vera S. Ilegalismos urbanos e a Cidade. Novos Estudos, Cebrap, v.84, 2009. 8

Introdução São Paulo, como outras tantas grandes cidades do planeta, apresenta um cenário no qual ganham forma e evidência tangível as transformações que, nas últimas décadas, afetaram Estado, economia e sociedade. Em seus espaços e artefatos estão cifrados os modos de circulação e distribuição da riqueza (desiguais, mais do que nunca), as mutações do trabalho e das formas de emprego (e as legiões de sobrantes do mercado de trabalho), a revolução tecnológica e os serviços de ponta (e as fortalezas globalizadas da cidade), os grandes equipamentos de consumo e os circuitos de ampliados do mercado (e a privatização de espaços e serviços urbanos). Acompanhando tudo isso, a economia informal, desde sempre presente na cidade (e no país) expande-se por meio de novas articulações entre a tradicional economia de sobrevivência, os mercados locais, que se espalham pelas regiões, mesmo as mais distantes da cidade, e os circuitos globalizados da economia. Trata-se aqui de novas conexões e de uma escala de redefi nições inteiramente em fase com o mundo globalizado, que redesenham espaços e territórios urbanos nas trilhas de redes de subcontratação que chegam aos pontos extremos das periferias pelas vias de uma meada inextricável de intermediários e intermediações que reativam o trabalho a domicílio e redefi nem o chamado trabalho autônomo, ao mesmo tempo em que os mercados locais são, também eles, redefi nidos na junção das circunstâncias da chamada economia popular com máfi as locais e comércio clandestino de bens lícitos ou ilícitos de procedência variada. Se é verdade que a cidade oferece todos os ingredientes que alimentam os discursos e o imaginário da cidade global, com seus artefatos sempre presentes e sempre iguais em todas as grandes metrópoles do planeta, também é verdade que a vida social é atravessada por um universo crescente de ilegalismos que passa pelos circuitos da expansiva economia (e cidade) informal, o chamado comércio de bens ilícitos e o tráfi co de drogas (e seus fluxos globalizados), com suas sabidas (e mal conhecidas) capilaridades nas redes sociais e nas práticas urbanas. É nesse cenário contrastado que crescem a pobreza, o desemprego e a precariedade urbana. Também a violência, quer dizer, a morte violenta, morte matada, como se diz em linguagem popular. Em termos técnicos, na linguagem jurídica e policial: homicídios. E a tragédia concentra-se nas periferias da cidade. Não é o caso de falar de números e cifras. Por ora, basta dizer que os pesquisadores acostumados a comparações internacionais não hesitam em dizer que, ao longo dos anos 1990, as cifras chegaram a patamares equivalentes aos de regiões ou países em situação de guerra civil ou confl agração letal. Mas, como bem sabemos, todo cuidado é pouco quando de trata de lidar com as proximidades da pobreza e da violência, sobretudo nesses tempos em que nossa velha e persistente, nunca superada, criminalização da pobreza vem sendo 9

reatualizada sob formas renovadas, algumas sutis, outras nem tanto, na maior parte dos casos aberta e declarada. Esse é um terreno minado, carregado de pressuposições e lugares-comuns que estabelecem a equação fácil e rápida entre pobreza, desemprego, exclusão, criminalidade e morte violenta, equação que alimenta a obsessão securitária que, também ela, compõe o cenário urbano atual, da mesma forma como alimenta os dispositivos gestionários que mobilizam representantes políticos, operadores sociais, voluntários, agentes comunitários e também a pesquisa acadêmica. O fato é que não é coisa simples entender o que acontece por esse lado da cidade de São Paulo (não só nela), pois também aqui, no lado pobre (e expansivo) dessas recomposições, o mundo social está também muito alterado. Ponto e contraponto de uma mesma realidade, os capitais globalizados transbordam as fortalezas globais concentradas no moderníssimo e riquíssimo quadrante sudoeste da cidade, fazem expandir os circuitos do consumo de bens materiais e simbólicos que atingem os mercados de consumo popular. Mesmo nas regiões mais distantes da cidade, os circuitos do mercado e os grandes equipamentos de consumo compõem a paisagem urbana. São fluxos socioeconômicos poderosos que redesenham os espaços urbanos, redefi nem as dinâmicas locais, redistribuem bloqueios e possibilidades, criam novas clivagens e afetam a economia doméstica, provocando mudanças importantes nas dinâmicas familiares, nas formas de sociabilidade e redes sociais, nas práticas urbanas e seus circuitos. Por outro lado, ao mesmo tempo e no mesmo passo em que ganhou forma a versão brasileira das metamorfoses da questão social, os programas sociais se multiplicaram pelas periferias afora e em torno deles proliferam associações ditas comunitárias que tratam de se converter à lógica gestionária do chamado empreendedorismo social, se credenciar como parceiras dos poderes públicos locais e disputar recursos em fundações privadas (e a chamada fi lantropia empresarial) e agências multilaterais, isso em interação com miríades de práticas associativas e ao lado dos movimentos de moradia e suas articulações políticas, partidos e seus agenciamentos locais, igrejas evangélicas (também