A IMPLEMENTAÇÃO DOS ESTUDOS DE HISTÓRIA E CULTURA DA ÁFRICA E AFRO-BRASILEIRA 1.



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Transcrição:

A IMPLEMENTAÇÃO DOS ESTUDOS DE HISTÓRIA E CULTURA DA ÁFRICA E AFRO-BRASILEIRA 1. Benjamin Xavier de Paula 2 Cristina Mary Ribeiro Perón 3 1. INTRODUÇÃO. Neste texto, iniciaremos com uma breve revisão teórica sobre o tema, no segundo momento falaremos da aprovação da Lei Federal nº 10.639/03 e suas implicações para a prática docente no cotidiano escolar; na terceira parte resgatamos o contexto em que nosso projeto foi gestado; a quarta parte do texto é reservada ao relato do desenvolvimento do projeto. Acreditamos que desta forma o leitor possa compreender a natureza do nosso trabalho e a partir da leitura crítico-reflexiva do mesmo, tirar suas próprias conclusões e dele fazer o melhor uso. 2. O RACISMO NO BRASIL: UM BREVE HISTÓRICO. Recentemente, em função da centralidade assumida pelo debate sobre as políticas de ações afirmativas para a população negra e afro-descendente no Brasil, tem sido comum a proliferação dos discursos apontando a implementação destas políticas como propagadoras do "racismo" ao contrário, como políticas de aprofundamento das diferenças, e outros adjetivos que ao nosso ver escondem ou explicitam a mentalidade racista, eurocentrista, e segregacionista, próprias dos setores reacionários da sociedade avessos ao desenvolvimento de relações mais humanas e igualitárias. Em sua maioria, os propagadores destas falácias se caracterizem muito mais pelo desconhecimento em relação ao assunto e pela defesa dos seus interesses corporativos, do que propriamente pela defesa de um sistema de segregação racial. Como instrumento para a superação destes discursos falaciosos, é necessário considerarmos alguns conceitos históricos que fundamentaram, e que até hoje fundamentam a existência das práticas racistas, e conseqüentemente, a exclusão social 1 O presente trabalho é fruto do projeto financiado pelo Programa Extensão e Integração UFU/Comunidade da Pró-reitoria de Extensão Cultura e Assuntos Estudantis da Universidade Federal de Uberlândia (PEIC/PROEX/UFU). 2 Docente na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia (FACED/UFU), Pesquisador do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal de Uberlândia (NEAB/UFU). 3 Especialista em Saúde pela Universidade Federal de Uberlândia (FACED/UFU), Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal de Uberlândia (NEAB/UFU).

dos afro-brasileiros, são eles: a escravidão, a teoria do branqueamento, a teoria da miscigenação ou da mestiçagem, com ressalvas as teorias do racismo enquanto elemento da sociedade de classe, e os atuais equívocos acerca das teorias geneticistas sobre a existência ou não das raças. A escravidão negra na América, e particularmente no Brasil, trás elementos novos que até então não fazia parte das relações de escravidão conhecidas pelas sociedades africanas, entre os quais, o mercantilismo 4. Nesta perspectiva, era necessário transformar seres humanos em mercadoria, negociados de acordo com as leis do mercado. Para isto fundou-se o discurso sustentado pelos países mercantilista e pela Igreja Católica de que os negros não tinham alma, e, portanto, não podiam ser considerados seres humanos, podendo ser comprados e vendidos como para sustentar os lucros de quem se beneficiava com este tipo de comércio. No processo de implantação das políticas abolucionistas no século XIX, surge à teoria do branqueamento. Acreditava-se que, promovendo com o apoio do estado a migração européia de brancos e submetendo os negros a condições de vida subhumanas: sem emprego, sem moradia e sem comida, gradativamente estes morreriam e haveria um processo induzido de branqueamento da população brasileira. Esta teoria fundamentava-se nas teorias evolucionistas de Darwin, e nas teorias eugênicas de Silvio Romero e Raimundo Nina Rodrigues 5. Já em meados do século XX, surgem as teorias da miscigenação e da mestiçagem, defendendo que no Brasil não havia racismo, e que a sua grandeza estava na mistura das raças, portanto este era um país mestiço 6. Estava por trás destas teorias a negação da existência de um dos mais crônicos problemas da nossa sociedade, o racismo, e das condições para que as populações negras pudessem construir de forma autônoma, instrumentos de superação da exclusão por meio da afirmação da sua identidade racial étnica e cultural. Florestan Fernandes entre 1970 e 1980 publica duas obras clássicas sobre a questão racial no Brasil: "A Integração do Negro na Sociedade de Classes" e o "Negro 4 A este respeito ver: MEILLASSOUX, Claude. Antropologia da Escravidão: o ventre de ferro e o dinheiro. Tradução, Lucy Magalhães; revisão técnica, Luiz Felipe de Alencastro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. 5 A este respeito ver: PINTO, Ricardo M. Silvio Romero: Contribuições a Formação do Pensamento Racial no Brasil (1870-1914). São Paulo: Universidade de São Paulo (USP), 1996. (Dissertação de Mestrado). 6 A este respeito ver: FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala - Edição Comemorativa. 50ª edição. Rio de Janeiro: Global. 2005. 720p.

