Apresentação. Dossiê Ensino De História: Diferentes Enfoques E Perspectivas

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1 Apresentação Dossiê Ensino De História: Diferentes Enfoques E Perspectivas Quando propusemos a criação do Dossiê Ensino de História: diferentes enfoques e perspectivas, tínhamos a expectativa de promover um espaço no qual fosse possível produzir um diálogo profícuo entre professores, pesquisadores e professorespesquisadores, que tivesse como eixo comum questões relacionadas à educação por meio do conhecimento histórico, e em especial, o escolar, vez que o foco da revista é se constituir como lócus de formação continuada docente por meio do acesso, das publicações e das reflexões sobre seus objetos de estudo/trabalho nas diversas áreas do conhecimento que compõem os currículos da Educação Básica nesse país. Acreditávamos que o potencial desse Dossiê seria o de oportunizar diversidade de abordagens temáticas, teóricas, metodológicas, além de diversidade de formação, de trajetória profissional e de lugares de fala, especialmente no que se refere às regiões brasileiras nas quais as pesquisas e as práticas que dariam origem aos textos se originariam. Tal expectativa se concretizou. Dessa forma, apresentamos nesse Dossiê a variedade que desejávamos em todos os sentidos. Assim, temos o Ensino de História sendo pensado em suas relações com questões epistemológicas da Educação e da História, com livros didáticos, com mídias, com formação de professores, com questões curriculares, com processos de subjetivação docentes e discentes, com a formação de estudantes e do público geral. Temos também textos de graduados e graduadas, mestres e mestras, doutores e

2 Página2 DOSSIÊ COSTA, M.A.F., MARTINS, M.L.B; SOARES, T.N.; FONSECA, V.A doutoras, pós-doutores e pós-doutoras tanto da Educação como da História, o que reforça o entendimento do Ensino de História como espaço de fronteira entre essas duas áreas do conhecimento, entendendo fronteira não apenas como espaço de limites, mas também, e primordialmente, como espaço de interseção. Além disso, os autores que participam desse Dossiê estão espalhados pelas regiões sul, sudeste, centro-oeste e nordeste, atestando que produções de qualidade sobre o Ensino de História estão espalhadas por todos os cantos do país. A diversidade que caracteriza a seleção que aqui se apresenta gera o desafio de tentar ordenar em uma sequência razoavelmente lógica os textos que compõem o Dossiê. Diante de várias possibilidades de fazer tal ordenação, optamos por priorizar os recortes empíricos no agrupamento dos textos, no entanto, caro leitor, você é soberano na escolha da melhor forma de ler o que for do seu interesse. O abre-alas do Dossiê é o texto O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de História: tensões e perspectivas de Carmen Teresa Gabriel, que discute sobre as contribuições de campos disciplinares e horizontes teóricos distintos para a compreensão de práticas curriculares escolares relacionadas aos processos de ensinoaprendizagem da História. Em O tempo histórico em perspectiva: a importância do debate sobre o tempo para o ensino de História, Marcus Vinicius Monteiro Peres problematiza o tempo histórico para pensar o ensino de/com temporalidades na contemporaneidade marcada pela cultura digital. Patrícia Teixeira de Sá discute referências de mídias na relação com o conhecimento histórico escolar em Não tendo apologia, é uma boa história : atravessamentos entre conhecimento histórico escolar e mídia. Igor Lemos Moreira e Caroline Bárbara Reis contribuem com o Dossiê abordando a questão da história pública. Ele, em Sobre história pública e ensino de história: algumas considerações, argumenta sobre o potencial da articulação trazida no título do texto, enquanto ela discute a força da história pública para a construção de uma cultura histórica, em História pública e novos olhares para a escravidão. Um conjunto de textos que compõem o Dossiê tem como característica a problematização de falas docentes. Felipe Bronoski Soares e Luís Fernando Cerri abordam as tensões enfrentadas por docentes de colégios militares em relação ao conteúdo sobre a ditadura militar brasileira ( ) ministrado nessas instituições, em História nos colégios militares brasileiros na visão de professores. Diego Bruno Velasco

3 Página3 Apresentação, p.1-4 analisa, em As articulações entre passado e presente no currículo de História: desafios e estratégias nos discursos de professores, os discursos que se hegemonizam quando professores de História se colocam diante do desafio de aproximar o conhecimento histórico escolar com a realidade de seus alunos. Em A voz do professor: tecnologia digital, ensino de História e relações étnico-raciais, Ana Carolina Mota da Costa Batista aborda as possibilidades de diálogos entre professores sobre as relações étnico-raciais por meio de uma ferramenta tecnológica digital ofertada por um processo de formação continuada. O currículo e os cadernos didáticos de História ofertados pela Secretaria de Estado de Educação de São Paulo são problematizados por José Antônio Gonçalves Caetano em O que dizem os professores sobre a disciplina de História: a visão dos professores sobre o programa São Paulo faz escola ( ). Guilherme Gomes Moerbeck analisa por meio de atividades pedagógicas desenvolvidas com discentes do Ensino Fundamental como, a partir do conceito de consciência histórica, foi possível discutir sobre as clivagens sociais e as diferentes formas de identificação étnico-raciais no texto intitulado Clivagens sociais e relações étnicoraciais: um estudo sobre a consciência histórica nos 7º e 8º anos do Ensino Fundamental. Maria Caroline Aguiar da Silveira interpela a importância da Didática da História nos currículos de formação de professores de História em universidades federais do Rio Grande do Sul em Didática da História: formação de professores/as de História nas universidades federais do Rio Grande do Sul. Tendo como eixo comum o trabalho sobre/com livros didáticos, Carlos Eduardo Ströer e Carla Meinerz, Maria Aparecida Lima dos Santos e Ana Carla Bérgamo Gomes Domingues, Ricardo Lima Bezerra, e André Mendes Salles escreveram os textos que finalizam a primeira edição desse Dossiê. Ströer e Meinerz investigam a presença de narrativas biográficas em obras didáticas no texto Entre o singular e o coletivo: presença de (auto)biografias em livros didáticos do PNLD. Lima dos Santos e Gomes Domingues destacam, em Representações imagéticas dos indígenas no livro didático de história: estereótipos e colonialidade, a permanência de discursos marcados pela colonialidade na análise de reproduções iconográficas de indígenas em uma coleção didática. Em O indígena no ensino de história: representações indígenas em uma coleção de livros didáticos para o Ensino Fundamental, Bezerra analisa o perfil da representação dos indígenas em um livro didático utilizado em uma escola do Ensino Fundamental em Garanhuns-PE. Salles, em artigo nomeado

4 Página4 DOSSIÊ COSTA, M.A.F., MARTINS, M.L.B; SOARES, T.N.; FONSECA, V.A como A Guerra do Paraguai nas edições do livro didático História do Brasil: da colônia à república, das autoras Elza Nadai e Joana Neves, discute eventuais incorporações das produções historiográficas sobre a Guerra do Paraguai nas edições da obra didática destacada. Apresentados brevemente os textos, convidamos cada leitor a dar continuidade ao seu processo formativo inserindo-se nos debates aqui abordados que, apostamos, contribuem para reflexões sobre as práticas docentes no âmbito da História escolar. Marcella Albaine Farias da Costa Marcus Leonardo Bomfim Martins Thiago Nunes Soares Vitória Azevedo da Fonseca

5 O Processo De Produção Dos Saberes Escolares No Âmbito Da Disciplina De História: Tensões E Perspectivas THE PRODUCTION PROCESS OF SCHOOL KNOWLEDGE IN THE SCOPE OF HISTORY DISCIPLINE: TENSIONS AND PERSPECTIVES RESUMO 1 Carmen Teresa Gabriel* A discussão, no campo educacional, em torno das questões que envolvem a produção dos saberes escolares tem permitido dar visibilidade e problematizar esse elemento crucial do processo de ensinoaprendizagem que paradoxalmente durante longo tempo, não mereceu a atenção devida dos pesquisadores. Considerando as contribuições vindas de campos disciplinares e/ou horizontes teóricos distintos para pensar a produção do conhecimento na sua forma escolarizada, neste texto, proponho refletir sobre em que medida a incorporação dessas contribuições tem permitido uma melhor compreensão das práticas escolares curriculares cotidianas ou dos mecanismos políticos-culturais e pedagógicos inerentes aos processos de ensino-aprendizagem na História. Palavras-chave: Saberes escolares. Conhecimento histórico escolar. Currículo. ABSTRACT The discussion in the educational field around the issues involved in the production of school knowledge has allowed to give visibility and to problematize this crucial element of the teaching-learning process that paradoxically for a long time did not deserve the attention of the researchers. Considering the contributions coming from different disciplinary fields and/or theoretical horizons to think about the production of knowledge in its schooling form, in this text I propose to reflect on the extent to which the incorporation of these contributions has allowed a better understanding of daily school curricular practices or political-cultural and pedagogical mechanisms, aspects inherent to the teaching-learning processes in History. keywords: School knowledge. Historical school knowledge. Curriculum. *Doutora em Educação pela PUC/RJ. Professora Titular de Currículo da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do Grupo de Estudos Currículo, Cultura e Ensino de História (GECCEH/NEC/FE/UFRJ). carmenteresagabriel@gmail.com. 1 Trata-se de um texto adaptado de apresentação oral realizada no XIII Encontro Nacional de Didática e Prática de Ensino - ENDIPE, 2006, Recife. Mesmo após dez anos, mobiliza discussões caras ao debate sobre o ensino da História.

6 Página6 DOSSIÊ GABRIEL, C.T. Introdução Nos últimos anos, a discussão, no campo educacional, em torno das questões que envolvem a produção dos saberes escolares tem permitido dar visibilidade e problematizar esse elemento crucial do processo de ensino-aprendizagem que, paradoxalmente, durante longo tempo, não mereceu a atenção devida dos pesquisadores. A proliferação e diversidade da terminologia presente nos debates acadêmicos desde então cultura escolar (Forquin, 1993), saber escolar (Forquin, 1992; Perrenoud, 1993, 1998; Develay, 1991,1995), conhecimento escolar (Lopes, 1997, 1999), disciplina escolar (Chervel,1990; Goodson, 1995), conteúdos curricularizados (Gimeno Sacristán, 1995, 1996), saber a ensinar, saber ensinado, (Chevallard, 1991), saberes aprendidos (Develay, 1995) são sintomas tanto da presença dessas questões bem como de contribuições vindas de campos disciplinares e/ou horizontes teóricos distintos para pensar a produção do conhecimento na sua forma escolarizada. Neste texto, proponho refletir sobre as implicações do enfrentamento dessas questões para o avanço da discussão no campo educacional. Em que medida a incorporação dessas contribuições tem permitido uma melhor compreensão das práticas escolares curriculares cotidianas ou dos mecanismos políticos-culturais e pedagógicos inerentes aos processos de ensino-aprendizagem em uma área disciplinar específica? O que estamos querendo nomear quando utilizamos uma ou outra dessas expressões? Que potencialidades e limites cada um desses termos carrega, ou melhor, de que sentidos eles podem ser investidos para a compreensão das práticas curriculares? Que relações são possíveis de serem estabelecidas entre os sentidos atribuídos a esses termos?

7 Página7 O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história..., p.5-36 Para além das especificidades relativas às tradições teóricas, ao enfoque e às ênfases que cada um desses termos tende a traduzir, minha argumentação central se baseia na aposta da potencialidade latente do que eles têm em comum, das pistas de reflexão que eles assinalam, das suas tentativas em nomear o que até recentemente não se incluía no campo do pensável como objeto de investigação central: o elemento saber que orienta o olhar para o que é ensinado, para os conteúdos que justificam a própria existência dos sujeitos sociais professor e aluno e que articulados configuram o chamado triângulo didático. Trata-se aqui, nos limites deste texto, menos de reforçar diferenças e especificidades do que sublinhar as semelhanças entre categorias analíticas que têm como um dos seus objetivos principais nomear e explicar a natureza, estrutura, função e/ou funcionamento dos objetos de ensino e aprendizagem específicos das instituições escolares. Importa, pois, sublinhar esse lugar específico, isto é, o da epistemologia social escolar, como locus privilegiado da discussão que aqui me proponho. Materializados através de diferentes suportes como documentos ou propostas curriculares oficiais, livros didáticos, textos produzidos previamente ou no decorrer das aulas pelo professor, os saberes escolares podem ser vistos como procurarei demonstrar ao longo da minha argumentação como novas categorias analíticas potencialmente férteis para pensar objetos de investigação que emergem e ganham corpo no âmbito de antigas e novas discussões específicas ao campo educacional. Dito de outra forma, fazer uso dessas categorias, enveredar-se pelas trilhas da epistemologia social escolar significa partir de bases novas para a compreensão dos conteúdos escolares. A inovação não consiste em apenas assumir a centralidade dos conteúdos escolares nas análises desses processos. Esse tipo de enfoque já estava parcialmente presente, por exemplo, na teoria crítica-social dos conteúdos, ocupando, inclusive, uma das posições hegemônicas no campo pedagógico brasileiro, na década de A dimensão inovadora consiste no reconhecimento da necessidade de problematizar esses conteúdos escolares tanto quanto no que diz respeito ao seu grau de comprometimento com as questões políticas, ideológicas e culturais do seu tempo como quanto à sua natureza diferenciada em relação aos demais saberes que lhe servem de referência. Fabricação social e epistemológica, os saberes escolares são percebidos como resultante

8 Página8 DOSSIÊ GABRIEL, C.T. de processos complexos de seleção cultural e de reelaborações didáticas estreitamente articuladas com as trajetórias históricas de construção das diferentes áreas disciplinares. É justamente nesta dupla dimensão configuradora seletividade cultural e autonomia epistemológica (Forquin, 1992) que reside a fertilidade teórico-metodológica dessa categoria. Estruturei esse texto em duas partes. Na primeira procuro identificar e analisar algumas das potencialidades dessa categoria para enfrentar os desafios contemporâneos presentes no cotidiano escolar. Na segunda parte, articulo essas considerações gerais com questões específicas do campo da História-ensinada, sublinhando algumas tensões e perspectivas que a abordagem pela epistemologia escolar permite evidenciar. Considerações gerais sobre a potencialidade heurística da categoria analítica saberes escolares Não se trata aqui de considerar a categoria saber escolar ou os outros termos acima citados como sendo a panaceia para todos os males que afligem o campo educacional no que tange às questões de ensino-aprendizagem. Em primeiro lugar, porque essa fertilidade não pode ser vista de forma isolada e autorreferenciada. Ela mostra toda a sua potencialidade quando acionada com outras questões, categorias, pressupostos teóricos e escolhas políticas. Em seguida, nunca é demais lembrar que a maior ou menor fertilidade analítica de um conceito ou categoria não se encontra apenas no termo em si, mas no olhar de quem a utiliza para explicar e interpretar as práticas sociais observadas. Nesse sentido, o que se segue pode ser lido como considerações que justificam uma aposta na potencialidade heurística desse campo semântico, para pensar questões que emergem na atualidade no campo da Didática e do Currículo. A exploração de uma ou outra das potencialidades listadas dependerá dos recortes e da natureza dos objetos de investigação privilegiados e consequentemente das ênfases dadas aos campos teóricos e/ou tradições teóricas diferentes.

9 Página9 O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história..., p.5-36 Primeira potencialidade: Uma porta de entrada no debate político sobre o papel da escola na nossa contemporaneidade Ao contrário de representar um distanciamento das questões mais gerais suscitadas pelas criticas pós-modernas no contexto sócio-político cultural da atualidade, a categoria em foco pode ser vista como uma forma possível de entrada e de posicionamento no debate contemporâneo. Discutir hoje sobre o processo de construção dos saberes escolares no âmbito de uma disciplina específica significa, logo de saída, se colocar contra a corrente de ideias que tendem a esvaziar e/ou negar o papel desempenhado pela escola na construção de um projeto de sociedade menos dogmático e mais igualitário. Um primeiro argumento, de ordem mais geral, diz respeito à defesa da pertinência da manutenção da instituição escolar no cenário político cultural da atualidade. Se o desenvolvimento das novas tecnologias fez com que a escola perdesse o monopólio do saber reconhecido socialmente, transformando-se em um lugar, dentre outros, onde circulam saberes, a discussão sobre saberes escolares permite argumentar que ela continua, contudo, sendo um espaço onde se estabelecem relações privilegiadas com os mesmos, podendo ser considerada como o único locus onde é possível, de um lado, estruturar e sistematizar os saberes fragmentados, criados em outros lugares e, de outro, socializar os saberes considerados e legitimados como dominantes. Um segundo argumento diz respeito ao reconhecimento da potencialidade emancipatória que se encontra na própria identidade atribuída e assumida por essa instituição. Trabalhar na pauta da epistemologia social escolar permite pensar na estreita articulação entre a capacidade de intervenção social da escola na construção de um projeto de sociedade e a forma pela qual essa instituição lida com os saberes que nela circulam e/ou são produzidos. Local de instrução, transmissora de elementos de cultura (Forquin, 1993), espaço de criações cognitivas próprias (Chervel, 1990), arena cultural (Silva, 1995), espaço de transposição didática interna (Chevallard, 1991), não importam as expressões utilizadas, as funções atribuídas e/ou as influências paradigmáticas que orientam e animam os debates, as relações escola-saber, escolaconhecimento ou escola-cultura estão sempre presentes na reflexão sobre o(s)

10 Página10 DOSSIÊ GABRIEL, C.T. significado(s) e a(s) função(ões) da instituição escolar, a despeito dos diferentes papéis políticos, sociais e ideológicos que lhe são atribuídos e por ela são assumidos. Uma terceira ordem de argumentação gira em torno do posicionamento frente às críticas pós-modernas que incidem sobre a problemática das identidades e suas implicações políticas e epistemológicas para o campo educacional interferindo diretamente na reflexão sobre a função e o funcionamento da instituição escolar. Um dos grandes trunfos da legitimação da escola têm sido as sua contribuições na formação de identidades, sejam estas individuais, sociais e/ou culturais. Mesmo no seio das teorias educacionais mais recentes, o alvo das críticas incide mais sobre os pressupostos da construção da identidade do que sobre a importância atribuída à escola neste processo. O que está em questão é mais a concepção de escola e de identidade do que a relação estabelecida entre as duas. Em um momento em que a concepção de identidades monolíticas e estáveis - central no pensamento moderno - começa a ceder lugar à concepção de identidades plurais, dinâmicas, híbridas (Canclini, 1997), percebidas como verdadeiras celebrações móveis (Hall, 1997), nem a escola, nem o ensino de história, sob pena de negarem alguns de seus fundamentos e finalidades principais, podem deixar de enfrentar essa discussão. Ao incorporar as discussões oriundas do campo curricular tendo como base as contribuições das teorias críticas e pós-críticas, o universo semântico em foco pode oferecer chaves de interpretação e de explicação do papel da instituição escolar na construção das diferentes marcas identitárias em disputa na atualidade. Segunda potencialidade: Oferece pistas para lidar com a tensão entre epistemologia e poder. Enfrentar os desafios suscitados pelas críticas pós-modernas através da problemática dos saberes escolares permite igualmente posicionar-se para além das questões relativas ao papel da escola no mundo contemporâneo. Refletir sobre a produção desse tipo de saber implica travar necessariamente um diálogo com o terreno da epistemologia. Diálogo esse que, todavia, na atualidade, está longe de se apresentar como uma questão tranquila, em torno da qual convergem posições consensuais. Ao contrário, frente à crise paradigmática que caracteriza o mundo atual, esse diálogo tende

11 Página11 O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história..., p.5-36 mais a uma tomada de posição em relação a conflitos que se manifestam no campo da produção do conhecimento através de tensões como universalismo e relativismo, verdade e sentido, objetividade e subjetividade. Nesse cenário, a epistemologia tem tido sua existência questionada no seu próprio terreno de reflexão e argumentação. A crítica à hegemonia da razão iluminista, considerada, até época recente, como única e legítima fonte de inteligibilidade do mundo, confunde-se com a crítica à própria pertinência do campo epistemológico. As implicações pedagógicas da incorporação desse tipo de crítica levam alguns representantes do campo educacional, em especial no campo do Currículo, adeptos às perspectivas mais radicais do pós estrutralismos e pós-modernismos, a negar a dimensão epistemológica e supervalorizar as dimensões política e cultural na compreensão das práticas curriculares. O que está em jogo é a possibilidade de afirmar a existência de conhecimentos verdadeiros, considerados válidos para serem ensinados, em uma determinada área disciplinar e para um determinado grupo de alunos/as. Tendo como foco de discussão o ensino de conteúdos disciplinares específicos, torna-se difícil sustentar que no processo de produção de conhecimento escolar não entrem em linha de conta critérios também de ordem epistemológica. No campo pedagógico, a questão dos valores é intrínseca à seleção dos conteúdos escolares e, entre esses valores, não é possível descartar o valor de verdade que se formula também no terreno da epistemologia. A verdade e validade de um saber se, por um lado, não são mais vistas como definitivas e absolutas, por outro, continuam a ter sua pertinência baseada em regimes de verdades construídos e legitimados também no seio da comunidade científica produtora dos saberes acadêmicos, que servem, entre outros, de referência para os saberes escolares. O fato de admitir que o currículo não apenas reproduz, mas também, e principalmente, produz significados não autoriza pensar como excludentes questões de ordem epistemológica, política e/ou cultural. Dependendo da concepção de epistemologia privilegiada, essas diferentes ordens aparecem imbricadas, sem, necessariamente, confundirem-se ou reduzirem-se umas às outras. Torna-se, pois, um desafio para o campo pedagógico procurar compreender como as questões de ordem epistemológica se manifestam no processo de seleção dos saberes escolares, uma vez redimensionadas e articuladas com outras, de dimensões

12 Página12 DOSSIÊ GABRIEL, C.T. diversas, incorporadas através do debate. Entre o niilismo epistemológico que nega a possibilidade de estabelecimento de qualquer regime de verdade e a crença na existência de verdades absolutas, definitivas universais independentesdos interesses em disputa presentes nos campos científicos onde elas são formuladas nãoexistiriam possibilidades de assumir posições intermediárias? Operar com a categoria de saber escolar, tal como aqui defendida, implica em nos situarmos entre as correntes de pensamento que preferem ressignificar a concepção de epistemologia a negar a especificidade do seu território e do seu potencial para o desenvolvimento da argumentação sobre a problemática dos saberes escolares. Nesse movimento de ressignificação do conceito de epistemologia, emergem dois caminhos distintos, mas complementares. Um primeiro, traçado por autores que podem ser identificados como adeptos do que ficou conhecida como a Nova Sociologia do Currículo (Young, 1971, 2000; Apple, 1982, 1989, 1994) ou seus desdobramentos posteriores e cujas linhas de pesquisa tendem a se pautarem em uma epistemologia social e/ou histórica (Popkewitz, 1992; Lopes, 1999; Goodson, 1995). Para esses autores, trata-se de problematizar os pressupostos da epistemologia tradicional realista e de propor análises que incorporem à reflexão epistemológica a problemática do poder, como deixa transparecer a citação abaixo: Uso o conceito de epistemologia para me referir à forma como o conhecimento, no processo de escolarização, organiza as percepções, as formas de responder ao mundo e as concepções do eu. O social que qualifica epistemologia enfatiza a implicação relacional e social do conhecimento, em contraste com as preocupações filosóficas americanas com epistemologia como busca de asserções de conhecimentos universais sobre a natureza, as origens e os limites do conhecimento. (Popkewitz, 1992, p.173) Ao reconhecer as especificidades dos saberes escolares, isto é, ao afirmá-lo como um saber distinto dos diferentes saberes saber acadêmico, saber do senso comum, saber da mídia, saber social do aluno, saber docente, etc quepotencialmente podem lhe servir de fonte, de referência, as linhas de pesquisa que operam com essa categoria contribuem tanto para problematizar tanto o processo de naturalização dos conteúdos escolares, como a estratificação hierárquica dos saberes. Longe de conceber os saberes como universais, impessoais, sem proprietários, sem traços de sua gênese, a epistemologia social escolar tende a reconhecer a dimensão histórica e política como

13 Página13 O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história..., p.5-36 elemento constituinte da própria noção de saber, afastando-se das perspectivas representacionais do conhecimento/saber e oferecendo a possibilidade de diálogo com as perspectivas construcionistas. Ter ou não ter saber ou a definição de algo como sendo ou não um saber, nunca pode ser completa e definitivamente assegurada. O saber, assim entendido, é fonte de conflito e de disputa, verdadeiro objeto de desejo gerando uma dinâmica própria no seio das sociedades modernas. Entrar no debate pelas portas da epistemologia social escolar significa ainda colocar em questão a hierarquização dos saberes, sem, no entanto, desqualificar ou negar o papel de referência dos saberes científicos no processo de construção dos saberes escolares. O segundo caminho, inaugurado por Chevallard (1991), e, no meu entender, ainda pouco trilhado, consiste em ampliar o próprio terreno da epistemologia tradicional e incluir, além da problemática da produção dos saberes e suas imbricações com as questões de poder, outras problemáticas que estão diretamente relacionadas com a dinâmica dos saberes. A ideia defendida por esse autor é que os saberes estão localizados em diferentes espaços (habitats) institucionais e, dessa forma, englobam ou estão relacionados a diferentes problemáticas: da utilização, do ensino, da produção e da transposição. Essa multilocalidade dos saberes imprime outra característica a esse tipo de objeto que os distingue de outras formas de conhecimento. Nessa perspectiva, o que também define um saber é o fato de poder ser utilizado, ensinado e produzido, e, como acrescenta Chevallard (1991), transposto. Essas diferentes esferas, apesar de possuírem certo grau de autonomia, estão estreitamente articuladas. A compreensão do ensino de um saber não é possível se ignorarmos as suas utilizações e produções. Cumpre ainda sublinhar que se essa articulação assume uma forma hierarquizada não é em função de alguma característica intrínseca aos saberes, mas da forma que está historicamente construída. [A formação do sistema de saberes] não se explica pelo que seriam as características intrínsecas dos saberes. Ela decorre da estrutura de produção, de utilização de ensino dos diferentes saberes, e também, claro, de toda a rede de transposição as noosferas sem a qual os saberes não poderiam viver. (Chevallard,1991 p.215)

14 Página14 DOSSIÊ GABRIEL, C.T. A crítica à concepção de epistemologia, elaborada por Chevallard, se singulariza pelo alvo buscado. Enquanto os estudos anteriormente mencionados tendem a centrar suas críticas em uma concepção de Razão, de Ciência, de Método, consolidada no século XIX, e responsável pelo estabelecimento e imposição das regras da produção do saber científico que passou a ser considerada como a única forma possível de inteligibilidade do mundo, Chevallard desloca o foco da discussão. A originalidade de sua argumentação consiste no fato de escolher como alvo não as questões suscitadas pela esfera da produção do saber científico (objetividade, subjetividade, legitimidade, verdade, etc), mas sim a hegemonia dessa esfera para se pensar as questões de ordem epistemológica. Hegemonia essa, cabe sublinhar, explicada por questões de ordem histórica e cultural: Devemos ver, creio, o efeito de certa maneira que tem a cultura de tratar os saberes. Sua produção é destacada e valorizada. Sua utilização permanece opaca, ignorada. Seu ensino, mais visível culturalmente que a sua utilização, é, contudo diminuído, olhado como uma tarefa contingente, um mal necessário. (Chevallard, 1991, p.212) Ao propor uma reavaliação dos lugares ocupados socialmente pelas diferentes problemáticas de saberes (produção, ensino, utilização e transposição) no mundo contemporâneo, Chevallard justifica a necessidade da introdução no campo educacional de uma reflexão epistemológica que leve em conta não apenas a pluralidade de saberes, mas principalmente as diferentes problemáticas com as quais eles se relacionam. Ao contrário de restringir sua reflexão à problemática da produção das Ciências ou da Ciência, Chevallard centra sua reflexão na discussão sobre a problemática dos saberes em geral, reconhecendo a pertinência e necessidade, para a vida social, do enfrentamento com esses diferentes níveis de problematização. Esse tipo de abordagem sugere pistas de investigação interessantes. Trata-se, assim, de pensar menos em termos de mudanças do estatuto epistemológico do saber escolar do que em termos de mudança na abordagem do seu nível de problemática. A autonomia epistemológica dos saberes escolares estaria mais na natureza das problemáticas (produção, transposição, ensino) em que estão envolvidos do que na natureza de sua base epistemológica, capaz de lhes atribuir ou não legitimidade científica.

15 Página15 O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história..., p.5-36 Nessa perspectiva, a tendência em negar a esfera da transposição didática ou esquecer os seus efeitos, no contexto da escola, pode ser visto como uma das estratégias utilizadas pelo sistema de ensino para garantir a reprodução dos mecanismos de reprodução engendrados no e pelo funcionamento didático escolar. Em contrapartida, dar visibilidade a essa esfera, problematizá-la, passa ser condição indispensável para desmascarar esses mesmos mecanismos, oferecendo a possibilidade de criar ou reforçar outros papéis passíveis de serem desempenhados pela escola. Nesse segundo caminho estão igualmente presentes a preocupação de desnaturalização dos saberes escolares e a possibilidade de problematizar a hierarquização arbitrária dos saberes pela qual se tende a considerar a esfera de problematização do ensino como menor, menos nobre quando comparado com a esfera de produção, percebida e legitimada socialmente como propriedade exclusiva da comunidade acadêmica. Terceira potencialidade: Contribui para romper com fronteiras disciplinares A reflexão sobre o processo de produção de saberes escolares, no viés da epistemologia social escolar, implica igualmente na assunção de uma postura epistemológica favorável ao diálogo entre diferentes áreas disciplinares. Essa abertura à interlocução interdisciplinar, potencialmente presente no campo semântico em foco, pode ser percebida no que se refere tanto as diferentes posições internas ao campo educacional, como as articulações com outros campos científicos. No plano interno do campo pedagógico, a aposta no diálogo se manifesta na possibilidade de oferecer pistas para o trabalho na pauta da convergência entre os campos da Didática e do Currículo. A discussão sobre saberes escolares permite, quando não exige, que o olhar se centre nas zonas de convergência, de intersecção dessas duas posições. Tanto um como outro campo se preocupam, ainda que com referenciais teóricos e recortes muitas vezes distintos, com aspectos que envolvem o processo de ensino-aprendizagem, eixo articulador dos problemas de pesquisa compartilhados pelos agentes de ambas as posições. Dessa forma, operar com a categoria saber escolar é se situar na intersecção dessas duas áreas de pesquisa na medida em que a problemática em questão corresponde a

16 Página16 DOSSIÊ GABRIEL, C.T. uma dessas temáticas comuns que emergem na década de 1990 explicitadas claramente por diferentes estudiosos do campo, como por exemplo Oliveira (1998) que destaca a construção do conhecimento escolar a partir da reelaboração do saber científico como sendo o objetivo central trabalhado em ambas as áreas. A opção por esse tipo de recorte implica na possibilidade de superação de visões dicotômicas que tendem a reforçar um distanciamento radical entre essas duas posições. Reconhecer ênfases diferenciadas na análise que envolve os diferentes aspectos desse processo não impede que se considere igualmente a necessidade de se refletir sobre os mesmos de forma articulada. A articulação com outros campos como o da Sociologia, História, Antropologia, Lingüística, se faz necessária na medida em que o sentido investido no termo saber escolar, na perspectiva da epistemologia social escolar incorpora o reconhecimento da imbricação das questões educativas com questões de poder, dominação, resistência, ideologia, identidades, e classe social, reafirmando a necessidade de pensá-las a partir de suas dimensões relacionais. Fabricação social, os saberes escolares são vistos como sendo uma prática social historicamente determinada, capaz de ser compreendida com o auxílio de diferentes ciências (Moreira, 1998). Este olhar permite pensar as questões relativas à produção desses saberes de forma articulada com as demais práticas sociais historicamente contextualizadas nas quais elas estão inseridas, evitando assim o risco de se cair em um reducionismo pedagógico. É nesse ponto que o diálogo com outras ciências sociais torna-se fundamental, ampliando o leque de combinações e articulações entre as diferentes explicações passíveis de tornar as práticas escolares inteligíveis. Práticas sociais despidas de neutralidade, o processo de construção dos saberes escolares, ao invés de se pautarem em uma cultura homogênea de pretensão universal, como defendia a visão tradicional, representa, de fato, um processo seletivo no seio de uma política cultural através da qual se expressam as diferentes tensões e interesses presentes na sociedade. No entanto, assumir a não neutralidade e não-unilateralidade do campo pedagógico em geral, e dos saberes escolares em particular, reconhecer a natureza móvel, fluida, capilar das relações estreitas entre saber e poder, não implica em negar

17 Página17 O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história..., p.5-36 especificidades desse campo enquanto espaço de reflexão e de intervenção social, política e cultural. Essa reflexão nos leva à quarta potencialidade. Quarta potencialidade: Assegura o olhar de dentro do campo educacional Saber, cultura, conhecimento, disciplina o que os articula ao mesmo campo semântico é o adjetivo escolar que os acompanha e indica os locus privilegiados de onde esses termos são pensados e problematizados. É a escola, isto é, as discussões que envolvem a natureza, funções e papéis desse espaço específico que orientam o recorte, a escolha do foco da discussão. As diferentes apropriações políticas e epistemológicas desses diferentes termos, por mais divergentes e contraditórias que possam ser, não podem evitar que a discussão seja feita a partir do terreno da escola. Nesse sentido, embora as discussões e análises que procuram desvelar o grau de imbricação das questões educativas com os contextos político, econômico e sóciocultural tenham trazido uma irrecusável contribuição, elas não são suficientes para dar conta das diferentes variáveis que entram em jogo no processo de produção dos saberes escolares. Torna-se também necessário lançar mão da razão pedagógica vista como um processo permanente de articulação entre diferentes razões cujo eixo central de argumentação consiste nas questões suscitadas pelos desafios cotidianos do contexto escolar. Esta opção tem como mérito permitir evitar por sua vez, reducionismos de diferentes ordens sociológico, psicológico, antropológico, histórico ou filosófico naanálise dos fenômenos educativos. Quinta potencialidade: Novos olhares para abordar temas clássicos e/ou, antigas discussões Outro potencial dessa categoria consiste em abrir pistas de investigação que possibilitam novas abordagens sobre temas antigos ou clássicos no campo educacional. Temas como, por exemplo, o impacto das reformas curriculares no cotidiano das salas de aula, podem ser redimensionados quando se opera com a categoria saber escolar na perspectiva aqui trabalhada. Mudar e/ou atualizar conteúdos escolares é intervir diretamente no processo de produção de saberes escolares. Não se trata apenas de

18 Página18 DOSSIÊ GABRIEL, C.T. introduzir novos conteúdos ou novos enfoques de conteúdos já presentes nas grades curriculares das disciplinas escolares. Mudança curricular é também colocar em marcha a engrenagem complexa da transposição didática. A abordagem pelas lentes da epistemologia social escolar contribui para evidenciar as especificidades das diferentes esferas de problematização de saberes envolvidas nesse processo e as implicações políticas e pedagógicas que precisam ser consideradas quando se trata de avaliar o sucesso ou fracasso de uma reforma curricular. O desconhecimento dessa dinâmica interna tende a superestimar a autonomia dos professores no processo, fazendo com que a avaliação dessas reformas, fique dependente quase que exclusivamente da boa vontade e/ou de sua capacidade no momento de sua implementação. Dar visibilidade a esse processo representa um passo importante para entender porque alguns dos mais belos achados das reformas curriculares não resistem ao jogo da transposição didática interna, isto é na sala de aula. Essa constatação nos remete a construção de novos olhares sobre a temática da formação docente. Com efeito, as pesquisas que incorporam as contribuições da epistemologia social escolar abrem pistas para pensar igualmente a formação inicial e continuada dos professores sob bases que muito valorizam o papel desempenhado pelos docentes, sem, no entanto, atribuírem à figura do professor a responsabilidade exclusiva em relação às soluções dadas aos desafios enfrentados no dia a dia da sala de aula. Essas contribuições, ao favorecerem a desconstrução do mito da conformidade entre saberes, ainda bastante presente nas representações do professor sobre os conteúdos escolares, fazem com que o saber escolar se torne uma problemática em torno da qual é passível de se formular questões sobre, por exemplo, sua origem, sua filiação, sua legitimidade e seu papel no processo de ensino-aprendizagem. Por um lado, essas contribuições apontam a centralidade da ação docente no decorrer de uma das fases do processo de construção de saberes, do outro lado, elas indicam os limites da autonomia do professor nesse processo, na medida em que reconhecem a presença de outras variáveis inerentes à dinâmica própria do sistema dos saberes que extrapolam o campo de possibilidades de intervenção por parte desse ator social. A apropriação desses mecanismos de ordem político-epistemológica específicos à dinâmica interna dos saberes é fundamental para que o professor possa entender

19 Página19 O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história..., p.5-36 melhor os alcances e limites de sua capacidade de intervenção no processo de produção dos saberes escolares. Outra pista de investigação aberta pela epistemologia social escolar consiste na possibilidade de apreensão dos livros didáticos a partir de enfoques inovadores. Por essa abordagem os livros didáticos podem ser considerados como suportes dos saberes escolares, uma das instâncias da cadeia didática na qual os saberes de referência são interpelados em sua dimensão epistemológica. (Forquin, 1995), ou ainda como um artefato cultural, resultado de uma construção específica historicamente contextualizada. Este enfoque oferece possibilidades de repensar ou redimensionar os critérios utilizados para avaliar a qualidade de tal suporte tendo como base as condições de produção desses textos didáticos. Para finalizar essas considerações gerais sobre a potencialidade heurística da categoria saber escolar, gostaria de sublinhar as contribuições para pensar as questões e desafios que se colocam para o campo das didáticas específicas. A análise dos mecanismos de didatização dos saberes permite compreender que estudar o que é específico do conhecimento não corresponde a fazer uso somente de instrumentos específicos desse conhecimento. Nesse sentido, a abordagem pela epistemologia social escolar, permite perceber que o interesse pelo que é específico dos conteúdos disciplinares pressupõe necessariamente a compreensão da estrutura epistemológica desses saberes específicos que em, última instância, garante que a sua inteligibilidade aquilo que representa a própria razão de ser desses saberes nãose perca no decorrer do processo de produção dos saberes escolares. Importa assim sublinhar que a apropriação pelas diferentes áreas disciplinares dessas contribuições não pode dispensar as reelaborações particulares exigidas pelas suas especificidades epistemológicas. A segunda parte deste texto procurará demonstrar a pertinência dessas afirmações a partir da análise do campo da História.