proliferantes) e suas comunidades de fiéis e, claro, a quase onipresença de ONGs vinculadas a circuitos e redes de natureza diversa e extensão variada. É aí que se vê delinear um mundo social perpassado por toda sorte de ambivalências, entre formas velhas e novas de clientelismo e reinvenções políticas, convergências e disputas, práticas solidárias e acertos (ou desacertos) com máfi as locais e o tráfico de drogas. É um feixe de mediações em escalas variadas que desenham um mundo social a anosluz das imagens de desolação das periferias de trinta anos. Seria mesmo possível fazer um longo inventário de microcenas desses territórios atravessados por lógicas e circuitos que transbordam, por tudo e por todos os lados, as fronteiras do que é tomado com muita frequência por universo da pobreza. Tudo ao contrário do que é muitas vezes sugerido pelos estudos sobre a pobreza urbana. E, sobretudo, inteiramente ao revés das fi gurações construídas pelas políticas ditas de inserção social de uma pobreza encapsulada em suas comunidades de referência e nas carências da vida. 10

Se as evidências são tangíveis, nem por isso é coisa simples decifrar a dinâmica dessas transformações. É bem verdade que o ponto de clivagem das novas realidades urbanas em relação às décadas passadas já foi vasculhado por uma extensa agenda de estudos urbanos. Em sintonia com debates então em curso em várias regiões e países do planeta, a pauta dos debates contemplou as relações entre cidade e os fluxos globalizados do capital, produção do espaço e fi nanceirização da economia, reconfi gurações espaciais e segregação urbana, economia urbana e a nova geografi a da pobreza, reestruturação econômica e vulnerabilidade social. As pesquisas multiplicaram-se sob diversas abordagens teóricas, diferentes procedimentos e escalas de observação, várias medidas da cidade e seus problemas. No entanto, ainda pouco se sabe sobre o modo os processos em curso redefi nem a dinâmica societária, a ordem das relações sociais e suas hierarquias, as mediações sociais e o jogo dos atores, as práticas urbanas e os usos da cidade. Vistas por esse lado, as realidades urbanas apresentam e ainda apresentam desafi os consideráveis. As referências gerais sobre emprego e desemprego, sobre transformações socialdemográfi cas e formas de segregação urbana esclarecem pouco sobre confi gurações societárias que fi zeram embaralhar as clivagens sociais e espaciais próprias da cidade fordista com suas polaridades bem demarcadas entre centro e periferia, entre trabalho e moradia, entre mercado formal e mercado informal. Seria quase trivial dizer que está tudo muito alterado em relação às décadas anteriores. O que antes foi dito e escrito sobre a cidade e seus problemas, a questão urbana, parece ter sido esvaziado de sua capacidade descritiva e potência crítica em um mundo que fez revirar de alto a baixo a solo social das questões então em debate. Foi sob esse prisma que, no capítulo I, A cidade e suas questões, foi revisitado o debate que corria nos anos 1980. Não como documento de uma época que já se foi e que pode, quando muito, interessar ao inventário bibliográfico ou revisão histórica exigidos pelos protocolos acadêmicos. Ao contrário, o feixe de referências e coordenadas que pautavam esse debate pode ajudar a refletir sobre a diferença dos tempos. As relações entre cidade, trabalho e Estado (e a questão nacional) defi niam as coordenadas de um debate que fazia do urbano um ponto de condensação de um conjunto de questões que falavam do país, de sua história e suas destinações possíveis. A cidade a cidade como questão aparecia como cifra pela qual o país era tematizado e em torno dela organizava-se um jogo de referências que dava sentido às polêmicas, debates e embates sobre a história, percursos e destinações possíveis da sociedade brasileira. Trabalho e reprodução social, classes e conflito social, contradições urbanas e Estado eram noções (e pares conceituais) que se articulavam e se compunham em proposições formuladas nas pesquisas e ensaios que tratavam da moradia popular e reprodução do capital, entre desigualdades urbanas e relações de classe, entre migração e pobreza urbana, entre reprodução social e Estado. Modos de descrever e fi gurar a ordem das coisas, que era também um modo de identifi car e nomear seus campos de força e horizontes de possíveis. 11

Na virada dos tempos (década de 1990), o espaço conceitual (e crítico) em que essas referências circulavam foi desativado, talvez tragado pele vórtice de transformações que fi zeram cortar os nexos que articulavam esses pares conceituais, que trouxeram questões que escapavam por todos os lados desses feixes de referência e que fi zeram erodir ou encolher os horizontes de possíveis que alimentavam as apostas políticas que pulsavam em todo esse debate. Isso que se convencionou chamar de desregulação neoliberal em tempos de globalização, fi nanceirização da economia e revolução tecnológica fez por desestabilizar as referências e parâmetros pelos quais pensar a cidade (e o país) e suas questões, ao mesmo tempo em que as realidades urbanas modifi cavam-se em ritmo muito acelerado. Se as conexões que antes articulavam trabalho, cidade e política foram desfeitas é como se, depois, cada