no Mundo dos Brancos". Nestas obras, está presente uma das teorias bastante difundida entre a esquerda brasileira, de que o racismo é algo estrutural da sociedade capitalista, e somente pode se superado com o fim da sociedade de classes. Embora não se possa negar no todo esta afirmação, acreditamos que a superação do racismo é um problema social que deva ser enfrentado por todos, e desconsiderar o mesmo a partir de uma análise específica do problema racial, contribui para suprimir dos negros e afrodescendentes as bases necessárias para a construção da identidade, elemento importante para a construção de uma ação autônoma destes povos rumo a superação do racismo. Por fim, com a defesa de que, a existência das "raças" não se explica a partir da genética, tem-se multiplicado os discursos de que "raça não existe", "não existem negros no Brasil", e outras baboseiras da mesma natureza, fundamentadas no "achismo sobre o que ouvi dizer", sem compreender que a genética não explica o racismo e a exclusão social dos negros porque este é um problema social e histórico, e não genético, e usar estudos sérios realizados pela ciência para justificar seus discursos racistas não tem nada de científico. Voltando ao debate inicial acrescido dos elementos conceituais apontados, podemos afirmar que o racismo e a exclusão social dos negros foram instrumentos historicamente construídos por meio de práticas racistas e excludentes, e somente poderá ser superado na nossa sociedade por meio de práticas sociais reparatórias às injustiças cometidas contra as populações afro-brasileiras, das quais a implementação de políticas de ações afirmativas para negros e afro-descententes nos espaços de onde foram historicamente excluídos ou onde se promoveu este processo de exclusão social representa ações humanitárias nesta direção. E os discursos contrários à implementação destas políticas não são diferentes dos discursos que justificaram a escravidão, e racismo, e outras formas correlatas de práticas não humanitárias ainda presentes em nosso meio. 3. A QUESTÃO RACIAL E A LEI FEDERAL Nº 10.639/03. No Brasil, a partir dos anos 70, ganha destaque principalmente no universo dos movimentos sociais, o debate sobre o negro na nossa sociedade. Neste período, surgiram importantes movimentos de resistência da comunidade negra rumo à superação dos estigmas historicamente impostos a esta população. Num primeiro momento por meio de lutas mais gerais como o racismo praticado contra a raça/etnia, e