20 Página20 DOSSIÊ GABRIEL, C.T. A incorporação do debate no campo da História ensinada: tensões e perspectivas As reflexões que se seguem devem ser entendidas como um exercício intelectual sobre as potencialidades heurísticas do universo semântico que configura o campo da epistemologia social escolar aplicado à disciplina de História. Para tal, procurarei sublinhar as tensões e perspectivas que essa abordagem permite respectivamente evidenciar e vislumbrar como caminhos possíveis de enfrentamento dos desafios atuais presentes neste campo disciplinar específico. Em um primeiro momento, contextualizo rapidamente a incorporação recente nesse campo disciplinar, do debate em torno do processo de produção dos saberes escolares. Em seguida, identifico algumas das tensões que o perpassam tanto do ponto de vista epistemológico como político. Finalizo minhas argumentações apontando algumas perspectivas de análise que emergem para o campo decorrente da utilização da categoria em foco. O debate no campo do ensino de História A discussão no campo do ensino de história no Brasil tendo como base o referencial da epistemologia social escolar é ainda bastante recente, contrariamente a países como a França onde, desde o final dos anos 1980, a ideia de uma história ensinada com especificidades próprias tornou-se objeto de investigação para os pesquisadores da área. A presença deste enfoque pode ser evidenciada em estudos que utilizam expressões como saber histórico escolar (Bittencourt, 1993; Monteiro, 2002; Gabriel, 2003), tramas de didatização (Gabriel, 2003), história-ensinada (Gabriel, 2003, Tutiaux-Guillon, 1988), história escolar e historiografia escolar (Ailleu, 1995), criações didática, recomposição didática (Guyon & Mousseau & Tutiaux-Guillon,

21 Página21 O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história..., p ), ao se referirem aos conteúdos históricos ensinados nos contextos escolares. De uma maneira geral, esses estudos dialogam, em graus e modalidades diferenciados, com e contra as contribuições da epistemologia social escolar, teoria da transposição didática, das teorias curriculares críticas e pós-criticas. Entre os defensores da epistemologia social escolar que abrem pistas para esse tipo de reflexão no âmbito do ensino de história, destaca-se Develay (1995) cuja reflexão tem permitido evidenciar e aprofundar certos aspectos da teoria da transposição didática, contribuindo para o avanço do debate nesse campo. Esse autor propõe reformular esse conceito de forma a estendê-lo e complementá-lo: (...) a noção de transposição didática merece, no nosso entender, duas extensões e um complemento em relação à definição de Yves Chevallard sobre a passagem do saber acadêmico ao saber a ensinar (Develay, 1995). Dessa forma, no plano dos saberes que servem de referência, ele argumenta a favor do reconhecimento de uma dupla origem dos saberes escolares, acrescentando a noção de práticas sociais de referência, elaborada por Martinand (1986), para dar conta das disciplinas escolares como, por exemplo, é o caso da Educação Física ou da Informática cujos saberes não provêm diretamente da transposição de um saber acadêmico social e historicamente legitimado. A noção de prática social de referência tem sido utilizada por alguns pesquisadores do campo da epistemologia social escolar (Develay, 1991, 1995a, 1995b, 1999, Audiger, 1994, Aillieu, 1995), no sentido de suprir o que eles estimam como ausência na teoria da transposição didática. Essa noção tem como objetivo alargar, completar as referências dos saberes escolares. Ela inclui outras atividades que correspondem a um determinado campo de saber de referência e que devem ser igualmente levadas em consideração no processo de produção dos saberes escolares. Cumpre observar, no entanto, que ela emerge para dar conta de saberes que eram passíveis de serem didatizados, mas que não se constituíam ainda como disciplinas escolares, nem tampouco se articulavam com um saber acadêmico já legitimado, o que não é o caso do conhecimento histórico. Ao contrário, no campo da história, a questão pode ser colocada em termos praticamente inversos. A dificuldade de transposição se encontraria menos na ausência de um saber acadêmico suficientemente consolidado e

22 Página22 DOSSIÊ GABRIEL, C.T. culturalmente legitimado, do que na possibilidade de didatizá-lo devido a sua natureza epistemológica complexa. Outra extensão sugerida por Develay (1995) diz respeito à incorporação, no processo de transposição didática, da dimensão dos "saberes aprendidos" como saberes diferentes dos saberes a ensinar e/ou ensinados. Com efeito, a ênfase da discussão de Chevallard não está colocada nas problemáticas relativas à aprendizagem desses saberes, seu olhar está centrado na dinâmica da vida dos saberes quando transpostos e ensinados. Quanto ao complemento proposto por Develay (1995b), trata-se de realizar uma remodelagem do conceito de transposição didática que corresponde à introdução paralelamente ao processo de didatização da dimensão axiológica que permeia a reelaboração dos saberes: Quanto ao processo de remodelagem do saber ao longo dessa cadeia, ele corresponde, por um lado, a um trabalho de didatização (que visa a tornar operacionais as situações de aprendizagem através de escolhas feitas na lógica dos conteúdos, nos materiais propostos, nas tarefas a serem efetuadas, nas consignações dadas, nos critérios de avaliação) e, por outro, a um trabalho de axiologização (que escolhe os conteúdos que contêm em si certos valores em jogo na relação do aluno com o saber, dos alunos entre eles, dos alunos com o ensino, dos saberes com o projeto da sociedade...). (Develay, 1995b, p.26) Esse complemento abre pistas para se pensar a apreensão da dinâmica da vida dos saberes, no âmbito do ensino de história, na medida em que ela permite dar visibilidade a um aspecto inerente à especificidade do saber histórico pela qual pertinência e legitimidade cultural e epistemológica são pensadas de forma articulada. Com efeito, se o processo de axiologização é inerente a todo processo de produção dos saberes escolares, correspondendo, como afirma Develay (1995), a uma ética implícita, importa observar que, no caso dos saberes em História, esse processo se apresenta de maneira sistemática, muitas vezes, de forma explícita, estando presente tanto no seio do próprio saber histórico acadêmico como em todas as instâncias onde se opera a sua reelaboração. Na Academia, seja no nível do que Chevallard (1991) chama de transposição externa (noosfera) ou no nível da transposição interna (sala de aula), o saber histórico é encenado a partir de escolhas que diferem e se orientam em função da afinidade dos atores envolvidos (pesquisadores, autores de propostas

23 Página23 O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história..., p.5-36 curriculares, de livros didáticos, professores) com as diversas matrizes teóricas e axiológicas privilegiadas pelos mesmos. A compreensão dessa estrutura epistemológica específica do saber histórico é importante para a reflexão sobre o processo de produção responsável pela elaboração da história de objeto de pesquisa a objeto de ensino. Em contrapartida, a ausência desse tipo de reflexão dificulta a superação de algumas posições bastante enraizadas no campo do ensino de história como aponta, de uma maneira geral, a revisão da literatura especializada dessa área, no Brasil, nos últimos vinte anos. Essa revisão tende a mostrar a presença ainda forte, de posições que operam com o mito da identidade entre saberes denunciado pelo referencial da epistemologia social escolar, dificultando assim a compreensão do processo de construção da históriaensinada. Esse mito pode ser evidenciado na presença de duas afirmações recorrentes no discurso dos pesquisadores desta área. A primeira diz respeito à constatação, a partir da década de 1980, da intensificação de um movimento de mudança no seio da disciplina de história que se traduziria tanto nas propostas curriculares que começaram a circular nas esferas municipal, estadual e federal (os PCNs) como na configuração dos livros didáticos de história que procuraram acompanhar as transformações propostas. A segunda refere-se à persistência de um descompasso entre a história que se quer ensinar (presente nas propostas curriculares e nos livros didáticos) e a história efetivamente ensinada nas salas de aula. Apesar dos esforços que teriam sido realizados no plano do currículo formal, permanece no plano do currículo real a prática de uma história dita "tradicional". O diálogo com a epistemologia social escolar aponta para a necessidade de se repensar tais afirmações e procurar pistas que ajudem a responder algumas questões como, por exemplo: Como explicar as permanências de certas configurações disciplinares identificadas pelos pesquisadores da área e por muitos professores(as) como arcaicas, obsoletas, reacionárias, conservadoras e/ou tradicionais? Onde estariam os obstáculos que impediriam que essas configurações cedessem e permitissem a efetivação de um novo ensino de história despido de arcaísmos, sintonizado com as demandas sócio-políticas e culturais da sociedade brasileira atual, coerente com as transformações no campo da historiografia e/ou das novas propostas curriculares? Como explicar essa distância entre a intencionalidade das propostas e a sua efetivação em sala de aula sem cair em visões dicotômicas?

24 Página24 DOSSIÊ GABRIEL, C.T. Se por um lado, os anos 80 podem ser considerados como um marco cronológico na trajetória de construção deste campo disciplinar no Brasil, por outro lado, torna-se necessário questionar certas ideias comumente admitidas entre os pesquisadores bem como os critérios utilizados para avaliar o grau de inovação e de tradicionalismo, de ruptura e de permanência tanto nas propostas curriculares como na prática de ensino dessa disciplina. Entre essas ideias, destacam-se pelo menos duas que estão diretamente relacionada a temática em foco. Uma primeira, de cunho epistemológico, corresponde a uma visão hierarquizada do saber pela qual o saber científico, produzido e legitimado pela academia permanece como o único referencial válido para avaliar as mudanças que ocorrem no campo da história-ensinada nas escolas da Educação Básica. O descompasso mencionado é visto como handicap do saber histórico ensinado ou da formação dos professores. Nessa perspectiva, trata-se de aproximar a história ensinada o mais perto possível das "novas historiografias" de forma a torná-la capaz de incorporar os novos objetos, os novos enfoques e os novos problemas colocados pelas historiografias contemporâneas. O mesmo ocorrendo no plano do currículo real: quanto mais o professor for capaz de introduzir nas suas aulas essas mesmas contribuições, mais ele tem chances de evitar o adjetivo pejorativo "tradicional". Uma relação de simetria se estabelece de forma mecânica como se novos objetos de pesquisa histórica deveriam se desdobrar automaticamente em novos objetos de ensino de história; novos métodos de pesquisa histórica em novos métodos de pesquisa em sala de aula. Como uma boneca russa, os saberes escolares (tanto aquele "a ser ensinado" como o "ensinado") devem se adaptar, se encaixar no "saber maior" (o saber acadêmico). A ideia subjacente a ser criticada, consiste na ausência nessas análises, da "razão pedagógica" vista como referencial indispensável para pensar as questões relativas ao ensino em geral, e o processo de ensino-aprendizagem de história em particular. As diferentes análises dos textos curriculares e didáticos da área de história (propostas curriculares municipais, estaduais e federais) que se propõem a resgatar as suas trajetórias de construção e implementação, a identificar singularidades, permanências e rupturas, ou a identificar as matrizes teóricas que lhe serviram de inspiração, ou pesquisas sobre formação de professores, livros didáticos desta disciplina

25 Página25 O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história..., p.5-36 que se propõem a analisar os conteúdos, a partir do exame da relação que estes estabelecem com o saber acadêmico e destacar as representações veiculadas se pautam, de uma maneira geral, nos pressupostos acima mencionados. A incorporação das contribuições oriundas da epistemologia social escolar pode oferecer subsídios de ordem conceitual e metodológica para combater essas ideias pressupostas que estão na base da tese do descompasso. Em primeiro lugar, elas abrem caminhos para situar a pesquisa de Didática da História no universo mais amplo, relativo às diferentes instituições (de produção, utilização, de ensino e de transposição) que operam com as necessidades em saberes em história na nossa sociedade e uma vez assim redimensionada, focalizar a discussão na relação estabelecida entre as instituições no âmbito dessa disciplina. Em seguida elas permitem introduzir novas variáveis para a reflexão já acumulada no campo do ensino de história, sobre temas como reformas curriculares, formação de professores, livros didáticos, e outros. Trata-se assim de apostar na possibilidade de pensar a história-ensinada não mais como uma versão necessariamente simplificada e reduzida do conhecimento histórico produzido pelas pesquisas acadêmicas, mas sim como uma configuração de ordem epistemológica e axiológica (ética-político-cultural) com um grau de especificidade e autonomia suficientes para que ela possa ser percebida e legitimada como um saber diferenciado e estratégico nas disputas pelas interpretações construtoras de sentido do mundo. Tensões presentes no campo do ensino de história Refletir sobre o processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história implica em enfrentar desafios teórico-metodológicos decorrentes das diferentes tensões que perpassam o campo da história-ensinada na atualidade, tanto do ponto de vista político como epistemológico. Limitar-me-ei a destacar dois exemplos dessas tensões distintas, mas complementares, evidenciadas no estreitamento do diálogo com a epistemologia social escolar. Uma primeira tensão é de ordem epistemológica e refere-se às potencialidades e limites do processo de reelaboração didática em função das especificidades epistemológicas do conhecimento histórico. A

26 Página26 DOSSIÊ GABRIEL, C.T. segunda tensão é decorrente do enfrentamento com as questões políticas-culturais de nosso tempo que incidem na problematização da função social e política do ensino dessa disciplina. Tensões de ordem epistemológica Espera-se que, ao longo do ensino fundamental, os alunos gradativamente possam ampliar a compreensão de sua realidade, especialmente confrontando-a e relacionando-a com outras realidades históricas, e assim possam fazer suas escolhas e estabelecer critérios para orientar suas ações. (MEC, 1998, p.43) (grifo meu) Uma das dificuldades enfrentadas pelos estudiosos da área diz respeito à própria complexidade da natureza epistemológica do saber histórico e suas implicações para o processo de transposição entre as diferentes esferas de problematização desse saber. Para alguns especialistas da área, como Moniot (1993), a complexidade da natureza epistemológica do saber histórico pode chegar a levantar suspeitas sobre a viabilidade de falarmos em "aprendizagens históricas". Essa complexidade vem à tona quando se trata de transformar o saber histórico em objeto de "saber a ser ensinado" ou de "saber ensinado". Ao contrário dos saberes da maioria das disciplinas escolares, descritíveis em programas através de exercícios que se propõem a verificar a aquisição de conhecimentos e de procedimentos, o saber histórico não se apresenta como objeto de fácil transposição. A possibilidade de "dessincretização" do saber uma das condições sine qua non, na perspectiva chevallardiana, para um saber ser considerado "ensinável" é um dos aspectos mais problemáticos da disciplina de História. Moniot expressa da seguinte forma a questão, deixando transparecer a fragilidade dessa área disciplinar em termos de definição de objetos de saber de ensino e/ou de aprendizagens. A História acadêmica comporta simplesmente todo o passado humano, ela tem ofícios e metodologias, ela conflui em permanência com outras ciências do homem, e com outras figuras de conhecimento... A história escolar é uma enorme e polivalente lição das coisas sociais, morais e intelectuais. Ela veicula ao mesmo tempo a conformidade e a tomada de distanciamento, a continuidade e a reapreciação. Parco terreno para a definição simples de aprendizagens específicas. (Moniot, 1993, p.36) (grifo meu)

27 Página27 O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história..., p.5-36 A tendência presente entre alguns profissionais da área (autores de propostas curriculares, de livros didáticos, professores) em caracterizar a História como uma disciplina cujos conteúdos específicos se prestariam mal ao raciocínio (idem, p.214) tende a estar relacionado ao papel central que lhe é atribuído pelos textos oficiais, pelo próprio discurso dos agentes do campo, no processo de formação mais ampla, de natureza axiológica (transmissão de valores morais, cívicos, políticos e culturais), visando a inserção do aluno na vida social. Nele [refere-se ao diálogo entre saber histórico e a realidade social e educacional], fundamentalmente têm sido recriadas as relações professor e aluno, conhecimento histórico e realidade social, em benefício do fortalecimento do papel da História na formação social e intelectual de indivíduos para que, de modo consciente e reflexivo, desenvolvam a compreensão de si mesmos, dos outros, da sua inserção em uma sociedade histórica e da responsabilidade de todos atuarem na construção de sociedades mais igualitárias e democráticas. (MEC, 1998, p.29) (grifo meu) O duplo registro ciência/consciência, explicação/compreensão sobre o qual se justifica e se constrói tal saber torna bem mais complexa a apreensão dos mecanismos de didatização mobilizados. Confrontada com o ensino, a disciplina de História vê-se obrigada a lidar com a dimensão axiológica que lhe é inerente com muito mais acuidade. Tornam-se mais prementes e difíceis de serem negadas, escondidas ou adiadas as questões relativas aos sentimentos, vontades, virtudes, consciência de deveres, cuja explicitação em termos de finalidades de ensino e aprendizagem é, todavia, muito mais difícil de ser estabelecida. Um dos maiores desafios para os agentes do ensino de História consiste em não compensar a dificuldade de programabilidade e dessincretização (Chevallard, 1991) da disciplina no plano racional e/ou intelectual pela sua função cultural política. Ainda que essa compensação não se faça de forma abertamente assumida, é possível detectá-la com certa frequência nos diferentes níveis de didatização. Por exemplo, os debates acirrados em torno da pertinência ou não da adoção dos eixos temáticos como critério de seleção e organização do saber histórico escolar, bem como as rejeições de sua utilização pelos agentes responsáveis pela sua transposição interna deixam entrever as dificuldades de dessincretização específica deste saber. O que está em jogo, não é apenas a possibilidade de tornar o ensino de história ensinável,

28 Página28 DOSSIÊ GABRIEL, C.T. mas igualmente a necessidade de garantir a sua função formadora no plano cultural e político. Propostos como alternativa da tradicional dessincretização dos conteúdos pelo viés cronológico, sem estarem, contudo, na maioria das vezes, articulados às exigências da configuração epistemológica do conhecimento histórico, os eixos temáticos, tornam a organização e ordenação desse conhecimento igualmente problemáticas. A crítica a uma concepção linear, de direção pré-determinada de tempo, até então, predominante se faz deixando em seu rastro uma situação pouco confortável para os professores dessa disciplina. A negação de uma forma consolidada entre os professores de história de garantir um sentido à história ensinada implica, muitas vezes, na ausência de qualquer outra possibilidade de construção de sentido, quebrando a lógica interna de inteligibilidade do conhecimento histórico. A resistência em repensar a questão do tempo no ensino de história não é uma questão apenas de voluntarismo, mas de dificuldade epistemológica que essa reelaboração didática pressupõe. Não basta querer mudar, é preciso ter os meios que garantam a transposição didática dessa intencionalidade, sem quebrar o fio da meada da estrutura narrativa da história que está sendo narrada. O desafio da dessincretização do saber nesse nível consiste em solucionar a seguinte questão: Como quebrar a linearidade concebida no seio da historiografia tradicional e ao mesmo tempo garantir a inteligibilidade da história-ensinada? Essa preocupação em não quebrar ou não perder o fio da meada traduz a permanente busca de sentido da qual o professor de história não pode abrir mão. Tensões de ordem política-cultural: As tensões dessa ordem se manifestam com mais acuidade quando a reflexão se orienta para a questão das finalidades, da razão de ser do ensino dessa disciplina. Desenvolver o espírito patriótico, o civismo, construir a memória nacional ou recuperar memórias esquecidas são objetivos que permeiam e tensionam o ensino dessa disciplina a despeito das concepções de história sobre as quais eles se baseiam, nos remetendo direta ou indiretamente à problemática da construção da(s) identidade(s).

29 Página29 O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história..., p.5-36 A análise da trajetória da construção do campo disciplinar da história permite perceber o quanto ela está estreita e explicitamente imbricada com questões axiológicas, relativas à construção da identidade coletiva em geral e mais precisamente à da identidade nacional. Com efeito, e apesar de não se constituir como objeto de ensino propriamente dito, a disputa pela hegemonia do sentido a ser atribuído à identidade nacional continua sendo uma das intrigas centrais, em torno da qual se organiza o saber dessa disciplina. Desde a emergência da História Nacional como disciplina acadêmica no século XIX, esta temática tem assumido o papel de fio condutor de grande parte das tramas tecidas. Além disso, tendo em vista o investimento simbólico, político, ético e ideológico que a construção da narrativa nacional requer, esta temática favorece o enfrentamento da tensão entre a busca da verdade (o que realmente aconteceu entre os elementos que hoje configuram nosso espaço de experiência e que contribuem para tecer a brasilidade?) e a construção de sentido (Qual a representação, ou representações, de brasilidade que prevalece, ou prevalecem, no nosso presente histórico?), exemplificando de forma clara o duplo registro epistemológico do conhecimento histórico. Considerando assim, o papel central na formação de identidade(s) que é atribuído ao conhecimento histórico, em particular quando reelaborado em objeto de ensino, cabe perguntar: Como pensar um ensino de história que contribua para a formação de um cidadão crítico capaz de assumir e lidar com as suas múltiplas marcas identitárias e que muitas vezes se manifestam de forma contraditória? Como articular, no ensino desta disciplina, a necessidade de garantir tanto a transmissão de uma memória nacional academicamente legitimada como desenvolver a reflexão crítica sobre essa mesma memória, condição imprescindível para fazer emergir novas identidades e possibilidades de representação de brasilidade? Ou, dito de outro modo: Como dosar e articular esses dois registros, sem negar, nem exaltar a importância e o papel desempenhado por cada um? Como articular o ensino de uma forma de pensar historicamente e de uma memória já acumulada e consagrada pelas gerações precedentes? Como reelaborar didaticamente capacidade crítica e necessidade de memória? Em um mundo de proporções globais, onde se assiste a novas configurações políticas que extrapolam as fronteiras dos Estados Nacionais e no qual não é possível

30 Página30 DOSSIÊ GABRIEL, C.T. negar a desigualdade social e a diversidade cultural no seio das sociedades, teria ainda sentido para o ensino de história se preocupar com a construção de uma identidade nacional? O que está em jogo aqui, não é apenas a possibilidade de tornar o ensino de história ensinável, mas igualmente a necessidade de garantir a sua função formadora no plano cultural e político. Argumento que o primeiro passo para o enfrentamento com essas questões consiste em buscar na própria estrutura epistemológica mista do conhecimento histórico os caminhos que possam ajudar a pensar a reelaboração dos mecanismos de didatização e axiologização que precisam ser acionados no ensino dessa disciplina. Perspectivas abertas O diálogo com a epistemologia social escolar permite abrir pistas inovadoras para enfrentar essas diferentes ordens de tensões acima explicitadas. Entre essas pistas importa sublinhar a necessidade de buscar no campo da Teoria da História elementos que possam contribuir para o entendimento da natureza específica desse saber. Essa busca fez emergir a centralidade da estrutura narrativa, responsável pela inteligibilidade desse conhecimento, como uma chave de leitura para os processos de produção dos saberes escolares a ser explorado no campo da história-ensinada. Até época relativamente recente, as discussões no âmbito acadêmico em torno dessa noção, limitaram-se à condenação da história narrativa. Associada a tudo contra o qual se queria lutar, em prol da construção de uma história-problema, científica, a história narrativa, até então triunfante passa a ser proscrita pela comunidade científica de historiadores. Estudos recentes Ricoeur (1983, 1985), Hartog (1995), demonstram, todavia, que o termo narrativa é empregado, de fato, nesses debates, como uma metonímia pela qual um tipo particular de narrativa confunde-se com a própria estrutura narrativa inerente ao saber histórico. Trata-se, pois, de desfazer a confusão semântica entre história narrativa e narrativa histórica, apostando na fertilidade teórico-metodológica da última. Tal posicionamento implica em apreender a noção de narrativa de forma estreitamente articulada às noções de intriga e de tempo histórico. Trata-se de explorar

31 Página31 O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história..., p.5-36 a potencialidade analítica tanto do conceito de intriga ou enredo que permite resgatar a especificidade e complexidade do objeto da História, como do tempo histórico na sua função de mediação (tempo narrado), e na sua tarefa de totalização (visto como um singular coletivo ), que serve de pano de fundo para esta mediação. Importa observar que alguns pesquisadores da área, como Le Pellec, Marcos- Alvarez (1991), Audiger (1994), Aillieu (1995) já acenam para a potencialidade heurística da ideia de narrativa operam com a noção de variáveis e intriga, introduzindo as noções de ingredientes e/ou de encenação em suas reflexões sobre o saber histórico escolar. Para esses autores, o conhecimento histórico traduz-se pela encenação de verdadeiras intrigas onde entram em jogo as condições objetivas e subjetivas dos diferentes atores que nelas participam tanto como produtores/autores/leitores quanto como atores/leitores/produtores. Allieu (1995, p.153) define o saber histórico escolar como um objeto complexo, encenado em diferentes atos afirmando que o mesmo é cada vez reinventado nas situações específicas de aprendizagem. Le Pellec, Marcos- Alvarez (1991, p.48) por sua vez, identificam os seguintes ingredientes que estão presentes diferentemente dosados, diferentemente visíveis segundo os apresentadores, mas sempre lá os fatos, as palavras, os conceitos, o saber-fazer (exercícios próprios à disciplina), as interrogações, os problemas, uma maneira de raciocinar, uma lógica de pensamento dedutivo, indutivo ou dialético. Quanto a Audiger (1994), ele afirma igualmente que qualquer enunciado identificado como objeto de saber histórico é constituído por três ingredientes: as referências factuais, as palavras ou o discurso (conceitos, noções), que lhe dão sentido, e a concepção de tempo, que contribui igualmente para sua compreensão, estabelecendo relações de causalidade, simultaneidade, continuidade e ruptura. O significado e o peso dado a cada um desses ingredientes, bem como a forma de articulá-los, variam em função da própria concepção de História privilegiada no seio das diferentes vertentes ou escolas históricas que se sucedem ou disputam entre si a hegemonia desse campo científico. A fertilidade teórica do conceito de "narrativa histórica" pode ser avaliada quando se trata de enfrentar as tensões acima mencionadas. No que diz respeito à tensão de cunho epistemológico, operar com a noção de estrutura narrativa permite abrir pistas para superar a dificuldade de delimitação ( dessincretização ) desse saber, imprescindível, quando reelaborado em objeto de ensino. As necessidades em saber

32 Página32 DOSSIÊ GABRIEL, C.T. (Chevallard, 1991), definidas em História, em linhas gerais, pela preocupação de oferecer uma inteligibilidade ao mundo, implica que os seus objetos de saber sejam apreendidos com algum grau de totalidade, isto é, como configurações narrativas que se constroem em torno de intrigas tecidas nas mediações entre passado, presente e futuro. Não basta, dessa forma, somente acompanhar a construção e as possíveis reelaborações de um conceito específico e/ou de seu campo semântico para compreender o processo de transposição no âmbito da disciplina de História. Torna-se indispensável, no meu entender, inserir essa variável (os conceitos, de uma maneira geral) em uma rede discursiva mais ampla, a partir da qual são elaboradas as estruturas narrativas históricas, e cuja compreensão implica a identificação de suas outras variáveis, bem como as relações estabelecidas entre as mesmas. Essa categoria pode servir, assim, de instrumental analítico para a apreensão da dinâmica da vida dos saberes históricos, na medida em que oferece elementos para identificar se o que está sendo transposto e/ou ensinado corresponde a novas matrizes de narrativa ou/e a uma ou mais de suas variáveis de maneira independente. A complexidade que pressupõe a construção e/ou apreensão de uma proposta de inteligibilidade de mundo passado e presente, razão de ser dessa disciplina, torna-se, assim, viável sob a forma das diferentes variáveis articuladas em intrigas e sub-intrigas no âmbito desse objeto de saber. Refletir sobre o ensino desta disciplina exige que não nos limitemos apenas a pensar na seleção de tramas a narrar, mas também como transpor a estrutura narrativa inerente a esse tipo de saber para a esfera do seu ensino de forma a garantir a sua aprendizagem. No que diz respeito à segunda ordem de tensão mencionada, a noção de narrativa permite as seguintes interrogações: Que estratégias discursivas o ensino dessa disciplina mobiliza, contribuindo para que nos tornemos brasileiros? Que campos de experiência e que horizontes de expectativa (Koselleck,1990) interagem na narrativa histórica nacional da atualidade, possibilitando entrever o significado de "estar sendo" brasileiro nas diferentes práticas discursivas observadas, em particular nas construções narrativas dos estudantes? Operar com o conceito de estrutura narrativa autoriza que a construção da brasilidade possa ser vista como um processo aberto, dinâmico e inacabado. Diferentes

33 Página33 O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história..., p.5-36 presentes históricos constroem diferentes narrativas de Historia nacional e do povo brasileiro. Em cada uma delas, diferentes passados são lembrados e ou esquecidos e diferentes futuros são sonhados. Caberá a cada professor de história selecionar os conteúdos a serem ensinados, ingredientes de uma intriga possível acontecimentos, sujeitos, acontecimentos, concepção de tempo, conceitos, etc - de forma a permitir a emergência de uma diversidade de narrativas da brasilidade contribuindo para a construção de um Brasil mais plural e inclusivo. O desafio é, pois, saber como usar essas armas da narratividade histórica a favor da inclusão das diferenças (de posições, de perspectivas, de identidades) na interpretação histórica. Algumas trilhas já começam a serem desbravadas. É apenas um começo.