um desses termos passasse a polarizar outros feixes de questões e compor outras relações que escapam do espaço conceitual no qual o debate dos anos 1980 se processava. É desse ponto de clivagem que partimos. Se antes a questão urbana era defi nida sob a perspectiva (e promessa) do progresso, da mudança social e do desenvolvimento (anos 60/70) e, depois, da construção democrática e da universalização dos direitos (anos 80), agora os horizontes estão mais encolhidos, o debate é em grande parte conjugado no presente imediato das urgências do momento, o problemas urbanos tendem a deslizar e a se confundir com os problemas da gestão urbana e a pesquisa social parece em grande parte pautada pelos imperativos de um pragmatismo gestionário das políticas sociais voltadas às versões brasileiras dos quartiers difficiles. É essa diferença dos tempos que lança a interrogação quanto ao plano de referência a partir do qual descrever e colocar em perspectiva (e sob perspectiva crítica) a nossa complicação atual. Este o duplo desafi o: a construção de parâmetros críticos implica ao mesmo tempo a construção de parâmetros descritivos para colocar em perspectiva realidades urbanas em mutação. Esta a questão que se tentou enfrentar ao longo deste livro. Entre as tipifi cações (fi cções?) das chamadas populações em situação de risco e as análises gerais, o outro lado dos debates atuais, sobre economia urbana e a cidade global, há todo um entramado social que resta a conhecer, que não cabe em modelos polares de análise pautados pelas noções de dualização social, que escapa às categorias utilizadas para a caracterização da pobreza urbana e que transborda por todos os lados do perímetro estreito dos pontos críticos de vulnerabilidade social identifi cados por indicadores sociais. As tramas da cidade: este, o foco da pesquisa que esteve na origem deste livro. A pesquisa benefi ciou-se de um programa de cooperação franco-brasileira (IRD-CNPq) e é grandemente devedora da parceria de Robert Cabanes (IRD), que se lançou no trabalho de campo junto com uma equipe de jovens pesquisadores, todos eles alunos de graduação e pós-graduandos do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo. Essa pesquisa resultou em uma publicação coletiva (Telles & Cabanes, 2006). Alguns de seus capítulos foram retrabalhados e incorporados na primeira parte deste livro (capítulos 1, 2 e 3). 12

Quanto ao mais, tudo o que aqui será apresentado alimenta-se desse empreendimento de pesquisa, não apenas do que foi exposto nessa publicação conjunta, mas também ou sobretudo dos desdobramentos dessa pesquisa levados a efeito por esse coletivo de jovens pesquisadores cujas questões e achados de pesquisa foram, tanto quanto as minhas próprias, sempre e isso desde o início, discutidas conjuntamente. Lançada em 2001, essa foi uma pesquisa movida por essa interrogação ao mesmo tempo empírica e teórica lançada pelos desafi os postos pela virada dos tempos um trabalho de investigação que, no seu próprio andamento, fosse capaz de fornecer os elementos para se construir o plano de referência a partir do qual colocar em perspectiva essas realidades urbanas redefi nidas no curso dos últimos anos. Optamos por um percurso exploratório. À distância de explicações gerais sobre a cidade e sua crise e também de categorias prévias ou tipifi cações dos pobres urbanos e excluídos do mercado de trabalho, tentamos ler essas mudanças a partir das trajetórias urbanas de indivíduos e suas famílias. É sob esse prisma que tentamos conhecer algo das tramas sociais que confi guram espaços urbanos. A pesquisa está longe de oferecer um panorama geral da cidade e suas transformações recentes, e nem foi esse o objetivo. Mas nem por isso essas trajetórias podem ser tomadas como ilustração ou demonstração de algo já sabido e dito como exclusão social ou segregação urbana. No curso de suas vidas, indivíduos e suas famílias atravessam espaços sociais diversos, transitam entre códigos diferentes, seus percursos passam através de diversas fronteiras e são esses traçados que podem nos informar sobre a tessitura do mundo urbano, seus bloqueios e seus pontos de tensão, mas também os campos de gravitação da experiência urbana nesse cenário tão modifi cado. Entre os deslocamentos espaciais e expedientes mobilizados para o acesso à moradia, os percursos do trabalho e suas infl exões recentes, os agenciamentos da vida cotidiana e os circuitos que articulam moradia e a cidade, seus espaços e serviços, essas trajetórias são pontuadas por situações que podem ser vistas como pontos de condensação de práticas, mediações e mediadores nos quais estão cifrados os processos em curso. É um outro modo de interrogar essas realidades, que não parte de defi nições prévias e muitas vezes modelares de exclusão social, de segregação urbana ou de pobreza e que, no mais das vezes, deixam escapar a rede de relações e práticas que conformam um espaço social. Ao seguir os traçados dos percursos urbanos de indivíduos e suas famílias, é a própria cidade que vai se perfi lando. Não como contexto dado, geral e homogêneo, em função do qual situar casos e explicá-los em suas determinações. São múltiplos os perfi s da cidade que vão se delineando nos contextos variados nos quais se inscrevem os atores e o jogo tenso (e por vezes confl itivo) de suas relações. Situadas em seus contextos de referência e nos territórios traçados pelos percursos individuais e coletivos, essas trajetórias operam como prismas pelos quais o mundo urbano vai ganhando forma em suas diferentes modulações. São elas, essas trajetórias, que nos orientaram 13