contra as formas de exploração imposta à comunidade negra, que aos poucos, vão abrindo espaço para outras mais específicas no campo da cultura, da educação e da cidadania etc... Ganham também destaque, os inúmeros projetos de implementação das políticas de ações afirmativas para a população negra a afro-descententes, entre elas: a implementação de cotas nas Instituições de Ensino Superior e nos concursos públicos; políticas específicas de inserção do negro no mercado de trabalho; programas especiais voltados a saúde da população negra; programas específicos para ingresso na carreira diplomática, e; ações específicas na área da cultura e da educação. É neste contexto que no início de 2003, foi sancionada pelo Presidente da República a Lei Federal nº 10.639 de 09 de janeiro de 2003, que altera a Lei Federal n o 9.394, de 20 de dezembro de 1996 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) -, determinando a inclusão no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. A Lei Federal nº 10.639/03 acrescenta dois artigos a LDB: o artigo 26 A e 26 B. O artigo 26 A trata especificamente da inserção da obrigatoriedade dos conteúdos de História e Cultura Afro-brasileira no currículo oficial da Educação Básica; e o artigo 26 B da validade desta lei que pelo menos sob o ponto de vista legal, deveria imediatamente ser implementada. Porém, estas ações por si só não eram suficientes para implementar as mudanças necessárias e se fazer efetivar as políticas almejadas, por isto, a Lei ganhou o reforço de dois documentos, a saber: O Parecer do Conselho Nacional de Educação Câmara Plena (CNE/CP) nº 03, de 10 de março de 2004, que institui as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana e; A Resolução do Conselho Nacional de Educação Câmara Plena (CNE/CP) nº 01, de 17 de junho de 2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana.

Estes documentos estabelecem a fundamentação legal para que se institua em todas as instituições escolares públicas e privadas do país, o estudo da História e da Cultura das populações africanas e afro-brasileiras, tal como, que estes conteúdos sejam implementados em todos os cursos de formação de professores e demais profissionais da educação básica em nível nacional. Porém, não é isto que temos visto acontecer na maior parte das instituições educacionais tanto de educação básica quanto de educação superior, neste sentido, tem sido muito importante as iniciativas institucionais e particulares dos inúmeros setores e agentes sociais no sentido de fazer valer a lei, e no sentido de se superar a herança racista das nossas instituições escolares e conseqüentemente dos currículos educacionais. 4. O PROJETO RACISMO E EDUCAÇÃO: DESAFIOS PARA A FORMAÇÃO DOCENTE. Partindo da constatação inegável de que, um dos obstáculos para superação do racismo na sociedade brasileira reside na formação inicial e na formação continuada de professores, foi proposto pelos autores deste trabalho, no âmbito da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia (FACED/UFU), um projeto institucional intitulado Racismo e Educação: desafios para a formação docente. Este projeto teve como objetivo instituir um espaço institucional, de formulação e debate sobre as questões raciais na perspectiva da implementação da Lei Federal nº 10.369/03 e se articulou inicialmente a partir de três iniciativas distintas: Grupo de Estudos sobre Racismo e Educação: Desafios para a Formação Docente; Programa de Formação Continuada de Professores Sobre Racismo e Educação: Desafios para a Formação Docente, e; Seminário Racismo e Educação: Desafios para a Formação Docente. Porém, antes de falar especificamente do nosso projeto, convém, fazer um resgate da sua gestação. 4. 1. GESTAÇÃO E IMPLEMENTAÇÃO DO PROJETO.