34 Página34 DOSSIÊ GABRIEL, C.T. Referências ALLIEU, N. De l'histoire des chercheurs à l'histoire scolaire. In: DEVELAY, M. (Org.). Savoirs scolaires et didactiques de disciplines, uneencyclopédie pour aujourd'hui. Paris: ESF, APPLE, M. Ideologia e Currículo. São Paulo: Brasiliense, APPLE, M. Currículo e Poder. In: Educação & Realidade. Porto Alegre: v.14, n. 2, p.46-57, APPLE, M. O que os pós-modernistas esquecem: capital cultural e conhecimento oficial. In: GENTILLI, P. A. A.; SILVA, T. T. da (Orgs.). Neoliberalismo, Qualidade Total e Educação. Petrópolis: Vozes, AUDIGER, F.; CRÉMIEUX, C.; TUTIAUX-GUILLON, N. La place des savoirs scientifiques dans les didactiques de l'histoire et de la géographie. In: Revue Française de Pédagogie. Paris: n.106, p.11-23, BITTENCOURT, C. M. F. Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar, Faculdade de História, USP, São Paulo, (Tese de doutorado) BITTENCOURT, C. M. F (org.). O saber histórico na sala de aula, São Paulo: Contexto, CANCLINI, N. G. Culturas Hibrídas: estratégias para entrar e sair da modernidade, São Paulo, EDUSP, 1997 CHERVEL, A. As histórias das disciplinas escolares. Reflexões sobre um domínio de pesquisa. In: Teoria & Educação. Porto Alegre: n.2, CHEVALLARD, Y. La transposition didactique: du savoir savant au savoir enseigné. Paris: Ed. La pensée Sauvage, DEVELAY, M. Les contenus d'enseignement: Discipline et "matrice disciplinaire". In: Cahiers Pédagogiques. Paris: n.298, p.25-7, nov DEVELAY, M.. De l'apprentisage à l'enseignement - pour une épistemologie scolaire. Paris: ESF, 1995 FORQUIN, J. C. Saberes escolares, imperativos didáticos e dinâmicas sociais. Porto Alegre: Teoria & Educação, n.5, p.28-49, FORQUIN, J. C.. Escola e Cultura. As bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas,1993. FORQUIN, J. C. (Org.). Sociologia da educação - dez anos de pesquisa. Petrópolis: Vozes, GABRIEL, C.T., Um Objeto de Ensino Chamado História: a disciplina de História nas tramas da didadtização. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PUC, GABRIEL, C.T. O saber histórico escolar: entre o universal e o particular. Faculdade de Educação, PUC-Rio, Rio de Janeiro, 1999, (Dissertação de mestrado).

35 Página35 O processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história..., p.5-36 GABRIEL, C.T. O conceito de História-ensinada: entre a razão pedagógica e a razão histórica. In: CANDAU, V. M. (Org.). Reinventar a Escola. Petrópolis: Vozes, p , 2000b GIMENO-SACRISTAN, J. Currículo e Diversidade Cultural. In: MOREIRA, A. F.; SILVA, T. T. da (Orgs.). Territórios Contestados - o currículo e os novos mapas políticos e culturais. Petrópolis: Vozes, GIMENO-SACRISTAN, J. Escolarização e cultura: a dupla determinação. In: SILVA, L. H. da: AZEVEDO, J. C. de; SANTOS, E. S. dos (Org.). Novos Mapas Culturais, Novas Perspectivas Educacionais. Porto Alegre: Sulina, GUYON, S.; MOUSSEAU, M.-J.; TUTIAUX-GILLON, N. Des nations à la Nation: apprendre et conceptualiser. Paris: INRP,1993. GOODSON, I. F.. Currículo: teoria e história. Petrópolis: Vozes, 1995 HALL, S.. Identidades Culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, HARTOG, F. L art du récithistorique. In: Passés Recomposés Champs et Chantiers de l histoire. Paris: EditionsAutrement, Série Mutations, n.150/151, p , KOSELLECK, R. Le Futur Passé - Contribuition à la semantique des temps historiques. Paris: Ed. de L École des hautes études en sciences sociales, LEDUC, J. MARCOS-ALAVAREZ, V.; LE PELLEC, J. Construire l'histoire. Paris: CRDP de Midi/Pyrénées/ Hachetteéducation (coed.), LOPES, A. R. C. Conhecimento escolar: processos de seleção cultural e de mediação didática. In: Educação e Realidade. Porto Alegre: 22(1):95-111, jan./fev. 1997b LOPES, A. R. Conhecimento Escolar: ciência e cotidiano. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, MARCOS-ALAVAREZ, V.; LE PELLEC, J. Enseigner histoire, un métier qui s'apprend. Paris: Hachette- CNDP, MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: história. Terceiro et quarto ciclo do ensino fundamental (5ª a 8ª series). Brasília: MEC/SEF, MONIOT, H. Epistemologie de l'histoire et Didactique de l'histoire. Paris: INRP, juin MONIOT, H. Savoir l'histoire et apprendre de l'histoire. In: Actes du Colloque Analyser et Gerer les situations d'enseignement et apprentissage. Paris: INRP, p , abr MONIOT, H. La dictatique de l 'histoire, Paris: Nathan, MONTEIRO, A. M.. A pratica de ensino e a produção de saberes na escola. In: CANDAU, V. M. (Org.). Didática, currículo e saberes escolares. Rio de Janeiro: DP&A, MONTEIRO, A. M. O Ensino de história : entre práticas e representações. Faculdade de Educação, PUC-Rio, Rio de Janeiro, (Tese de doutorado). MOREIRA, A. F... Didática e Currículo: quesionando fronteiras. In: OLIVEIRA, M. R. N. S. (Org.) Confluencias e Divergências entre Didática e Currículo. Campinas: Papirus, OLIVEIRA, M. R. N. S. de (Org.). Confluencias e Divergências entre Didática e Currículo. São Paulo: Papirus, PERRENOUD, P.. La transposition didactique à partir de pratiques: des savoirs aux competences. In: Revue des Sciences de l éducation. Montreal: v.24, n.3, p , RICOEUR, P..Temps et Récit. Paris: Le Seuil, v.1-3,

36 Página36 DOSSIÊ GABRIEL, C.T. SILVA, T. T. da Os novos mapas culturais e o lugar do currículo numa paisagem pós-moderna. In: MOREIRA, A. F.; SILVA, T. T. da (Orgs.). Territórios Contestados - o currículo e os novos mapas políticos e culturais. Petrópolis: Vozes, 1995 YOUNG, M. (ed.) Knowledge and Control: new directions for the Sociology of Education. Londres: Collier-Macmillan, 1971 YOUNG, M. O Currículo do Futuro: da Nova Sociologia Crítica da Educação a uma Teoria Crítica do Aprendizado. Campinas: Papirus, 2000.

37 O Tempo Histórico Em Perspectiva: A Importância Do Debate Sobre O Tempo Para O Ensino De História Historical Time In Perspective: The Importance Of The Debate About Time For History Teaching RESUMO Marcus Vinicius Monteiro Peres * Entendendo o tempo como elemento instituinte do conhecimento histórico, busco, nesse artigo, através de uma reflexão sobre a construção do conceito de tempo histórico em sua multiplicidade, contribuir para o debate sobre o ensino deste ferramental teórico no ambiente escolar. Iniciando pela metáfora musical, e continuando através da revisão da obra de autores que trataram o tema, notadamente dos Annales, Reinhardt Koselleck e Paul Ricoeur, procuro contribuir para que professores do ensino básico tenham dimensão da importância do debate sobre o tempo, além de clareza no trabalho com o tempo histórico e com os múltiplos conceitos que o configuram. Atento, especialmente, para os desafios de ensinar o tempo em meio à emergência da cultura digital. Palavras-chave: Tempo histórico. Ensino de história. Educação Básica. Abstract: Understanding time as an instituting element of historical knowledge, I seek in this article, through a reflection on the construction of the concept of "historical time" in its multiplicity, to contribute on the debate about teaching this theoretical framework in school. Beginning via a reflection on music metaphor, and going on through the review of the work of authors who dealt with the theme, especially the Annales, Reinhardt Koselleck and Paul Ricoeur, I try to contribute for teachers of basic education to know the importance of work with the historical time, besides also clarity in their work with historical time and with the multiple concepts that configure it. I specially reflect on the challenges of teaching time in the amidst of digital culture s ascension. Keywords: Historical time. History teaching. Basic education. * Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é professor docente I - História, do Governo do Estado do Rio de Janeiro, e participa do Grupo de Estudos Currículo, Cultura e Ensino de História (GECCEH), vinculado ao Núcleo de Estudos do Currículo (NEC), da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. mavimope@gmail.com

38 Página38 DOSSIÊ PERES, M.V.M. Introdução Compositor de destinos Tambor de todos os ritmos Tempo Tempo Tempo Tempo Entro num acordo contigo Tempo Tempo Tempo Tempo Por seres tão inventivo E pareceres contínuo Tempo Tempo Tempo Tempo És um dos deuses mais lindos Tempo Tempo Tempo Tempo (Caetano Veloso Oração ao Tempo) Caetano Veloso, na epígrafe desse artigo, letra de um de seus grandes clássicos, dialoga com o tempo. Ao longo dos primeiros versos, descreve algumas características daquele ente com o qual conversa. Da mesma forma, oferece ao tempo uma série de elogios, e se remete ao tempo como um deus. Para ele, o tempo é movimento, beleza, surpresa, e está presente sempre. Caetano não foi o primeiro a transformar o tempo em poesia. Esse é tema recorrente na música, na literatura, no cinema... Como nos diz José D assunção Barros: As tentativas de compreender o tempo são tão antigas quanto a humanidade. Filósofos, cientistas, poetas, historiadores e antropólogos, entre outros tipos de pensadores, há muito perguntam sobre o tempo: ele existe mesmo fora do homem? O quanto dele é criação humana? Que forma tem o tempo? Será ele um círculo, uma espiral, uma linha reta? No caso da História ou do tempo dos historiadores como conciliar o tempo da história vivida, o tempo da pesquisa e o tempo da narrativa? (BARROS, 2013, p.7) Escolhi em iniciar esse artigo com metáforas musicais para incitar as reflexões sobre seu tema central: o tempo. A música é um dos tipos de produção humana que lida de maneira mais diversa com esse tema. Poucos tempos são mais múltiplos que o tempo musical. Ele é matemático, preciso, marcado pela duração de cada nota. Ele é representação gráfica dessas mesmas notas, é desenho, é visual. Quando executado,

39 Página39 O tempo histórico em perspectiva..., p esse mesmo tempo matemático e gráfico se torna melodia, emoção, poesia para os ouvidos. E o tempo da música também pode vir em forma de reflexão, quase uma filosofia do tempo, quando manifestado nas letras das músicas, sobre a ótica de diversas interpretações e vivências, como percebemos. Talvez um dos poucos tempos tão múltiplo quanto o tempo musical seja o tempo histórico. Não à toa, a metáfora musical já foi utilizada por alguns outros historiadores, na tentativa de ilustrar as reflexões sobre o tempo histórico, como Hobsbawn (2013), Koselleck (2006) e Barros (2013). Além disso, durante a escrita desse artigo, fui influenciado e guiado por canções e poesias de outros que já enfrentaram os dilemas do tempo. E ele se fez melodioso, harmônico. Aqui, talvez, se materializem minhas maiores influências de vida: a História, a Educação, e a música. Meu objetivo aqui é buscar, no campo disciplinar da História, alguns conceitos formadores da ideia de tempo histórico, que elucidem e ajudem o docente dessa disciplina no trabalho na escola. Esse caminho se justifica pela especificidade epistemológica do conhecimento histórico. Afinal, como procurarei deixar claro ao longo deste artigo, o tempo é instituinte desse conhecimento seja na sua versão acadêmica, seja em sua versão escolar, percebidas neste estudo como formas diferenciadas de produzir sínteses entre passado-presente-futuro, mas, de maneira alguma, formas antagônicas ou isoladas. Sendo assim, é de suma importância que os professores de História dominem minimamente o debate sobre a construção da noção de tempo na/para sua disciplina, tornando seu trabalho em sala de aula mais efetivo. Concordo com Gabriel (2012a), quando afirma: a defesa da especificidade epistemológica do conhecimento histórico escolar não pressupõe a negação da cientificidade da História, nem tampouco da importância dessa dimensão quando lidamos com esse conhecimento em contexto escolar" (GABRIEL, 2012a, p.189). Para sustentar esse argumento, a autora propõe uma ida aos porões (VEIGA NETO, 2012) da História, buscando entrar, pois, nos debates da teoria da História, em meio aos quais se fixam as regras de produção desse conhecimento e os sentidos de verdade histórica (GABRIEL, 2012a, p. 189). Nesse artigo, então, realizo um debate acerca do tempo histórico a partir das reflexões da Escola dos Annales, de Reinhart Koselleck e Paul Ricoeur, pensando na

40 Página40 DOSSIÊ PERES, M.V.M. construção dos conceitos para serem trabalhados pelos professores em suas narrativas escolares e no ensino da disciplina histórica nas escolas de educação básica. O tempo da/na ciência histórica e suas relações com o ensino dessa disciplina. But if faith is the answer, we've already reached it And if spirit's a sign then it's only a matter of time Only a matter of time Mas se a fé é resposta, nós já a alcançamos E se o espirito é um sinal então é só uma questão de tempo Só uma questão de tempo (Dream Theater Only a Matter of Time. Tradução minha) Dos diversos gêneros do rock n roll, talvez aquele que mais brinca com o tempo seja o rock progressivo. Desde as misturas com diversos outros gêneros, passando pelos álbuns conceituais (retratando o passado, imaginando o futuro), faixas musicais que as vezes superam os vinte minutos, até sua estrutura melódica, com diversas quebras de ritmo, compassos e tempos. A música utilizada como epílogo dessa seção é uma dessas, e ilustra bem o tema aqui retratado. Como mencionado anteriormente, a forma como a História encara e representa o tempo seja uma das poucas comparáveis à multiplicidade do tempo musical. O tempo histórico também é diverso e ambivalente (simultaneamente amplo e restrito, objetivo e subjetivo, racional e emocional) e ainda talvez um dos grandes desafios de historiadores e professores de História. Como trabalhar com o tempo histórico? Como ensiná-lo? José D assunção Barros, na citação utilizada na introdução deste artigo, já enumera uma das possíveis interpretações sobre o tempo histórico e sua multiplicidade. Para o autor, ele se divide em três: um tempo que precisa ser compreendido conceitualmente, um tempo que precisa ser evocado para o conhecimento da História, e um tempo que interage com a escrita da História (BARROS, 2013, p.7).

41 Página41 O tempo histórico em perspectiva..., p Ao longo de sua trajetória, a ciência histórica tem operado com diferentes fixações de sentido para o significante tempo histórico. Desde os primórdios do fazer historiográfico, esses profissionais (mesmo antes da História conquistar seu status de ciência, e o historiador ser visto como um profissional) se preocupam com o tempo. Mas, como aponta Barros (2013), o tempo é objeto de estudo de diferentes áreas do conhecimento. Seria importante, então, perguntar-nos pela especificidade do tempo dos historiadores. O que traz ao tempo histórico a sua própria especificidade? (BARROS, 2013, p.19 e 20) Barros define o tempo como sendo visceral para a História (BARROS, 2013, p. 13). Tal importância se deve pelo fato de a História, enquanto ciência, afirmar sua diferença em relação a outros campos das ciências humanas (Sociologia, Filosofia e Psicologia, por exemplo) pelo seu trato diferenciado com relação ao tempo. Isso não quer dizer que outras áreas do conhecimento não lidem com o tempo. De fato, como já vimos, isso é comum. Porém, o tempo é a própria matéria prima da História. Como afirma esse autor: Situar todas as coisas no tempo enxergá-las sob a perspectiva que cada uma delas interage e ajuda a constituir um contexto, unindo-se a uma vasta rede de outras coisas que também se inscrevem no tempo é típico da História [...] O que é visceral, mesmo, em cada historiador, é a ideia de que tudo se inscreve no tempo, de que tudo se transforma e que devemos refletir de modo problematizado sobre cada uma dessas transformações, deixando que incida sobre elas uma análise que será a nossa e que, de resto, também se inscreve no tempo. (BARROS, 2013, p. 17 e 18) Logo, a História só é História por estudar as experiências individuais e coletivas no e com o tempo. Como reconhecem Turazzi e Gabriel, História e tempo são um par inseparável (TURAZZI E GABRIEL, 2000). Mas afinal: O que é o tempo? Qual sua relação com a História? Procurar as respostas para essas perguntas já foi tarefa de inúmeros pensadores, de diferentes áreas do saber, em diversos momentos da História como Aristóteles, Santo Agostinho, Heidegger, Hannah Arendt, Walter Benjamin. Sendo assim, procurarei situar-me nesse debate procurando articulá-lo com demandas do Ensino de História. Não é minha pretensão responder nenhuma dessas perguntas, apenas contribuir para que se possa pensar sobre possíveis respostas, contingentes e parciais.

42 Página42 DOSSIÊ PERES, M.V.M. O tempo é algo invisível, um conceito quase indefinível, múltiplo. O que é então, o tempo para a História, se mesmo sua apreciação já é difícil? A primeira premissa para compreender essa relação é a interpretação do tempo não enquanto ser metafísico inalcançável, mas enquanto resultado da interação, experiência e construção humana sobre ele. O tempo histórico é essencialmente humano, mesmo em sua manifestação aparentemente mais descolada de nossa ação. Porém, isso não significa que o tempo histórico não lide com o tempo do relógio, com o tempo do movimento dos astros. Como diz Barros: O tempo dos historiadores, portanto, é sempre um tempo humano. Ele não é o tempo dos físicos ou dos astrônomos. Tampouco é o tempo dos calendários ou da mera cronologia, ainda que destes modos de situar o tempo objetivamente o historiador precise se valer no decorrer de suas narrativas e análises historiográficas. (BARROS, 2013, p.20 e 21) Isso significa que a História e o historiador têm relação com o chamado tempocalendário, porém para essa ciência o que se passa nos meandros das datas é mais importante de que elas mesmas. Logo o historiador não se furta a utilizar-se objetivamente do tempo dos físicos e dos astrônomos (BARROS, 2013), mas o tempo histórico não está nos acontecimentos, nos marcos, nos dias meses e anos. Ele está entre eles. Trabalhar com uma ideia de tempo humano sugere, também, considerar a sensibilidade humana e as experiências individuais. Cada um de nós percebe o tempo diferentemente. O tempo histórico, porém, é social. A sensação de alongamento ou encurtamento da passagem temporal é possível para a ciência histórica, mas esse movimento acontece entre sociedades, entre processos, entre conjunturas. Talvez o mais famoso exemplo tenha sido dado por Eric J. Hobsbawn em sua já clássica obra A Era dos Extremos. Nela, Hobsbawn (2003) formula o conceito de Breve Século XX, argumentando que o referido século não teria tido cem anos. Para o autor, o século XX se inicia no ano de 1914 (início da primeira Guerra Mundial) e termina no ano de 1991 (Com o colapso da União Soviética). Ou seja, estes marcos indicam pontos de ruptura, nos quais ele enxerga diferenças substanciais entre a conjuntura histórica anterior (século XIX) e posterior (século XXI). O autor aponta com ainda mais firmeza o marco temporal final do século XX, afirmando que não há

43 Página43 O tempo histórico em perspectiva..., p como duvidar seriamente que em fins da década de 1980 e início da década de 1990 uma era se encerrou e uma nova começou (HOBSBAWN, 2003, p.15). Tal proposta encontrou eco na comunidade historiadora, e é amplamente aceita hoje. O século XX dos historiadores, então, é diverso do mesmo período no calendário astronômico: os números de voltas da terra em torno de si e do sol divergem totalmente. Isso se dá por esse período conformar um conjunto de processos históricos que, mesmo não se encerrando nele, lhe dá um nexo de inteligibilidade que não existia no anterior e que não é transferível (pelo menos não em perspectiva macro) ao posterior. Naquele período que compreende por volta de setenta e sete anos, as ações e transformações humanas foram marcantes o suficiente para transformar a conformação temporal do século XX para a História. Para compreender o tempo histórico em toda sua complexidade, é necessário perceber que há diversos conceitos que contribuem para a sua apreensão. A Escola dos Analles foi importantíssima nesse movimento, e alguns dos seus principais nomes contribuíram para os debates em torno dessa temática. A primeira geração dos Annales foi responsável por incorporar no estudo da ciência histórica a dimensão da permanência, por meio da categoria duração atribuindo ao fato único tal como trabalhado pela História metódica ou tradicional (CRACCO, 2009, p. 31), importância parcial na compreensão dos processos históricos. Tal mudança vem atrelada a maior abertura da História à interdisciplinaridade com outras ciências, abrindo o método de análise historiográfico a novas metodologias, permitindo o deslocamento do foco do estudo da dimensão política da história para o estudo das estruturas sociais e econômicas. Como afirma Rodrigo Cracco: A inclusão do estudo das permanências, dos aspectos duradouros difere bastante da história tradicional na qual o evento político é tratado quase como exclusivo objeto da história. A perspectiva da mudança continua sendo considerada, mas a inclusão no discurso do historiador do que muda somente muito lentamente, as estruturas mentais tão presentes na obra de Febvre, assim como as estruturas sociais e econômicas da obra de Bloch, abrem uma nova possibilidade para a disciplina histórica de expandir o leque de objetos de estudo (CRACCO, 2009, p. 20) Tal perspectiva se opõe à compreensão de tempo histórico da escola metódica, ou tradicional, do século XIX, que enxergava o tempo enquanto fenômeno linear,

44 Página44 DOSSIÊ PERES, M.V.M. contínuo e progressivo (CRACCO, 2009, p. 26), e que caminhava em sentido único, em direção ao futuro, ao progresso e à razão. Os principais objetos da História tradicional eram o Estado e o fato político, e a perspectiva temporal era atrelada à curta duração. Já essa nova forma de compreender o tempo histórico caracterizava-se pela crescente importância na análise das permanências, das estruturas, da repetição e comparação, dos movimentos inconstantes da História. Segundo Rodrigo Cracco: Esta nova orientação temporal da pesquisa histórica favoreceu uma mudança significativa nos objetos de análise do historiador. Passando a considerar às permanências, o historiador desloca o olhar dos objetos tradicionais da história para outros nos quais o papel do que resiste, do que muda somente a longo termo, se destacam. Passa a ser dada uma importância maior aos aspectos mais resistentes da história como os econômicos, sociais e mentais em detrimento da política, das biografias, etc. Nos campos econômico, social e mental o tempo histórico aparece de forma menos acelerada: a especificidade histórica da mudança continua presente, no entanto, de forma menos convulsiva, menos rápida que no campo político-biográfico, do tempo individual, dos eventos. Este tempo mais lento favorece a pesquisa quantificada e problematizante. A repetição também é característica deste novo tempo histórico, possibilitando a comparação como modelo científico, diferente do modelo positivista. (CRACCO, 2009, p. 26). À chamada primeira geração dos Annales se seguiu a segunda, liderada principalmente por Fernand Braudel. Esse foi responsável por aprofundar o conceito de tempo histórico desenvolvido na geração anterior, concebendo a chamada dialética das durações (BRAUDEL, 2011, apud BARROS, 2013, p. 100). Para o autor, o tempo histórico é composto por três dimensões temporais: a longa duração, a curta duração e a média duração. Ou as estruturas, as conjunturas e os eventos. Helena Araújo (1998), em sua dissertação de mestrado, explora a concepção de tempo braudeliano no contexto do ensino de História. A autora, em diálogo com Braudel entende o tempo de curta duração como o fato cotidiano, o acontecimento raso, tempo de nossas rápidas tomadas de consciência (ARAÚJO, 1998, p.18). Ao tempo de média duração, se refere como tempo dos ciclos e interciclos, ou seja, eventos de maior duração que o acontecimento, com estruturas próprias, que se encerram em si mesmos. À longa duração se refere como tendência secular,

45 Página45 O tempo histórico em perspectiva..., p notificando que se tratam de grandes processos das sociedades humanas, que perpassam gerações, décadas, séculos, se modificando muito lentamente. José D assunção Barros, em leitura da obra de Braudel, também se refere à longa duração como história quase imóvel (BARROS, 2013, p. 107). Para Braudel, esses diferentes eixos para pensar a História e seu tempo se interrelacionam, e é nessa relação recíproca que os diferentes processos históricos estão inseridos, cada um em seu tempo. A estrutura enquadra as conjunturas, que por sua vez enquadram os fatos (BARROS, 2013, p. 101). Tal manobra de articulação se dá pelo historiador, possibilitando uma diversidade de tempos históricos tão múltipla quantas as análises possíveis. O exemplo utilizado mais acima no artigo, de Eric Hobsbawn, ilustra bem essa ideia. A escola dos Annales também trouxe importante contribuição ao desenvolver a ideia de História-problema. Nessa concepção metodológica, a relação entre presente e passado é colocada em perspectiva, e passa a ser enxergada enquanto via de mão dupla: enxergar o presente através do passado, mas também enxergar o passado através do presente. Ou seja, é a compreensão de que a História, ainda que se referindo ao passado, faz-se no presente (BARROS, 2013, p. 127). Tal concepção se coloca como oposta à ideia de História mestra da vida, muito forte na metodologia da escola metódica/tradicional, na qual a História serviria sempre como conjunto de exemplos para o presente, em um movimento que enxergava o tempo histórico em movimentos cíclicos, repetidos. Para os historiadores dos Annales, a relação entre passado e presente é dialética e construtiva. Sobre a História-problema, nos diz Barros: Com a perspectiva dos Annales, o presente coloca as questões de sua época para o passado, estruturando-o a partir de uma problematização, e reciprocamente o passado recoloca novas questões para o presente, permitindo que na operação historiográfica não apenas o historiador compreenda o passado, tal como ocorre na perspectiva historicista mais tradicional (neorrankeana), mas também compreenda a si mesmo (BARROS, 2013, p. 130). Essa percepção temporal da Escola dos Annales pode ser assim resumida: Sob influência das ciências sociais, a história, antes de tudo exclusivo da sucessão dos eventos, da mudança, da passagem do passado ao futuro, da diferença temporal sucessiva, e que sempre privilegiou o evento e quis ser uma descrição da mudança, seria obrigada a incluir em seu conceito de tempo a permanência, a simultaneidade. Os

46 Página46 DOSSIÊ PERES, M.V.M. Annales, e Braudel em particular, construíram o conceito de longa duração, que ao mesmo tempo incorpora e se diferencia do conceito de estrutura social das ciências sociais. A longa duração é a tradução, para a linguagem dos historiadores, da estrutura atemporal dos sociólogos, antropólogos e lingüistas. Ao passarem à consideração da dialética entre mudança e permanência, entre longa duração e evento, os Annales produziram uma mudança substancial no conceito de tempo histórico. (REIS, 2003, p. 198) O conjunto das obras dos diversos historiadores que compuseram a Escola dos Annales, notadamente Bloch, Febvre e Braudel, é responsável por grande avanço nas análises sobre o tempo histórico. Tal conjunto é responsável por apresentar e desenvolver uma série de conceitos importantes para analisar e conceituar o tempo. Alguns deles são profícuos para que pensemos em seus possíveis usos no Ensino de História, e faz-se necessária uma abordagem mais aprofundada sobre eles. O conceito de temporalidade é um desses, e um dos mais caros ao estudo da História. A temporalidade é o conceito que define as diferentes formas de relação entre a ação social e o tempo. É a construção de cada encadeamento de sentidos possíveis do tempo e suas facetas, em diferentes momentos da História, e que constitui diferentes formas de perceber e sentir o passar do tempo. Como diz Barros, a temporalidade, portanto, é uma ideia que apenas adquire sentido através da percepção humana, da imaginação, das vivências do ser humano, e pouco ou nada tem a ver com o tempo físico da natureza (BARROS, 2013, p. 32). Os conceitos de duração, a partir da matriz braudeliana (curta, média e longa durações) também são de suma importância para o entendimento do tempo. Para além de articular diferentes tipos de processos históricos, a duração carrega consigo os, tão importantes quanto, conceitos de mudança (ou ruptura) e permanência. Como diz Barros, a compreensão desses conceitos é importante por explicitar ritmo, modo e velocidade com que se dá uma transformação no tempo, à durabilidade ou permanência de algo até que seja substituído por algo novo ou por um novo estado (BARROS, 2013, p. 34). Em outras palavras, o ensino para a compreensão do referido arcabouço conceitual ajuda o aluno a compreender as diferentes sensações de variação do tempo, quando ele acelera ou quando freia. Da matriz historiográfica dessa escola francesa podemos também apreender os conceitos de evento, processo e estrutura, que estão intrinsecamente imbricados

47 Página47 O tempo histórico em perspectiva..., p entre si e com os conceitos anteriormente enumerados. Tais conceitos são caríssimos ao historiador, e também ao professor de História, ao auxiliar na compreensão de uma organização do tempo a partir da ação humana. O evento aponta diretamente para a ação do homem, e também ajuda a compreender especialmente a noção de mudança. É o que ajuda a concretizar a percepção de que o tempo é fluído, se move e se modifica. O evento é o conceito que desencadeia essa percepção, e que ajuda a imbricar e complexificar outras ideias auxiliares na percepção do tempo. O conceito de processo é um dos mais importantes na compreensão do tempo histórico. É ele que dá sentido e articula evento e estrutura, dá a eles uma certa coerência, uma identidade (BARROS, 2013, p. 38). A noção de processo também dá uma ideia de movimento e de articulação entre as três durações de Braudel. Já estrutura remete a um tempo mais longo, articula continuidades e descontinuidades, e permite a comparação entre diferentes contextos. A estrutura remete ao tempo da longa duração, à mudança que ocorre lentamente, percepção caríssima no quadro cultural contemporâneo. Além disso, também remete aos conceitos de simultaneidade e sucessão. O conceito de simultaneidade permite também a ampliação da perspectiva comparativa, ampliando o leque de matrizes históricas estudadas e complexificando o entendimento da História (estudando, por exemplo, sociedades ameríndias e africanas no contexto da História europeia). Isso ajuda a aprofundar a percepção de interrelacionamento entre diferentes variáveis de um mesmo processo, favorecendo um olhar multicultural sobre o estudo da história. Já a ideia de sucessão ajuda o aluno a perceber noções de causalidade em perspectiva temporal. Compreender tal noção é importante, inclusive, para problematizar a noção de processo / progresso como trabalhada pela escola metódica/tradicional. A sucessão tal qual aparece nessa perspectiva remete à mobilização de explicações monocausais, por meio das quais os acontecimentos se relacionam um após o outro em uma direção predeterminada (GABRIEL, 2012b, p. 220). Uma compreensão problematizada do conceito de sucessão permite ao mesmo tempo potencializar um entendimento do encadeamento de eventos e processos históricos sem abrir mão da cronologia, nem tampouco reforçar a associação entre processo e progresso, pela qual o sentido do primeiro termo está direta e unicamente

48 Página48 DOSSIÊ PERES, M.V.M. associado a uma sequência de fatos inexoráveis de direção pré-determinada rumo a uma história essencialmente evolutiva. Embora tenha sofrido com algumas críticas, a perspectiva dos Annales trouxe grande contribuição à epistemologia do tempo histórico. Sofrendo grande influência das Ciências Sociais, os olhares dos historiadores filiados à revista francesa ofertaram à comunidade historiadora a compreensão do tempo enquanto estrutura social, e a construção de um mundo mais estrutural e durável (daí dois conceitos importantíssimos dessa escola historiográfica, os de duração e estrutura ). Tal perspectiva permitiu a transição de uma História focada em eventos políticos, datas e rupturas totais, para o estudo de processos mais complexos e especialmente das permanências. Dessa forma, os Annales desaceleraram o tempo histórico, apostando principalmente na longa duração. Além das contribuições dos historiadores vinculados à Escola dos Annales para a reflexão sobre o tempo histórico, outras vertentes teóricas trouxeram novas perspectivas para o fazer historiográfico que impactaram a interpretação deste par inseparável: tempo e história. Diversos autores contribuíram nessas últimas décadas com diferentes perspectivas de pensar o tempo histórico, e entre eles destacam-se Reinhart Koselleck e Paul Ricoeur. Koselleck, especialmente em sua obra Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos (2006) aponta para a diversidade de percepções e significações do tempo, e do tempo histórico, em diferentes períodos da História humana. A hipótese trazida pelo autor é que o tempo histórico se constitui no processo de determinação da distinção entre passado e futuro, ou, usando-se a terminologia antropológica, entre experiência e expectativa (KOSELLECK, 2006, p. 16). Para Koselleck, o tempo histórico é também construto da História, e pode tomar diferentes formas e percepções em diferentes épocas, a partir da articulação entre as instâncias de passado e futuro de cada presente. A partir dessa premissa, o autor desenvolve os conceitos de campo de experiência (relativo ao passado) e horizonte de expectativa (relativo ao futuro). A apropriação dos já enunciados conceitos da antropologia se dá em função de sua capacidade, para Koselleck, de articular passado e presente na formação dos sentidos de tempo histórico. Desta forma, o autor sugere que as diferentes gerações da História

49 Página49 O tempo histórico em perspectiva..., p operam com diversas percepções de passado (e formam um campo de experiência) e de futuro (constituindo um horizonte de expectativa). Dessa forma, campo de experiência e horizonte de expectativa se interrelacionam continuamente, em relações assimétricas e contingentes, que fazem emergir sempre uma percepção de tempo peculiar. Seja individual ou socialmente, essas relações entre passado-presente e futuro-presente estabelecem assim uma relação com o tempo que faz emergir uma significação de tempo histórico particular em cada contexto. Essas relações não são simétricas, mas irregulares, à medida que se negociam sentidos entre os dois domínios da percepção humana. Koselleck utiliza as categorias históricas propostas por ele para analisar a transição da percepção de tempo a partir dos eventos do final do século XVIII, notadamente a Revolução Francesa e a Revolução Industrial. O autor aponta para a formação da modernidade a partir do progressivo afastamento entre experiência e expectativa, até então quase sobrepostos. O futuro, representado até então, por ideias de brevidade (apocalipse) ou limitação (a experiência política possível, controlada pelo Estado absolutista), ou seja, em grande parte, um futuro sem futuro, foi sendo substituído pela ideia de progresso (KOSELLECK, 2006, p. 318). Essa ideia traz consigo a concepção de um futuro novo, diferente do presente, inimaginado pelas experiências passadas. Como diz o autor, um futuro portador de progresso modifica também o valor histórico do passado (KOSELLECK, 2006, p. 319). O futuro passa a ter a conotação do novo, ou, como diz Koselleck, o futuro não apenas modifica a sociedade, mas a melhora (KOSELLECK, 2006, p. 321). O tempo que se inaugura, então, é um tempo quase descolado da cronologia, cada vez mais distante do espaço de experiência, e com a expectativa como própria força motora da História. Através dessa ideia, o autor apresenta a ideia de aceleração do tempo. Sobre essa noção, nos diz José D Assunção Barros: Imaginariamente, o campo de experiência, o presente, e o horizonte de expectativas podem produzir as relações mais diversas, e assim ocorre no decorrer da própria história. Há épocas em que o tempo parece, à maior parte dos seus contemporâneos, desenrolar-se lentamente, e há outras em que o tempo parece estar acelerado, em função da rapidez das transformações políticas ou tecnológicas. [...]. As fusões e clivagens que se estabelecem imaginariamente entre as três temporalidades passado, presente e futuro podem aparecer ao ambiente mental predominantemente em cada época, e às