nessa prospecção de realidades em mutação, abrindo-se a novas questões e novas interrogações que se colocam no andamento dessa construção exploratória do objeto de que fala Bernard Lepetit (1996). A perspectiva descritiva que as trajetórias urbanas propiciam é questão tratada no capítulo dois, que leva justamente este título, Perspectivas descritivas. Uma descrição da cidade, seguindo as trilhas das trajetórias urbanas. Um modo de descrever o urbano colocando em foco a trama das mediações e conexões que articulam e ao mesmo tempo transbordam campos de práticas nas suas formas estabelecidas (trabalho, moradia, consumo e serviços, etc.), estabelecendo zonas de contiguidade e criando passagens onde não se esperava que acontecessem. Não contextos ou circunstâncias de localização, mas algo que é constitutivo de situações que traçam o seu próprio território feito de práticas, circuitos de deslocamentos, zonas de contiguidade e conexões com outros pontos de referência que conformam o social nas suas fronteiras ou limiares, bloqueios e possibilidades. No seu conjunto, na contraposição entre histórias e percursos diversos, são as modulações da cidade (e história urbana) que vão se perfi lando nas diferentes confi gurações de espaço-tempo traçadas por essas histórias. Como pode ser visto no capítulo três, Deslocamentos: percursos e experiência urbana, os diferentes perfi s da cidade podem se projetar a partir de um mesmo local ou de uma mesma família. E é isso que nos pode oferecer uma chave para apreender as dinâmicas urbanas que defi nem as condições de acesso à cidade e seus espaços, a trama dos atores, as modalidades de apropriação dos espaços e seus recursos. É justamente nessas tramas da cidade que se aloja a complicação atual e que será preciso, por isso mesmo, auscultar. É nessas tramas que os lances da vida são jogados, é aí que se processam as exclusões, as fraturas, os bloqueios. Também as capturas na hoje extensa e multifacetada malha de ilegalismos que perpassam a cidade inteira e que operam, também elas, nas dobras do legal-ilegal, como outras tantas formas de junção e conjugação da trama social. Aí também os elos perdidos da política, tragados que foram pelo princípio gestionário que trata das pontas, da dita governança econômica e, de outro lado, da gestão do social e administração de suas urgências. No meio, isto é, em tudo o que importa, não existe o vazio que expressões como a de exclusão social podem sugerir, porém os fi os que tecem a tapeçaria do mundo social, as tramas da cidade e nas quais estão em jogo os sentidos da vida e das formas de vida. Menos uma tese, mais uma experimentação. É assim que eu defi niria o que o leitor vai encontrar ao longo destas páginas. Mais interessante do que apresentar as conclusões (se é que existem), o que importa são os percursos pelos quais se tentou armar um campo de investigação, as questões que surgiram e as perguntas que, no andamento desse trabalho, redirecionaram a pesquisa, tanto quanto os parâmetros teóricos para lidar com as questões que se impuseram nesse percurso de prospecção dos mundos urbanos. Mas, então, talvez seja o caso de explicitar o que aqui se entende por experimentação e prospecção dos mundos urbanos. Que se diga, desde logo: não 14

se trata de um trabalho prévio, as preliminares, fase preparatória do que quer que seja e que venha se apresentar, depois, como principal ou conclusivo. É um modo de produção de conhecimento. E uma escolha que deriva, em grande medida, do viés pelo qual se tentou apreender as linhas de força que atravessam e conformam os mundos urbanos: seguir as mobilidades urbanas, perseguir os traços das trajetórias de homens e mulheres nos espaços da cidade. Mobilidades urbanas: como bem nota Jacques Brun (1993), as relações entre cidade e mobilidade de mercadorias, de capitais, de informações, de ideias, de comportamentos e sobretudo de pessoas é um tema clássico nos estudos sobre o urbano. Desde os fundadores da Escola de Chicago, seguindo linhagens teóricas diversas e sob abordagens também diferenciadas, as mobilidades urbanas e os deslocamentos espaciais, ocupacionais e habitacionais foram tomados e assim pesquisados como cifra para o entendimento das transformações urbanas, de suas linhas de ruptura e de fratura, mas também de recomposições e convergências, processos multifacetados por onde diferenciações sociais vão se desenhando, ganhando forma e materialidade nos espaços das cidades pesquisadas (cf. Grafmayer, 1995; Grafmayer e Joseph, 1979). No correr dos anos 1990, a questão ganhou um renovado interesse no contexto de transformações urbanas que se seguiam em ritmo acelerado, alterando tempos e espaços da experiência social, redefi nindo escalas de distância e proximidade, alterando práticas sociais e seus circuitos, modalidades de acesso à cidade e seus espaços. O estudo das mobilidades urbana foi relançado como