A partir das novas diretrizes emanadas do Ministério da Educação (MEC) para os cursos de graduação das Instituições de Ensino Superior (IES), a Universidade Federal de Uberlândia (UFU), iniciou um processo de reestruturação de todos os seus cursos de graduação, compreendendo os bacharelados e as licenciaturas, com a aprovação pelo conselho superior da universidade de diretriz geral para os cursos de licenciaturas. Na época, buscamos, apontar, tanto para os membros da Pró-reitoria de Graduação, responsáveis técnicos pelo processo, quanto para os coordenadores de curso, a necessidade de contemplar o disposto na Lei Federal nº 10.639/03, porém, nos pareceu evidente a resistência, destes setores a nossa reivindicação. Visto esta dificuldade inicialmente encontrada, chegamos a conclusão de que era necessário estabelecer instâncias e mecanismos de formulação e de debate sobre o assunto, a fim de superar as barreiras existentes. Nesta perspectiva, formulamos a proposta de um projeto institucional que fosse capaz de estabelecer um amplo debate no âmbito da universidade e dos cursos de licenciaturas, sobre as relações raciais no Brasil e suas interfaces com a educação na perspectiva de implementação do disposto na Lei Federal nº 10.639/03. Elaboramos então o Projeto Racismo e Educação: desafios para a formação docente, que foi aprovado no Conselho da Faculdade de Educação e junto ao Programa de Extensão e Integração UFU/Comunidade da Pró-reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos Estudantis (PEIC/UFU), nesta última instância, a fim de habilitá-lo parta receber recursos financeiros oriundos deste programa. O projeto previa três iniciativas distintas: a organização de um Grupo de Estudos sobre Racismo e Educação; o desenvolvimento de um programa de formação continuada de professores compreendendo a realização de cursos de atualização e aperfeiçoamento na área do projeto, e; a realização de um evento/seminário. 4.2. O GRUPO DE ESTUDOS RACISMO E EDUCAÇÃO: DESAFIOS PARA A FORMAÇÃO DOCENTE. O Grupo de Estudos sobre Racismo e Educação espaço de reflexão e aprofundamento teórico no campo do projeto apresentado -, iniciou suas atividades no 2º semestre de 2005 com reuniões semanais as quintas-feiras a tarde, que eram

precedidas da leitura e anotações sobre um texto teórico escolhido pelo coordenador do grupo. A principal característica que marcou este primeiro ano de funcionamento do Grupo de Estudos foi a pluralidade do mesmo, dele, participaram desde estudantes do primeiro período das faculdades particulares da cidade, até pesquisadores Mestres e Doutores com consolidada produção científica na área. Outro aspecto que deve ser ressaltado foi a divisão geográfica regional dos participantes que, vieram de inúmeras cidades da região, algumas a distâncias significativas da cidade de Uberlândia para participarem deste projeto. Esta foi uma das atividades do projeto com a maior índice de demanda a partir do número de vagas inicialmente oferecidas. Este fato levou os coordenadores do projeto e ampliarem o número de vagas e a aceitarem todos os inscritos para que não se perdesse a oportunidade que a pluralidade e diversidade dos inscritos ofereciam para o desenvolvimento do nosso projeto de estudos. Os conteúdos foram desenvolvidos em reuniões em forma de seminários a partir de uma exposição inicial do coordenador do grupo de estudos, onde os textos lidos anteriormente às reuniões eram debatidos pelos membros, as considerações de cada um eram dialogadas com os demais. 4.3. O PROGRAMA DE FORMAÇÃO CONTINUADA SOBRE RACISMO E EDUCAÇÃO: DESAFIOS PARA A FORMAÇÃO DOCENTE. A primeira edição do Programa de Formação Continuada foi desenvolvida ao longo do segundo semestre de 2005 a partir de dois cursos de formação voltados para os professores da escola básica e para os alunos da licenciatura a UFU e da Comunidade externa com as seguintes características: Programa de Formação Continuada de Professores espaço de realização de cursos e atividades de formação de professores da cidade de Uberlândia e região, contando com uma carga horária de 40 horas foi realizado entre os meses de setembro e dezembro de 2005, por meio das seguintes ações: Curso 1: O racismo no Brasil: Histórico - desenvolvido nos meses de setembro e outubro com carga horária total de 20 horas; Curso 2: A Lei Federal nº 10.639 e as suas implicações para a prática docente - desenvolvido nos meses de outubro e novembro com carga horária total de 20 horas;