50 Página50 DOSSIÊ PERES, M.V.M. consciências daqueles que vivem nessas várias épocas, de maneiras bem diferenciadas (BARROS, 2013, p. 147 e 148). Ou seja, para Koselleck, a velocidade com a qual se passavam os acontecimentos do final do século XVIII levava a uma sensação de encurtamento da distância temporal (KOSELLECK, 2006, p. 58). Usando a Revolução Francesa como modelo, o autor aponta que, ao mesmo tempo que, por um lado, as grandes mudanças, e reviravoltas, trazidas por esse evento alargavam o horizonte de expectativa cada vez mais, por outro lado, o fato de não haver situações semelhantes aos quais se pudesse recorrer estreitava a relação entre a percepção do presente e o espaço de experiência, limitando seu uso. O resultado é uma sensação de ligeireza do futuro, potencializada pela já enumerada ideia de progresso. A constituição desse arcabouço teórico por Koselleck traz um novo sopro para a compreensão da relação do homem com as temporalidades, e delas entre si. A partir de Koselleck, podemos perceber, por exemplo, que o atual estágio de aceleração temporal trazido pela emergência da cultura digital, sugerido por alguns historiadores, não é novidade na história humana, tendo sido percebido em diferentes estágios, notadamente na transição do pensamento religioso para o pensamento racional por volta dos séculos XIII e XIV e, como já dito, no âmbito das revoluções Francesa e Industrial. Trago sua contribuição e aposto na utilização dessas categorias meta-históricas (KOSELLECK, 2006) como forma de complexificar o estudo do tempo nas salas de aula de História. Que campos de experiência e horizontes de expectativa se fazem presentes nos diferentes conteúdos curriculares dessa disciplina? Que significações de tempo histórico eles trazem? Para além disso, o uso dessas categorias, e a percepção do autor acerca das múltiplas articulações temporais possíveis, é profícua para perceber que potenciais articulações se colocam a partir do advento cultura digital, ajudando o professor de História a problematizar a sensação de presentismo vivida por seus alunos. Que passados e futuros são negociados, neste presente quase indizível, e qual o papel desse último? Trata-se, sobretudo de, como dizem Gabriel e Monteiro, de: Não desistir de apostar no presente como espaço permanente de tensão entre os campos de experiência e os horizontes de expectativa. Mesmo sendo ele tão provisório e instável, é nele que permanentemente se articulam passados e futuros possíveis,

51 Página51 O tempo histórico em perspectiva..., p memórias e projetos. É nele que o jogo é jogado. É nele que as narrativas históricas são construídas, desconstruídas, reconstruídas, o passado é reinventado e o futuro, sonhado (GABRIEL e MONTEIRO, 2014, p. 26). Ainda seguindo a teoria de Koselleck, a mesma cadeia de eventos que levou à aceleração do tempo e o surgimento da ideia de progresso a partir da mudança nas perspectivas de passado e presente trouxe uma mudança substancial para a ciência histórica. Essa nova forma de experimentar o tempo, matéria central da ciência histórica, vai levar a uma mudança epistemológica e metodológica no âmbito da mesma ciência. Através da análise da transição do uso, para se referir à História, da palavra Historie para Geschichte, o autor mostra como o topos da História transita da narrativa do fato para o fato em si. Ao mesmo tempo, analisa como a percepção da história enquanto mestra da vida (historia magistra vitae) entrou em declínio, com a ciência histórica ganhando um status de singular coletivo, do qual só se pode apreender aquilo que lhe é contextual. No que se refere às contribuições de Paul Ricoeur para a reflexão sobre o tempo histórico, cumpre destacar o papel desempenhado pelos seus estudos na reabilitação da categoria narrativa desacreditada entre os historiadores desde a Escola dos Annales. Condenada por essa vertente historiográfica que a significou como o antagônico de uma história-problema, científica, a história narrativa, tal como concebida pela História metódica tradicional, foi considerada durante grande parte do século passado como algo a ser superado. Como afirma Reis (2012), Os Annales opuseram a história-problema a esta narrativa tradicional e a longa duração ao evento único e irrepetível e pensaram que haviam dado uma solução definitiva ao problema do conhecimento histórico. Na história-problema, tudo que se acreditava que a narrativa pudesse revelar foi posto em dúvida. Admite-se que o historiador escolhe e constrói o seu objeto e interroga o passado. Ele é obrigado a aparecer e a explicitar seus pressupostos. O historiador dos Annales afirma, com certo orgulho, pois acreditava que tinha vencido a sua ingenuidade narrativista, que ele escolhe, seleciona, interroga, conceitua, analisa, conclui. O texto histórico é resultado da sua construção teórica. O sujeito-historiador é seu construtor (REIS, 2005, p. 106). A partir da segunda metade do século XX, em sintonia com os ares dos tempos marcados pelo que ficou conhecido como a crise do paradigma moderno a históriaproblema foi criticada enquanto excessivamente abstrata, estática, ahistórica, anônima,

52 Página52 DOSSIÊ PERES, M.V.M. sem eventos, sem homens (REIS, 2005, p. 96). Com efeito, os mesmos pressupostos teórico-metodológicos da escola dos Annales que estiveram na base de seu sucesso, passam a ser problematizados na medida em que se inscreviam nos modelos interpretativos da modernidade. Como aponta Nascimento: O paradigma moderno e o método científico são questionados em um processo longo e não-linear, dando espaço a novas teorias, a novas perguntas. Os limites da modernidade vão ser cada vez mais expostos, levando à busca por novas formas de interpretar o mundo. [...] Quando as verdades consideradas universais na modernidade passam a ser questionadas, intensifica-se a busca por outras verdades, outras formas de saberes, outras matrizes teóricas. A chamada crise paradigmática abalou os modelos teóricos estabelecidos (NASCIMENTO, 2014, p. 68). Nesse movimento, o conceito de narrativa volta à baila, em uma reconciliação entre a História, tempo e narrativa (REIS, 2005, p.98), na qual a figura de Paul Ricoeur é central. Partindo das reflexões de Santo Agostinho sobre o tempo da alma e da temporalidade lógica da intriga Aristotélica, Ricoeur propõe uma nova tese para trabalhar a aporia do tempo enquanto elemento indizível, a partir da articulação entre essas duas perspectivas. Em Tempo e Narrativa 2, Ricoeur propõe a tese do tempo histórico enquanto terceiro tempo, um novo tempo surgido da tensão entre o tempo da alma e o tempo físico, e que aparece refigurado através da narrativa. Para Ricoeur: O tempo torna-se humano na medida em que é articulado de maneira narrativa. A narrativa é significativa na medida em que ela desenha os traços da experiência temporal. Esta tese apresenta um caráter circular [...] a circularidade entre temporalidade e narratividade não é viciada, mas duas metades que se reforçam reciprocamente (RICOEUR, 1994, apud REIS, 2005, p. 103) A proposta de Ricoeur traz, então, a possibilidade de comunhão entre os até então antagonistas tempo do indivíduo, ou seja, a percepção pessoal da passagem do tempo, e o tempo coletivo, seja ele o tempo físico ou o tempo histórico tal como pensado pelos Annales (tempo das estruturas ou das conjunturas). Além disso, dá um novo sopro epistemológico ao conceito de narrativa na Teoria da História, trazendo a narratividade para o centro do conhecimento histórico. Importa sublinhar que o 2 A Obra Tempo e Narrativa, publicada pela primeira vez entre 1983 e 1985, reúne nos seus três tomos as reflexões de Ricoeur sobre as relações entre esses dois referenciais. A obra trouxe grande contribuição para os historiadores ao, por um lado, articular os pensamentos de diversos filósofos e pensadores sobre o tempo na tentativa de compreensão do tempo histórico e, por outro, propor uma forma de materialização da relação entre temporalidade e concepção narrativa através da tríplice mimésis proposta.

53 Página53 O tempo histórico em perspectiva..., p reconhecimento da estrutura narrativa do conhecimento histórico como defendido por Ricoeur não pressupõe a negação da sua cientificidade, se distanciando assim de autores como Hayden White (2001), que associam a História à literatura atribuindo caráter ficcional ao conhecimento histórico (WHITE, 2001). Para Ricoeur, a História é intrinsecamente narrativa, mas não é qualquer narrativa. Segundo Dosse, Ricoeur mantém a tensão interna à escrita histórica que com a ficção tem em comum as mesmas figuras retóricas, mas que também pretende ser sobretudo um discurso sobre a verdade, um discurso de representação de algo real, de um referente passado (DOSSE, 2001, p.75). Dessa forma, objetividade e subjetividade são parte intrínseca da História, e do discurso historiográfico, que fica entre a identidade narrativa e a ambição de verdade (DOSSE, 2001, p. 82). O que difere a História da narrativa ficcional é justamente esse estatuto duplo. Através da ambição de verdade, a narrativa histórica busca um estatuto de compromisso com a verossimilhança do passado possível (REIS, 2005). Para Ricoeur, é a narrativa histórica que intermedeia e condiciona espações de experiência e horizontes de expectativa na operação historiográfica, fazendo emergir dessa operação o terceiro tempo, o tempo histórico, que é o tempo da narrativa. A materialização dessa operação se dá através do proposto círculo hermenêutico, no qual o historiador vai buscar seus materiais historiográficos e instâncias narrativas no vivido para, a partir daí, construir uma intriga historiográfica com vistas a oferecê-la à atividade recriadora do leitor (NASCIMENTO, 2014, p. 71). Dessa forma, Ricoeur propõe uma mediação entre narrativa e tempo intrinsecamente ligada à atividade humana. O círculo hermenêutico proposto pelo autor é composto por três fases: mimese 1, momento de prefiguração do campo prático a partir do vivido; mimese 2, a de construção narrativa de tal campo; e mimese 3, na qual o leitor da obra a ressignifica, de acordo com sua experiência. Ou seja, a narrativa histórica, a configuração de seu tempo, nasce do vivido e a ele retorna (REIS, 2005, p. 109). Para Ricoeur, portanto, leitor é peça chave na construção do texto, e na significação do tempo proposto. A importância da obra de Paul Ricoeur se dá, para além da contribuição para a epistemologia da História e do tempo histórico, e da reconciliação entre História e

54 Página54 DOSSIÊ PERES, M.V.M. narrativa, em um resgate do vivido, do humano, para a ciência histórica. Sobre isso, diz Nascimento: Da obra de Ricoeur, pode-se extrair a relação entre História e o viver. A história é construída a partir do viver humano e o reconstrói através de sua narrativa. O modelo trifásico que esse autor propõe exalta essa relação íntima, que afasta radicalismos pósmodernos que isolam as representações de mundo do próprio mundo. Ao trazer essa perspectiva, Ricoeur não está resgatando o sentido pleno da história magistra vitae, ou seja, a história não se repete, mas isso não significa que ela não seja referência para leituras do presente. Para ele, os procedimentos necessários para a elaboração da narrativa histórica conferem a ela objetividade ontológica (NASCIMENTO, 2014, p.72). Sendo assim, considerando tempo e narrativa enquanto conceitos relacionais e dialógicos, que se constroem mutuamente, acredito ser possível dar mais subsídios para que o professor do ensino básico possa construir noções de tempo histórico mais múltiplas e, ao mesmo tempo, objetivas, com seus alunos. Um fechamento contingente: os desafios de ensinar o tempo na cultura digital. O domínio desse debate, e dos múltiplos conceitos que formam e conformam a ideia de tempo histórico é crucial para o ensino da História. O tempo é uma dimensão constitutiva da experiência humana, e esse campo tem como objetivo chave a educação para a percepção e orientação ou operacionalização crítica do/no tempo. Como diz Cinthia Araújo (2013), como base de toda a experiência, o tempo deriva da forma como nossa consciência está estruturada, permitindo que possamos distinguir processos anteriores e posteriores, retenção e propensão, memória e expectativa, passado e futuro (ARAÚJO, 2013, p. 66 e 67), e cabe à disciplina histórica trabalhar com as diferentes construções possíveis do tempo, para estruturar essa percepção no aluno. Como diz Albuquerque Júnior, A História, quando se torna matéria escolar, explicita esse papel de formadora de sujeitos, de construtora de formas de ver, sentir, de pensar, de valorar, de se posicionar no mundo (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, p.31).

55 Página55 O tempo histórico em perspectiva..., p Sonia Miranda (2012) alerta para uma difícil construção da noção de tempo nos alunos do ensino fundamental e médio, e que não é mediada apenas pela escola. Em diálogo com Bakhtin (2006), Miranda atenta para um tempo representado por signos que demandam múltiplos processos sociais de mediação e a interveniência da linguagem em sua ampla rede de significações e sentidos (MIRANDA, 2012, p. 43). Para ela isso dificulta a apreensão do tempo para as crianças, pois essa ideia não pode ser associada a algo concreto. A autora atribui algumas dificuldades apresentadas por ela a uma falta de clareza no ensino sobre as temporalidades. Diz a autora: Na base dessa dificuldade, por certo, localiza-se o fato de que o tratamento conceitual da temporalidade histórica é, por vezes, escamoteado e diluído em meio a outros componentes tidos como mais importantes, talvez por se remeterem à esfera do tangível, avaliável por meio de medidas diretas, quantificável por meio de testes estandardizados e, consequentemente, passível de disciplinarização (MIRANDA, 2012, p. 39). Tais desafios se tornam ainda mais relevantes em tempos de presentismo, reforçado em grande parte pela emergência e rápido alastramento das tecnologias digitais da informação e comunicação (TDIC) e da configuração do que chamamos de cultura digital 3 (BUCKINGHAN, 2010). Essa questão insere nesse debate a importância da reflexão sobre como a emergência dessa nova cultura traz novos significantes para a disputa sobre as possibilidades de significação da temporalidade. Além disso, promove não só uma sensação de aceleração ainda maior, mas também proporciona diferentes formas de perceber, sentir e viver o tempo. Sobre a temporalidade dos aparatos digitais, diz-nos Sarlo: O tempo é a nova qualidade dessa sintaxe de objetos. O controle remoto, o fax e o modem produzem outra textura do tempo, desconhecida há duas décadas. Não se trata apenas do sentimento de necessidade urgente de ter mais imagens, mas sim da velocidade com que elas seguem umas às outras, refletindo-se e se atropelando. Hoje o tempo é mais fluído. (SARLO, 2005, P. 95) 3 O conceito de cultura digital usado por Buckinghan (2010) remete à reflexão de Castells (2008) sobre as formas de comunicação em rede na era digital. Castells diz que a era digital é marcada pela habilidade de comunicação em linguagem comum digital, pela velocidade de comunicação local-global, existência de múltiplas modalidades de comunicação, interconexão de todas as redes digitalizadas, capacidade de reconfigurar e criar novos sentidos no digital e conexão entre o que se produz em rede e a mente coletiva (CASTELLS, 2008). Dessa forma, a produção de novos conhecimentos, e a ressignificação de conhecimentos já existentes, se potencializa e se modifica, através dos meios e ferramentas digitais. Tudo muito rápido, e em escala global. Essa é a cultura digital.

56 Página56 DOSSIÊ PERES, M.V.M. Se Sarlo pensava sobre controles remotos, fax e modem, que outras texturas de tempo são possíveis agora que esses três artefatos são cada vez mais uma marca do passado? Que outras significações temporais virão em tempos cada vez mais próximos de realidade virtual ao alcance das mãos? Qual o papel da História, e do ensino dessa disciplina, nessas constantes refigurações de sentidos de tempo, nesse presentismo que parece só se avolumar? Como diz Costa: as noções de passado, presente, futuro, sucessão, ritmo, duração, processo, assim como outros vocábulos ligados a esse universo semântico, tais como, calendário, cronologia, linha do tempo, sequência, ordenação, continuidades, descontinuidades, simultaneidades, transformações e permanências podem ser modificadas pela dinâmica da cibercultura. Afinal, o que entender por historicidade quando algumas garantias acerca dos sentidos atribuídos à nossa orientação temporal são gravemente abaladas em nosso presente? (COSTA, 2015b, p. 160). Tudo isso torna ainda mais necessário que os professores de História saibam operacionalizar com os diferentes conceitos do tempo histórico, especialmente os enumerados neste artigo. Somente dessa forma, poderemos lutar contra, por um lado, uma História tradicional, linear e progressiva, e, por outro, com o esvaziamento da importância dos estudos históricos em tempos de massificação do digital, acompanhada por um uso acrítico de suas ferramentas, e de presentismo. Referências ALBUQUERQUE JÚNIOR, D. M. Fazer defeitos nas memórias: para que servem o ensino e a escrita da história? In.: GONÇALVES, Márcia de Almeida et alii. (orgs.). Qual o valor da História hoje?. Rio de Janeiro: Editora FGV, BARROS, J.D. O tempo dos Historiadores. Rio de Janeiro: Editora Vozes., CASTELLS, M. Creatividad, innovación y cultura digital. Un mapa de sus interaciones. Revista Telos. Nº 77, Octubre-Diciembre, COSTA, M. A. Currículo, História e tecnologia: que articulação na formação de professores? Rio de Janeiro: UFRJ, Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015a. COSTA, M. A. Tecnologia, Temporalidade e História Digital: Interpelações ao historiador e ao professor de História. Revista Mosaico, v. 8, n. 2, p , jul./dez. 2015b. CRACCO, R.B. A Longa duração e as estruturas temporais em Fernand Braudel: de sua tese O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Felipe IIaté o artigo História e Ciências Sociais: A longa duração( ). São Paulo, UNESP, Dissertação (Mestrado em História). Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis, 2009.

57 Página57 O tempo histórico em perspectiva..., p DOSSE, F. A história à prova do tempo: da história em migalhas ao resgate do sentido. São Paulo: UNESP, GABRIEL, C. T. Conhecimento escolar, cultura e poder: desafios para o campo do currículo em tempos pós. in CANDAU, V. M. & MOREIRA, A. F. Multiculturalismo, diferenças culturais e práticas pedagógicas. Editora Vozes, Petrópolis/RJ, GABRIEL, C. T. Teoria da História, Didática da História e narrativa: diálogos com Paul Ricoeur. Revista Brasileira de História. São Paulo, n. 64, v. 32, 2012a, p GABRIEL, C. T. Que passados e futuros circulam nas escolas de nosso presente?. In: Gonçalves M. A.; Rocha, H.; Resnik, Luis; Monteiro, A.M.. (Orgs.). Qual o valor da história hoje?. 1ed. Rio de Janeiro: FGV, 2012b, v. 1, p GABRIEL, C. T. Cultura histórica nas tramas da didatização da cultura escolar ( ou Por uma outra definição de Didática da Historia). In: Helenice Rocha, Marcelo Magalhães; Rebeca Gontijo. (Org.). O ensino de História em questão: cultura histórica, usos do passado. Rio de Janeiro: FGV, v. 1, p , 2015a. GABRIEL, C. T. Jogos do Tempo e processos de identificação hegemonizados nos textos curriculares de História. Revista História Hoje, v. 4, p , 2015b. GABRIEL, C.T.; CASTRO, M.M. Conhecimento escolar: objeto incontornável da agenda política educacional contemporânea. Revista Educação em Questão (UFRN. Impresso), v. 45, p , GABRIEL, C.T.; MONTEIRO, A. M. Currículo de História e Narrativa: desafios epistemológicos e apostas políticas. In: MONTEIRO, A.M.; GABRIEL, C.T., ARAÚJO, C.M.; COSTA, W. (Orgs.). Pesquisa em Ensino de História: entre desafios epistemológicos e apostas políticas. Rio de Janeiro: Mauad X, 2014, p KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, MIRANDA, S.R. Temporalidades e cotidiano escolar em redes de significações: desafios didáticos na tarefa de educar para a compreensão do tempo. Revista História Hoje, v. 2, nº 4, p , MIRANDA, S.R. Aprender e ensinar o tempo histórico em tempos de incertezas: reflexões e desafios para o professor de História. In: Gonçalves M. A.; Rocha, H.; Resnik, Luis; Monteiro, A.M.. (Orgs.). Qual o valor da história hoje? 1ed. Rio de Janeiro: FGV, 2012, v. 1, p MONTEIRO, A.M.F.C. Ensino de História: entre saberes e práticas. Tese de doutorado. Programa de pós-graduação em Educação da PUC-Rio. Rio de Janeiro, MONTEIRO, A.M.F.C. Tempo presente no ensino de História: o anacronismo em questão. In: Gonçalves M. A.; Rocha, H.; Resnik, Luis; Monteiro, A.M.. (Orgs.). Qual o valor da história hoje? 1ed. Rio de Janeiro: FGV, 2012, v. 1, p NASCIMENTO, F.D. Currículo de História na web: uma abordagem discursiva de propostas da Educopédia para o Ensino de História. Rio de Janeiro: UFRJ, Dissertação (Mestrado em Educação). Programa de Pós Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, REIS, J.C. História e teoria. Historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. Rio de Janeiro: FVG, REIS, J.C. Teoria e história da ciência histórica : tempo e narrativa em Paul Ricoeur. In CONDÉ, ML. & FIGUEIREDO, B.F. Ciência, História e Teoria. Belo Horizonte: Argumentum, REIS, J.C..Teoria e História: Tempo histórico, história do pensamento histórico ocidental e pensamento brasileiro. Rio de Janeiro : Editora FGV, RICOEUR, P. Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1997, v SARLO, B. Tempo presente: Notas sobre a mudança de uma cultura. Rio de Janeiro: José Olympio, TURAZZI, M. I.; GABRIEL, C.T. Tempo e História. São Paulo: Moderna, 2000.

58 Página58 DOSSIÊ PERES, M.V.M. VEIGA-NETTO, A. É preciso ir aos porões. In: Revista Brasileira de Educação. v.17, n.50. maio-agosto, WHITE, H. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.

59 Não Tendo Apologia, É Uma Boa História! : Atravessamentos Entre Conhecimento Histórico Escolar E Mídia INTERSECTIONS BETWEEN MEDIA REFERENCES AND SCHOOL HISTORICAL KNOWLEDGE RESUMO Patrícia Teixeira de Sá* O artigo discute atravessamentos entre referências de mídias e conhecimento histórico escolar. Foram analisadas interações discursivas em sala de aula, entrevistas em grupo e questionários aplicados a estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental. O estudo baseia-se no reconhecimento da heterogeneidade de vozes e da diversidade de linguagens presentes em aulas de História e identifica a mídia como integrante do processo. Palavras-chave: Mídia. Conhecimento Histórico Escolar. Educação Básica. ABSTRACT The article discusses the intersections between media references and school historical knowledge. History lessons were observed in three 9th grade classes in a public school in the Municipality of Rio de Janeiro, with questionnaires and group interviews with students. The study is based on the recognition of the diversity of voices and languages present in History classes and identifies the media as part of the process. keywords: Media. Educational Historical Knowledge. Basic Education. * Doutora em Ciências Humanas - Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2016) e Mestre em Educação Brasileira (2006) pelo mesmo programa. Bacharel e Licenciada em História pela Universidade Federal Fluminense (2002). Especialista em Educação a Distância pela PUC-Minas (2012). Atualmente, é tutora no curso de História EAD da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, na disciplina de Seminário de Pesquisa em Ensino de História II. Possui experiência como professora na Educação Básica ( ) e na formação inicial e continuada de professores, tendo atuado em cursos de Licenciatura em História na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Universidade Federal de São João del-rei (UFSJ) e em cursos de especialização e oficinas para professores ( ). É pesquisadora associada do Grupo de Pesquisa Educação e Mídia (GRUPEM / PUC-Rio). Suas principais áreas de pesquisa são Ensino de História, Educação e Mídia, Aprendizagem Histórica e Formação de Professores. patriciatsa@yahoo.com.br

60 Página60 DOSSIÊ SÁ, P.T. Introdução Esse artigo se insere em um quadro de reflexões sobre a construção de conhecimento na escola e a organização do ensino e envolve preocupações em torno da tensão entre a lógica da escola e a lógica da comunicação contemporânea. Um dos centros de atenção da pesquisa foi a análise de interações discursivas e atividades de ensino, para pensar a respeito do processo ensino-aprendizagem. Outro espectro de questões está relacionado mais precisamente aos atravessamentos entre a lógica da mídia e a lógica do conhecimento histórico escolar. A formação, tal como promovida na escola, está afetada pelo contexto da midiatização? Narrativas históricas escolares e narrativas midiáticas se encontram no espaço escolar? Esse texto tem o objetivo de discutir aspectos relacionados aos atravessamentos entre mídias e conhecimento histórico escolar, com base em análises de aulas de história, entrevistas em grupo e questionários aplicados a estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental. Segundo Hjarvard (2012), mídia, na sociedade contemporânea, não pode ser considerada como algo separado das instituições culturais e sociais. Para o autor, família e escola são ainda as instâncias mais importantes para a socialização das novas gerações, mas estão, ambas, midiatizadas, isto é, atravessadas pela onipresença das mídias na vida cotidiana. É preciso procurar entender as maneiras pelas quais as instituições sociais e processos culturais mudaram de caráter, função e estrutura em resposta a essa onipresença. É notável que os meios de comunicação sejam usados e percebidos de forma a afetar as interações entre as pessoas e as interações entre as instituições e as pessoas. Para o autor, esse aspecto justifica a definição de midiatização como: processo pelo qual a sociedade, em um grau cada vez maior, está submetida a ou torna-se dependente da mídia e de sua lógica. Esse processo é caraterizado por uma dualidade em que os meios de comunicação passaram a estar integrados às operações de outras instituições sociais ao mesmo tempo em que também adquiriram o status de instituições sociais em pleno direito. Como consequência, a

61 Página61 Não tendo apologia, é uma boa história! : atravessamentos..., p interação social dentro das respectivas instituições, entre instituições e na sociedade em geral acontece através dos meios de comunicação. O termo lógica da mídia refere-se ao modus operandi institucional, estético e tecnológico dos meios, incluindo as maneiras pelas quais eles distribuem recursos materiais e simbólicos e funcionam com a ajuda de regras formais e informais (2012, p ). Sodré (2006) afirma que, na sociedade contemporânea, existe uma tendência à virtualização das relações humanas e define midiatização como ordem de mediações socialmente realizadas um tipo particular de mediação, portanto, a que poderíamos chamar de tecnomediações caracterizadas por uma espécie de prótese tecnológica da realidade sensível, denominada medium (p.20). A mediação social exacerbada qualifica o fenômeno da midiatização, com espaço próprio e relativamente autônomo em face das formas interativas presentes nas mediações tradicionais (p.22). O problema da hibridização de múltiplas instituições com organizações de mídia, para Sodré, é fundamental para investigar a influência ou o poder da mídia na construção da realidade social e como estruturadora ou reestruturadora de percepções e cognições (p.23). Parto da premissa de que a construção de conhecimento histórico resulta de um longo processo de socialização, estruturado em um conjunto de relações com diferentes linguagens, produtos culturais, instituições e espaços formativos. Outro pressuposto diz respeito ao fato bastante manifesto de que a produção da memória contemporânea tem um ancoramento bem forte nas mídias e no audiovisual, mas que tal influência não resulta, necessariamente, em maior habilidade de construção narrativa. Metodologia e campo empírico O estudo foi desenvolvido em uma escola da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro a partir de observações, audiogravações e notas escritas de aulas de história em três turmas de 9º ano do Ensino Fundamental, no segundo semestre de Durante três meses, acompanhei três horas/aula semanais em cada uma das três turmas observadas, em dezesseis visitas à escola. O registro do áudio foi realizado através de um gravador digital colocado sobre a mesa da professora. Eventualmente, a gravação captou falas e comentários dos estudantes, mas a voz predominante e clara nos arquivos de áudio é da professora. Nas notas de campo, procurei registrar falas e atitudes dos

62 Página62 DOSSIÊ SÁ, P.T. estudantes diante das propostas didáticas da professora, buscando registrar a heterogeneidade de vozes e atitudes no ambiente da sala de aula. Para análise, estão arquivados minutos de aulas gravadas 276 minutos na turma I, 520 minutos na turma II e 585 minutos na turma III. Todos os arquivos de áudio e notas de observação foram transferidos para o software Atlas TI. Elaborei, para cada aula gravada, uma sinopse contendo as principais informações sobre o circuito da aula 4. Procurei registrar o tempo destinado ao trabalho específico com temas da história e sublinhar os momentos em que a professora ou os estudantes efetuaram alguma análise de conteúdos midiáticos, livros didáticos ou outros materiais propostos. Além desses, estão registrados nas sinopses outros momentos que considerei que influenciam e/ou interferem na construção do conhecimento histórico escolar, tais como interrupções externas por parte da direção, de outros professores, de estudantes, da inspetora etc., demandas diversas dos estudantes, estratégias da professora para gerir o fluxo de interações e manter a disciplina na sala de aula e acontecimentos decorrentes de exigências colocadas pela concretização calendário de avaliações (internas e externas). Nas situações em que há enunciados bem elaborados e com boa qualidade de áudio, sinalizei a necessidade de transcrição para análise mais detalhada. Em um bairro da zona oeste da cidade do Rio de Janeiro está localizada a escola em que foi realizado o estudo principal deste trabalho. A escola está situada em uma localidade bastante integrada ao bairro de Campo Grande, o mais populoso da cidade do Rio de Janeiro e oferece o segundo segmento do Ensino Fundamental e atende a 565 estudantes entre o 6º e o 9º anos do Ensino Fundamental. As salas de aula estão equipadas com projetor multimídia, ar condicionado e quadro branco. São aproximadamente 40 estudantes ocupando cada sala de aula. As turmas observadas possuíam carga horária de três horas/aula - de 50 minutos cada - semanais de história. As turmas I e II pertenciam ao turno da manhã e a turma III, ao turno da tarde, todas elas regidas pela professora Joana 5. Essas turmas representam a totalidade dos estudantes que frequentam o 9º ano do Ensino 4 Termo utilizado por Rocha (2006), em sua tese de doutoramento, para designar a trama de atos, atividades ou experiências rotineiras que se desenvolve no horário escolar. 5 Nome fictício.

63 Página63 Não tendo apologia, é uma boa história! : atravessamentos..., p Fundamental matriculados na escola investigada - 41 alunos na turma I, 43 na turma II e 42 na turma III, segundo a lista de chamada da professora. Em relação ao perfil dos estudantes participantes da pesquisa, trata-se de um público com homogeneidade de idade (14 / 15 anos), em sua maioria autodeclarado como pardo ou negro, filhos de trabalhadores do setor de serviços, indústria, construção civil ou trabalho doméstico na casa de outras pessoas, com escolaridade concentrada no Ensino Médio. Esses dados foram produzidos a partir da aplicação de um questionário aos estudantes, com questões sobre perfil sócio-econômico 6 e, mesmo não seguindo todos os critérios e procedimentos de classificação econômica realizados por pesquisas estatísticas especializadas, nos permitem inferir que estamos lidando com estudantes pertencentes às classes C e D. Os questionários também abordaram práticas de contato com a história dentro e fora da escola. Foram realizadas entrevistas em grupos de alunos voluntários, totalizando 32 participantes, em 195 minutos de gravações. Nos procedimentos de categorização das sinopses das aulas e do registro das entrevistas realizadas com os estudantes, com auxílio do software Atlas TI, contabilizei 46 códigos relacionados às mídias. Definimos mídias, nesse contexto, como recursos de comunicação eletrônicos, considerando as interações, ocorridas nas aulas, com filmes, músicas, fotografias e a produção de vídeo, assim como exposição oral com apresentação com suporte em imagens (utilizando projetor multimídia) e o uso de conteúdos veiculados na grande imprensa em aulas expositivas e debates, envolvendo comparações entre presente e passado. Quando questionados sobre como conhecem História fora da escola, os estudantes apresentaram um repertório muito restrito de práticas de busca de informações históricas sem mediação escolar. 6 Questões formuladas para apurar informações sobre os estudantes, tais como sexo, idade, pertencimento étnico racial, religião, escolaridade e profissão da mãe e do pai.

64 Página64 DOSSIÊ SÁ, P.T. Procuro canais de TV especializados em Vou a biblioteca pública Leio livros de literatura Vou a museus e outros lugares históricos Leio revistas de história Vejo filmes, novelas e minisséries Consulto livros didáticos Faço perguntas a professores de história Converso com pessoas da minha família Busco informações na Internet HISTÓRIA FORA DA ESCOLA Turma I 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% Frequentemente ou Sempre Às vezes Nunca ou Raramente Gráfico 1 - História fora da escola. Turma I. Fonte: Elaboração própria. Procuro canais de TV especializados em Vou a biblioteca pública Leio livros de literatura Vou a museus e outros lugares históricos Leio revistas de história Vejo filmes, novelas e minisséries Consulto livros didáticos Faço perguntas a professores de história Converso com pessoas da minha família Busco informações na Internet HISTÓRIA FORA DA ESCOLA Turma II 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90%100% Frequentemente ou Sempre Às vezes Nunca ou Raramente Gráfico 2 - História fora da escola. Turma II. Fonte: Elaboração própria.