perspectiva que prometia superar muitas das limitações da noções, categorias e parâmetros estabelecidos para medir e caracterizar a segregação urbana, já que transbordados por uma complexidade inédita das realidades que estavam a exigir abordagens aptas a captar movimentos e deslocamentos, práticas e jogos redefi nidos de atores que desfaziam os parâmetros conhecidos da cidade fordista com seus espaços, tempos e ritmos defi nidos nas binaridades bem estabelecidas entre trabalho e moradia, centro e periferia, produção e reprodução (cf. Brun, 1993; Levy e Dureau, 2002, Bonnet & Desjeux, 2000). Mais recentemente, os processos de globalização colocaram a questão da mobilidade no centro de um empreendimento ao mesmo tempo teórico e empírico para dar conta das transformações que reviraram de alto a baixo as cidades (e sociedades). Não por acaso, a noção (ou metáfora, em alguns casos) de fluxos vem sendo mobilizada para caracterizar essa intensa e ampla mobilidade de capitais, mercadorias e trabalho, informações e imagens, tecnologias e técnicas (Lasch & Urry, 1994; Hannerz, 1996; Appadurai, 1996; Castells, 1999), que atravessa todas as regiões do planeta, ignorando fronteiras nacionais, criando relações de transversalidades entre povos e culturas, mercados e economias, formas de vida e práticas sociais. Alain Tarrius (2000) propõe o paradigma da mobilidade como perspectiva descritiva e analítica para apreender a trama de relações sociais urdidas nos pontos de entrecruzamento de mudanças que afetam espaços econômicos, normas sociais e racionalidades políticas. John Urry 15

(2000) faz um verdadeiro manifesto pela sociologia dos fluidos em contraposição a análises baseadas em unidades estáticas e lugares fi xos próprios da sociologia clássica. Outros vão chamar a atenção para o fato de que os deslocamentos de bens, mercadorias, informações e de pessoas são fortemente mediados por redes sociotécnicas e novas tecnologias (Latour,1994; Appadurai,1986). Appadurai sugere que a combinação de novas formas de mobilidade e novas tecnologias de comunicação afeta a imaginação social e aciona as diversas fi guras do que o autor chama de mundos imaginados (no lugar das comunidades imaginadas de Benedict Anderson). Hannerz (1996), por sua vez, vai enfatizar a cerrada trama de interconectividade entre espaços e territórios, que perpassa as formas cotidianas de vida e os diferentes espaços de interação, o que afeta os próprios sentidos de local e localidades, bem como os dispositivos de pesquisa capazes de identifi car esse jogo variado de escalas e mediações que perpassam os mundos sociais, questão também discutida por Appadurai (e outros). São registros diferentes pelos quais a mobilidade é colocada no centro da indagação sobre a cidade e suas mutações, cada qual se abrindo ao feixe de questões postas pelo tempo em que foram formuladas e as temporalidades próprias das cidades em seus contextos de referência. Certamente, a discussão hoje está muito distante das ênfases dos pesquisadores que, no início do século XX, debruçavam-se sobre uma dinâmica urbana então em constituição, fervilhando na Chicago do começo do século, formulando suas questões sob o ponto de vista da especifi cidade do urbano, da urbanidade e do cosmopolitismo, opostos globalmente e estruturalmente ao rural e às características (certamente idealizadas) próprias do vilarejo. No debate contemporâneo essas questões perderam pertinência. Não por acaso vem-se chamando a atenção para a implosão das binaridades clássicas das ciências do social e do urbano, tais como centro-periferia, tradição e modernidade, atraso e progresso, ao mesmo tempo em que a escala e a dinâmica dos atuais deslocamentos humanos não podem mais ser vistos nos termos clássicos dos estudos de migração e modernização (cf. Appadurai, 1996; Tarrius, 2000): migrantes, refugiados, populações deslocadas, trabalhadores em movimento por entre regiões e localidades movimentos que afetam a tessitura das tradicionais comunidades de referência, tanto do ponto de vista dessas populações-em-movimento quanto no registro do modo como são redefi - nidas para as populações sedentárias. Deslocamentos e formas de mobilidade, cada qual impulsionado por feixes singulares de circunstâncias e causalidades (porém, com ressonâncias entre uns e outros): travessia de fronteiras, ocupação de regiões limítrofes, deslocamentos de trabalho e trabalhadores seguindo os fluxos dos capitais e das redes de extensão variada por onde opera o chamado capitalismo fl exível, ao mesmo tempo em que o traçado desses deslocamentos tem impactos consideráveis sobre a reconfi guração dos espaços urbanos e a morfologia das cidades. O inventário dessa discussão, bem como das polêmicas nela inscritas, poderia ir longe. Por ora, importa tão-somente chamar a atenção para algumas questões 16

