O IMPACTO DO CINEMA NO ESPECTADOR CONTEMPORÂNEO ENQUANTO BREVE ABANDONO DO VOYEURISMO Laísa Roberta Trojaike* É uma grande ilusão supor que a interpretação tem início com o surgimento de um pensamento. Por pensamento entendo o sentido de uma sentença (FREGE, 2002), ou seja, o conteúdo (conceitos, juízos e raciocínios) expresso pela linguagem. O espectador menos inocente deve estar ciente de que a interpretação da imagem surge muito antes de se poder asserir acerca do que se vê. O teórico francês Jacques Aumont, pupilo de Christian Metz, dedica toda a primeira parte do seu livro A Imagem para descrever, na medida do possível, como se dá a percepção visual, adentrando em minúcias sobre o funcionamento do olho enquanto decodificador de raios luminosos. O autor percorre esse caminho, pois julga imprescindível que se faça uma análise dessa espécie para poder, posteriormente, tratar da imagem em si ou da imagem enquanto objeto de admiração ou reflexão humana. Aumont esclarece: Assim, a percepção visual é o processamento, em etapas sucessivas, de uma informação que nos chega por intermédio da luz, que entra em nossos olhos. Como toda informação, esta é codificada em um sentido que não é o da semiologia: os códigos são, aqui, regras de transformação naturais (nem arbitrárias, nem convencionais) que determinam a atividade nervosa em função da informação contida na luz. Falar de codificação da informação visual significa, pois, que nosso sistema visual é capaz de localizar e de interpretar certas regularidades nos fenômenos luminosos que atingem nossos olhos. Em essência, essas regularidades referem-se a três características da luz: sua intensidade, seu comprimento de onda, sua distribuição no espaço (consideremos adiante sua distribuição no tempo). (AUMONT, 2009, pg. 22) Certamente, é notável o quão independente da nossa interpretação consciente é a visão. Não bastasse isso, a imagem que chega a nós pode ter sido manipulada ou criada de forma a nos causar ilusões ou, em outro caso, podem chegar à nossa consciência já afetadas pela carga cultural, preconceitos e juízos que, voluntária ou involuntariamente alimentamos. *Aluna do bacharelado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e bolsista do PET Filosofia.
Tudo isso deságua numa única conclusão, que diz respeito à refutação de qualquer teoria que venha a defender a possibilidade de termos acesso puro a uma imagem em seu estado, por assim dizer, bruto. Quando uma imagem nos é mostrada, além da interpretação própria da visão, fazemos nossas pupilas percorrerem a imagem em busca de elementos reconhecíveis para, em seguida, fazer asserções acerca desses elementos e induções acerca dos que nos são desconhecidos. Na presença de algo nunca antes visto, podemos, por exemplo, ter a experiência de ver algo que não existe ou concluir que a imagem simplesmente é abstrata. Em suma, há, de fato, uma série de complexas relações que determinam a captação de uma imagem através da visão e prejudicam fortemente a livre racionalização do sentido da imagem. Dado esclarecimento, podemos nos localizar com maior firmeza no processo que se segue à mera captação da imagem pelo sentido da visão. A mera percepção das pessoas e do fundo, da profundidade e do movimento, fornece apenas o material de base (MUNSTERBERG, 1991, p. 27). Não só filósofo do cinema, mas também psicólogo, o alemão Hugo Munsterberg afirmava que Devemos acompanhar as cenas que vemos com a cabeça cheia de ideias. Elas devem ter significado, receber subsídios da imaginação, despertar vestígios de experiências anteriores, mobilizar sentimentos e emoções, atiçar a sugestionabilidade, gerar ideias e pensamentos, aliar-se mentalmente à continuidade da trama e conduzir permanentemente a atenção para um elemento importante e essencial a ação. (MUNSTERBERG, 1991, p. 27) Quando os irmãos Lumière criaram o cinematógrafo (cinématographe), o único intuito era poder captar movimentos para então levá-los