O FIM ÓPERA ÍNTIMA
O FIM ÓPERA ÍNTIMA de Carlos Marecos, sobre «O Fim, "história dramática" em 2 quadros», de António Patrício (1878-1930) Música Carlos Marecos Libreto e Encenação Paulo Lages Direcção Musical Humberto Castanheira Rainha - Margarida Marecos (soprano) Desconhecido - Guilherme Filipe (actor) Recitantes - : Tiago Barbosa; Henrique Félix; Milton Lopes (actores) Cenografia - Acácio de Carvalho Figurinos - Manuela Bronze Desenho de Luzes - Rui Marcelino Ensemble - Susana Nogueira (violino); Ana Paula Góis (violoncelo); Luís Sousa (contrabaixo); Manuel Jerónimo (clarinete); Ângelo Caleira (trompa); Francisco Sassetti (piano) SINOPSE No Paço Velho, uma velha Rainha (inspirada em D. Maria Pia, e na loucura que a teria acometido após o regicídio de 1908), consumida pela Dor, diz embalar a Morte e vai regando as flores de um tapete. Fora, as esquadras estrangeiras (numa alusão, exacerbada, ao Ultimatum de 1890) aprestam-se a tomar a capital do reino - abúlico e falido. Após uma noite apocalíptica, um Desconhecido vem ao Palácio dar conta da resistência suicidária do povo e da debandada dos invasores ante uma cidade pejada de cadáveres e em escombros. Reclama agora a Rainha, para a erguer em Símbolo do ressurgimento da Nação das próprias cinzas. Apresentação Numa singular ópera de câmara, em dois quadros de estrutura monologante, é ao papel da Rainha, cantado por um soprano (Margarida Marecos), que é conferido o carácter lírico, já que o do Desconhecido é atribuído a um actor (Guilherme Filipe). A três recitantes, também actores e também com intervenção cénica, é cometido o discurso sobre o tempo e o espaço da acção, proveniente quer das disdascálias do dramaturgo, quer das falas de outras personagens suprimidas no libreto. Mas mesmo o texto dito pelo actor e pelos recitantes é ainda previsto na partitura original de Carlos Marecos (Prémio Lopes Graça de Composição 1999 e 2000). Teatro de Ópera, pois.
Da dramaturgia e encenação Não iludindo o seu carácter metafórico e até as francas possibilidades alegóricas que uma peça como esta que vertemos em libreto pode ter nos nossos dias, em que, por um lado, factores globalizantes e de federação de interesses vão pondo em crise o conceito secular de Nação, e em que, por outro, contraditoriamente se assiste ao recrudescimento de nacionalismos, por atavismo ou resistência, interessou-nos isolar nesta, além do mais, belíssima, história dramática de António Patrício (que Jorge Listopad, honra lhe seja, resgatou dos fundos de uma editora para os palcos) a sua componente simbólica e o que nela é a questionação mesma dos Símbolos, ou antes, da teatralidade da construção dos Símbolos. Pois não nos apresentou Patrício a Rainha com um hireatismo teatral e não lhe colocou na cabeça uma coroa de teatro? E não vem o Desconhecido, que procura a Rainha, ao encontro da ficção teatral que ainda fascina? E isso depois de fazer o relato arrebatado de uma gigantesca cena épica e trágica ( de tragédia grega, dirá) logo, teatral? Mas do exacerbamento dessa teatralidade, resulta a evidência do Absurdo e uma maior exposição da Dor e da Loucura que atravessam aquela construção, e que são dela simultaneamente o fundamento e a ruína. Epígrafe da nossa abordagem poderia muito bem ter sido, até, aquela fala da Aia, que faremos escutar, todavia: Isto é de endoidecer. De um lado uma esperança absurda, do outro uma visão de manicómio. Quisemos realizar uma intervenção textualmente discreta, isto é, sem qualquer introdução de texto outro que não o de Patrício, admitindo, isso sim, a introdução das próprias didascálias do autor no nosso libreto; mas essa intervenção foi dramaticamente incisiva, justamente, pela anulação do conflito dramático, mesmo que ténue ou retórico, resultante da pluralidade de personagens, que assim reduzimos às duas principais: a Rainha e o Desconhecido, conferindo um acto a cada uma, de estrutura, pois, monologante. Foi isto sem prejuízo de, exteriormente à cena, as falas das outras personagens serem escutadas ditas por três Recitantes, figurando agora, de algum modo, os pavões e ou os corvos mencionados no texto. A um soprano sugerimos a atribuição do papel feminino, supondo que seria cantado não só o que a personagem na peça cantava, segundo a indicação do autor, mas todo o poema que, afinal, constituía a sua fala. A um actor quisemos que fosse atribuído o discurso do Desconhecido,