importantes para bem situar o andamento deste livro e os sentidos da pesquisa exploratória aqui proposta. De partida, é importante dizer: a questão da mobilidade não diz respeito a um tema ou um objeto que viria se justapor como complemento ou acréscimo a outros previamente defi nidos no campo empírico das ciências sociais. Tampouco poderia ser defi nida como um contexto geral (a globalização) a partir do qual situar as realidades estudadas. É um plano de referência que redefi ne o quadro descritivo (e analítico) das situações investigadas, colocando em mira a teia de conexões e mediações que as atravessavam. Em outros termos, é um plano de referência que (re)defi ne o modo de construção de nossos objetos e nossas questões de pesquisa. A questão da mobilidade inscreve-se em um espaço conceitual que mobiliza as noções conexas de circulação e de acessibilidade acesso (e seus bloqueios) a espaços, serviços, artefatos, bens e produtos que a cidade oferece e faz circular de formas desiguais e assimétricas nos espaços urbanos. É um modo de pensar a cidade (e seus problemas) a partir de referências outras em relação ao que fi cou consagrado por uma certa linhagem de estudos urbanos e pela qual a cidade é vista sob o ângulo exclusivo da habitação e seu entorno imediato, dito comunitário ou dos problemas locais a serem geridos de forma efi caz por programas localizados. A cidade é feita de cruzamentos e passagens, é atravessada por experiências que se fazem justamente nos limiares de universos distintos, de seus pontos de conexão e das redes sociotécnicas que os atravessam e articulam em um mesmo plano de atualidade. É isso que introduz a questão da circulação, da mobilidade e da acessibilidade como prisma para a problematização da cidade e suas questões. Como diz Isaac Joseph (1998: 92), pensar a cidade como domínio da circulação e do acessível (e seus bloqueios) é, de partida, dizer que ela é tudo, menos o lugar de formação de uma comunidade. Apreender os bairros, em particular os chamados bairros desfavorecidos, diz Joseph, a partir da cidade é pensá-los no plural, situados em um plano de consistência que lhes autoriza a permanecer urbanos, já que atravessados por uma teia de redes e circuitos em escalas diversas, pontos de conexão entre territórios diversos, transversalidades de experiências feitas em seus limiares e nos quais pulsa a vida urbana e seus problemas. A questão proposta por Joseph é especialmente interessante, sobretudo pelo contexto polêmico em que foi formulada: um modo de pensar a cidade e suas questões que signifi ca forçosamente um ponto crítico em relação a um vetor da fi losofi a do habitar ancorada na experiência da proximidade e do mundo à mão e que está hoje no coração de práticas gestionárias que buscam corrigir um défi cit de urbanidade sob o primado de lógicas normativas e concepções securitárias, também redutoras, enfatiza Joseph, do local posto como lugar por excelência de formação de identidades e inserção social (cf. Joseph, 1998: 92-93). Em outros termos: a questão da mobilidade defi ne um plano de referência que permite situar criticamente os dispositivos gestionários muitas vezes apresentados 17

como exemplos virtuosos de cidadania local. No entanto, mais interessante e mais fecundo do que entrar em polêmicas (no mais das vezes inócuas), está justamente no parâmetro descritivo ou um dispositivo cognitivo que permita deslocar a perspectiva pela qual compor e ordenar os fatos, mostrar conexões e feixes de relações que não se deixariam ver sob o prisma da comunidade. Outros modos de descrever as coisas, permitindo a partir daí colocar uma ordem de questões que não podem ser resolvidas nos termos habituais, abrindo por isso mesmo a fenda a partir da qual exercitar a imaginação crítica. É justamente nesse sentido que aqui se diz que a construção de parâmetros descritivos é também a construção de parâmetros críticos. Não estou segura de termos sido bem sucedidos nessa empreitada. Mas é uma aposta. Um plano de referência e um espaço conceitual, a questão da mobilidade supõe (e exige) uma estratégia descritiva voltada aos pontos de conexão e intersecção dos circuitos entrelaçados ou superpostos que fazem a trama urbana. Isso signifi ca dizer que o entendimento das dinâmicas locais supõe (e exige) seguir e seguir no sentido literal, empiricamente as linhas entrelaçadas que compõem o social, porém transbordam amplamente o perímetro local, justamente porque fazem o traçado de redes superpostas, de escalas variadas, que atravessam e defi nem (ou redefi nem) cada situação, colocando-as ao mesmo tempo em ressonância com outras situações de tempo e espaço. Concretamente, a questão das mobilidades impõe uma certa modalidade de pesquisa: algo como a traçabilidade das práticas, suas mediações e conexões, a partir de postos de observação ancorados em situações defi nidas. Tomemos um exemplo: nos pontos extremos da periferia leste da cidade de São Paulo, o tradicional e hoje renovado trabalho a domicílio. Sob uma certa perspectiva, exemplo paradigmático da atividade de sobrevivência própria ao mundo da pobreza com todas as limitações e vulnerabilidades que lhe são defi nidoras nos pontos de junção entre precariedade (ou exclusão) social e segregação urbana. No entanto, basta seguir o traçado dos produtos e pessoas que uma outra topografi a urbana e social seja desenhada. A partir daí é possível desenrolar os fios dos circuitos variados do chamado mercado informal e, em suas conexões, os jogos de poder e relações de força de que dependem essa circulação ampliada de produtos pelas vias de redes de subcontratação que chegam aos pontos extremos das periferias urbanas. Primeiro, claro está, há os intermediários que fazem a conexão com os polos globalizados da economia e também com os negócios obscuros em que se misturam máfi as locais, os empresários do contrabando e outros ilícitos, tudo isso ativando o hoje expansivo e rendoso comércio de produtos falsifi cados ou simplesmente desviados. No entanto, há também associações comunitárias ditas fi lantrópicas que se transformam em agenciadoras de redes locais de subcontratação em uma peculiar mistura de apelo solidário, clientelismo e jogos de poder nas disputas locais, tudo isso redefi nido na medida em que é mobilizado por redes de subcontratação que são acionadas, sabe-se lá porque e por quem e de modo muito obscuro, pois nunca se sabe ao certo de onde vem a 18