a um laboratório, onde seriam submetidos a toda espécie de análise, afinal, uma simples imagem em movimento (sem manipulação) é, na verdade, um recorte da realidade e, por isso, um instrumento ímpar do progresso científico. Mas, tal qual uma anomalia física, o cinematórgrafo não poderia ficar recluso aos laboratórios. Em 28 de Dezembro de 1895, no Grand Café em Paris, ocorreu a primeira exibição de um filme. Foi exibido La Sortie de l'usine Lumière à Lyon (A Saída da Fábrica Lumière em Lyon), além de outras películas que se tornariam famosas, como Le Déjeuner de Bébé (O Almoço do Bebê) e L'Arrivée d'un train en gare de la Ciotat (Chegada de um Trem à Estação da Ciotat). O
último, inclusive, causou impacto suficiente para fazer com que as pessoas desviassem do trem que parecia estar vindo na direção delas. Foi o ilusionista francês Georges Méliès que, ao ver aquele aparato, teve a ideia de utilizá-lo não só para mostrar recortes do cotidiano, mas sim, para contar histórias e criar ilusões. Utilizando-se dos seus conhecimentos prévios de ilusionista e de uma criatividade invejável, Méliès foi capaz de conceber o cinema, algo que viria a ser chamado de arte. E é por isso que o considero o pai do cinema, ao invés de D. W. Griffith, o inventor da linguagem especificamente cinematográfica. Foi por ser pai do cinema, que Méliès esteve sujeito ao parricídio. Desde seu princípio o cinema foi tido por objeto de entretenimento (de massas). Criou-se uma cultura de passividade passional ante a imagem-movimento: riase, chorava-se, angustiava-se, etc. e, por vezes, propagandeava-se. Os primeiros pioneirismos da linguagem originalmente cinematográfica não diziam respeito, pelo menos em sua essência, a elementos filosoficamente analisáveis, uma vez que compunham um cada vez mais sofisticado maquinário narrativo. O crítico de cinema e esteta Béla Balázs comentou: Algumas pessoas acreditam que as novas formas de expressão proporcionadas pela câmera se devem apenas à suas mobilidade. Ela não só mostra novas imagens o tempo todo, como também o faz de ângulos e distâncias que mudam constantemente. Aí estaria a novidade do cinema. É verdade que a câmera cinematográfica revelou novos mundos, atpe então escondidos de nós: como a alma dos objetos, o ritmo das multidões, a linguagem secreta das coisas mudas. (...) Nada comparável a este efeito de identificação já ocorreu em qualquer forma de arte e é aqui que o cinema manifesta a sua absoluta novidade artística. (BALÁZS, 1991, pg. 84-85) A linguagem cinematográfica tratou de levar o espectador para dentro da cena, pois a câmera carrega o espectador para dentro mesmo do filme (BALÁZS, 1991, pg. 85). De fato isso é muito belo e essa quase hipnose causada pelo cinema é uma experiência ímpar. O grande problema reside no fato de o espectador ter se
acomodado nesse papel de passividade, de quem vê e sente o filme, mas nada ou pouco pensa sobre ele. Uma posição de simples voyeur. Jacques Rancière, inclusive, propõe uma emancipação do espectador. O autor defende que a posição de espectador passivo não é adequada e sugere uma emancipação, não só da posição do espectador, mas também intelectual. A maioria dos espectadores não vê no cinema alguma forma de arte ou via de acesso a um novo raciocínio. Sentados em suas poltronas, regozijam-se com o entretenimento que, comumente, contribui para o (des)conhecimento do espectador. Obras como as de Charlie Chaplin, embora tivessem sido apreendidas pelas massas como entretenimento puro, sempre contiveram algo além de uma série de cômicas situações protagonizadas pelo icônico vagabundo. Filmes como Luzes da Cidade ou O Grande Ditador mostram com evidente clareza realidades sociais e geram questionamentos pertinentes às questões sociais da época. Em contrapartida, blockbusters hollywoodianos como, por exemplo, os longas da franquia Transformers, pouco são além de um produto a ser consumido pelo espectador. Dessas obras, pode-se