formulando-o, agora explicitamente, como um poema narrativo (épico), a ter integral tratamento na composição. Deixámos difusa a referência um determinado período histórico (que tem o regicídio de 1908 como elemento central e evoca imprecisamente o Ultimatum de 1890) talvez não muito mais difusa do que na peça, afinal...- devido ao que dela resultava de circunscrição espacio-temporal, pois pretendemos antes apreender formalmente a universalidade e transtemporalidade da referida construção simbólica, e conjecturámos, em consequência, que àquelas personagens seriam conferidos sinais (pelos adereços, pelos figurinos) alusivos a diferentes contextos e tempos históricos. Paradoxalmente, para melhor cumprir esse desiderato, não omitimos referências a Portugal, quer as textuais, quer cénicas (e sublinho, neste particular, a prestaçao da figurinista...), não ignorando, todavia, as leituras restritivas ou circunstanciais e até polémicas que daí advenham. O espaço cénico, a movimentação, a gestualidade, informados ou inspirados pelo que Patrício propõe, querem-se propiciadores, em todo o caso, da própria construção progressiva das personagens, em simbolismo e humanidade, mesmo ou sobretudo no seu aspecto grotesco, pois é esse processo que escolhemos encenar, desvendendo-o ao espectador, num ritual como que secreto, por íntimo. E a isto se ajusta uma ópera de câmara, que o é mesmo na forma quase em volta- como dispõe os não demasiados espectadores que a escutam, os músicos que a tocam, os que prestam colaboração à cena.. E não é o Símbolo uma densa concentração de signos? Paulo Lages
Da Música Esta é uma ópera de câmara em dois quadros, que tomam o título do nome das personagens que os protagonizam, respectivamente: A Rainha e O Desconhecido. Em toda a peça, todavia, é ao papel da Rainha, cantado por um soprano, que é conferido o carácter lírico, já que o do Desconhecido é entregue a um actor. A estrutura do primeiro quadro é dividida em 10 números, como blocos independentes. O estilo arioso tem uma importância maior que o recitativo. O nº 1 funciona como uma abertura, apesar de começar com voz solo, desenvolvendo-se entre o recitativo e a ária, tal com o nº 10, que encerra o quadro. Em ambos, a música adquire um carácter orquestral e os recitantes intervêm, sobrepondo-se por vezes uns aos outros e à própria Rainha (como acontecerá, de resto, episodicamente, ao longo de todo o quadro). Os outros nºs. são assumidamente árias de estilo e carácter contrastantes. Umas são rápidas e de escrita mais camarística, como as do nº 2 e do nº 7, onde o material musical é semelhante mas num contexto rítmico completamente diferente. O 7º é em si mesmo quase como uma ária da capo com um recitativo central. No nº 3, num estilo entre a fala e o canto com ligação evidente ao segundo quadro, a Rainha canta, mas parece querer falar. As outras árias, lentas, têm um clímax bem determinado, de acordo com a carga dramática do texto, como as do nº 4, do nº 5 e do nº 9. No nº 4, em que a Rainha embala a Morte, todo o material musical é baseado numa canção de embalar do cancioneiro popular português. O nº 5 funciona como uma transição do carácter modal do nº anterior para um tipo de harmonia usada recorrentemente nos diversos nºs. Só no nº 6 aparece pela primeira vez um recitativo, seguido de um estilo arioso, mas ambíguo, ficando a ideia de que uma valsa poderia ser desenhada. O recitativo mais claro acontece no nº 8, relacionado com o Duque, personagem que não aparece em carne e osso, mas com quem a Rainha parece querer dialogar, o que estabelece ligação com o recitativo inicial da ária do nº 9, onde, tal como no 5º, é explorada a sonoridade do interior do piano.
Este quadro, todo ele cantado (apesar de entrecruzado por falas), finalizase num estilo aproximado ao inicial, sem, no entanto, regressar aos mesmos gestos musicais. O segundo quadro tem uma dimensão menor do que a do primeiro - numa proporção de 2 para 3 - e é composto apenas por um número. Por oposição ao primeiro quadro, existe agora uma trama contínua e o discurso, apesar de ser entregue a um actor, continua a ser integralmente musical. A particularidade é que a fala é inserida em estruturas musicais que por vezes se assemelham a árias e se relacionam mesmo com as árias da Rainha escutadas no primeiro quadro, como, por exemplo, com a do nº 3, quando o Desconhecido parece querer cantar, e com a do nº 7, num momento em que a revisitação do material musical do primeiro quadro é evidente. A Rainha, aliás, continua presente, embora ceda a primazia ao Desconhecido, cantando apenas esporadicamente. Quando, no final, a Rainha volta a falar de si própria, provoca um regresso ao material musical inicial. Embora menos evidentes, são ainda estabelecidas outras relações com blocos do primeiro quadro, que colaboram na construção de um nº único, realizado, no entanto, em forma mosaico. O facto desta ópera ser escrita apenas para uma cantora e um actor (acompanhados pontualmente por 3 recitantes) acabou por determinar a sua estrutura formal particular. Com a escrita musical para esta formação procurei, por vezes, uma sonoridade orquestral, outras vezes, uma sonoridade mais camarística, com uma exploração das qualidades tímbricas dos instrumentos ao serviço da expressividade da música e do texto, a par de uma harmonia que penso clara e que explora qualidades intervalares e acústicas, recorrendo a estruturas contrapontísticas por vezes complexas e exigentes para os intérpretes, mas de uma forma directa e simples. Carlos Marecos