encomenda, muito menos quem paga pelo trabalho feito e para onde vai o produto realizado. Atravessando tudo isso, nos mesmos espaços e nos mesmos territórios, os fluxos da migração clandestina trazem para os fundos da periferia leste da cidade os bolivianos, agora personagens conhecidos da paisagem urbana, que vivem e trabalham em condições mais do que penosas, já que em boa medida são cativos dos coreanos que muito frequentemente agenciam a migração e estão muitíssimo bem instalados no centro da cidade: é daqui que saem as encomendas que vão circular pelas redes informais de subcontratação, mobilizando bolivianos e, mais, boa parte do trabalho a domicilio nessas regiões distantes da cidade, ativando os circuitos da produção têxtil que, no caso da zona leste da cidade, se alimenta da história urbana da região e reatualiza a importância do centro velho (Brás, Bom Retiro), onde estão instaladas as confecções, onde se entrelaçam todos esses fi os, abertos e subterrâneos ou clandestinos, e são igualmente urdidas as vinculações com um mercado inteiramente integrado ao capital globalizado. Essas questões foram trabalhadas por Carlos Freire (2008). No início, apenas uma pesquisa sobre trajetórias ocupacionais de moradores instalados no extremo leste da cidade e seus deslocamentos urbanos ao longo de seus percursos de trabalho. Teria sido mais um e apenas um estudo sobre trabalho precário e pobreza, se não houvesse essa prospecção que buscou seguir o traçado das pessoas e dos produtos, bem como os agenciamentos territorialmente situados que permitem essa articulação entre o trabalho informal e os circuitos ampliados de economias transnacionais. É essa teia de mediações e esse jogo de escalas entrecruzadas que podemos desdobrar a partir de qualquer um dos pontos de venda do hoje proliferante comércio ambulante, seguindo a traçabilidade dos produtos que circulam nos centros de comércio popular e que fazem circular produtos de origens variadas, quase sempre duvidosas, pondo em ação agenciamentos locais e territorializados (verdadeiros dispositivos comerciais) que fazem a articulação entre o informal e os circuitos ilegais das economias transnacionais (contrabando, pirataria, falsifi - cações): pontos de ancoramento de um capitalismo que, como diz Alain Tarrius (2007), mobiliza os pobres como clientes, como consumidores e operadores ou passadores que garantem a circulação e distribuição de mercadorias que, sem esses circuitos nas fronteiras porosas do legal e ilegal, quando não ilícito, não chegariam aos recantos mais pobres das várias regiões do planeta. Disso temos as evidências na expansão mais do que considerável dos mercados de consumo popular, que apresentam uma densidade notável no centro da cidade, mas que se expandem igualmente nos bairros periféricos em mercados locais que se apoiam em uma trama variada tecida nas fronteiras incertas do informal, do ilegal e do ilícito. Aqui, todas as situações podem ser encontradas lado a lado, num total embaralhamento do legal e do ilegal, do lícito e do ilícito, do formal e do informal: aí os produtos circulam por meio de acordos nem sempre fáceis de serem mantidos entre organizações mafi osas, gente ligada ao tráfi co de drogas, comerciantes pobres, intermediários dos coreanos (e de outros tantos), além 19

dos técnicos das subprefeituras que tentam fazer valer as regulações ofi ciais, tudo isso misturado com pressões, corrupção, acertos obscuros e histórias de morte. Mas é lá mesmo que circulam produtos de procedência conhecida, desconhecida, duvidosa ou simplesmente ilícita, e também o excedente, se é que é possível falar nesses termos, das famílias engajadas no trabalho a domicílio e que se viram como podem para bem aproveitar o tempo que lhes sobra entre os ritmos descontínuos e incertos da produção sob encomenda. Voltaremos a isso no capítulo 5. Mudando de registro, agora o lado formal-legal das reconfi gurações sóciourbanas recentes, o mesmo exercício pode ser feito a partir das práticas de consumo de famílias pauperizadas. Essa foi a pesquisa realizada por Claudia Sciré (2009) em uma favela situada na periferia sul da cidade. Seria mais um e apenas um estudo sobre a pobreza e estratégias de sobrevivência, não fosse um dispositivo de pesquisa que buscou rastrear as práticas e seus circuitos, as mediações e as conexões pelas quais a economia domestica se redefi ne em função das condições de acesso aos grandes equipamentos de consumo que hoje recortam de ponta a ponta os espaços