Antropologia Personalista (texto recortado e re-construído a partir da obra BIOÉTICA de José Roque Junges, Editora Unisinos).
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- Márcia Carrilho Minho
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1 Antropologia Personalista (texto recortado e re-construído a partir da obra BIOÉTICA de José Roque Junges, Editora Unisinos). A sistematização antropológica que segue corresponde à perspectiva apresentada por Henrique Cláudio Lima Vaz nos dois volumes de sua Antropologia Filosófica. Para Vaz, o objeto de discurso antropológico é o ser humano enquanto sujeito. Não é possível falar de si mesmo (ser humano) sem implicar-se como sujeito do discurso. A antropologia é sempre uma autocompreensão; não é um saber sobre o sujeito, mas, um saber do sujeito; é o processo real e total do seu autoconstituir-se como sujeito. Essa experiência de tornar-se sujeito é sempre situada, isto é, interpenetrada de presenças: presença a si mesmo (eu), aos outros (sociedade) e ao mundo (natureza). O problema central da antropologia é esclarecer essa mediação subjetiva. A constituição do sujeito acontece na passagem do dado ao significado. Essa mediação subjetiva manifesta-se de três maneiras: a mediação empírica que constitui o mundo vivencial do sujeito (práticas...); a mediação abstrata que dá origem ao universal abstrato e está na base de toda ciência (nas representações dos saberes desenvolvidos na história humana e que estudamos...teorias...); e a mediação transcendental que é o próprio manifestar-se do sujeito como detentor de sentido e condição de possibilidade de acesso à realidade (projetos...). As estruturas fundamentais do ser humano são: corpo, psiquismo e espírito. As estruturas são elevadas à expressão, quando o ser humano apropria-se delas como sujeito através de relações fundamentais: com o mundo (relação de objetividade), com os outros (relação de intersubjetividade) e com a consciência (relação de transcendência). Estruturas fundamentais do ser humano Estrutura somática (corpo próprio) Existem três significados para a palavra "corpo": 1) como substância material (totalidade física); 2) como organismo vivo (totalidade biológica); 3) como corpo próprio (totalidade intencional ou pessoal). O primeiro sentido refere-se à pura materialidade do corpo, em outras palavras, ao cadáver. O segundo o vê como uma estrutura de tecidos, órgãos e funções responsáveis pela vida biológica que vivifica o corpo e o preserva da decomposição. O terceiro considera o corpo como evento pessoal. Somente neste último caso, podemos falar de corpo como auto-expressão do sujeito e de um "eu corporal", o que não é o caso do corpo físico e do corpo biológico. A pré-compreensão do corpo acontece na percepção do corpo próprio. O ser humano identifica-se com seu corpo físico e biológico e, nesse sentido, ele é seu corpo. Isso aparece claramente nos animais, em que existe uma identidade total entre a individualidade e o corpo material. O ser humano é também seu corpo próprio, mas não existe uma identidade total e, nesse sentido, ele tem seu corpo, porque pode dar-lhe intencionalidade e sentido que transcende o corpo físico e biológico. A distinção entre ser e ter corpo significa que o corpo é "corpo vivido", não no sentido biológico, mas intencional. Pelo corpo, o ser humano está presente ao mundo e principalmente aos outros. Como totalidade físico-orgânica, tem apenas uma presença natural (o estar
2 aí no espaço e tempo naturais). Como corpo próprio tem uma presença intencional. Pela primeira situação, está no mundo de uma maneira passiva (estar-no-mundo). Pela segunda, está de uma maneira ativa como ser-no-mundo. Estrutura psíquica: psiquismo O psiquismo é uma estrutura intermediária entre a somática e a espiritual e desempenha uma função mediadora entre as duas. Se a presença corporal é imediata, não necessitando de mediações para expressar-se, a esfera psíquica, ao contrário, não é imediata, mas mediada através da percepção e do desejo. Pelo corpo próprio, o ser humano exterioriza-se e constitui a sua figura corporal exterior e o "eu corporal" é absorvido nessa exteriorização. Pelo psiquismo, o ser humano plasma sua figura interior e constitui o seu "eu psíquico". No domínio psíquico, começa o homem interior e delineiase a interioridade, a consciência, a reflexividade. Pela presença intencional existe uma interiorização do mundo e a constituição do mundo interior. Pode-se falar de um espaço e de um tempo interiores. A re-construção do mundo exterior num mundo interior organiza-se através: do imaginário (eixo da percepção, da representação) e do afetivo (eixo do desejo, da pulsão). Ao falar do corpo próprio, vimos a passagem do espaço e tempo físicos para a percepção do espaço e tempo humanos através da presença intencional. No mundo psíquico, a dimensão espaço-temporal é interiorizada. Essa interiorização aparece principalmente no espaço e no tempo sociais e culturais tanto sob o aspecto do imaginário quanto da afetividade. O