65 Página65 Não tendo apologia, é uma boa história! : atravessamentos..., p HISTÓRIA FORA DA ESCOLA Turma III Vou a biblioteca pública Vou a museus e outros lugares históricos Vejo filmes, novelas e minisséries Faço perguntas a professores de história Busco informações na Internet 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90% Frequentemente ou Sempre Às vezes Nunca ou Raramente Gráfico 3 - História fora da escola. Turma III. Fonte: Elaboração própria. As respostas aos questionários indicam que os estudantes participantes da pesquisa não apresentam contato sistemático com conteúdos históricos fora da escola, tais como museus, lugares históricos e bibliotecas públicas ou através de canais de tevê, revistas especializadas e livros de literatura. Uma porcentagem significativa declarou assistir a filmes, novelas e minisséries com temas históricos, principalmente na turma III (46%). Em relação à busca de informação na internet, aqueles que declaram acessar informações históricas com frequência constituem 37% na turma I, 26% na turma II e 41% na turma III. Não parece significativa a recorrência com que esses estudantes vão atrás de informações sobre o passado histórico fora da escola. A frequência às vezes sobressaiu nesses quesitos, o que pode indicar pouco interesse em assuntos históricos. Não foi verificada uma alta recorrência em nenhum dos itens. Entre os usos mais frequentes do computador e da internet 7 estão a pesquisa escolar, os projetos sobre um tema e os trabalhos em grupo. No entanto, conforme representações gráficas abaixo, nota-se a fraca mediação do professor nessa tarefa, estudantes declaram que não aprendem com o professor a usar o computador e a internet (94%, 73% e 96%, nas turmas I, II e III, respectivamente). 7 Os itens foram extraídos do questionário TIC-Educação / CETIC, do ano de São eles: Fazer pesquisa para a escola. Fazer projetos ou trabalhos sobre um tema. Trabalhos em grupo. Fazer exercícios ou lições que o(a) professor(a) passa. Jogar jogos educativos. Fazer apresentações para os seus colegas em classe. Aprender com o(a) professor(a) a usar o computador e a internet. Participar de cursos a distância. Pesquisar informações sobre a história.

66 Página66 DOSSIÊ SÁ, P.T. Uso do computador e da internet pelo estudante Turma I Pesquisar informações sobre a história Participar de cursos a distância Aprender com o professor a usar o Fazer apresentações para os seus colegas em Jogar jogos educativos Fazer exercícios ou lições que o professor Trabalhos em grupo Fazer projetos ou trabalhos sobre um tema Fazer pesquisa para a escola 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90%100% Turma I Não Turma I Sim Gráfico 4 - Uso do computador e da internet pelo estudante. Turma I. Fonte: Elaboração própria. Uso do computador e da internet pelo estudante Turma II Pesquisar informações sobre a história Participar de cursos a distância Aprender com o professor a usar o Fazer apresentações para os seus colegas em Jogar jogos educativos Fazer exercícios ou lições que o professor Trabalhos em grupo Fazer projetos ou trabalhos sobre um tema Fazer pesquisa para a escola 0% 10% 20% 30% 40% 50% 60% 70% 80% 90%100% Turma II Não Turma II Sim Gráfico 5 - Uso do computador e da internet pelo estudante. Turma II. Fonte: Elaboração própria.

67 Página67 Não tendo apologia, é uma boa história! : atravessamentos..., p Uso do computador e da internet pelo estudante Turma III Pesquisar informações sobre a história Participar de cursos a distância Aprender com o professor a usar o Fazer apresentações para os seus Jogar jogos educativos Fazer exercícios ou lições que o Trabalhos em grupo Fazer projetos ou trabalhos sobre um Fazer pesquisa para a escola 0% 20% 40% 60% 80% 100% 120% Turma III Não Turma III Sim Gráfico 6 - Uso do computador e da internet pelo estudante. Turma III. Fonte: Elaboração própria. De acordo com as respostas dos alunos, na escola, o cenário de uso do computador e da internet pelo professor se apresenta como pouco diversificado, concentrando-se no uso de sons, vídeos e fotos e em apresentações orais para turma. 100% 50% Uso do computador e da internet pelo professor 0% Sim Não Sim Não Sim Não Turma I Turma II Turma III Trabalhos em grupo Tarefa escrita e exercícios Uso de sons, vídeos e fotos em apresentações Provas e exames escritos em sala de aula Apresentação oral para a turma Nenhuma atividade Trama de vozes e conceitos na aula de História A análise dos registros das aulas observadas permite reflexões sobre fatores que estão em jogo na construção do conhecimento histórico escolar. Um primeiro ponto a destacar é o tempo relativamente curto de interação entre professora e estudantes em torno do conhecimento histórico, nas três turmas observadas. A situação também é analisada na tese de Helenice Rocha (2006), que sinaliza, em seu contexto de

68 Página68 DOSSIÊ SÁ, P.T. investigação, o pequeno espaço ocupado pela explicação, na aula de história. Em sua pesquisa, foram realizados mapeamentos de diversos circuitos de aula de História no Ensino Fundamental e analisadas as alternâncias entre a linguagem oral e a linguagem escrita. Os trânsitos entre linguagem do cotidiano e linguagem de estrutura analítica evidenciam o delicado lugar da linguagem no ensino de História (idem, p.353), trazendo para o debate o valor de figuras de linguagem, tais como metáfora, metonímia, sinédoque e ironia para enfrentar o problema da compreensão dos estudantes a respeito do conhecimento histórico. A pesquisadora ressalta relevantes ações de linguagem do professor voltadas para a compreensão do conhecimento histórico pelo aluno, tais como: o tom da aula, a organização do circuito de atividades, a articulação da linguagem que estrutura o conhecimento histórico, as estratégias de argumentação e as relações entre vida cotidiana e conhecimento histórico escolar. Vejamos a transcrição de um trecho de aula audiogravada: Profa.: Para quem já ouviu falar, o que vem na cabeça de vocês quando vocês escutam essa palavra anarquismo? Aluna: Tem a ver também com... ai, meu deus! Aluno: Vem da monarquia Profa.: Monarquia? Aluna: Não! A gente viu o ano passado. Ai meu deus! Profa.: Gente, vamos lá? Não vem nada na cabeça de vocês? Aluno: É guerra Aluno: Monarquia Aluno: Anarquia Profa.: Vem anarquia, mas anarquia seria o quê? Aluno: Opressão Profa.: Opressão? Mas anarquia te remete à opressão? Aluno: Mais ou menos Profa.: Gente, não é monarquia, é anarquia. Alunos: Guerra. Manifestação. Revolução Industrial. Aquelas guerras lá da Rio Branco. Profa.: As guerras da Rio Branco! Atuais? Aluno: É! Profa.: [lendo uma frase escrita no quadro] Se você pegar o mais ardente dos revolucionários e der poder a ele, em menos de um ano ele será pior do que próprio czar. Czar era o rei russo. Quem disse essa frase foi o Mikhail Bakunin, que também disse a frase: [lendo] Não acredito nas constituições, nem nas leis, necessitamos de algo diferente, inspiração, vida, o mundo sem leis, portanto, livre. Que é uma frase também do Bakunin. Vocês já ouviram falar do Bakunin? Tem uma história recente envolvendo o Mikhail Bakunin. Não sei se vocês estão antenados que, por conta dessas manifestações, das

69 Página69 Não tendo apologia, é uma boa história! : atravessamentos..., p últimas manifestações que aconteceram no Rio e em São Paulo, aqui no Rio de Janeiro, uma galera, a maior cabeçada foi presa. Vocês acompanharam mais ou menos? Aluno: Ah, a Sininho... Profa.: É, tipo a Sininho, teve também uma professora da Uerj, a maior galera foi presa. Então, assim, tinha um inquérito, teve uma investigação. E uma das pessoas que foram citadas como suspeita no inquérito policial foi o Mikhail Bakunin, que é um russo que morreu para mais de cem anos atrás. Então, assim, a nossa inteligência investigativa não percebeu, tipo, pegou uma conversa entre ativistas em que essas pessoas citavam o Bakunin. Porque parte dessas pessoas que foram presas discutiam textos teóricos de pensadores anarquistas. O Mikhail Bakunin é um pensador anarquista, ele é um dos caras que formulou o pensamento anarquista. Então como esses ativistas atuais tem leitura anarquista, numa conversa telefônica, eles falaram 'o Bakunin disse não sei o que', não sei exatamente o que eles citaram. E aí essa conversa foi captada pelas escutas telefônicas da polícia e o Bakunin arrolado no inquérito policial como suspeito. Aluno: Ridículo. Profa.: Porque eles não sabiam, eles nunca tinham ouvido falar do Bakunin. Tá vendo, gente, vamos estudar história. Por que, se eles estivessem estudado história... Aluno: Eles saberiam que o cara morreu. Profa.: Eles ouviram, sei lá quem é o Bakunin. Eles acharam que era uma pessoa, o Bakunin disse, mas na verdade a conversa era sobre o pensamento do filósofo Bakunin, tá? Então, é uma história bastante atual para a gente começar a falar sobre o pensamento anarquista. Pois é... criaram até uma página do facebook, se vocês quiserem acessar, chama Bakunin Suspeito, zoando a situação, porque é uma situação engraçada. Então, a ideia, resumindo, é que o ideal é que as pessoas conseguissem organizar a sociedade na parceria, e não um governando os outros, né? Claro que, na prática, vocês podem questionar. Na teoria é tudo muito bonito, na prática não daria certo, bla bla bla. Também não sei. Nesse fragmento de aula, a professora pretende explorar citações de pensadores anarquistas e procura construir a aula dialogada. Um estudante elabora uma associação com as guerras da [Avenida] Rio Branco, fazendo referência às manifestações ocorridas nesse local em 2013 e amplamente presentes em narrativas midiáticas, especialmente as táticas de ação direta de militantes black bloc e a repressão estatal sobre elas. A partir daí, a professora toma esse enunciado como base para explorar outros acontecimentos da história recente, vinculando-os ao conceito de anarquismo. Lauthier (2011) propõe a análise da construção do conhecimento escolar em sua dimensão de circulação de saberes e como um contrato de comunicação. Os saberes escolares, embora construídos no espaço fechado e ritualizado da sala de aula e

70 Página70 DOSSIÊ SÁ, P.T. relacionados ao conhecimento acadêmico, são sensíveis a diversas influências políticas e sociais, vindas das referências culturais dos estudantes e professores, de políticas públicas e dos meios de comunicação. A autora argumenta sobre a existência de uma compreensão fenomenológica amplamente compartilhada quando se trata de conhecer o passado, baseada em uma compreensão narrativa e em determinado conhecimento do mundo vivido. Nesse sentido, é importantíssimo conferir atenção aos esquemas de pensamento da memória social na conceitualização do passado, pois influenciam fenômenos de adesão ou de rejeição às explicações e análises realizadas nas aulas e incidem sobre processos de seleção das informações. A passagem do pensamento natural para um pensamento mais formal não é linear, sendo realizada por idas e voltas, ancoradas numa memória social. A personalização, o recurso à intriga, a empatia, a interpretação figurativa, as metáforas e analogias são recursos utilizados tanto por estudantes da escola básica como por historiadores e professores de História para representar o passado, com diferenças de graus de sofisticação. Mclean (1994), trabalhando com o conceito de heteroglossia, da obra de Bakhtin, nos auxilia na análise desse trecho. A noção está relacionada à existência de múltiplas linguagens, dentro de uma mesma língua nacional, que refletem interesses e valores de diferentes grupos sociais - as linguagens sócio-ideológicas. O ponto central dessa discussão é o reconhecimento da dimensão sócio-ideológica da linguagem, compreendida como conjunto de linguagens de vários círculos sociais que servem aos propósitos sócio-políticos do momento e indicam maneiras específicas de conceituar, compreender e avaliar o mundo. Ao questionar como algum nível de ordenamento pode emergir da heteroglossia, o autor destaca que, na sala de aula, quando os falantes, portadores de diferentes línguas da heteroglossia entram em contato através de diálogo, se estabelece um confronto entre o conjunto de experiências e arranjos institucionais determinados e as diversas fontes textuais trazidas de outros contextos por professores e estudantes, na forma de falas, livro e imagens. Recontextualizados, os discursos entram em um jogo por legitimação e competem pela dominação. Com base em Bernstein (1986 apud MCLEAN, idem), as regras de recontextualização, típicas da educação formal, estariam associadas a dois elementos: o discurso instrucional ligado ao conteúdo temático e o discurso regulador, que estabelece os princípios através dos quais se constituem, se mantêm, se reproduzem e se legitimam as relações

71 Página71 Não tendo apologia, é uma boa história! : atravessamentos..., p sociais que estruturam a aquisição e transmissão de conhecimento (p. 236, tradução minha). Assim, podemos dizer que a força centrífuga da conversação tende a iniciar uma nova linguagem, fruto do embate entre o gênero do discurso tipicamente escolar, baseado em questões instrucionais, taxonomias estandartizadas, esquemas sinópticos, na linguagem do significado literal e descrições (WERTSCH, 1991) e em referências culturais da família, das mídias e da sociedade. Segundo Mclean, o discurso escolar está baseado em um amálgama de discursos externos e derivados, modificados através da interação na sala de aula, amálgama esse que pode instituir algumas formas originais de ver o mundo para os contextos de origem dos diversos grupos sociais. Falantes que adotam aspectos desse tipo de discurso derivado, escolar, entram em situação de confronto e luta por hegemonia e isso constitui fundamentalmente a vivacidade do discurso escolar, o afastando da possibilidade de ser considerado apenas como uma prática imaginária que serve apenas a reprodução das condições sociais (p. 237). Mclean afirma que, se o processo comunicativo tiver sido um sucesso, essa linguagem compartilhada foi enriquecida por muitas perspectivas e formas de produzir significado trazidas pelos membros do grupo em questão. A aprendizagem escolar ocorre quando atividades e discursos de fora são mobilizados pelos estudantes que os transformam e os incorporam a partir da prática cotidiana de sala de aula. Goulart (2007), também com base em Bakhtin, sinaliza que as linguagens sociais, constituídas por conteúdos determinados, implicam, além do vocabulário, formas de orientação intencional de interpretação, com direções definidas, e impregnam-se de apreciações concretas, ao unirem-se a objetos, áreas expressivas de conhecimento e a gêneros (p.95). A organização das linguagens sociais, portanto, responde às necessidades dos diferentes grupos, constituindo esferas de conhecimento e evidenciando diferenças históricas e culturais. A autora trabalha com a hipótese de que o problema que está por trás da dificuldade dos estudantes para falar, ler e produzir textos na escola está vinculado ao processo de apropriação das linguagens sociais privilegiadas na escola em embate com os modos como se estabelecem as relações entre os estudantes e suas linguagens sociais. Considerando as especificidades das áreas de conhecimento, que historicamente institucionalizam suas formas de exposição em

72 Página72 DOSSIÊ SÁ, P.T. diferentes textualidades, Goulart (2007) propõe que se pensem essas diferentes textualidades como diferentes modos de argumentar. A argumentação pode ser pensada nos movimentos intencionais da situação de enunciação, nas interrelações de enunciados, na intersubjetividade, manifestando-se no discurso pelo tom apreciativo, pelos tempos-espaços e pelo entranhamento de palavras alheias nos enunciados, como palavras citadas, entre outras possibilidades (p.106) Segundo a autora, em situações de aula em que a conversa, o debate e a discussão são centrais, o discurso de autoridade tende a se tornar mais flexível, ou seja, situações em que os estudantes têm oportunidade de falar, expor, argumentar podem viabilizar aprendizagens mais significativas. Wertsch (1993) trabalha com o pressuposto de que certos aspectos do funcionamento da mente humana estão fundamentalmente ligados a processos comunicativos e que o termo voz como categoria de análise indica que até mesmo processos psicológicos individuais podem ser vistos como processos de natureza comunicativa. Nessa perspectiva, a mente não é somente individual e não se reduz à atividade cerebral, mas define-se em termos de suas propriedades sociais e como resultado de processos de mediação. A partir das respostas às perguntas quem está falando?, ou a quem pertence o significado?, Wertsch explora a ideia de que os produtores de linguagem tomam emprestado significados, por vezes em chorus, outras vezes por meio do diálogo. Assim, a resposta à questão quem está falando? sempre envolve mais de uma voz. Trata-se de uma orientação mais coletiva para o entendimento da fonte da produção de significado, longe de ser resultado de uma atividade mental individual e isolada. A noção de ventriloquismo, formulada pelo autor, pressupõe que uma voz não é isoladamente responsável pela criação do enunciado e seu significado. Esta pode ser tomada como referência na "leitura do seguinte fragmento de aula: O anarquismo, antes de chegar aqui no Brasil, já havia influenciado uma longa trajetória de luta lá na Europa. A gente viu que a revolução industrial aconteceu lá no século XIX, então desde o século XIX que a ideia, a ideologia anarquista está influenciando a luta dos trabalhadores. E a principal ideia do anarquismo, e amanhã eu vou sistematizar mais especificamente a ideia anarquista, seria o fim do Estado. Ah professora! Fim do estado é o fim do estado do Rio de Janeiro, fim do estado de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul? Não! O estado que a gente está dizendo aqui na verdade é a instituição de poder, é o governo de uma maneira geral, tá? Então os

73 Página73 Não tendo apologia, é uma boa história! : atravessamentos..., p anarquistas eram contrários a qualquer tipo de governo. Nossa professora, que estranho! Então, eles criticavam as instituições de poder de uma maneira geral. Eles eram contrários ao governo, eles eram contrários a qualquer tipo de líder, eles acreditavam em quê então? Como assim era contrário ao governo? Não é que eles eram contrários àquele governo específico. Ah, então eu sou contrário ao governo do Eduardo Paes ou do Sérgio Cabral, quer dizer, nem é mais Sergio Cabral, agora é Pezão. Então eu sou anarquista? Não. Eles não eram contrários a quem estava governando naquela época, naquela situação. Eles eram contrários a existir o governo, tá? No trecho acima, o ventriloquismo se constituiu como recurso narrativo para a professora em uma das turmas investigadas, em que era difícil a colaboração dos estudantes em propostas de aulas dialogadas. Nessa turma, a aula ocorreu após a temática ser desenvolvida nas duas outras turmas. Não foi, entretanto, uma repetição mecânica de argumentos construídos em outras situações de aula. Nesse caso, Joana fabricou a voz do outro buscando construir a aula dialogada no plano de sua narrativa, apostando nesse caminho para a compreensão do conceito pelos estudantes. No caso do gênero do discurso da educação formal, os estudantes são engajados em um processo regulado pelo professor. Wertsch ressalta que enunciados de professores geralmente são diretivos e tendem a regular processos mentais dos estudantes de formas sintonizadas e apropriadas para a situação de sala de aula. Esses enunciados diretivos podem ser internalizados pelos estudantes e se tornarem enunciados que regulam suas atividades e pensamentos. Aluno: Eles queriam anarquizar a parada. Profa.: Anarquizar a parada? O que seria anarquizar a parada? Aluno: Não é como você está pensando, porque não é bagunça. Profa.: Não? Não é bagunça? Por que não é? Aluno: Ah! A senhora falou. Profa.: Ah, porque eu falei [risos]. Bom, então vamos tentar entender, para que você não tenha a ideia de que anarquismo não é bagunça só porque eu falei, mas porque[...]. No trecho acima, o estudante procura se engajar no debate proposto pela professora e corresponder à sua expectativa. Aparentemente, o estudante já sabe o objetivo da professora e qual seria a resposta certa. Wertsch afirma que, por meio de questões instrucionais em que o locutor sabe a resposta, mas procura levar o ouvinte a responder à questão ou seja, através de um plano diretivo em que o professor pretende levar o estudante a formular a questão da maneira correta, o estudante se

74 Página74 DOSSIÊ SÁ, P.T. engaja, ou não, em um processo regulado e sancionado pelo professor. Segundo o autor, estudantes são encorajados a assumir cada vez mais responsabilidades regulativas, espécie de acordo entre professor e estudantes no qual se exige do estudante responsabilidade por regular sua própria atividade, para que cheguem a um novo nível de autorregulação. A linguagem do significado literal é uma ideologia poderosa na sala de aula e reflete a ideia de que há um significado real ou verdadeiro para uma palavra ou expressão e que esse significado pode ser definido em relação à sua posição em um sistema de relações. As formas como professores frequentemente organizam o discurso na sala de aula induz à ideia de esse gênero de discurso é privilegiado para descrever objetos e eventos. Wertsch afirma que mesmo quando outra forma de descrição ou perspectiva se apresenta como mais eficaz ou usual para determinado problema, professores trazem a mensagem implícita de que o gênero de discurso da educação formal é mais apropriado para ser utilizado. Isso é parte de um sistema de valores cognitivos de sala de aula (GOODNOW apud WERTSCH, 1991). O professor usa a perspectiva do aluno para introduzir conceitos científicos, recontextualiza o objeto num quadro de significados mediados relativamente estranho àquele aluno. São perspectivas diferentes sendo negociadas, com diferença de poder. Wertsch lembra, com base em Bakhtin, que a escolha do gênero de discurso que ultrapassa a língua nacional depende da natureza específica de determinada esfera da comunicação verbal, de considerações semânticas, da situação concreta da comunicação verbal, da composição social dos participantes.

75 Página75 Não tendo apologia, é uma boa história! : atravessamentos..., p Não tendo apologia, é uma boa história! Nesse item, apresento uma breve análise dos sentidos atribuídos pelos estudantes à história quando representada por meio de narrativas midiáticas, tendo por base as respostas às entrevistas em grupo realizadas. Os estudantes entrevistados fizeram observações relacionadas à linguagem audiovisual, que lhes provoca reflexões e dúvidas em relação a três aspectos: manipulação, verossimilhança e confiabilidade. A primeira dimensão diz respeito aos processos de edição. Em nenhum momento essa palavra foi mencionada nas entrevistas, geralmente para se referirem aos mecanismos de construção da linguagem audiovisual, utilizavam as palavras manipulação e acréscimos. Aluno: Às vezes, eles querem manipular a nossa mente, assim. Às vezes, quando eu quero saber alguma coisa, eu pesquiso em outros lugares, para ver se bate a informação. Aluno: É, mas tem alguns pontos, que para poder a mídia ser maior, ter uma audiência maior, eles acabam modificando algumas coisas. Então você fica naquela dúvida: é isso ou não é? Será que eles até acrescentam alguma coisa, que pode ligar uma coisa com a outra, que você não percebe? Por exemplo, é A e B. Mas tem alguma coisa entre A e B que tem que ligar, então eles fazem isso. Alguns seriados, algumas novelas, alguns filmes, eles modificam, então você fica confusa. Então tem que depender muito de um filme para o outro. Mas é bom. Aluno: Eu acho que, não tendo apologia, é uma boa história! Aluno: Assim... As histórias, novelas que estão passando sobre antigamente. Eles querem botar para o tempo de agora, isso daí eu acho meio complicado. Aluno: Porque tem alguns filmes, algumas histórias que não são reais. Eles inventam, eles acrescentam mais coisas. E não é exatamente o que foi verdade. Então isso, às vezes, faz a gente, pô, "isso aqui é mentira", "isso aqui é verdade". Os estudantes apresentaram uma forte percepção de procedimentos adotados pela grande mídia para produção de audiência. No entanto, procedimentos de edição parecem bastante obscuros nas suas falas. Eles acrescentam mais coisas, eles modificam, eles querem manipular a nossa mente, eles querem botar para o tempo de agora são falas que demonstram desconfiança em relação a narrativas audiovisuais. A crítica em torno da ideia de que não é exatamente o que foi verdade implica um pressuposto de que há uma verdade a ser recuperada. Eles consideram que a narrativa histórica escolar e a história como ciência instituem discursos verdadeiros sobre a

76 Página76 DOSSIÊ SÁ, P.T. história, o que não ocorre com a narrativa audiovisual. No entanto, expressam uma preocupação com as narrativas midiáticas, em termos do grau de verossimilhança que estas conseguem atingir. São falas que oscilam entre acesso/visualização e representação do passado. De um lado, muitos estudantes consideram que as narrativas audiovisuais contribuem para a apropriação do conteúdo e que viabilizam maior capacidade de dissertação sobre o conteúdo histórico, mas essas potencialidades são alvo de críticas relacionadas à verossimilhança e contemporanização. Os estudantes demonstraram simultaneamente desconfiança relativa aos processos de manipulação audiovisual e visões positivas a respeito de seu poder de evocação de imaginário histórico. O nosso entendimento das narrativas audiovisuais depende do nosso estado de espírito, do local em que estamos e das pessoas que estão à nossa volta. Pois se o cinema nos leva a determinadas orientações e provoca determinados sentidos para suas narrativas, tudo isso pressupõe, obviamente, a participação dos nossos olhos e de todos os nossos outros sentidos (CARRIÈRE, 1995, p.129). No presente estudo, o entendimento envolveu também disputas com sentidos pretendidos pela professora e construídos no espaço da sala de aula. Muitas das dúvidas explicitadas pelos estudantes dizem respeito simultaneamente à linguagem audiovisual e problemas na compreensão da matéria. Esse público, em particular, não apresentou alta habilidade em decodificar a linguagem audiovisual. Se admitirmos, conforme aponta Martín-Barbero (2000), que a maior parte da população da América Latina está se incorporando na modernidade a partir dos discursos e das narrativas, dos saberes e das linguagens, da indústria e da experiência audiovisual (p.84), principalmente a visualidade eletrônica da televisão, do vídeo e do computador, podemos inferir sobre o quanto é problemática a evidência de que a escola não enfrente decisivamente esse contexto. O imaginário da televisão, para Martín-Barbero, está dissociado dos valores que definem a escola: longa temporalidade, sistematicidade, trabalho intelectual, valor cultural, esforço, disciplina (p.89). Dispersão, imagem múltipla e fragmentação são elementos da emergência de outra subjetividade atravessada pela experiência audiovisual. O autor assinala que, enquanto o sistema educativo, tradicionalmente portador de valor cultural, conserva esse duplo caráter de ser centralizado territorialmente e associado a determinados suportes e figuras sociais (p.94), existe um entorno educacional difuso de linguagens, informações e saberes, um

77 Página77 Não tendo apologia, é uma boa história! : atravessamentos..., p ecossistema comunicativo no qual o que emerge é outra cultura, outro modo de ver e de ler, de pensar e de aprender (p.96). Diante disso, a tendência mais comum da escola é qualificar o mundo audiovisual como o da frivolidade, da alienação e da manipulação e fazer do livro o âmbito de reflexão e análises e a argumentação, frente a um mundo da imagem, como sinônimo de emotividade e sedução (p.96). Martín-Barbero (2006) afirma que A verdade é que a imagem não é a única coisa que mudou. O que mudou, mais exatamente, são as condições de circulação entre o imaginário individual (por exemplo, os sonhos), imaginário coletivo (por exemplo, o mito) e a ficção (literária ou artística). Talvez sejam as maneiras de viajar, de olhar, de encontrar-se, que mudaram, o que confirma a hipótese segundo a qual a relação global dos seres humanos com o real se modifica pelo efeito de representações associadas às tecnologias, à globalização e à aceleração da história (p.70). Martín-Barbero defende uma revalorização cognitiva da imagem e sua relocalização no campo da educação, ultrapassando a função de ilustração da verdade contida na palavra escrita e se tornando um dispositivo de produção de conhecimento. Para o autor, estamos diante da emergência de outra figura de razão, a discursividade constitutiva da visibilidade, o que exige pensar a imagem a partir de sua nova configuração sociotécnica um novo tipo de tecnicidade constituído pela experiência audiovisual afetada pela revolução digital. Esse contexto joga em evidência uma batalha política entre a ordem/poder da letra e as oralidades e visualidades culturais que enlaçam as memórias com os imaginários (2006, p.70). Essa nova figura de razão o estatuto cognitivo que a digitalização procurou na imagem (idem), segundo o autor, vem potencializar a figura do educador, como aquele que contribuirá para formular problemas e provocar interrogações. Atravessamentos midiáticos na formação histórica Para que uma aula aconteça, não são poucas as condições a serem criadas, muito além da presença de professores e estudantes no espaço escolar. A colaboração dos estudantes, as condições estruturais, a organização do espaço-tempo, a negociação de diferentes objetivos pedagógicos (docentes, da gestão e da política educacional) são elementos constitutivos da aprendizagem escolar e demonstram a força de uma cultura

78 Página78 DOSSIÊ SÁ, P.T. escolar, que estrutura rotinas, memórias discursivas, posturas corporais, usos e apropriações de recursos didáticos e tecnologias, interações etc. Assim, apesar de identificarmos um conjunto de enunciados mais ou menos estáveis, típicos do gênero discursivo da educação formal, é intensa a heterogeneidade de demandas. Uma demanda identificada no conjunto das aulas foi a necessidade de dar respostas à presença de referências às mídias na construção do conhecimento histórico escolar. Monteiro (2012) trabalhou a questão da recontextualização e hibridização das explicações históricas pelos professores de história e constatou que aspectos relacionados às referências culturais são frequentes na situação da aula de história, para tornar possível a atribuição de sentido ao objeto de estudo o conhecimento histórico escolar. Nesse sentido, é importantíssimo conferir maior atenção ao problema das interações discursivas na sala de aula, como parte de uma cultura escolar que, na contemporaneidade, ganha maior relevância diante de uma escola com públicos tão diversificados em um cenário de profusão de narrativas sobre o passado em diversos meios. Mesmo constatando a prática predominante do gênero de discurso da educação formal no contexto pesquisado, observo a flexibilização desse mesmo discurso pela professora, visando à compreensão de seus alunos em matéria de conhecimento histórico. Uma manifestação desse investimento na comunicação por Joana, a partir dos fragmentos das aulas observadas, pode ser verificada na análise da linguagem que estrutura a sua narrativa. É uma linguagem que oscila entre a formalidade e a informalidade. Joana promove agrupamentos conceituais, utilizando termos e expressões típicos da argumentação de historiadores, mas é frequente a flexibilização da formalidade na tentativa de buscar a compreensão dos alunos, através gírias, analogias e relações com acontecimentos do tempo presente. Nesse sentido, a aula expositiva, bastante recorrente como metodologia de ensino nas turmas observadas, não se enquadra no modelo clássico de preleção, pois foram identificados espaços para as palavras dos estudantes, das quais a professora se apropriou, em diversos momentos. Esses espaços de discussão permitiram aos estudantes verbalizarem suas ideias prévias a respeito dos temas em questão e, muitas vezes, essas ideias estavam associadas a conteúdos que circulam nas mídias, como o exemplo da mobilização de memórias de contato com notícias que circularam nas

79 Página79 Não tendo apologia, é uma boa história! : atravessamentos..., p mídias a respeito das manifestações ocorridas em junho de 2013 ou da experiência como espectadores de novelas televisivas e de filmes. A reflexão sobre a construção de conhecimento histórico escolar precisa colocar em relevo o papel exercido pelo investimento em trocas dialógicas no interior da sala de aula. O exercício cotidiano da linguagem compartilhada linguagem instrucional, linguagem conceitual, linguagens vernaculares e linguagens midiáticas, a aposta didática de criação de espaços de discussão abertos, nos quais proliferem variados enunciados, vindos de professores e estudantes e o investimento em um conjunto variado de instrumentos físicos e simbólicos dão suporte à aprendizagem histórica significativa e, no âmbito desta pesquisa, mostraram impacto na qualidade das apropriações e visões dos estudantes a respeito do conhecimento histórico escolar.

80 Página80 DOSSIÊ SÁ, P.T. Referências CARRIÈRE, J. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, GOULART, C. Enunciar é argumentar: analisando um episódio de uma aula de História com base em Bakhtin. Pro-Posições, v. 18, n. 3 (54) - set./dez HJARVARD, S. Midiatização: teorizando a mídia como agente de mudança social e cultural. Matrizes, v.5, n.2, LAUTHIER, N. Os Saberes Históricos em Situação Escolar: circulação, transformação e adaptação. Educação & Realidade, vol.36, n.1, jan/abr 2011, MARTÍN-BARBERO, J. Novos regimes de visualidade e descentramentos culturais. In: FILÉ, V. Batuques, fragmentações e fluxos: zapeando pela linguagem audiovisual escolar. Rio de Janeiro, DP&A, MARTÍN-BARBERO, J. Tecnicidades, identidades, alteridades: mudanças e opacidades da comunicação no novo século. In: MORAES, D. (org). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro, Mauad, MCLEAN, R. Language education, thematic studies and classroom learning: A bakhtinian view, Language and Education, 8:4, , MONTEIRO, A.M. Tempo presente no ensino de história: o anacronismo em questão. In: GONÇALVES, M.A., ROCHA, H., REZNIK, L., MONTEIRO, A.M. (orgs). Qual o valor da história hoje? Rio de Janeiro, Editora FGV, ROCHA, H. A. B. O lugar da linguagem no ensino de História: entre a oralidade e a escrita. Niterói: PPGFE- UFF, 2006 (Tese de Doutorado em Educação). SODRÉ, M. Eticidade, campo comunicacional e midiatização. In: MORAES, D. (org). Sociedade midiatizada. Rio de Janeiro, Mauad, WERTSCH, J. Voices of mind. A Sociocultural Approach to Mediated Action. Harvard University Press, 1993.

81 Sobre História Pública E Ensino De História: Algumas Considerações About Public History and History Teaching: Some Considerations RESUMO Igor Lemos Moreira * Este artigo 8, inserido na perspectiva da História do Tempo Presente, discute as possibilidades de relação entre o campo da História Pública e o Ensino de História partindo do entrecruzamento de um relato de experiências desenvolvidas durante dois meses de estágio no Colégio de Aplicação da UFSC e das proposições para a pesquisa e atuação no campo de Ensino de História, tais como Isabel Barca e Peter Lee. Palavras-chave: História Pública.Ensino de História. Experiência. Estágio. História do Tempo Presente. ABSTRACT This article, inserted in the perspective of the History of Present Time, discusses the possibilities of relation between the field of Public History and History Teaching starting from the crisscross of an account of experiences developed during two months of internship at the College of Application of UFSC and propositions for research and acting in the field of History Teaching, such as Isabel Barca and Peter Lee. keywords: Public History. History Teaching. Experience. Internship. History of Present Time. * Graduado em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Pesquisador Associado ao Laboratório de Imagem e Som (LIS) da mesma instituição. igorlemoreira@gmail.com 8 Este trabalho é fruto das reflexões desenvolvidas nas disciplinas de Estágio Curricular Supervisionado I, II e III e do período de acompanhamento da turma do Segundo Ano D do Ensino Médio no Colégio de Aplicação da UFSC durante o ano de 2016.