extrair o resultado de um conjunto de crenças de uma dada sociedade inserida em uma determinada época, isto é, é possível extrair elementos de filmes-produto através de uma analise, mas tais filmes, por si só, são incapazes de fazer o espectador sair da passividade, ao contrário, induzem ao pleno voyeurismo. Por outro lado, diretores como Gaspar Noé tornam impossível a passividade perante a imagem. Utilizarei como exemplo dois dos seus principais longas, Sozinho Contra Todos e Irreversível, além do seu curta We Fuck Alone. Em Irreversível a passividade é imediatamente afastada, com a utilização de um movimento de câmera constante e nauseante. Logo após o primeiro diálogo, somos forçados a entrar em uma casa noturna repleta de gemidos, nudez e exposta sexualidade. Uma cena de extrema violência acompanhada de excitação sexual por parte de alguns figurantes. Dado isso, o filme segue, do fim para o início, com considerável estabilidade. A câmera mantém seu fluxo caótico até que, no ápice do filme, Noé nos força ao voyeurismo. Não o voyeurismo do espectador que se entrete ante uma cena de comédia,
ação ou aventura, mas o voyeurismo de ser forçado a observar algo que nos desconserte. A filmagem caótica, que raramente nos permite focalizar algo específico, de repente para, nos forçando a assistir sádicos oito minutos de uma cena de estupro. Logo depois, o filme segue normalmente rumo à sua moral. Já em Sozinho Contra Todos, anterior à Irreversível, Gaspar Noé nos faz acompanhar a trajetória de um homem cujo passado o persegue e cujos questionamentos desemborcam em um raciocínio em defesa do incesto. Sem imagens chocantes como as do outro filme, Sozinho Contra Todos é, pode-se dizer, um longo monólogo de cunho existencialista. Enquanto em Irreversível somos obrigados a sentir a moral da história, a moral de Sozinho Contra Todos é encoberta pela imagem, que nos distrai constantemente do caminho a ser seguido. Talvez o melhor exemplo seja a tomada em que o açougueiro, em uma sala de cinema pornô, faz uma de suas mais profundas reflexões sobre a própria existência, enquanto nos é mostrada uma cena de felação. E como sexo perpassa toda a obra de Noé, não poderia deixar de citar We Fuck Alone ao falar de voyeurismo. Explorando o tema da auto-satisfação sexual (masturbação), observamos um homem se masturbando enquanto assiste a um vídeo pornô (quase uma metalinguagem). Talvez o intuito seria reproduzir o efeito no espectador que, voyeur, se deixa levar pela imagem e, excitado, acompanha o ato alheio. Tudo poderia parecer mais um curta pornô, não fosse o fato de o personagem começar a encenar uma cena de estupro. O voyeurismo acaba, por razões morais, ou permanece? O cinema, por ser uma arte, se enquadra e, talvez melhor do que as demais artes, na teoria de Rancière exposta na obra A Partilha do Sensível. Ora, quem, a não ser a arte mais completa (o cinema), é capaz de atingir as massas para dar voz aos que não tem voz? Ou, melhor, quem é capaz de arrancar o sujeito-espectador da posição de mero observador? Certamente todas as artes possuem essa mesma capacidade, mas somente o cinema é capaz de, hoje, atingir grandes massas e surtir grande impacto simultaneamente.
Bibliografia FREGE, Gottlob. O Pensamento. Tradução e notas de Paulo Alcoforado. Texto publicado originalmente no volume Investigações Lógicas, de Gottlob Frege. Ed. PUCRGS, Porto Alegre, 2002. AUMONT, J.. A Imagem. Tradução: Estela dos Santos Abreu, Cláudio Cesar Santoro; revisão técnica Rolf de Lima Fonseca. 14. ed. Campinas: Papirus, 2009. MUNSTERBERG, Hugo. A Atenção. In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, 1991. 483p. (Coleção arte e cultural, v.5). pg. 27 BALÁZS, Béla. Nós estamos no filme. In: XAVIER, Ismail. A experiência do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Graal, 1991. 483p. (Coleção arte e cultural, v.5). pg. 84-85 RANCIÈRE, Jacques. El espectador emancipado. 1ª ed. Buenos Aires: Manantial, 2010.