espaço e o tempo são configurados segundo o fluxo da vida psíquica. Existem espaços e tempos psicoafetivos. Na experiência da vida psíquica, existe uma reflexividade dos atos psíquicos, radicalmente diferente dos processos orgânicos. Contudo, o eu consciente afundase também no inconsciente, isto é, existem elementos não alcançados pela unificação consciente, como é o caso dos estados oníricos e paranormais. Estrutura espiritual: espírito No século XX, correntes materialistas influentes levantaram-se contra a dimensão espiritual do ser humano. Negavam qualquer afirmação ontológica sobre a pessoa, pois só aceitavam o que tinha verificabilidade empírica. A afirmação da dimensão espiritual era considerada por eles pura ilusão a ser combatida, pois servia ao obscurantismo e à manipulação. Reduziam o ser humano à sua expressão material. As diferentes correntes do personalismo significaram uma reação a esta negação do espírito. Espírito é o lugar de manifestação do sentido. Ninguém pode viver sem descobrir um sentido para a sua vida, a sua ação, a sua realidade. A existência, os outros, o mundo têm um significado que se revela no espírito. O ser humano é um ser de significados; busca descobrir o sentido das coisas. O espírito é a revelação e a atualização do sentido das mesmas. Nessa busca e manifestação de sentido para a realidade no âmbito do espírito, o ser humano encontra um sentido para o seu próprio itinerário existencial. O sentido abre-se ao ser humano como um horizonte de compreensão da
3 realidade e de si mesmo jamais abarcável; o alcançado e o afirmado é continuamente transcendido, pois o horizonte tem uma amplidão infinita, sempre aberto a novas dimensões da realidade e do próprio sujeito. Assim, a amplidão transcendental do sentido manifesta a infinitude do espírito; no espírito manifesta-se a dimensão infinita do ser humano. O espírito é a estrutura antropológica do sentido que se manifesta essencialmente como pensamento e como ação. O sentido expressa-se como pensar (conhecimento) e agir (liberdade) que são as duas grandes manifestações do espírito humano. Pelo conhecimento, o ser humano descobre e revela o sentido da realidade; pela liberdade, realiza o sentido da sua existência. Relações fundamentais do ser humano (estruturas de relação) Relação de objetividade: mundo A relação de objetividade acontece na experiência da constituição do mundo pelo ser humano que nada mais é que a presença do ser humano no seu mundo, o exercício de compor o seu mundo e manifestar-se como ser-no-mundo. O sujeito organiza a realidade como interconexão de coisas, eventos, representações e significações, constituindo a trama do mundo. Esse mundo configurado possibilita ao ser humano situar-se, comunicar-se e conhecer a realidade. O mundo como horizonte é a "casa em que habita o ser humano" e faz com que ele "se sinta em casa"; fornece a "gramática" para situar, relacionar e compreender os diferentes elementos que compõem a realidade. O mundo constitui, por um lado, a identidade do ser humano como ser que compõe o seu mundo, como ser-no-mundo. Mas, por outro, instala-se a negatividade na relação objetiva com o mundo, pois o ser humano não é simplesmente para o mundo. Não pode cingir-se aos limites da objetividade mundana ou permanecer na identidade intencional entre ser humano e mundo, pois a relação de objetividade não é recíproca, na medida em que é apenas intencional. O mundo que é significado na linguagem, exige um interlocutor na sua configuração. Mundo é essencialmente linguagem e linguagem é comunicação recíproca. Por isso, o mundo como horizonte pressupõe a relação recíproca de sujeitos e suscita o aparecimento do outro como interlocutor. Relação de intersubjetividade: outro A consciência precisa passar pelo reconhecimento de outra consciência de si para que ela se conheça no seu ser-para-o-outro. Cada uma das consciências se reconhece como consciência de si. O sujeito é reconhecido como sujeito, quando reconhece o outro como sujeito. Trata-se da dialética da alteridade ou da relação essencial e constitutiva do sujeito, enquanto situado e finito, com o outro, implicando necessariamente a passagem do outro-objeto ao outro-sujeito e instaurando a reciprocidade.. Assim, o existir intersubjetivo define-se pela oposição fundamental entre o "eu" que só pode ser pensado como ser-com-o-outro na sua irredutível singularidade e reflexividade e o "nós" que se constitui justamente nessa saída do "eu" ao encontro