82 Página82 DOSSIÊ MOREIRA, I.L. Introdução Apresentação de Beyoncé no Super Bowl gera polêmica entre políticos [ ]Que Beyoncé só sai de casa para causar o mundo inteiro já está cansado de saber. E desta vez não foi diferente. A apresentação da cantora ao lado de Coldplay e Bruno Mars no intervalo do Super Bowl neste domingo, 7, ainda está dando o que falar. Tudo isto porque, Bey escolheu para suas bailarinas um modelito um pouco polêmico: elas vestiam uniforme usado pelo "Partido dos Panteras Negras". O movimento "anti-racista" surgiu na década de 1960 nos Estados Unidos, originalmente conhecido por Black Panther Party, e tinha como objetivo proteger os cidadãos negros da violência da polícia em Oakland, na Califórnia. O trecho da matéria escrita pelo jornalista Mateus Almeida para o portal de notícias Ego, pertencente ao grupo Globo, remete a um dos pontos centrais de nossa sociedade: vivemos imersos pelo passado. Conforme aponta Peter Lee (2011), em nosso cotidiano somos envolvidos por referências diretas ou indiretas ao passado em diversos espaços sociais. A apresentação da cantora Beyoncé, que fez indicações a fatos ocorridos durante a década de 1960 nos Estados Unidos da América, é apenas um exemplo de tais questões. Ao ligarmos a televisão e observarmos a conjuntura política atual que vivemos, especialmente após a votação do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff e os escândalos de corrupção no país, nos deparamos constantemente com termos como momento histórico ou a maior crise de todos os tempos. Caminhando neste sentido, notamos na fala de membros de nossa sociedade, como deputados presentes na câmara federal, recorrentes referências ao período da ditadura civil-militar no Brasil. Para exemplificar tal ideia imaginemos o seguinte cenário: João, 16 anos, é estudante do Segundo Ano do Ensino Médio. Todos os dias acorda, arruma-se e vai de carona com os pais até escola onde está matriculado. No caminho, sua mãe liga o rádio e ambos acompanham notícias diversas através da rádio local. Ao chegar na escola, João senta-se com os colegas e espera a aula começar. Após uma jornada de

83 Página83 Sobre história pública e ensino de história..., p aproximadamente 5 horas de estudo, João retorna para casa de ônibus. Como está sem bateria no celular, resolve ler um livro de leitura obrigatória para a escola. Chegando em casa, João almoça e assiste na televisão alguma série que está na moda. Estuda, come, entra nas redes sociais e conversa com seus colegas que deixara poucas horas atrás. João é um adolescente branco, heterossexual de classe média, morador da capital de um estado brasileiro, vivendo um cotidiano comum para um jovem de classe média, com as características citadas. Contudo, talvez sem se dar conta, passou seu dia convivendo com diversos meios que lhe possibilitaram entrar em contato com diferentes referências sobre passado. O programa de rádio que escutou com os pais? Possui um momento de discurso de um deputado local que remete aos discursos de Getúlio Vargas. O livro que leu no caminho para casa? Um romance de Machado de Assis ambientado no século XIX. A série assistida durante a tarde? Uma ficção que, mesmo sem deixar explícito, possui relações com a Europa Medieval. O exemplo colocado acima possui relação com um regime de historicidade presentista (HARTOG, 2013), que se caracteriza por um processo de sensações de aceleração do tempo, de valorização do presente, e que convoca o(a) historiador(a) a refletir sobre algumas questões importantes para nosso ofício. Entre estas, o Ensino de História. Peter Lee (2011), ao colocar a impossibilidade de fuga do passado e demonstrar como este é constantemente evocado e reconstituído narrativamente, por exemplo, em nossas linguagens e expressões, abre espaço para a necessária reflexão sobre a dimensão do público na história. Partindo da leitura de Lee (2011), podemos considerar que a história ocupa-se de estudar o passado de maneira racional para que este não se torne apenas um instrumento de legitimação de atos no presente ou adquira o status de mestra da vida, tal qual na Antiguidade, e, para tal, é necessário que o(a) historiador (a) reflita igualmente acerca das dimensões do público na escrita e pesquisa historiográfica. Desse modo, me parece fundamental a referência ao campo da História Pública e às discussões possíveis entre esses estudos com o Ensino de História. O objetivo principal neste texto é, através de minha experiência como estagiário docente em História em uma turma do Segundo Ano do Ensino Médio no Colégio de Aplicação da UFSC, refletir sobre as relações entre Ensino de História e a História Pública. O estágio em questão foi realizado dentro da disciplina de Estágio Curricular

84 Página84 DOSSIÊ MOREIRA, I.L. Supervisionado III, do curso de História (Licenciatura) da Universidade do Estado de Santa Catarina, tendo como objetivo principal debates com os alunos do Segundo Ano D, do Colégio de Aplicação da UFSC, sobre o Neocolonialismo no Continente Africano, especialmente durante o final do século XIX e o XX. A partir das possibilidades de interação entre a História e a dimensão pública da sociedade, assim como a atuação dos públicos na formulação de narrativas sobre o passado, verificou-se não apenas a necessidade, mas também a possibilidade enriquecedora de tal proposta, assim como a oportunidade do estímulo à participação discente durante as aulas e o desenvolvimento da reflexão crítica sobre o presente e as múltiplas representações do passado. Este artigo baseia-se no entrecruzamento da experiência docente com os estudos e métodos de pesquisa sobre Ensino de História, tais como a metodologia de Isabel Barca para a aplicação de Aulas Oficinas, e de pesquisadores do campo da História Pública no Brasil. O campo da História Pública, como veremos na primeira parte deste texto, refere-se aos estudos da dimensão pública, e do público, na História. Indo além das adaptações narrativas da academia ao grande público, tal campo de estudo investiga (e atua) as interações públicas com a disciplina, pensando os diversos espaços, meios e sujeitos, como ativos na composição de narrativas, representações e sentidos. História Pública e Consciência Histórica : Possíveis Diálogos A impossibilidade de escaparmos do passado nos remete ao conceito de Didática da História, fundamental nos debates recentes sobre Ensino de História e discutido pelo historiador e filósofo alemão Jörn Rüsen, segundo o qual, compreendese que os processos de aprendizado histórico não ocorrem apenas no ensino de história, mas nos mais diversos e complexos contextos da vida concreta dos aprendizes (RÜSEN, p. 91). Deste modo podemos considerar que Refletir sobre a História a partir da preocupac ão da Didática da História significa investigar o que é apreendido no ensino da História (é a tarefa empírica da Didática da História), o que pode ser apreendido no ensino da História (é a tarefa reflexiva da Didática da História) e o que deveria ser apreendido (é a tarefa normativa da Didática da Histo ria). Esta é, portanto, uma disciplina científica que, dirigida por interesses práticos, indaga sobre o caráter efetivo, possível

85 Página85 Sobre história pública e ensino de história..., p e necessário de processos de ensino e aprendizagem e de processos formativos da História (BERGMANN, p. 29) Através deste conceito, as pesquisas e estudos sobre o tema buscam a investigação dos processos de contato com o passado nos mais diversos meios, não apenas na sala de aula escolar ou no ambiente estudantil, que colaboram na formação da Consciência Histórica do sujeito. Considerada enquanto uma categoria didática, a formação significaria o conjunto das competências de interpretação do mundo e de si próprio, que articula o máximo de orientação do agir com o máximo de autoconhecimento, possibilitando assim o máximo de autorrealização ou de esforço identitário (RÜSEN, p. 95). Deste modo, a formação do estudante está relacionada às relações entre saber e agir na orientação do indivíduo, voltada especialmente a dimensão da vida prática do sujeito. Segundo Rüsen, a Consciência Histórica refere-se à autoconsciência de cada sujeito permeada pelas relações entre o passado apreendido, aquilo que poderíamos considerar como espaços de experiência, suas ações no presente, e as projeções de futuro, ou horizontes de expectativa, conciliando com as categorias de análise propostas por Koselleck (2006). Em outras palavras, a Consciência Histórica estaria relacionada aos regimes de historicidade do indivíduo e seria algo universalmente humano, dada necessariamente junto com a intencionalidade da vida prática dos homens (RÜSEN apud CERRI, 2001, p. 100). Logo, se levarmos em conta o contato com o passado que ocorre cotidianamente, então poderíamos pensar que durante sua vida o sujeito incorpora referências históricas que, consequentemente, virão a influenciar seus modos de viver e se representar no mundo. Neste sentido, a aproximação das discussões recentes sobre Ensino de História, especialmente dos conceitos de consciência histórica e didática da história, nos direciona à reflexão sobre a dimensão pública da história, assim como as dimensões que fazem da História Pública, aos usos públicos do passado no presente. De acordo com Klaus Bergmann, a didática da história se ocuparia da pesquisa sobre a elaboração da história e sua recepção, que é formação de uma consciência histórica (BERGAMNN, p. 30) constituída através de um contexto sócio-histórico. Conforme o autor, a didática da história, a partir das décadas de 1960 e 1970, passou a ser compreendida em relação à necessidade, às funções do ensino de história e seus

86 Página86 DOSSIÊ MOREIRA, I.L. objetos, e não mais com um campo de discussão sobre os modos de ensino. Esse revisionismo colocado por Bergmann incluiu, entre outras questões, as discussões em torno do papel da história na opinião pública e as representações nos meios de comunicação, tal qual evoca Marialva Barbosa: Ao fazer isso, cria-se no que diz respeito aos conteúdos e às representações da imprensa uma tensão entre o papel que os meios de comunicação se atribuem e o lugar que ocupam na história. Isso porque, ainda que procurem fortalecer a imagem do imediatismo daquilo que divulgam, fazem não só vários usos do passado, como também se instituem como produtores de uma história do tempo presente. Além disso, ao selecionarem fatias do mundo como se fosse o que acontece no mundo, articulam discursivamente o que deve ser considerado passado numa perspectiva futura. (BARBOSA, p. 122). Diante de tais questões, é necessário que o professor/historiador reflita sobre os elementos que cotidianamente se colocam no campo dos estudantes, uma vez que esses possibilitam e estimulam problemas instigantes aos pesquisadores e docentes (FONSECA, 2006). Cabe destacar, entre estes, as questões relativas as novas tecnologias presentes na sociedade sob o regime de historicidade presentista, os impactos destas na produção historiográfica e suas interações ou ressonâncias no Ensino de História. Ao encontro dos conceitos anteriormente citados, os estudos relativos ao campo da História Pública significariam uma possibilidade não apenas de conservação e divulgação da história, mas de construção de um conhecimento pluridisciplinar atento aos processos sociais, às suas mudanças e tensões. Num esforço colaborativo, ela pode valorizar o passado para além da academia; pode democratizar a história sem perder a seriedade ou o poder de análise. Nesse sentido, a história pública pode ser definida como um ato de abrir portas e não de construir muros [ ] (ALMEIDA; ROVAI; p. 07). Inicialmente, é comum que o termo Public History, ou História Pública, seja associado aos meios de divulgação histórica, aos modos de produção de materiais focalizando especialmente a circulação e o consumo. Contudo, Ricardo Santhiago (2016), um dos especialistas do campo no Brasil, aponta que as problemáticas em torno dos estudos na área não se limitam a essa associação. Os pesquisadores inseridos no

87 Página87 Sobre história pública e ensino de história..., p campo da História Pública possuem, por exemplo, igualmente uma preocupação com relação às demandas dos públicos e à interação pública dos historiadores na sociedade. Santhiago (2016) destaca que, desde a emergência e expansão das mídias no meio social, uma série de escritores, jornalistas, cineastas, artistas, cantores, roteiristas e biógrafos vêm ganhando espaço e conquistando uma forte audiência dos públicos em geral contribuindo na formação de opiniões e visões de mundo. Em consonância a isso, a disseminação de recursos tecnológicos e, por fim, a popularização da internet, as formas adquiridas pelo chamado espírito público da história se multiplicaram, pouco ou nada dependendo da instituição de um campo formalizado de debates. (2016. p. 24). Em outras palavras, o conceito de História Pública, e seus sentidos, apontam para o campo de estudo onde algumas das principais preocupações seriam: as relações da história feita com os públicos, a história feita pelos públicos, a história feita para os públicos e as relações de história e o público (SANTHIAGO, 2016). Ou seja, aquela primeira compreensão assinalada, onde haveria uma preocupação apenas com a divulgação das produções acadêmicas, é criticada e alargada ao mesmo tempo em que aponta para maiores possibilidades nas relações com o Ensino de História. Assim, é possível refletir acerca da História Pública, ao considerar que todos os sujeitos, sejam estes inseridos ou não no meio acadêmico ou escolar, formam consciências históricas sobre o tempo no qual vivem, seu passado e seu lugar nesse meio. Para refletir sobre as possibilidades da inserção das discussões sobre História Pública e o Ensino de História (seja no campo da pesquisa ou da atuação docente) apresentarei a seguir alguns exemplos de atividades desenvolvidas em sala de aula com os alunos. As discussões realizadas até este momento serviram de base para a proposição de tais atividades e serão melhor discutidas durante as próximas partes do texto. Uma experiência A experiência, sobre a qual apresentamos o relato, foi desenvolvida, em sua maior parte, entre os meses de agosto e outubro de 2016, na turma do segundo ano do Ensino Médio do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Santa Catarina.

88 Página DOSSIÊ MOREIRA, I.L. Contudo, parte das ideias e formulações se deu em função de um conhecimento prévio sobre a turma, acompanhada durante o primeiro semestre de 2016, e de um questionário previamente elaborado aplicado em sala. Pensando nas questões colocadas por Ricardo Santhiago (2016) sobre a atuação de múltiplos agentes atuantes na construção da história pelo seu viés público e no conceito de Consciência História para Rüsen (2007), a proposta do questionário partiu da tentativa de aproximar [ ] elementos da história vivida ou mesmo da história como forma pública de conhecimento e da História disciplinar [que] são estratégias que não se reduzem à sala de aula, uma vez que também participam da própria elaboração da consciência histórica dos sujeitos.(silva; ROSSATO, p. 68). Abordando, por exemplo, questões como a idade dos estudantes e os estilos musicais, o principal objetivo do questionário foi mapear algumas características da turma visando pensar um perfil da classe. Um dos pontos principais do questionário, em função dos interesses de pesquisa do grupo, se referiu às relações dos estudantes com os meios virtuais e quais eram os espaços ou atividades que estes utilizavam para lazer. Observando relações dos estudantes com os meios digitais, focalizamos especialmente em conhecer mais sobre as principais redes sociais utilizadas pelos alunos, a fim de refletir sobre os instrumentos possíveis de utilização desses recursos em sala de aula. Partindo das respostas dos/as alunos/as, foi organizado o seguinte gráfico: Série1 Série2 Série3 Série4 Série5 Série6 Série7 Série8 Série9 Série10 1 Gráfico 7 - Redes Sociais listadas pelos estudantes. Fonte: Elaboração própria.

89 Página89 Sobre história pública e ensino de história..., p A partir do gráfico podemos inferir a influência dos meios não apenas de comunicação, mas também do ciberespaço no cotidiano dos jovens, tal qual propõe Pierre Lévy (2010). Tais meios são permeados de redes de sociabilidade e temporalidades, trazendo em muitos casos representações do passado (RODRIGUES, 2012) e servindo enquanto principal referência cultural e social para os estudantes. Dos 18 alunos que responderam este questionário, observa-se que a totalidade deles tem contato à internet, especialmente com Facebook e Instagram. Este dado foi fundamental, pois mesmo não utilizando propriamente desses recursos para nenhuma atividade específica, foi possível trazer durante as aulas uma série de referências das redes e aplicativos sociais para debates. Ao mesmo tempo, em função deste reconhecimento feito previamente, em diversos momentos das aulas ministradas, os próprios alunos buscaram em seus celulares, demonstrando facilidade em função da prática, dados e dúvidas relacionadas às discussões em classe. A utilização de tais redes aponta para a presença de uma cultura participativa nos meios digitais emergente no século XXI. Na perspectiva de uma História Pública, esse elemento se refere não apenas à possibilidade de contatos múltiplos com fontes diversas cotidianamente, mas também para a própria possibilidade dos sujeitos, aqui jovens estudantes, de compartilharem e atuarem publicamente na sociedade (OLIVEIRA; MOREIRA, 2016). A primeira atividade construída utilizando como base este questionário referenciado foi relacionada à questão musical. Durante uma das aulas de introdução ao conteúdo, momento em que discutimos a representação negra, negritude e a influência das mídias para construção de estereótipos, chegamos ao debate sobre a apresentação da cantora Beyoncé durante o evento esportivo estadunidense Super Bowl. Em função das redes sociais anteriormente citadas, os estudantes observaram e se envolveram com as discussões tanto sobre a música da artista, intitulada Formation, quanto em relação à performance que provocou desconforto para algumas pessoas durante a apresentação. Tendo em vista o questionário previamente realizado, foi proposto, na semana seguinte, uma aula dedicada exclusivamente ao tema da negritude na música/cultura pop, utilizando como exemplos as apresentações do Super Bowl, tanto da parte da cantora mencionada, como do cantor Bruno Mars. Além disso, utilizamos duas versões diferentes da música Work, da cantora Rihanna: uma gravada pela própria artista e a

90 Página90 DOSSIÊ MOREIRA, I.L. outra, uma paródia da youtuber Kéfera. As três performances em questão possibilitaram, na perspectiva do grupo, discussões e debates relativos às representações das populações negras nos veículos midiáticos, em especial no que se refere a indústria musical contemporânea. Segundo Miriam Hermeto, trabalhar com canção, especificamente aquela considerada como Canção Popular, em sala de aula, seria trabalhar com uma narrativa que se desenvolve num interregno temporal relativamente curto (em média, de dois a quatro minutos), que constrói e veicula representações sociais, a partir da combinação entre melodia e texto (em termos mais técnicos, melodia, harmonia, ritmo e texto). Produzida em tempos de indústria fonográfica no seio dela ou em relação com ela, ainda que marginal, circula majoritariamente por meio de registros sonoros, sendo veiculada através dos meios de comunicação de massa (rádio, TV e mídias digitais, por exemplo). (HERMETO, 2012, p. 32) Assim, ao trabalhar com as três músicas, buscamos articular os aspectos das diversas temporalidades que compõe as letras e ritmos das canções e a interpretação dos alunos. Ao mesmo tempo, durante os debates, consideramos a questão da performance das artistas pois, como coloca Tereza Virginia (2013), o corpo também é um veículo de linguagem. A experiência em si se desenvolveu da seguinte maneira: primeiramente assistiu-se a apresentação realizada no SuperBowl, e buscamos, em seguida, dialogar com os/as alunos/as sobre quais foram as suas observações; em que medida eles podiam verificar, naquela performance, elementos do passado ao qual os cantores se referiam; de que modo podíamos também inserir os debates sobre negritude naquela apresentação. Pensando na dimensão da letra, a canção em questão traz logo de início referências diretas tanto ao presente quanto ao contexto da década de 1960 e 70 principalmente nos Estados Unidos. Y'all haters corny with that Illuminati mess Paparazzi, catch my fly, and my cocky fresh I'm so reckless When I rock my Givenchy dress (stylin') I'm so possessive so I rock his Roc necklaces My daddy Alabama, Momma Louisiana You mix that negro with that Creole Make a Texas bama I like my baby heir with baby hair And afros I like my negro nose with Jackson Five nostrils Vocês, haters, passam vergonha com esse papo de illuminati Paparazzi, fotografem meu estilo e minha atitude Sou tão imprudente Quando balanço meu vestido Givenchy (é estilo) Sou tão possessiva, por isso balanço meus colares Roc Meu pai é de Alabama, minha mãe de Louisi-ana Você mistura esse negro com essa crioula E faz uma Texana

91 Página91 Sobre história pública e ensino de história..., p Earned all this money But they never take the country out me I got a hot sauce in my bag, swag Eu gosto da minha pequena herdeira com cabelo de bebê E cabelos de afros Eu gosto do meu nariz negro com narinas Jackson Five Ganharam todo esse dinheiro Mas eles nunca tiraram o meu país de mim Tenho molho picante em minha bolsa, estilo Durante a análise coletiva da turma, foi chamada a atenção para alguns elementos como as referências ao grupo musical Jackson Five (grupo ao qual o cantor Michael Jackson pertenceu durante sua infância), as questões de aparência e a utilização de palavras como bama, usado como um termo pejorativo para trabalhadores negros que se deslocavam do sul para o norte dos Estados Unidos. Durante a exibição da performance em sala, os alunos observaram também o destaque dado às vestimentas, que remeteriam aos panteras negras, e à formação de um X, remetendo ao militante negro Malcom X. Em seguida, trabalhamos o clipe da música Work da cantora Rihanna, buscando relacionar as questões de negritude e representação das populações negras sob influências latino-americanas, especialmente barbadenses, e africanas, para em seguida discutirmos em conjunto a paródia da música da youtuber Kéfera. O vídeo em questão também trouxe uma série de discussões nos veículos de mídia em função do namorado da atriz, que aparece na paródia, ter possivelmente se pintado de negro e usado uma peruca para se aproximar da aparência do Rapper Drake, presente no clipe da música Work. A utilização deste recurso possibilitou trabalharmos elementos da consciência histórica, refletindo sobre referências trazidas pelos/as estudantes nos debates e suas opiniões sobre o vídeo. Outro elemento fundamental foi, partindo de uma perspectiva de discussão da atuação dos veículos midiáticos e dos meios digitais na vida pública, utilizarmos da possibilidade de trabalho com fontes para além das textuais ou imagéticos em sala de aula. A utilização de outras linguagens foi pertinente também uma vez que, a partir do questionário produzido anteriormente, observamos que fontes mais recentes como as digitais (e os vídeos trabalhados se enquadram também neste tipo por estarem em plataformas digitais e serem produzidos para estas) podem também ser consideradas

92 Página92 DOSSIÊ MOREIRA, I.L. enquanto objetos de estudos e sobre as quais os estudantes, em sua maioria, possuíam essa compreensão. Possíveis aproximações:questões do Tempo Presente A atividade apresentada visava demonstrar algumas tentativas de aproximação entre a História, enquanto narrativa e disciplina, com as dimensões do Público. Tais preocupações apontam, como já citado anteriormente, para as discussões relativas ao Ensino de História e ao campo da História Pública, mas também, e principalmente, para as problemáticas do Tempo Presente. De acordo com François Hartog (2013), nossa relação com o presente estaria associada a um futuro que não mais é visto enquanto uma promessa, como fora no século XIX, mas sim enquanto uma ameaça. Os fatos que marcaram o século XX, em especial as duas grandes guerras e a queda do muro de Berlim, provocaram uma série de crises no âmbito social que demonstram novas relações com o tempo. Em especial, podemos pensar, no caso da geração de 1968, que nascida na década de 1940, trazia consigo as marcas de um holocausto que não haviam vivido propriamente dito. O século XX, em especial na década de 1980, também significou o desabrochar das problemáticas da memória, uma preocupação com o testemunho e as ondas de patrimonialização. Sendo o futuro visto como inimigo, é preciso que se crie métodos de preservar o presente e o passado para que estes não se percam. Ao mesmo tempo, é preciso ouvir este passado constantemente reinventado pelo presente. O contexto em que vivemos é o da dúvida, o da memória, o de questionamento dos testemunhos, mas também no caso da história, de mudanças drásticas no campo iniciadas em 1929, com a revista dos Annales e a criação dos programas de História Social e Economia, e que foram intensificadas com a revolução documental de 1960 e com a perspectiva de uma história problema (LE GOFF, 2003). Contudo, este presente dominador não criou-se de um momento para o outro. Segundo o autor, de certa maneira, todos nós vivemos apenas no presente. Escrevemos

93 Página93 Sobre história pública e ensino de história..., p sobre o passado a partir deste. Vemos o futuro com o que estamos vivendo. Neste presentismo, defendido por Hartog, o passado e o futuro seriam produzidos diariamente a partir de nosso maior horizonte: o presente, este valorizado e imediato. Contudo, processos recentes criados também no século XX promovem novas relações com as categorias de passado, presente e futuro. As mídias têm papel fundamental nisso, assim como os movimentos de patrimonialização. Ao mesmo tempo, nosso presente anseia por previsões, por tentar saber o que irá acontecer, previsões estas que, com a virada humana que ocorre a partir das reformas religiosas, onde o Juízo Final não mais é dado como certo em função de um centramento no homem e na religião, parecem retornar enquanto um desejo cotidiano dado a uma curiosidade e um medo. Definitivamente nossas noções de futuro, presente e passado enquanto categorias temporais pertencem ao século XX, momento em que mais foram invocados, especialmente o primeiro destes. Contudo, este futuro que foi o destacado entre os três tempos, passa a perder lugar para um presente que se torna onipresente, um presente que em si já está passado antes mesmo de ocorrer completamente. Neste sentido, retomamos as ideias de patrimônio uma vez que, em um contexto de crise, este é sempre um recurso e uma preocupação. Assim, podemos pensar que o presente se estendeu, conforme aponta Hartog, tanto ao futuro quanto ao passado de maneira ainda maior do que visto no século XIX ou períodos ainda mais distantes. Ao partir da leitura de que vivemos em uma sociedade presentista, é preciso que o historiador e a historiadora, tendo isso em mente, leve em consideração este regime de historicidade em sua prática de ensino. Compreender tal questão é fundamental para compreendermos, por exemplo, o motivo que levam nossos estudantes a questionar Porque aprender história se isso já passou?. Nossa relação com o tempo, assim como o contexto no qual cada sociedade se insere e as mudanças que a atravessam convocam ao docente romper com metodologias ou espaços considerados tradicionais como o uso do livro didático enquanto o guia fundamental de ensino para as escolas. Para além de apresentar O mundo no qual vivemos produz em abunda ncia diferentes recursos documentais que enriquecem a produc ão do saber histórico e podem também tornar mais vivo, interessante e instigante o ensino da história. (DELGADO; FERREIRA, p. 27), a proposta de articulação entre História Pública e Ensino de História possibilita refletirmos acerca da possibilidade de trazermos

94 Página94 DOSSIÊ MOREIRA, I.L. ainda mais o discente para o centro de sua formação. Significa trazer para a sala de aula da dimensão do Público e da vida pública para debate. E, juntamente ao estudante, refletir acerca do seu lugar social, da sociedade e estimular a este se observar enquanto sujeito ativo em sua própria história e na produção historiográfica. É buscarmos construir novas narrativas históricas em um sentido plural em que a memória do lugar, a trajetória do estudante, seus referenciais e crenças, o país, o mundo no qual ele pertence, as marcas culturais e sociais e as diversas temporalidades que atravessam o sujeito sejam levadas em consideração. As atividades relatadas, especialmente os momentos de debate sobre a paródia da youtuber Kéfera, demonstraram não apenas a influência de diversos outros agentes na formação da consciência histórica, atuando enquanto formadores de opiniões e no espaço público, mas também na própria participação no cenário atual. Os debates sobre a paródia foram enriquecedores na medida em que, partindo de Santhiago (2016), foi possível discutirmos em que medida agentes diversos produzem conteúdo no espaço público, sendo estes também públicos de suas produções. Tal problemática foi destacável também na utilização e abordagem de linguagens cinematográficas para estimular o debate. Nesta ocasião podemos pensar os elementos da Didática da História, levantada por Bergamann (1990), ao problematizarmos filmes produzidos no próprio presente dos alunos e que possuem papel fundamental na formação das consciências históricas dos sujeitos. Retomando a obsessão pelo passado e a mercadorização da memória a partir dos anos 1980 (HUYSSEN, 2014), podemos relacionar o presente vivido com a atuação de múltiplos sujeitos na produção de narrativas sobre a história, assim como a necessidade de atuação dos historiadores nessa mediação (SANTHIAGO, 2016). Apontando então para uma outra possível relação da História Pública com o Ensino de História. Durante o período de estágio, tais questões foram fundamentais. A proposta de partirmos da realidade e dos referenciais dos estudantes durante as atividades foi a de buscarmos trabalhar com os pontos elencados por Ricardo Santhiago (2016) e que comentamos inicialmente, destacando a centralidade e a importância dos estudantes (interpretados como públicos atuantes) em sua formação. Para que isto ocorra, a aprendizagem da História demanda um processo de internalizac ão de conteúdos e categorias histo ricas

95 Página95 Sobre história pública e ensino de história..., p viabilizadores de processos de subjetivac ão, isto é, de interiorizac ão com intervenc ão dos sujeitos, com vistas às ac ões transformadoras e de mudanc a da realidade. (SCHMIDT, 2009, p. 34) Assim, nosso principal objetivo foi justamente o de, partindo da ideia de formação do discente e de seus referenciais, buscamos refletir acerca das aproximações entre o Ensino de História na sala de aula e a dimensão Pública, tanto do estudante fora de sala como da atuação deste na sociedade. Segundo Gelbcke (2014), é preciso que os/as historiadores/as no Tempo Presente, em especial aqueles/as que atuam diretamente na sala de aula, atravessem o trabalho com as referências externas e estimulem o(a) aluno(a) a ser ela(a) mesmo(a) sujeito ativo em seu processo formativo, conforme coloca Isabel Barca (2004). É necessário que se interfira nos mais diversos espaços e atente o estudante para as possibilidades deste também atuar, refletindo sobre as diversas produções e produzindo eles mesmos suas reflexões, colaborando não apenas em seu processo de formação, mas também enquanto sujeitos críticos e ativos publicamente, tendo estes conhecimento sobre sua condição enquanto ativos no processo narrativo da história. Referências ALBIERI, S. História Pública e consciência histórica. In: ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Org.). Introdução à História Pública. Florianópolis: Letra e Voz, p ALMEIDA, J.R.; ROVAI, M.G.O. Apresentação. In: ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Org.). Introdução à História Pública. Florianópolis: Letra e Voz, p ALMEIDA, M. Apresentação de Beyoncé no Super Bowl gera polêmica entre políticos. Disponível em: < Acessado em: 23 de outubro de ALMEIDA, T.V.. A voz no arquivo digital. Texto Digital, [s.l.], v. 9, n. 2, p.20-34, 10 dez Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). BARBOSA, M. Imprensa e História Pública. MAUAD, Ana Maria; ALMEIDA, Janiele Rabêlo de; SANTIAGO, Ricado (Org). História Pública no Brasil: Sentidos e Intinerários. São Paulo: Letra e Voz, p BARCA, I. Aula Oficina: do projecto à avaliação. (Org.) Para uma educação histórica de qualidade. Actas das IV Jornadas Internacionais de Educação Histórica. Braga:Universidade do Minho, 2004, p BERGMANN, K. A história na reflexão didática. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 9, n.19, set.89/fev.90, p , 1990.

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97 História Pública E Novos Olhares Para A Escravidão Public History And News Views To African Slavery RESUMO Caroline Bárbara Reis* Este artigo tem como objetivo analisar e discutir a importância do campo da História Pública nas divulgações e produções de narrativas sobre o passado histórico, sobretudo, passados traumáticos como o da escravidão africana no Brasil. Aqui, a proposta é refletir sobre as diferentes formas de publicização e representação do negro e da sua presença no período de escravidão e de que forma tais representações contribuem para a formação de uma cultura histórica sobre o tema. Palavras-chave: História Pública, Escravidão Africana, Representações midiáticas. ABSTRACT This article aims to analyze and discuss the importance of the field of Public History in the divulgations and productions of narratives about the historical past, above all, traumatic past such as that of African slavery in Brazil. Here, the proposal is to reflect on the different ways of publicizing and representing black people and their presence in the country in the eighties and how these representations contribute to the formation of a historical culture on the subject.. keywords: Public History, African Slavery, Media Representations *Doutoranda em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). carol.reis088@gmail.com

98 Página98 DOSSIÊ REIS, C.B. Introdução Um importante e necessário debate que cresceu bastante entre acadêmicos, diz respeito às representações midiáticas que são criadas acerca do contexto escravista e a forma como estas mesmas representações interferem na formação histórica do público não especializado na área de História. Ao longo do tempo, muitos discursos foram construídos, sobretudo no âmbito da história pública, tendo como base a violência como característica principal do período escravista, priorizando a formação de uma cultura histórica acerca da escravidão e dos africanos quase que incapaz de reconhecer e identificar o protagonismo dos negros e as diferentes formas de resistência e estratégias de convívio que foram construídas dentro do sistema escravocrata. É com frequência que se verifica no universo de muitos livros didáticos, por exemplo, representações vitimizadas e que não problematizam o contexto da escravidão e dos africanos no Brasil. Não levanto a bandeira da omissão e do silenciamento da violência física e moral produzida pela escravidão, mas defendo a ideia de que cada vez mais as representações estejam atentas a construir significados que desconstruam estereótipos e colaborem para a formação de uma consciência histórica problematizadora. Por exemplo, isso pode ser observado nas análises das visitas guiadas de fazendas do Vale do Paraíba fluminense que recepcionam visitantes e organizam narrativas para contar ao grande público a história das fazendas e da região. Desde a década de 1970, que jornais como O Globo e Jornal do Brasil 9, em colunas voltadas para o turismo, lazer e entretenimento, divulgam a região do Vale como um lugar de descanso, contato com a história e de arquitetura conservada, o que aos poucos levou as fazendas a estarem também no roteiro de visitação do Vale do Paraíba, abrindo as portas aos turistas e se inserindo nas atividades turísticas-culturais da região. 9 As respectivas matérias encontram-se na seção de periódicos da Biblioteca Nacional/RJ e constam nas colunas de Turismo e Lazer, respectivamente, dos jornais O Globo e Jornal do Brasil.