urbanos, também as periferias da cidade. Não se trata simplesmente da proximidade física dos hipermercados, shopping centers e lojas de departamento que hoje disputam os chamados mercados populares, as ditas classes C e D. A hoje celebrada explosão do consumo popular não teria sido possível sem a generalização dos cartões de crédito em suas várias modalidades e foi justamente esse o foco da pesquisa realizada. Mais do que um assunto interessante, na verdade o rastreamento desse artefato e seus usos permitiu à pesquisadora deslindar o modo como a lógica da dívida e as práticas de endividamento sucessivo (transferido para a fatura do mês seguinte) alteram os modos de organização da vida familiar, bem como afetam os circuitos da sociabilidade e da solidariedade intrapares, com os cartões circulando na teia de préstimos e contra-préstimos: uns emprestam nome e cartões para outros com o nome sujo na praça ou para ajudar a aquisição de bens para além dos patamares de renda defi nidos pelo salário e, ao fi nal, uns e outros se veem enredados no esforço por inventar expedientes para negociar a dívida, transferir para o mês seguinte, usando um cartão para cobrir a dívida de um outro, um cartão próprio ou cartão emprestado, uma dívida que se paga com outra dívida. Algo como uma fi nanceirização do tradicional (tornado arcaico) fi ado, também dos jogos da reciprocidade popular. Ao fazer a traçabilidade desse artefato urbano que são os cartões de crédito, vamos encontrar os fi os que articulam esses jogos sociais redefi nidos, os equipamentos de consumo, as fi nanceiras, os dispositivos de crédito, também os procedimentos de gestão da dívida, dito negociação da dívida, mas que não fazem mais do que tornar os indivíduos, dito os clientes, cativos do fluxo fi nanceiro que não pode ser interrompido. Gestão da dívida que, pelo lado das famílias, desdobra-se em expedientes mobilizados, também nas fronteiras incertas entre o legal e ilegal, lícito e ilícito, pelos quais a dívida vai se transferindo de um ponto a outro, até entrar, por vezes, em ponto de com- 20

bustão. Aqui, a partir de uma situação que poderia ser tomada como exemplar das condições de pobreza e vulnerabilidade social, perfi la-se toda uma outra dimensão da cidade, os registros tangíveis da modernização urbana que, nos últimos anos, se fez acompanhar pela proliferação dos grandes equipamentos de consumo (em suas relações com o capital fi nanceiro) que redefi nem a lógica de produção de espaços urbanos (o que já foi amplamente debatido pela literatura especializada), mas que também afetam dinâmicas sociais e seus pontos de fricção, reconfi gurações societárias que fi cariam ilegíveis sob o parâmetro comunitário que impera em larga medida nos estudos sobre pobreza urbana. Essas questões serão retomadas no capítulo 3, Deslocamentos: percursos e experiência urbana. Poderíamos multiplicar os exemplos. Outros serão discutidos ao longo destas páginas. A rigor, não se trata de exemplos ou de casos interessantes. São situações nas quais feixes variados de relações e conexões estão consteladas. Em cada qual, jogos situados de escala. Cada situação é atravessada por processos transversais nas trilhas muito concretas das diversas formas de conexão e interconectividade, seja pelas mediações sociotécnicas e seus artefatos (os cartões de crédito, por exemplo, para ficar apenas no caso aqui comentado), seja pelas redes socioeconômicas, aí incluindo os circuitos obscuros dos mercados informais, o tráfi co de drogas e o comércio de bens ilícitos. Colocadas lado a lado, elas se comunicam pela transversalidade das questões postas em cada uma, fazendo perfi lar realidades urbanas contrastadas apreendidas a partir de suas diversas angulações, jogo de perspectivas lançadas sob diversos prismas. Se é verdade que o cenário urbano vem sendo alterado em ritmos muito acelerados, os vetores dessas mudanças operam em situações de tempo e espaço. Processos situados, portanto. E agenciados por um jogo multiforme de atores, de redes sociais e mediações de escalas também variadas. Por isso mesmo, só podem ser bem compreendidos nessas constelações situadas. Este o pressuposto que orienta nosso trabalho: não se trata de partir de objetos ou entidades sociais tal como se convencionou defi nir de acordo com os protocolos científi cos das ciências sociais (o trabalho, a família, a moradia), mas, sim, de situações e confi gurações sociais a serem tomadas como cenas descritivas, que permitam seguir o traçado dessa constelação de processos e práticas, suas mediações e conexões. E, no contraponto entre cenas descritivas diferentes, a transversalidade das questões que se colocam. A partir de cada situação, tal como postos de observação, é possível apreender os perfi s contrastados da cidade, fazendo a traçabilidade das práticas, seus circuitos e mediações. É um experimento de pesquisa que pode nos abrir uma senda para identifi car, seguir os traços e traçados dos ordenamentos sociais que vêm sendo tramados nos tempos que correm. É nesse sentido que se assume como hipótese teórico-metodólógica a exigência de uma etnografi a experimental, tomando como referência cenas descritivas a partir das quais seguir as pistas de ordenamentos sociais emergentes. 21