O Programa constitui-se num espaço de formação onde os participantes destacaram como principal contribuição o desenvolvimento de conteúdos que nunca tinham sido trabalhados antes, tanto nos cursos de formação inicial como nos espaços de formação continuada de professores. 4.4. O SEMINÁRIO RACISMO E EDUCAÇÃO: DESAFIOS PARA A FORMAÇÃO DOCENTE. A primeira edição do seminário Racismo e Educação: desafios para a formação docente foi realizada nos dias 16, 17 e 18 de novembro de 2005, culminando com as atividades de comemoração da semana da consciência negra, nas dependências do Campus Santa Mônica da UFU, e reuniu alunos, professores e funcionários da UFU e da comunidade externa num evento que se destacou no âmbito da universidade pelo ineditismo do mesmo. No evento, foram realizadas 02 conferências, 10 mesas redondas, 03 palestras, 14 minicursos e oficinas, 07 atividades culturais com grupos convidados, alem da apresentação de aproximadamente 50 trabalhos científicos e acadêmicos na seção de apresentação de trabalhos. Ao todo o evento contou com aproximadamente 450 inscritos oriundos de vários estados do país, no seminário e nas atividades paralelas como nos minicursos e oficinas. Contou ainda com mais de 20 convidados vindos de inúmeras instituições de ensino e pesquisa de dentro e fora do estado de Minas Gerais. Cabe destacar o envolvimento efetivo das entidades do movimento negro, do poder público municipal e estadual, e dos setores das religiões afro-brasileiras na organização e promoção do evento, particularmente, o apoio da Coordenadoria Afro- Racial da Prefeitura Municipal de Uberlândia (COAFRO), da Secretaria Municipal de Educação e da Secretaria de Cultura do Município, tal como da Superintendência Regional de Ensino vinculada a Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais, sem esquecer dos inúmeros parceiros e patrocinadores que contribuíram com o sucesso do Seminário. Suplantando as próprias barreiras do evento realizado, este serviu para impulsionar inúmeras outras atividades sobre a questão racial dentro e fora da universidade, que já estavam em andamento, porém, desarticuladas, e enfraquecidas, como exemplos, o debate sobre a implementação das políticas de cotas no âmbito da

UFU e a implantação do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB), que foram retomados com novo vigor. 5. CONCLUSÕES. Os debates acerca das problemáticas que envolvem o povo negro e as populações afro-brasileiras remontam de longa data em nosso país, porém, a ação protagonistas destes povos se redesenha a partir das iniciativas atuais que buscam romper com o passado histórico que ainda os associam aos estigmas de ex-escravos e trabalhador braçal. Neste sentido o centro do debate que estabeleceu no final do século passado e no início deste novo milênio reside na implementação de políticas públicas e de ações reparatórias capazes de possibilitar a escrita de uma nova página na história do povo negro e afro-brasileiro. Processo este que não está dado a priori, é acima de tudo um desafio a ser construído pelos inúmeros setores da sociedade, independente da origem étnico-racial. Neste sentido nosso projeto é mais uma das contribuições que se soma às inúmeras ações já desenvolvidas por outros setores, na perspectiva da construção de relações sociais que sejam capazes de superar a nossa herança: racista, segregacionista e excludente. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer do Conselho Nacional de Educação Câmara Plena (CNE/CP) nº 03, de 10 de março de 2004. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/003.pdf>. Acessado em 27 de junho de 2005. BRASIL. Conselho Nacional de educação. Resolução do Conselho Nacional de Educação Câmara Plena (CNE/CP) nº 01, de 17 de junho de 2005. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/res012004.pdf>. Acessado em 27 de junho de 2005. BRASIL. Lei Federal n o 10.639, de 09 de Janeiro de 2003. Altera a Lei Federal nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-brasileira, e da outras providências. Disponível em

<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003l10.639.htm>. Acessado em 27 de junho de 2005. FERNANDES, Florestan. A Integração do Negro na Sociedade de Classes. 3ª Edição. São Paulo: Ática, 1978, 814p (2 volumes). FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala - Edição Comemorativa. 50ª edição. Rio de Janeiro: Global. 2005. 720p. MEILLASSOUX, Claude. Antropologia da Escravidão: o ventre de ferro e o dinheiro. Tradução, Lucy Magalhães; revisão técnica, Luiz Felipe de Alencastro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995. SOUZA, Neuza Santos. Tornar-se Negro: ou as vicissitudes da Identidade do Negro. São Paulo: Graal, 1983. 88p (Tendências, 4).