4 do outro. A relação de intersubjetividade acontece no espaço da pluralidade de sujeitos e pela relação que se estabelece entre eles na forma de unidade na pluralidade. O horizonte de sentido do ser humano não se reduz à relação objetiva com o mundo, nem com a relação intersubjetiva com o outro. Impõe-se um terceiro elemento da relação: o SENTIDO que supera a contingência do mundo e a limitação do outro. Relação de transcendência: o sentido A relação de transcendência designa uma forma de relação entre o sujeito situado no mundo e na história e uma realidade que está além da realidade que lhe é imediatamente acessível. A categoria de transcendência surge como horizonte mais amplo que se abre ao movimento de autoafirmação do sujeito em virtude do horizonte último de sentido ou da abertura infinita ao sentido que passa além da intersubjetividade, ou seja: não se exaure na comunidade humana, nem tem como seu horizonte último, a história. A relação de transcendência resulta do excesso ontológico do ser humano pelo qual o sujeito se sobrepõe ao mundo e à história e avança para além do ser-nomundo e do ser-com-o-outro na busca do sentido último da existência, do fundamento do eu primordial. Nesse excesso de sentido, expresso estruturalmente na categoria de espírito, o sujeito encontra o dinamismo mais profundo da história e do mundo. Auto-realização pessoal A auto-realização é um desafio permanente para o ser humano e um risco para o sentido da existência. Buscar um sentido para a própria existência é a principal tarefa de unificação interior do ser humano. Existe uma evidência para o ser humano de que há uma tarefa que lhe compete enquanto tal e o fato de ocupar-se dela define a vida propriamente humana. Essa tarefa é a auto-realização da vida humana que a distingue da vida puramente vegetativa e sensitiva. A précompreensão da realização engloba três experiências: - A vida é uma tarefa que o ser humano deve inelutavelmente cumprir. - Essa tarefa não é pré-determinada pela natureza nem por outra força exterior. Sua execução não impele fatalisticamente numa só direção. Ela se desenrola autonomamente e cabe a cada um escolher o fim. - A necessidade da escolha do fim e da vida que lhe corresponde, coloca o ser humano diante de vários modelos de auto-realização, oferecidos pela tradição cultural e ética. Podemos distinguir entre indivíduo e pessoa. Indivíduo é o membro da espécie na sua multiplicidade e temporalidade do mundo material. Manifesta-se como exterioridade corporal. É tema da compreensão explicativa. Pessoa é o indivíduo na sua unidade profunda, na sua originalidade e irredutibilidade. Expressa-se como interioridade espiritual. É objeto da compreensão filosófica. Nesse sentido, não existe uma ciência da pessoa; ela não consegue submeter a pessoa à compreensão explicativa.
5 A categoria de pessoa O discurso antropológico, percorrido até agora, partiu do simples estar-nomundo para chegar à unidade final expressa pela categoria de pessoa. Ela pode ser designada também de essência entendida como cumprimento do desígnio do seu ser no seu existir. Pessoa é a expressão adequada do eu que se exprime a si mesmo ou, em outras palavras, o ser humano é sujeito enquanto pessoa. Portanto, a categoria de pessoa designa a existência particular do sujeito e não a universalidade da natureza comum a todos os seres humanos. O ser humano não existe como dado, mas como expressão. A ruptura da esfera natural acontece quando emerge o sujeito, quando o dado expressa o ser do sujeito. Pessoa é a forma última e totalizante da expressão do eu singular. Assim, pessoa é o princípio e o termo do movimento de auto-expressão que é igualmente autoconstituição, pelo qual o ser humano assume sua tarefa fundamental de exprimir-se a si mesmo. Características fundamentais do ser humano como pessoa O ser humano como sujeito é dotado de consciência, autonomia, responsabilidade, historicidade e comunicação. Consciência: expressa a propriedade fundamental de ser sujeito e, conseqüentemente, ter consciência de si mesmo como singularidade pessoal distinta dos demais seres humanos. Autonomia: aponta para o fato de o ser humano ser sujeito das suas relações e dos seus atos. Ele se assume como protagonista das suas relações e ações. O conteúdo do agir não depende de outro, mas é fruto de sua decisão autônoma. Responsabilidade: não só determina o agir como seu, mas responde pelos resultados dessa ação diante dos outros. Historicidade: esse processo de auto-expressão e autoconstituição do ser humano como sujeito acontece no desenrolar da temporalidade histórica. Enquanto ser temporal, caracteriza-se como historicidade. Comunicação: a auto-realização acontece pela abertura às diferentes relações, mas, especialmente, aquela que se caracteriza pela reciprocidade e reconhecimento: a intersubjetividade. A centralidade da relação recíproca com o outro, mostra a importância da dimensão da alteridade para a formação da identidade pessoal e define o ser humano como comunicação e dialogicidade. Portanto, o fundamento último da dignidade humana está na categoria de autorealização. Todo ser humano tem o direito de autoconstituir-se a partir do seu dado natural, realizando o seu itinerário histórico de expressar-se como pessoa. Por isso, o ser humano é fim em si mesmo e nisso consiste justamente a sua dignidade. Ninguém tem o direito de privá-io ou impedi-io de realizar esse itinerário de autorealização como fim da sua existência, tornando-o meio para alcançar outros fins.
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