99 Página99 História pública e novos olhares..., p O tema das visitas guiadas nas fazendas históricas do Vale fluminense se tornou um objeto de estudo interessante pela possibilidade de verificar não apenas quais as memórias e quais as histórias sobre a escravidão estão presentes nas narrativas produzidas por agentes sociais nos dias de hoje, mas também de compreender a importância do diálogo entre o que é produzido por acadêmicos e não acadêmicos, o que perpassa inclusive pela possibilidade do historiador atuar em diferentes campos, que não só os da sala de aula e da pesquisa acadêmica. Desta forma, reconheço no campo da história pública um caminho interessante e viável de divulgação e construção de discursos em torno do passado histórico. A história pública ganha força no cenário historiográfico e cada vez mais movimenta a produção de discursos históricos voltados para o público leigo. Em relação às fazendas históricas no tempo presente, a produção de trabalhos voltados para o grande público tornou-se uma das principais ferramentas de construção de valores e significados, de divulgação da história e de formação de uma cultura histórica sobre o Vale, sobretudo no XIX, e sobre a escravidão, o que nos faz identificar a importância do diálogo entre o que é produzido na academia e os trabalhos realizados fora do meio universitário. Para além de se tornar um nicho de trabalho para profissionais que não querem ingressar em instituições acadêmicas e escolares, a história pública relaciona-se a outros propósitos que vão além dos programas de pós-graduação e de pesquisa. Passa pela relação com o conhecimento histórico, assim como pela relação com memórias individuais e coletivas, pela mobilização de comunidades, entre outros. Nesse sentido, é possível afirmar que a produção de história para o grande público contribui para a formação de uma cultura histórica sobre fatos e eventos ocorridos ao longo do tempo. Ao analisar as representações do passado escravista construídas por proprietários, guias, historiadores e pesquisadores, bem como a publicização dessas narrativas, reconheço no campo da História Pública um caminho interessante e viável para adaptar os discursos em torno da escravidão africana e possibilitar entendimentos mais problematizados sobre o papel do negro africano no Brasil. A produção de história pública é uma discussão que ganha força no cenário historiográfico. A história pública, então, representa uma das muitas formas de divulgação do conhecimento histórico e um dos caminhos usados para isto é o turismo histórico cultural, que viabiliza a

100 Página100 DOSSIÊ REIS, C.B. democratização do conhecimento sobre o passado histórico da região, já que está destinado a um público leigo, ou seja, sem um entendimento acadêmico sobre a história. O acesso ao conhecimento histórico perpassa a história pública e pode ocorrer de algumas maneiras, como através dos bancos escolares, dos chamados lugares de memória, da produção de documentários, filmes de viés histórico, etc. Todos esses exemplos são compreendidos como canais de divulgação de histórias e memórias, que não excluem necessariamente um caráter historiográfico e científico. Assim, o processo de formação de uma educação histórica do senso comum mantém diálogo com o universo acadêmico. A história pública leva a história científica à praça pública, discute problemas históricos semelhantes - se não idênticos - aos da história produzida academicamente. No entanto, diferencia-se dessa última em sua relação com os consumidores de história.(albieri, 2011, p.30). A ideia de história pública é tão ampla que quase toda atividade que o historiador desenvolve fora do campo de ensino e da pesquisa universitária pode ser considerada como história para o grande público. Exemplo desse diálogo está nos discursos produzidos pelos guias e proprietários das fazendas visitadas. Ao ser explicado aos visitantes que as informações ali trazidas haviam sido retiradas de fontes documentais, as visitas guiadas não estão apenas dialogando com o que é produzido na universidade, mas usando a referência a ela como forma de legitimar a própria narrativa, demonstrando aos visitantes que a história contada é verdadeira, visão oposta à ideia de que a narrativa da visita é um romance, uma ficção. A problemática sobre as representações de passados traumáticos já encontrou ampla discussão na historiografia. A historiadora Ana Lúcia Araújo, professora da Universidade de Howard, publicou recentemente uma resenha, na revista Afro-Ásia, sobre o filme Doze anos de escravidão, ganhador do Oscar de melhor filme, em 2013, e dirigido pelo britânico Steve Mcqueen. Ao longo do texto, Araújo constrói seu argumento em torno das cenas surpreendentemente reais dos açoitamentos, torturas, estupro e humilhações, alegando que embora tenha sido uma das produções mais bem feitas e de maior sucesso dos últimos anos sobre o tema da escravidão, o filme se mostra como mais uma produção no âmbito da história pública que explora o tema da escravidão sob o foco da violência física e moral, o que limita a afirmação da ideia de

101 Página101 História pública e novos olhares..., p que esses mesmos africanos escravizados eram sujeitos da própria história e que o sistema escravista não pode ser reduzido às ações de violência. Para a autora: Mesmo sendo a grande ênfase nas punições físicas apresentadas no filme esclarecedoras para a compreensão da escravidão e da violência contra os afro-americanos, que continuou a se intensificar no período pós-emancipação, esse foco coloca homens e mulheres escravizados em posição indefesa, negando-lhes qualquer tipo de protagonismo e meios de resistir aos horrores da escravidão. Tal imagem, aliás, não é diferente da que predomina na memória pública e coletiva da escravidão no Brasil, nos EUA, na Inglaterra, e em outros países de passado escravocrata, e que é particularmente visível em exposições sobre a escravidão em vários museus nesses países. (...), mas, ao mesmo tempo, seria importante ter em mente, que quem nasceu escravizado e que não teve a oportunidade de ser libertado também encontrou numerosas maneiras de resistir e negociar suas vidas, mesmo vivendo sob um assombroso sistema de extrema violência. Esses homens e mulheres também foram ativos combatentes e sobreviventes, e não apenas vítimas passivas como são às vezes retratados no filme (ARAÚJO, 2015, p.263). E acrescenta: A desumanização é representada pela perda do controle dos escravos sobre seus próprios corpos. Isso é visível nas repetidas cenas de castigos físicos com chicotes, correntes, algemas e outros instrumentos de tortura. O filme também enfatiza a promiscuidade imposta a homens, mulheres e crianças escravizados. Northup [um dos personagens] e outros cativos mantidos com ele dormiam e tomavam banho juntos, compartilhando seus corpos nus e feridos. ARAÚJO, 2015, p.259). As considerações e os argumentos da autora são extremamente plausíveis para o debate sobre a representatividade do passado escravista, levantado aqui nestas páginas iniciais. Mas é válido levarmos em consideração o fato de que se trata de uma produção hollywoodiana e, portanto, com um roteiro voltado para a espetacularização dos fatos, além do ponto de vista do diretor que considera que representar a escravidão é, antes de qualquer coisa, relatar os usos da violência. Assim, um de seus objetivos principais foi retratar o sistema escravista enquanto tortura e terror, e este efeito é alcançado com muito sucesso já que as cenas que retratam as atrocidades ocupam uma posição particular, o que faz com que os espectadores se tornem testemunhas oculares do horror. Em entrevista à Folha de São Paulo, Mcqueen afirma: Dizem que o filme é brutal, mas estou contando uma história sobre escravidão. É preciso mostrar a violência não só física, mas psicológica também e isso se aplica muito ao Brasil, onde a escravidão

102 Página102 DOSSIÊ REIS, C.B. deixou um grande legado. Todos que virem o filme devem se confrontar com o próprio passado. (MCQUEEN, 2014) O confronto com o próprio passado mencionado pelo diretor é importante e necessário, uma vez que possibilita reconhecer a prática da escravidão enquanto uma violação aos direitos humanos e instiga a reflexão sobre o papel da sociedade civil em relação ao combate do racismo em políticas públicas voltadas para a inserção do negro nos diferentes setores sociais. Contudo, acredito que a abordagem do passado escravista pela história pública não necessariamente tenha que optar por uma sensibilização para a consciência histórica através da exposição dos atos de violência e brutalidade, uma vez que se corre o risco de insuflar na população negra a vergonha pela cor e trajetória de vida, que mesmo sofrida deve ser reconhecida como uma experiência de luta e resistência, além das heranças culturais que influenciam na formação identitária da sociedade brasileira. A problemática acima nos convida a refletir sobre os usos da história pública e seus efeitos na formação da consciência histórica do grande público e, nesse sentido, atividades como visitas guiadas, exposições em museus, documentários, teatro, desfiles de escola de samba, entre outras, assumem a responsabilidade de influenciarem e contribuírem na construção de saberes sobre o passado histórico e na reflexão crítica sobre o presente. Há de se pensar sobre os agentes que atuam na produção de história pública e como atuam; quais os temas que estão sendo divulgados e de que forma essa divulgação ocorre. Isso não quer dizer que a história pública estará necessariamente sob monopólio de historiadores, tão pouco estará restrita a escolha de temáticas, mas é fundamental que o trabalho com o grande público tenha, para além de qualidade, responsabilidade histórica. Nas últimas décadas, os meios de divulgação do conhecimento histórico se alargaram e a história pública passou a ser pensada dentro e fora da academia como uma ferramenta de democratização do conhecimento. Sobre isso, a historiadora Thaís Nívia de Lima e Fonseca expõe a seguinte ideia: Mais difundido em países de língua inglesa do que entre nós, essa ideia [história pública] parece ter se desenvolvido em associação não apenas com o estudo das diferentes formas de divulgação do conhecimento histórico, como também com as realidades e necessidades de enquadramento profissional da área, fora do âmbito acadêmico e do ensino formal. No Reino Unido e nos EUA, esses foram elementos motivadores para a construção do que seria uma forma diferenciada de inserção do conhecimento histórico para o grande público,

103 Página103 História pública e novos olhares..., p E acrescenta: respectivamente. Assim, outras instituições e espaços, tais como museus, arquivos, televisão, cinema, centros de memória, parques, seriam locus possíveis de reflexão sobre a História, de sua divulgação para o público e de trabalho para pessoas com formação na área. Outras instâncias seriam as publicações de divulgação científica e, mais recentemente, os blogs, sites especializados, etc. (FONSECA, 2012, p.132). Estas diferentes formas de mídia que se dedicam à divulgação do conhecimento histórico para o público não especialista, e que são também utilizadas no ensino da disciplina, permitem sua análise sob o ponto de vista da história pública. Elas mobilizam o conhecimento histórico produzido academicamente e o reinventam para o consumo. Sim, essa é uma ideia que costuma provocar alguma repulsa, mas é efetivamente o que tem ocorrido em escala cada vez maior diante da expansão tecnológica da mídia, principalmente, da internet e da transmissão televisiva a cabo. O debate coloca de um lado historiadores com o privilégio de contribuírem com uma produção vista como legítima, porque é avaliada pelos critérios de validação acadêmica e que cobram correção destas formas "legais" de apresentação da História. De outro lado, professores e historiadores que trabalham fora desses espaços, mas almejam ter sua produção reconhecida pelo alcance social que ela tem, como é o caso dos que trabalham em escolas, museus, arquivos, centros de memória, empresas (...) E, ainda, jornalistas e pessoas com outras formações e que por motivos variados, acabam por dedicar-se a alguma forma de pesquisa histórica. A atuação dessas pessoas no campo da História atinge vários públicos que quase sempre estão desligados do mundo acadêmico e que é certamente mais vasto que ele. (...) A história pública relaciona-se a propósitos que vão além da realização de testes de doutorado e programas de pesquisa. Passam pela relação com a consciência histórica, ou mesmo por sua produção, pela relação com as memórias individuais e coletivas, pela mobilização de comunidades, pela disponibilização de acervos de conhecimento. (FONSECA, 2012, p.136) Os trechos acima problematizam a produção de história pública e ressaltam sua importância frente à sociedade e comprometimento com a formação histórica de grupos e indivíduos. Sinalizam seu papel como uma porta de entrada, nos dias de hoje, para a divulgação das pesquisas científicas e os entraves enfrentados por profissionais da área pelo reconhecimento da legitimidade daquilo que produzem. As críticas quase sempre estão pautadas pela alegação de que aquilo que é produzido fora da academia, em geral, não está necessariamente preocupado em agregar qualidade, mas sim gerar lucros, ou seja, ter retorno financeiro através da divulgação do conhecimento histórico. Sem dúvida, o olhar para o consumo é real e em muitos casos uma demanda importante

104 Página104 DOSSIÊ REIS, C.B. e imprescindível e que não determina a falta de diálogo com aquilo que está sendo produzido na academia e com a capacidade de divulgação crítica dos temas propostos, embora muitos trabalhos realizados no contexto da história pública tenham fragilidades. Minha preocupação aqui é distanciar generalizações em torno da publicização da história e destacar a possibilidade de efetivamente produzir trabalhos que tenham a capacidade de formar discursos que construam saberes para o público não especializado. O termo história pública significa acesso irrestrito de um conhecimento histórico franqueado a todos (ALBIERI, 2011, p.35), enquanto consciência histórica é aquilo que designa o modo como os seres humanos interpretam a experiência da evolução temporal de si mesmos e do mundo em que vivem (ALBIERI, 2011, p. 42), de acordo com a historiadora Sara Albieri. Ao apresentar tais definições a autora busca articular argumentos em torno da importância em estabelecer uma sintonia entre a pesquisa histórica realizada na academia e a publicização da mesma, a fim de facilitar o acesso à História e contribuir para a construção de uma consciência histórica. No entanto, há um sentido prático e de relação com a comunidade na produção de história pública, que não necessariamente está atrelado ao campo do ensino, mas que a meu ver, não torna a história pública um campo descomprometido com a formação histórica da sociedade. De acordo com a chamada para publicação em dossiê sobre história pública, da Revista História 2.0, disponível no site da Rede Brasileira de História Pública, A noção de história pública é tão ampla que quase qualquer atividade que o historiador desenvolva fora do campo de ensino e da pesquisa universitária pode ser considerada como história pública. Este sentido prático e de relação com a comunidade chamou atenção dos historiadores e tem contribuído para a resolução de problemas sociais mediante o uso de testemunhas para processos de memória histórica, pós-conflito, recuperação de identidade das comunidades e do patrimônio material e imaterial das regiões. Ademais, levou a consideração de novos projetos de história aplicada em âmbitos públicos e privados, como também empreendimentos de historiadores que criaram empresas lucrativas onde a história se afasta totalmente do ensino para atuar no setor de serviços, como na contribuição para organização de arquivos empresariais (memória empresarial/institucional), ou no fornecimento de "produtos" para a definição e litígios legais, como nos casos de definição dos territórios naturais de certas comunidades. Também se incluem no campo da história pública a assessoria em restauração e conservação patrimonial.

105 Página105 História pública e novos olhares..., p Acredita-se, portanto, que atividades culturais como as visitas guiadas organizadas por fazendas, são ações que por fazerem parte da história pública devem ter como objetivo contribuir para a formação de uma consciência histórica através de suas narrativas e, para tanto, é fundamental que promovam o contato dos visitantes com elementos da vida prática, ou seja, que aproxime o grande público de suas realidades e de elementos que os ajudem a fazer relações entre diferentes tempos e espaços. As atividades culturais para o grande público, então, fazem parte do conjunto de experiências temporais que grupos e indivíduos vivenciam, o que influencia diretamente no processo de construção da consciência histórica. Com frequência, estudos e trabalhos voltados para a trajetória de africanos escravizados no país se multiplicam, o que evidencia uma crescente preocupação, nacional e internacional, com a divulgação da história e da memória de homens e mulheres mantidos aqui como escravos desde o período colonial. A historiografia sobre o tema vem crescendo bastante, e desde a década de 1980, se inclina fortemente nos debates em torno do protagonismo dos escravizados e na problematização da dinâmica do sistema escravocrata no Brasil. Cada vez mais, os estudos acadêmicos ligados à escravidão analisam a experiência africana para além do trabalho e açoitamento, para além da submissão e coisificação do indivíduo, com o intuito de divulgar o sistema escravista a partir de sua complexidade e múltiplas facetas. Outras visões da escravidão africana no Brasil Rio de Janeiro, primeira metade do século XIX. A escravidão de africanos movimentava a economia dos centros urbanos e rurais da cidade. A chegada de navios negreiros nas regiões litorâneas era constante e a distribuição de africanos pelas fazendas de café configurava não apenas a prática do trabalho escravo, mas possibilitava a manutenção e o crescimento vertiginoso da economia, além de contribuir com o surgimento e a consolidação de uma elite cafeeira que disseminou hábitos e padrões entre a sociedade. No entanto, nem a rotina de exaustão nas lavouras, nem as relações desiguais estabelecidas entre senhores e escravizados, tão pouco o sistema jurídico da época, que institucionalizava a prática da escravidão e o juízo de propriedade sobre o indivíduo na condição de escravo, foram capazes de impedir que a população africana

106 Página106 DOSSIÊ REIS, C.B. e seus descendentes, presentes em grande número na cidade do Rio e em outros locais do país, construíssem sua própria autonomia e fossem protagonistas de suas histórias. Esse, no entanto, não é um cenário próprio e único do Rio de Janeiro, mas de um Brasil escravista, que através das invasões ultramarinas teve sua estrutura social, política e econômica alterada pela lógica da escravidão e influenciada pelo protagonismo e resistência dos escravizados. Africanos escravizados em zonas rurais e urbanas, no Rio de Janeiro, por exemplo, são analisados através de documentações referentes ao século XIX, como homens capazes de compreender a sociedade que vivem e, portanto, encontrar formas de luta e resistência à desigualdade imposta pela sociedade escravocrata. Ivana Stolze Lima, historiadora e pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa, em recente trabalho, evidencia as formas de protagonismo de africanos e seus descendentes através do uso da língua no meio urbano, o que mostra inclusive a transitoriedade dos escravos para além das lavouras. O mapeamento e a análise dos anúncios de fuga, feito pela autora, evidencia que no Rio de Janeiro urbano do início do século XIX, o sistema escravista se apresentava como uma estrutura dinâmica e complexa. O uso fluente ou quase fluente da língua brasileira por parte de africanos e crioulos destacado em muitos anúncios revela a existência de categorias criadas e impostas pela ordem senhorial para classificar seus escravos, sobretudo, por se tratar de um contexto político-social que cada vez mais se voltava para a construção de um projeto de nação cuja identidade brasileira devia ser consolidada. Neste momento, a língua deixava de ser entendida como portuguesa para ser entendida e usada como brasileira (LIMA, 2014, p.230). Em contrapartida, há de se pensar essa apropriação da língua por parte de africanos, crioulos, livres e libertos como estratégia de sobrevivência e interação na sociedade escravista. Sobre isso, a autora explica: Nunca é demais lembrar o burburinho da cidade, dos sons, danças e folias, festas da Corte e batuques, funerais, cantos de trabalho ouvidos e reproduzidos por africanos, crioulos, livres e libertos que deviam aguçar o ouvido de vez em quando para mapear possíveis línguas que entendessem usando suas próprias línguas sempre que possível. Adotar essa perspectiva mais ampla é importante para evitar a conclusão parcial de que esses africanos estavam simplesmente adotando a língua dos seus senhores e tornando-se o que era esperado deles, ou que estariam aprendendo português e abandonando tudo o que tinham sido ou - limitando a essa língua - tudo o que viriam ser vivendo na cidade. (LIMA, 2014, p.237).

107 Página107 História pública e novos olhares..., p Identifica-se, então, uma das muitas estratégias de resistência e protagonismo exercida pelos escravizados, o que nos distancia de construções estereotipadas em relação a senhores e escravarias problematizando a experiência escravista para além do trabalho forçado, dos castigos corporais, da vitimização e subordinação. Logo de início, o artigo analisa um dos anúncios de fuga publicado no Jornal do Commercio, em 1836: Fugiu no dia 17 da corrente, na chácara da Barreira, no caminho da Glória, ao pé do chafariz, um molecote de nação monjolo, por nome Digue, acostumado a vender quitanda da chácara; é espigado, magro, anda ordinariamente com a boca aberta e mostra os dentes, que são grandes e muito brancos; é muito ladinho, fala e mente perfeitamente (apud LIMA, 2014, p.236) A frase fala e mente perfeitamente, de acordo com a autora, além de condensar a perspectiva senhorial, [a frase] traz também a pequena brecha por onde tentaremos entrever o que podem ter sido práticas usadas e forjadas por africanos e descendentes nas suas experiências de comunicação no mundo escravista (LIMA, 2014, p.236). Através da fala não apenas um escravo poderia ser identificado entre tantos cativos das mais variadas línguas, como também se evidencia a percepção e o entendimento existente por parte dos escravizados em relação à própria identidade, além de desmistificar a ideia de homogeneidade que por vezes tende a se referir à África e sua população de forma simplista. O africano Cyro é um interessante personagem histórico mencionado pela autora que exemplifica as ideias expostas acima. É um homem de nação mina que conseguiu sua liberdade após ter recorrido à justiça. Como homem livre atestou a importância que depositava na formação escolar ao encaminhar seus filhos para a escola, atitude essa que também evidencia a complexidade da dinâmica escravocrata em uma sociedade que mesmo fortemente marcada pela desigualdade presenciava a busca de homens e mulheres por autonomia, dignidade e o sentimento de esperança por um futuro melhor. De acordo com ela: A categoria mina engloba um leque de povos da Costa da Mina, variando no tempo e no espaço de acordo com a história do tráfico. (...). Seria possível cogitar que ainda houvesse uma variedade da chamada língua geral de mina, que foi documentada no século XVIII em Minas Gerais e no Rio de Janeiro? Pode ser que sim, uma vez que o grupo mina do Rio, que incluía adeptos do islamismo, é um dos mais interessantes exemplos de identidade reconstruída no cativeiro,

108 Página108 DOSSIÊ REIS, C.B. passando de uma categoria imposta pelo tráfico a uma identidade assumida pelos próprios africanos, processo alimentado em função, inclusive, de suas ações na justiça. Os minas eram o grupo que mais conseguiu alforrias no período. Um mina, Cyro, africano livre que lutou na justiça por sua emancipação, deixou um documento escrito de próprio cunho, registro emocionante da tensão em que viveram, além de testemunho da apropriação desse instrumento de poder: Cyro conseguiu a emancipação e, significativamente, mandou os seus filhos para a escola. (LIMA, 2014, p.238) Não apenas o uso da língua é estudado no meio acadêmico como elemento para analisar a complexidade do sistema escravista e a autonomia desenvolvida por escravizados e seus descendentes. Os processos de liberdade abertos por escravos são também alvo de investigação sobre a escravidão e sua estrutura complexa. Afinal, o que permitia a existência de uma ação de liberdade, ou melhor, como um escravo, propriedade de alguém, podia recorrer ao Estado, o mesmo que garantia a existência da escravidão, para reclamar seu direito à liberdade, negada por seu senhor? (GRINBERG, 2008, p.14). Essa é uma das principais indagações que orientam o trabalho de Keila Grinberg intitulado As ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX, que busca compreender as brechas existentes em uma sociedade repressora e desigual, como a escravista, que permitiram o exercício da autonomia por parte de africanos e seus descendentes na condição de escravos. O processo de liberdade de Liberata, uma jovem escrava que consegue sua liberdade a despeito do que seu senhor desejava, é analisado por Grinberg não apenas como um exemplo de protagonismo dos escravos, mas como forma de evidenciar as transformações que a política e a sociedade brasileira da época estavam submetidas. No final do século XVIII, Liberata foi comprada aos dez anos de idade por José Vieira Rebello, que residia na comunidade do Desterro, hoje Florianópolis. Em 1813, Liberata deu início a seu processo de liberdade. Era violentada desde que foi comprada por Rebello e silenciada até então pelas promessas de liberdade quando se tornasse adulta. Liberta, seu processo é usado anos depois por seus filhos José e Joaquina que reivindicam a alforria alegando terem nascido de ventre já livre, e pedem para que a ação judicial da mãe seja anexada ao processo de liberdade iniciado por eles, em O Tribunal da Relação do Rio de Janeiro concede a liberdade aos filhos de Liberata no final de 1838.

109 Página109 História pública e novos olhares..., p Homens e mulheres, que de forma forçada e violenta eram obrigados a trabalhar compulsoriamente no campo e na cidade, identificavam perfeitamente seus direitos e as formas como recorrer a eles; tinham clareza da própria humanidade e do sistema político, social e econômico que os cercava, o que rompe claramente com a lógica da coisificação amplamente difundida tanto por estudos acadêmicos sobre o tema, quanto por trabalhos organizados para atender o grande público. Além disso, há de se levar em conta as concretas transformações que a sociedade brasileira estava se submetendo neste momento, sobretudo, no que diz respeito às normas jurídicas. Para Keila Grinberg: A mudança nas regras do direito faz parte do desenvolvimento das correlações de forças de uma sociedade. O Brasil do século XIX, sobretudo se comparado com o dos séculos anteriores, era uma sociedade em mudança, que culminou por romper com uma das bases fundadoras de seu processo de colonização. O fim da escravidão e a constituição do direito positivo aparecem, assim, como parte de um mesmo processo, que estavam na construção de um Estado que se pretendia liberal. (GRINBERG, 2008, p.58) O funcionamento e a manutenção do sistema escravista, ao contrário do que muitas teorias pregam e afirmam enquanto verdade, exigia que as relações entre senhores e escravos fossem dosadas, ou seja, não fossem manipuladas somente pelo viés da coerção e da violência levando em conta a necessidade de se estabelecer o convívio com base na negociação. Digo isso, porque o contrário é negligenciar a autoria social de homens e mulheres na condição de escravos e demonstrar completo desconhecimento sobre a complexa dinâmica escravista que se formou no país. O trabalho nas lavouras, por exemplo, não deve ser naturalizado através das descrições já conhecidas sobre o tempo de trabalho, às condições das senzalas, às rações servidas aos escravos, às surras e torturas por um dia de trabalho inconcluso ou por tentativas de fuga. Pelo contrário. A negociação era de extrema importância para a manutenção do sistema escravista e continuidade da ordem senhorial. Levando em conta as especificidades existentes em cada regime escravocrata, Schwartz analisa no contexto do regime colonial brasileiro da cana de açúcar, especificamente na Bahia, que: A motivação dos agricultores, porém, era mais do que lucros e perdas. A racionalidade econômica do modelo era limitada, ocasionalmente, por uma série de restrições culturais e morais contidas no direito português e nos dogmas e preceitos da igreja, que também tiveram influência sobre a vida dos escravos. Por exemplo, as proibições

110 Página110 DOSSIÊ REIS, C.B. religiosas do trabalho no sábado em certos dias santos eram os principais motivos de paralisação dos engenhos baianos. (...) Os escravos tinham permissão de usar esses períodos de folga em benefício próprio, recebiam incentivos e constituir irmandades religiosas e de participar nas formas culturais da sociedade mais ampla. (SCHWARTZ, 2001, p.88). E continua o autor, Embora o sistema de tarefas, as hortas e a manumissão implicassem aspectos da vida escrava que eram até certo ponto metas externas ao regime do engenho, a própria especialização na manufatura de açúcar oferecia outros incentivos aos escravos. Mestres-de-açúcar, caldeireiros e feitores, às vezes recebiam recompensas, salários ou mesmo uma porcentagem da produção como incentivo. Na área de Campos (RJ), em 1790, um depoimento local dizia que o escravo que trabalhasse como mestre-de-açúcar em qualquer engenho esperava ganhar no mínimo entre 600 e 800 réis por dia. (SCHWARTZ, 2001, p.96) O trecho acima nos revela, então, uma dinâmica escravista problematizada e bastante diferente do que muitas teorias historiográficas produziam com intensidade até a década de Há de se levar em conta que esse sistema de incentivos não alcançava a perfeição, tão pouco serve como argumento legitimador da escravidão, mas é de extrema importância trazer à tona com cada vez mais frequência a divulgação de um passado escravista que não presenciou a alienação da população escrava. É certo que alguns escravos recusavam as adulações e as persuasões oferecidas para colaborarem com o bom funcionamento do sistema. Resistiam à escravidão de todas as maneiras, mas outros reconheciam as vantagens dentro dessa dinâmica que se organizava a partir de um jogo de interesses mútuo. Compreender a sociedade escravista por este prisma, a meu ver, é não apenas importante, mas também necessário se a pretensão for mobilizar esforços em torno da ruptura com estereótipos e preconceitos nos dias de hoje. Sem dúvida, a história pública tem muito a contribuir se reforçar cada vez mais seu diálogo com versões da historiografia e da pesquisa acadêmica que exponham a escravidão como um sistema organizado por atores políticos e sociais independente de terem a senzala ou a casa-grande como moradas.

111 Página111 História pública e novos olhares..., p Considerações finais A problematização em torno da escravidão e da experiência africana no Brasil, portanto, é real não apenas nos trabalhos historiográficos rapidamente apresentados acima, mas também em muitos outros estudos acadêmicos recentes sobre o tema, o que motiva e inspira de forma intensa os argumentos defendidos ao longo deste artigo sobre a importância de cada vez mais estreitar o diálogo entre o que é produzido dentro da academia com os trabalhos para o grande público e acerca do escravizado enquanto sujeito da própria história. Há, a meu ver, urgência em trabalhar na construção de uma consciência histórica que cada vez mais compreenda o processo da escravidão não pela cor, não pelo açoite, não pelas chibatadas, tão pouco pela submissão. O inventário dos lugares de memória do tráfico atlântico de escravos e da história dos africanos escravizados no Brasil 10, proposto no ano de 2011, é exemplo de um desses estudos sobre a escravidão e o africano, que possibilitou, em nível internacional, publicizar, ou seja, tornar pública a memória da escravidão e da trajetória dos negros africanos no país. Sobre isso, Hebe Mattos, Martha Abreu e Milton Guran comentam: Até finais do século XX, impressiona a ausência de esforço para determinar os lugares de memória dos processos de escravização em massa que estão na origem do mundo contemporâneo. O tráfico de escravos revelou-se tema tabu na memória da maioria dos países envolvidos na Europa, nas Américas e na África, bem como no Oceano Índico. (...) O combate ao racismo como forma institucionalizada de discriminação levou ao questionamento do silêncio sobre a violência da escravização como forma velada de expressão do racismo. (...). Ao lidar com um passado sensível que envolve, por exemplo, as responsabilidades no tráfico negreiro das modernas democracias ocidentais, bem como das elites africanas précoloniais, além de temas como a dor e a vergonha vivenciada pelos escravizados, a memória da diáspora africana resultante do tráfico negreiro elabora tais temáticas na memória pública. Ao mesmo tempo, não abandona a grandeza dos legados culturais da globalização forçada, resultado da resistência dos escravizados e seu papel para as definições contemporâneas de liberdade e direitos humanos com as quais trabalhamos. A estratégia de dar visibilidade a estes temas através da visitação dos locais de memória não só consolida novas formas de rememoração para públicos que desconhecem ou se recusam a falar desse passado, mas também abre caminhos de sustentabilidade para os grupos que sofrem o peso do estigma de serem descendentes dos antigos escravizados. O Inventário trouxe a 10 Mais informações disponíveis em: Acessado em: 21/05/2014.

112 Página112 DOSSIÊ REIS, C.B. oportunidade de tornar público, de uma forma mais organizada e sistematizada, um conhecimento histórico que poderia enriquecer e abrir novas perspectivas para políticas memoriais e de implementação do turismo cultural em relação à memória da escravidão. (ABREU; GURAN; MATTOS, 2014, p. 257) A ideia exposta acima se relaciona com a defesa realizada pela historiografia atual sobre memória, de que os estudos memorialísticos, sobretudo, os referentes a passados traumáticos precisam se conectar à luta por direitos humanos, com o intuito de evitar que se olhe para o passado de forma acrítica e sem transformações, contribuindo para a formação de olhares menos vitimizadores e mais conscientes dos processos de luta e resistência vivenciados por grupos e sujeitos históricos. Neste sentido, iniciativas como a construção do Inventário são profundamente importantes para o não silenciamento do passado escravista e divulgação da trajetória do negro africano no país, contribuindo para a luta contra o racismo e valorização da cultura afro, por exemplo. Em entrevista ao jornal O Globo, o historiador Andreas Huyssen, falou sobre a importância de fazer com que os estudos relacionados à memória estejam conectados não apenas com a divulgação e entendimento sobre o passado, mas com as demandas do presente e preparação para o futuro. Para ele: Uma abordagem que relacione os dois discursos [memória e direitos humanos] me parece mais frutífera para ambos. Nos EUA e Europa, há cada vez mais estudos sobre memória, muitos deles apenas autoindulgentes, sem vitalidade política. Um risco do discurso da memória é buscar legitimação para o presente olhando para o passado, mas sem pensar no futuro. Já o discurso dos direitos humanos olha também para o futuro, porque deseja transformar a legislação. Por outro lado, o típico discurso liberal sobre os direitos humanos individuais muitas vezes não presta atenção na história, nem nas culturas locais fazendo uma mera transposição de valores ocidentais para contextos onde essas questões se estruturam de outras formas. Quando falamos de direitos culturais de minorias, seja na Ásia ou na Amazônia, o discurso da memória pode abrir caminho para a compreensão de particularidades históricas e sociais que o discurso de direitos humanos individuais relega ao segundo plano. 11 As ideias acima são relevantes para refletir não apenas sobre a organização de uma atividade cultural sobre a escravidão no Brasil, mas para pensar sobre quais efeitos se 11 Entrevista cedida por Andreas Huyssen ao jornal O Globo, no dia 24/05/2014. Disponível em: Acessado em: 21/06/2014.

113 Página113 História pública e novos olhares..., p quer produzir na sociedade e na política ao investir na divulgação do passado escravista entre o grande público. Há de se pensar a história pública como uma ferramenta capaz de estimular mudanças político-sociais, ou seja, um mecanismo que possibilita a grupos e indivíduos problematizarem o mundo em que vivem e influenciarem na construção de um aparato legislativo mais justo e menos desigual, por exemplo. O racismo institucionalizado e refletido em ações políticas como a redução da maioridade penal; as frágeis políticas de habitação que atingem diretamente a população negra, entre outros, são exemplos que mostram a urgência em sensibilizar a consciência histórica do grande público através de trabalhos interessados em apresentar a escravidão como um passado ainda presente.

114 Página114 DOSSIÊ REIS, C.B. Referências ALBIERI, Sara. "História pública e consciência histórica" In: ALMEIDA, Juniele Rabelo de; ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira (Orgs). Introdução à história pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011, p ARAÚJO, Ana Lúcia. Doze anos de escravidão e o problema da representação das atrocidades humanas. Revista Afro-Ásia, 50 (2014), Entrevista publicada em 07/02/2014 e disponível no endereço eletrônico do jornal: Acesso em: FERREIRA, Marieta de Moraes. Uma história do tempo presente é possível? Nossa História: São Paulo, Editora Vera Cruz, SP, v. 1, n.14, p , 2004; FONSECA, Thaís Nívia de Lima. Mídias e divulgação do conhecimento histórico. Revista Aedos n. 11 vols. 4 - Set GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade. As ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de pesquisas sociais, LIMA, Ivana Stolze. Africanos no Rio de Janeiro, entre fronteiras e práticas de comunicação. In: LIMA, Ivana Stolze e CARMO, Laura (org). História social da língua nacional 2: diáspora africana. Rio de Janeiro: Faperj/Nau, ABREU, Martha; GURAN, Milton; MATTOS, Hebe. Por uma história pública dos africanos escravizados no Brasil. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, vol. 27, nº 54, p , julho-dezembro de REDE BRASILEIRA DE HISTÓRIA PÚBLICA Disponível em: Acessado em: 03/07/2014. Blog. SCHWARTZ, Stuart B. Trabalho e cultura: vida nos engenhos e vida dos escravos In Escravos, roceiros e rebeldes. EDUSC, 2001, pgs

115 História Nos Colégios Militares Brasileiros Na Visão De Professores History in Brazilian military schools from the teacher s overview RESUMO Felipe Bronoski Soares* Luis Fernando Cerri ** O artigo discute, no contexto da pesquisa sobre a cultura escolar dos Colégios Militares Brasileiros, os problemas referentes à identidade, conflitos em geral e tensões em relação ao conteúdo referente à ditadura militar brasileira ( ), assim como a atualização historiográfica e pedagógica em geral do livro didático de História adotado para estas instituições, com base em depoimentos orais de professores da instituição em Curitiba e em Porto Alegre. Palavras-chave: livro didático, depoimentos orais, prática docente, ensino e aprendizagem ABSTRACT The paper discusses, in the context of a wider research about school s culture inside Brazilian Military Basic Schools, the problems referring to identity, general conflicts and tensions related to the contents about Brazilian military dictatorship ( ), and also the historiographical and pedagogical up-todateness of the History manual used at those institutions. These discussions are based on oral testimonies of the institution s teachers at Curitiba and Porto Alegre. keywords: school manual, oral testimonies, teacher practice, teaching and learning *Licenciado e Mestre em História pela UEPG. Professor da Rede Privada de Ponta Grossa. faonet1910@yahoo.com.br ** Professor do Departamento de História e dos programas de mestrado acadêmico e profissional em História da UEPG. lfcronos@yahoo.com.br

116 Página116 DOSSIÊ SOARES, F.B.; CERRI, L.F. Introdução Este texto é parte de uma pesquisa mais ampla sobre o ensino de história nos Colégios Militares (CMs) brasileiros, que foi motivada pela polêmica surgida da publicação, pela imprensa brasileira, de que o livro didático dessas instituições insistia numa versão laudatória sobre o Golpe de Essa polêmica envolveu, na sequência, a Associação Nacional de História, que se pronunciou sobre o tema e acionou os ministérios da Educação e da Defesa. Entretanto, não resultaram disso maiores consequências práticas. O debate motivou a presente investigação, que envolveu também a análise do livro didático utilizado nos CMs e a visão de uma amostra de alunos sobre seus processos de ensino e aprendizagem que vivenciaram na instituição. O objetivo da pesquisa que forma o contexto deste texto foi analisar as relações de ensino e aprendizagem da disciplina de história nos colégios militares tendo como referência dois pontos. Em primeiro lugar, analisamos o livro didático História do Brasil Império e República, elaborado especialmente pela Biblioteca do Exército para servir de material didático às aulas de história de 7º. ano nos CMs, de autoria de Aldo Demerval Rio Branco Fernandes, Neide Annarumma e Wilma Ramos de Pinho Barreto. Esse material faz parte da Coleção Marechal Trompowsky (Coleção Trompowsky), uma coletânea específica de livros didáticos da disciplina de história e geografia para serem utilizados nos CMs. Em segundo lugar, buscamos construir o registro e a referência das experiências e memórias de alunos e professores que lecionaram em unidades do Sistema Colégio Militar do Brasil. Além de compreender o livro didático como um elemento próprio da cultura escolar (CHOPPIN, 2002, 2004; GATTI JÚNIOR, 1997), analisamos o livro didático a partir de uma base de critérios semelhantes aos critérios estabelecidos pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) (MIRANDA; DE LUCA, 2007). Como elaboração prática, remeteu-se a capítulos do livro didático História do Brasil Império e República perante um levantamento bibliográfico elaborados pela historiografia mais

117 Página117 História nos colégios militares na visão de professores, p recente. A constatação foi que o livro didático possui várias incompatibilidades com o padrão de qualidade técnica, pedagógica e historiográfica estabelecido pelo PNLD. O caso mais evidente de inadequação está justamente nas abordagens que livro faz sobre o período do regime militar, cuja narrativa contradiz a produção historiográfica mais recente e desconsidera o atual estado do conhecimento histórico sobre o tema. (FICO, 2004; TOLEDO, 2004; REIS, 2004; CARDOSO, 2011). O segundo momento foi de construir uma teia de relações entre sujeitos que participaram ativamente das aulas de história nos colégios militares. Teoricamente fazse uma análise de como a produção de fontes orais (ALBERTI, 2004; LAVERDI, 2013; PORTELLI, 1997; POZZI, 1997; FALCÃO, 2013) contribuiu na elaboração de identificação dos usos sociais do conhecimento histórico tendo como referência o conceito de Didática da História (BERGMANN, 1990, RÜSEN, 2006; CARDOSO, 2007; SADDI, 2012). Por fim, as entrevistas elaboradas com professores de história e alunos que passaram por unidades do Colégio Militar revelaram aspectos importantes como ações e práticas de resistência à tradição historiográfica militar; significações sobre o cotidiano escolar repleto de ritos, festividades e cerimônias públicas; e a compreensão intelectual dos professores como representantes do discurso científico em conflito com a cultura histórica disposta no livro História do Brasil Império e República. Trabalhos como de Pacievitch (2007), Pimenta (1996) e Rüsen (1994, 2010) foram fundamentais nessa compreensão. As vozes dos professores As fontes referentes a este artigo originam-se de entrevistas com professores de história. Após extensa consulta a docentes de história dos CMs ativos e inativos, os dois professores que aceitaram participar da pesquisa foram a Professora Silvana Shulder Pineda, ex-professora do Colégio Militar de Porto Alegre e o Professor Bruno Zorek, ex-professor do Colégio Militar de Curitiba. Ambos aceitaram divulgar seus relatos publicamente. Mesmo que a pesquisa tenha contatado vários professores que ainda lecionam em alguns colégios militares, o resultado final foi que apenas esses dois acima mencionados aceitaram elaborar e ceder o uso das suas histórias e memórias transcritas.

118 Página118 DOSSIÊ SOARES, F.B.; CERRI, L.F. A confecção do roteiro da entrevista possuiu alguns eixos centrais de interesse cujo encaminhamento variou de caso a caso. Dependendo da sensibilidade do momento, as perguntas foram elaboradas de uma ou outra forma, nesse ou naquele termo, mas de maneira geral obedeceram um roteiro pré-estabelecido de interesses, conforme segue: apresentação do entrevistado (pedido para que o entrevistado apresentasse sua trajetória de vida em linhas gerais); por que lecionar no Colégio Militar? (os meandros que levaram os professores entrevistados a lecionar a disciplina de história no CM); memórias de trabalho (práticas de sala de aula desenvolvidas pelos professores, relações sobre o cotidiano escolar, relação entre militares e civis, contexto pedagógico dos Colégios Militares e percepção de conflitos, mediações e tensões nas aulas de história e também no ambiente escolar como um todo) e, por fim, identidade e papel do professor (de que forma os professores de história se enxergam nesse quadro da realidade escolar, qual é a função do conhecimento histórico à vida prática, suas posições e posturas políticas frente à tarefa de ensinar história neste contexto). O conjunto dos fatores consignados no roteiro acima pode nos dar uma medida da maneira com que esses professores compreendem o lugar no qual desempenharam o ofício de professor de história, mas também a própria prática docente diante de uma tarefa reflexiva que interfere basicamente nas relações e predicados componentes na construção da identidade docente. Uma identidade profissional se constrói, pois, a partir da significação social da profissão; da revisão constante dos significados sociais da profissão; da revisão de tradições. Mas também da reafirmação de práticas consagradas culturalmente e que permanecem significativas. Práticas que resistem a inovações porque prenhes de saberes válidos às necessidades da realidade. Do confronto entre as teorias e as práticas, da análise sistemática das práticas à luz das teorias existentes, da construção de novas teorias. (PIMENTA, 1996, p.76). Mais do que isso, as narrativas elaboradas sobre o cotidiano escolar e a significação do mundo que participa e constrói, fazem-se necessária ao ponto de colocar o professor como um sujeito ativo e perceptivo dos espaços sociais que ocupa, participa e também transforma. Constrói-se, também, pelo significado que cada professor, enquanto ator e autor confere à atividade docente no seu cotidiano a partir de seus valores, de seu modo de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações de saberes, de suas angústias e anseios, do sentido que tem em sua vida ser o professor. Assim como a partir

119 Página119 História nos colégios militares na visão de professores, p de sua rede e relações com outros professores, nas escolas, nos sindicatos e em outros agrupamentos. (PIMENTA, 1996, p.76). Compreende-se aqui que a identidade docente está diretamente aliada ao processo contínuo de formação do professor e que obviamente essa relação ultrapassa os limites temporais do currículo de cursos de formação de professores. Fazer-se professor é uma tarefa cotidiana cujas práticas e saberes são constantemente reelaboradas ao modo que não se desligam de vivências pessoais, de perspectivas culturais e políticas e das práticas profissionais de cada futuro docente. (CERRI; PACIEVITCH, 2015, p.518). Também é necessário observar as maneiras que Bruno e Silvana tecem, através das narrativas, as representações sobre eles próprios. A construção da representação de si é uma tarefa que busca transmitir ao outro os componentes que o compõem. Quando o trabalho é realizado com professores, pressupomos que a imagem construída por esses sujeitos pretende evidenciar o arquétipo moral, político, intelectual, etc., que o entrevistado quer transparecer como elementos de sua identidade que implicam diretamente na forma com que atuam e encaram a própria prática não só profissional como também em outros segmentos da vida cotidiana. Ao ser questionada sobre os modelos pedagógicos que balizam a estrutura de ensino dos colégios militares, Silvana demonstrou percepção quanto a hibridez da instituição como colégio e também militar. Também percebe-se através do discurso de Silvana uma barreira de afirmação quando se refere aos indivíduos que trabalham no colégio com patente de militar de carreira. Sempre se refere aos militares como eles, os militares. Silvana: É um quartel! É um quartel escola. Então, o princípio organizativo é de um quartel. Não há outro. A proposta pedagógica do Colégio Militar é a proposta de um quartel! Um quartel que está ali com crianças, mas é um quartel. E eles, os militares, fazem muito esforço o tempo inteiro pra se lembrar de que eles estão trabalhando com criança. Felipe: Como assim um esforço...? De pensar que tá trabalhando com criança... Silvana: Eu tenho que dar conta que aqui NÃO é um quartel, que eles NÃO são militares, eles são crianças. Eles precisam o tempo inteiro lembrar disso. Sim, porque eles exigem que com 13 e 14 anos eles não cometam erros, eles não... né?! Gente, nós temos a idade que temos e quando a gente está em reunião na sala dos professores a gente faz palhaçada! Imagina os alunos?! Eles precisam o tempo inteiro ser lembrados de que eles estão trabalhando com crianças, que é uma escola, que não é uma escola de formação de oficiais, que é uma

120 Página120 DOSSIÊ SOARES, F.B.; CERRI, L.F. escola de educação básica... Isso precisa ser constantemente lembrado, porque há uma tendência militarizar todas as instâncias da vida ali dentro. No depoimento de Bruno, suas impressões sobre o Colégio Militar identificaram também uma dicotomia de interesses no corpo de trabalho interno ao Colégio Militar na polaridade entre civis e militares e da mesma forma sua narrativa explicita a barreira identitária ao ponto de deixar claro que não queria ser identificado como pertencente ao polo militar, mesmo que Bruno tivesse dentro do colégio a titulação de Tenente temporário, do qual faz a analogia de ser como militar entre aspas. Bruno: A gente pode pensar o Colégio Militar como um ambiente particular dentro do Exército, a minha experiência no Exército diz o seguinte: tem os quartéis tradicionais, em que você vai ter alguns tipos diferentes de militares e raramente um ou outro civil, e esse um ou outro civil é simplesmente uma exceção lá dentro. Diferente do Colégio Militar, em que você tem um universo civil muito grande. Talvez tão grande quanto o de militares. E aí, lá dentro você tem... várias formas de se ativar as identidades diferentes, né?! Então...Se você é um militar, você está em oposição aos civis. Mas esse tipo de situação só vai aparecer quando tiver interesses civis e interesses militares evidenciados e, portanto, essa distinção aparece. Aí de um lado os militares e de outro lado os civis. Entre os militares tem uma série de outras divisões. Tem a divisão mais estrutural do Exército que é entre praças e oficiais. Mas no Colégio Militar tem outras, tem entre temporários e de carreira. Tem entre militares, entre aspas, de verdade e militares, entre aspas, civis, né?! Que são os professores e os militares que fizeram as escolas de armas, ou seja, sargento, seja de oficiais. Então cada situação vai se evidenciar um tipo de... questão que vai ativar um tipo de identidade diferente. Então no meu caso eu era um militar temporário, um militar de mentira, entre aspas, um militar civil... Tava lá pra dar aula, então, em algumas situações, por exemplo, eu me sentia muito mais próximo dos professores civis, em termos de interesses, em termos de identificação, do que, sei lá, um militar... No trabalho de mestrado de Ailton Souza de Oliveira (2007) intitulado Autonomia vigiada: caminhos para a construção da identidade profissional dos docentes do Colégio Militar de Campo Grande MS, o autor analisa as relações profissionais de professores e professoras na unidade do Colégio Militar de Campo Grande. Segundo o autor, as relações entre militares e civis marcam uma dinâmica importante do cotidiano escolar e institucional do colégio principalmente na constituição das identidades profissionais.

121 Página121 História nos colégios militares na visão de professores, p Por isso, os professores, principalmente os civis, entendem o espaço do CMCG, suas diretrizes e regulamentos como indutores de uma identidade profissional, que avaliamos como ambivalente. Assim, na visão dos professores civis e militares, o caráter ambíguo da instituição escola/exército é um elemento que se soma a suas experiências escolares como contribuinte da contradição existente na (re)construção da sua identidade profissional. A instituição é ainda impulsionadora do antagonismo que invade o espaço de reflexão coletiva (seções e subseções de ensino). O professor militar e o professor civil contrapõem suas experiências, valores, saberes e fazeres consigo, entre si, com os outros e com a instituição, se debatendo em busca de um referencial identitário. O contexto em que os professores participantes da pesquisa estão inseridos oferece muitos espaços reflexivos. Nesses espaços eles se encontram enaltecem os conhecimentos da docência em âmbito da profissionalidade, tendo em vista se referirem à experiência profissional ligando-a exclusivamente à sala de aula, aos problemas especificamente desenvolvidos nesse espaço refletem orientados por essa característica da profissão. Mesmo sem entendê-lo como constituindo um aspecto da sua identidade com a profissão. (OLIVEIRA, 2007, p.180). As memórias de Bruno sobre o início de sua jornada como professor de história do Colégio Militar de Curitiba foram se deslocando das questões estruturais do colégio para dilemas que surgiam e eram mais ligados diretamente ao ofício de professor de história. Esses dilemas possivelmente foram surgindo justamente pela consciência e leitura feita por Bruno que o ambiente no qual trabalhava tinha posições muito rígidas de conduta. Basicamente, sobre a consciência de Bruno que estava lecionando em uma instituição do exército. Bruno: A minha grande preocupação, assim que eu entrei, foi, falei assim ó, minha preocupação é, falei explicitamente pros meus superiores mesmo não conhecendo eles, como é que eu vou lidar se eu tiver que dar aula sobre o Golpe Militar? Felipe: Você fez essa pergunta, chegou a fazer essa pergunta pros seus superiores? Bruno: Isso, nesses termos! Aí eles falaram ó, realmente é complicado, porque é um assunto delicado, é um assunto que mexe com os brios do exército, mexe com história recente, mexe com uma versão da história do pessoal que está aí, e todos os meus superiores tinham formação em História, né?! Todos eles eram militares também, de carreira. Eu era o único militar temporário de História. Mas eu abri o jogo com eles, pô, e aí, não sei como é que eu vou fazer, né?! Se eu tiver que dar aula disso. Daí eles falaram não, não se preocupe, você não vai ter que dar aula disso, não agora no começo e tal, porque... É complicado mesmo, a gente entende, então você vai dar aula de História Geral, História Antiga, História Medieval... Fica tranquilo. [...] Aí eu fui lá, tranquilizei e falei beleza. Então... tá em

122 Página122 DOSSIÊ SOARES, F.B.; CERRI, L.F. casa, não vou precisar me preocupar. Aí entrei em sala de aula, peguei o livro, era o livro do sétimo ano, de História do Brasil, aí eu falei putz, os caras me passaram a perna, me disseram você não vai ter, mas eu vou ter. Mas aí era o primeiro semestre Império, segundo semestre República, aí eu falei bom, quando chegar lá eu vejo como é que eu faço... Eu ia ter que inventar alguma estratégia de como é que eu ia trabalhar a Revolução Democrática, que é como está escrito no livro Trompowki. O fato de Bruno ter descoberto pelo conteúdo do material didático que teria que trabalhar com o golpe militar de 1964 durante suas aulas de história, causou-lhe de imediato um desconforto. Ou melhor, o desconforto foi causado antes mesmo de saber se iria ou não ter que trabalhar com o tema, pois era sabedor dos problemas e conflitos, historiográficos e políticos, que causa às forças armadas. Felipe: Essa preocupação foi tomando conta mesmo de você, como trabalhar ditadura, foi um dilema pra você? Bruno: Foi um dilema, um dilema muito importante! Assim, não tem cabimento pra mim, não tem cabimento chamar o Golpe Militar de Revolução Democrática. De nenhum jeito assim, nem que eu admitisse que, por exemplo... Que eu não admito, né?! Que é um ponto de vista politicamente legal, é legítimo porque tá aí, é legítimo na prática né?! Ainda que teoricamente não me convença. É um ponto de vista da direita, ele tem a sua legitimidade historicamente colocada. Mas ele não cabe, do meu ponto de vista, em nenhum conceito de Revolução. Não é revolucionário, você não tem uma revolução econômica, você não tem uma revolução política, não tem uma revolução social, nem cultural. Você tem um fortalecimento dos grupos que já estavam nas condições dominantes. No máximo você tem uma... Não dá pra chamar de revolução cultural, mas você tem uma modificação na esfera cultural que é a de proibir uma série de manifestações. Mas não foi uma preocupação que foi crescendo assim, eu vi que eu ia ter que enfrentar o monstro e eu falei bom, o que eu vou fazer? Eu vou me adaptando à situação, eu vou dando as aulas sobre Império, eu vou entendendo como é que funciona esse livro, que é a referência que os alunos tem, e quando chegar a hora eu vejo o que eu faço. Então assim, era uma preocupação, mas era uma preocupação que, ao invés de lidar com ela, eu falei deixa pra lá que quando ela aparecer de verdade eu resolvo, ou penso no que fazer. E aí enfim, você trabalhou com o livro, é um livro bastante complicado de... vários aspectos. E aí... É aquela preocupação em inovar o Exército, um tratamento completamente desproporcional nos assuntos, né?! Participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial, um capítulo ENORME, infernal que não faz o menor sentido! Porque, pensando comparativamente... Os outros países que participaram da guerra e a participação do Brasil, não tô dizendo que não seja importante, mas ela é muito menor que a participação, sei lá, da Rússia, dos Estados Unidos, da Alemanha, da Itália, do Japão, enfim...

123 Página123 História nos colégios militares na visão de professores, p As observações que tece Bruno sobre sua experiência e conclusões que teve com o material na condição de professor de história no Colégio Militar tem proximidades com os apontamentos levantados pela análise dessa pesquisa sobre o livro didático História do Brasil Império e República. A primeira questão é de não achar legítimo conceitualmente, tendo como referência a ciência histórica, ensinar sobre o regime militar como um episódio revolucionário e com as premissas que narram o livro. Mesmo que considere que a historiografia caracterizante do livro seja uma expressão de uma certa temporalidade e grupo social, ela não se sustenta como referência intelectual mais bem elaborada atualmente. Já o segundo ponto destacado por Bruno faz uma crítica historiográfica e metodológica do livro didático pelo fato de ser elaborado centralmente de acordo com aquilo que chamamos anteriormente de protagonismo militar. E a preocupação com o fato de que a narrativa no livro tem como fio condutor a experiência histórica marcada pelos fatos de participação direta e essencial dos militares na vida política do país. Na prática, essa narrativa disputa entre alunos e professores, com outras versões e concepções de história, em que os militares não são o foco narrativo, nem os protagonistas privilegiados. Conforme Caimi, Há que se considerar, no entanto, que nos processos de ensinar e aprender história estão implicados três elementos indissociáveis, quais sejam: a natureza da história que se escolhe ensinar, como seus conceitos e dinâmicas, operações, campos explicativos; as opções e decisões sobre aspectos de natureza metodológica, a transposição didática ou "como ensinar"; e a especificidade da aprendizagem histórica, que pressupõe o desenvolvimento de estratégias cognitivas, de noções e conceitos próprios dessa área de conhecimento com vistas à construção do pensamento histórico por crianças, jovens e adultos. (CAIMI, 2009, p.71). O discurso de Silvana também tateia por esse equilíbrio de perceber problemas e conflitos na instituição e ao mesmo tempo afirmar-se dentro dos princípios que julga ser indispensáveis à docência da disciplina de história na escola. Essa tensão acaba sendo refletida nos seus depoimentos que comenta sobre suas experiências e memórias de docência e também nas reflexões que faz sobre como é ser professora de história no Colégio Militar de Porto Alegre. Resultando inclusive em decisões e mobilizações por parte dela e de alunos num interesse a mais pela história.

124 Página124 DOSSIÊ SOARES, F.B.; CERRI, L.F. Felipe: Ser professora de História... Tem diferença de ser professora de outra coisa no Colégio Militar ou não? Silvana: Claro que tem! Porque como todas as instituições têm seus mitos de origem... a Igreja tem, as universidades tem, os partidos políticos tem e o Colégio Militar também tem, e o exército tem. E são só mitos, né?! E a gente que trabalha História... vê os mitos de outro jeito [risos]. Então, é bastante complicado, e ao mesmo tempo é uma área em que os alunos têm muita curiosidade. A gente percebe muito bem assim essa necessidade da história ter sentido para que seja melhor compreendida... A percepção do que estudaram até aquele momento de que ali eles eram muito crianças, que foi uma história da carochinha, né?! Que é uma expressão que eles usam muito, uma história sem sentido, uma história que eu decorava, mas não entendia nada... E aí eles são parceiros em algumas lutas assim, bem bacanas! E aí a gente acha outros expedientes. Quer dizer, na sala de aula tem limites, bom, então como é que a gente vai fazer isso? Professora, vamos pro clube de História. E aí durante alguns anos a gente montou um clube de História que foi bárbaro! Importante relembrar que apesar de Bruno e Silvana desempenharem funções em colégios militares, as estratégias e planos para facilitar a aprendizagem são elaboradas por professores e independem do ambiente de trabalho que estão inseridos. Todo e qualquer ambiente de trabalho possui limites e conflitos próprios que exigem do professor o desenvolvimento de novas práticas que sejam ao mesmo tempo permitidas nesse ambiente, mas que resultem em algum tipo de exercício de aprendizado. Essa autorreflexão de Bruno e Silvana, sobre o espaço que ocupam e a tarefa que desenrolam, funciona como um fio de conexão entre aquilo que é possível e aquilo que é desejável por parte do professor. O caso de Bruno e suas estratégias de trabalhar o regime militar, que encarava como um dos seus dilemas quando adentrou no Colégio Militar, permite-nos identificar essas adaptações e estratégias pela qual o professor exerce uma autonomia que funciona tanto como um artifício de aprendizagem, quanto de estabilidade na sua função. Bruno: E aí falei do Golpe Militar, fiz uma dinâmica com eles, levei pra fora da sala de aula, levei pro pátio. Eu fazia poucas vezes isso, de tirar os alunos de dentro de sala de aula. Aí fiz uma dinâmica que era a seguinte, eu dividia a turma em 5 grupos e dizia vocês são a classe média, vocês são os camponeses, vocês são o proletariado urbano, vocês são a classe alta, vocês são os jornalistas. Eu sou o governo, eu sou o presidente que acabou de derrubar o governo fictício do Jango [risos], que não é tão fictício, beleza? Beleza! E aí eu falava bom, vocês jornalistas tem que me acompanhar em cada um... porque eu vou negociar com cada grupo separadamente e... E aí vocês vão reportar isso pra sociedade. Aí eu fiz o seguinte, como eu tinha

125 Página125 História nos colégios militares na visão de professores, p algumas ferramentas ao meu dispor, como, por exemplo, a disciplina militar, eu levei eles pro pátio e falei bom, vocês da classe média vão ficar aqui sentados nesse banco aqui de praça que tinha, aí tinha um canto lá com sofazinhos aí vocês da classe alta vão ficar aqui no sofazinhos. E vocês camponeses, vocês proletários vão ficar em formação militar, em posição de sentido, até eu chegar pra conversar com vocês. Aí essas... Quando eu negociava com a classe média eu negociava de uma maneira ah, vocês me apoiam, eu vou dar umas coisas pra vocês, com a classe alta eu era mais não, eu vou fazer tudo pra vocês e nãnãnã. O bolo vai crescer e... Felipe: E os jornalistas acompanhando você? Bruno: Acompanhando. Com o proletariado e com os camponeses era como se eu estivesse... Era como... Eles sempre tinham aula de ordem unida, né?! Eles aprendiam a marchar e tal, e aí era um sargento que ficava gritando na orelha deles ah, fez errado e não sei o que e nãnãnã. Fiz assim, como se eu fosse um sargento dando ordem unida pra eles, e aí é isso... E aí depois levei isso pra sala de aula, portas fechadas. Ó, tão vendo como é complicado a gente falar que foi essencialmente ruim, ou essencialmente bom o regime militar? Claro que isso aqui é só uma caricatura, mas, vejam, se a gente adotar o ponto de vista da classe média, vocês acham que o governo militar foi ruim? Não, não foi uma maravilha, mas não foi ruim. Do ponto de vista da classe alta, foi bom? Foi ótimo e tal. Do ponto de vista dos camponeses e proletários, foi bom? Não... Então é isso. Como é que... E aí eu falava, agora a gente tá dentro de um quartel, tá dentro de um Colégio Militar, a gente... Quando vocês entram lá está escrito que a educação é com as tradições, com os princípios e sei lá o que do exército brasileiro. Quem que promoveu esse governo? Quem que promoveu o golpe ou a revolução? É difícil a gente, dentro desse ambiente, se colocar contra, dizer olha, essa instituição onde a gente está fez algo ruim. A gente pode dizer, mas tem que tomar cuidado, porque afinal de contas, essa instituição aqui. E aí eles achavam o máximo e tal. Aí eu falava ó, na prova eu quero que todo mundo escreva conforme está no livro didático, não importa... [gargalhadas], mentira, mentira... A memória que Silvana mais fez questão de evidenciar sobre sua experiência em relação ao ensino da história do regime militar, surgiu de uma inquietação dos alunos sobre um dos apelidos da instituição: O Colégio dos Presidentes. A explicação que a professora elabora também estabelece o argumento na comparação historiográfica daquilo que sustenta o livro e daquilo que existe para além do livro como intepretação histórica do período. Silvana: O Colégio de Porto Alegre é chamado, tá lá, o Colégio dos Presidentes. Isso já dá... Os alunos vêm perguntar professora quais foram os presidentes?. Pô, o que tu vai dizer? Foram todos da Ditadura Militar e aí já tá feita a coisa! Porque os militares dizem pra eles que é... são os presidentes da Revolução Democrática. E a gente

126 Página126 DOSSIÊ SOARES, F.B.; CERRI, L.F. diz não, são os presidentes da Ditadura! Então por aí já começa a divergência nas narrativas do mesmo período... Mas isso é uma coisa assim... O que nos ajuda um pouco... É que os nossos alunos tem como destinação a Universidade Federal. Os que não vão pra carreira militar. E aí desde muito cedo a gente vai dizendo pra eles olha, tem um jeito de como o exército diz que as coisas aconteceram, que é só o exército que diz que só aconteceu assim pra eles. E tem um outro jeito que é do resto da humanidade [risos]. Por exemplo, a Guerra do Paraguai é um exemplo típico. Tem a versão do exército de como ela aconteceu e tem a versão historiográfica, as versões historiográficas... Os indicativos de Bruno e Silvana são relevantes e mesmo sob condições de exercício muito marcante da cultura militar, ambos procuram atuar na construção de alternativas e possibilidades que extrapolem as condições nas quais participam como subordinados à estrutura da hierarquia e disciplina militar. A construção de caminhos alternativos para a aprendizagem histórica se dá, nos dois casos, pelo compromisso e entendimento que possuem da ciência histórica e da experiência histórica serem norteadoras à prática do ensino de história. A princípio, a experiência histórica deve apresentar-se a partir de várias perspectivas. Por meio dos materiais adequados (porém, também com a exposição), tem que se demonstrar aos alunos e alunas que o mesmo fato pode ser percebido pelos afetados de forma diferente e inclusive contrária. (RÜSEN, 2010, p.122). Um ponto comum entre os relatos dos alunos também pôde ser verificado nos depoimentos dos professores sobre o material didático da Coleção Trompowsky. No relato anterior dos alunos, as falas indicaram uma pouca utilização do material por parte de seus professores, que optavam por outras estratégias e materiais. Tanto no caso de Silvana quanto de Bruno a opção por pouco trabalhar com livro didático se dá pelas insuficiências que ambos indicaram nas características historiográficas e pedagógicas desses materiais. No caso específico de Bruno, uma das estratégias desenvolvidas pelo professor para justificar perante aos alunos a existência do livro História do Brasil Império e República era utilizá-lo como contraponto historiográfico perante outras leituras e intepretações históricas que inseria e trabalhava em sala de aula: Bruno: Eu resolvi trabalhar o livro com contraponto. Então eu pegava, eu usei alguns outros livros didáticos, acho que a minha principal base foi aquele livro que não é exatamente um livro didático, mas é um super manual de História do Brasil, do Boris Fausto. E... enfim, eu usava aquele livro, eu montava a minha aula baseado

127 Página127 História nos colégios militares na visão de professores, p naquele livro e aí apresentava o que tinha no livro do Trompowski, né?! Então... Escrevia, usava muito o quadro pra passar conteúdo pros alunos e aí depois de apresentar e explicar, falava ó, então, vamos agora observar..., talvez por isso os alunos falem isso, né?! vamos comparar, vamos fazer um contraponto. O livro diz isso, eu estou dizendo isso baseado em outra historiografia. Vejam como é diferente, vejam como é interessante a gente cruzar as opiniões. E eu tentava, apesar de ser, apesar de ter a minha opinião, eu tentava não manifestar ela de maneira, né?! Eu acho que é assim, eu dizia ó, vejam como a gente tem uma versão aqui, tem uma outra versão aqui. E se os alunos me perguntavam, mas, qual é a melhor?, eu falava ó, não existe uma versão melhor pra História, a História é um conjunto de versões que estão sempre sendo refeitas. Silvana elaborou uma narrativa mais repulsiva quando perguntada de que forma utilizava os livros da Coleção Trompowsky em suas aulas. Repulsiva porque deixou claro e muito explícito durante a confecção de sua fala, os motivos pelos quais não usava o material, que em sua análise, era de péssima qualidade como um todo: Silvana: Se o problema do livro fosse o golpe de 64 era de muito fácil solução, era fazer o que se faz com outras coisas, olha o exército tem esta versão, a gente não concorda, mas é assim que o exército entende, nós somos civis, existe uma historiografia... Se esse fosse o problema, podia usar esse material. Mas não é esse só o problema! Tem toda uma questão aí... Por que eu sempre me neguei a usar? Primeiro porque os alunos são de uma rede pública que tem direito a receber os livros do MEC, e por uma questão ideológica o sistema se nega a fazer isso. E é ideológico, não é por outra questão. Daí que os alunos são obrigados a comprar um livro que é de péssima qualidade sobre todos os aspectos: ele é mal escrito, tem erros históricos... no que trata da História do Brasil tem horrores muito piores, mais dantescos que o golpe de 64! Há de se observar que há dois pontos que precisam de considerações sobre os depoimentos de Bruno e Silvana. O fato de usarem ou não os materiais didáticos da Coleção Trompowsky não significa necessariamente um prejuízo ou ganho à aprendizagem histórica escolar dentro de seus objetivos gerais. Usar ou não o livro didático é uma opção que faz parte da autonomia docente em selecionar e articular materiais e estratégias que formulem o melhor caminho às aulas de história. Em suma, o fato de usar livro didático não significa que o professor seja automaticamente incompetente, do mesmo modo não usar o livro didático não lhe confere, por si só, o prêmio de excelência. (MUKANATA, 2009, p. 283).

128 Página128 DOSSIÊ SOARES, F.B.; CERRI, L.F. A grande questão a ser levantada aqui é perceber como esses professores compreendem e atuam nas tramas cotidianas nos colégios militares, como sujeitos que interagem, resistem e recriam constantemente estratégias e maneiras de atuação em um ambiente particularmente singular aos olhos de outrem. Os professores de história, nos dois casos aqui apresentados, colocam-se como profissionais intelectuais que interpretam e redinamizam suas funções de acordo com paradigmas ancorados na cientificidade histórica e pedagógica. Nas duas situações é possível traçar indicativos importantes de processos reflexivos sobre a própria prática docente. Essa ideia remetenos novamente ao que Pimenta (1996) defende quando discorre sobre uma das questões mais fundamentais à profissão docente, segundo a autora: Em outro nível, os saberes da experiência são também aqueles que os professores produzem no seu cotidiano docente, num processo permanente de reflexão sobre sua prática, mediatizada pela de outrem seus colegas de trabalho, os textos produzidos por outros educadores. É aí que ganha importância na formação de professores os processos de reflexão sobre a própria prática. (PIMENTA, 1996, p.77). Esse exercício reflexivo fundamental ao professor deve levar em consideração distintos fatores: as condições de trabalho; seus métodos e estratégias didáticas; a reflexão sobre conceitos trabalhados; enfim, uma prática reflexiva que leve em consideração a maior amplitude possível de elementos que estão diretamente conectados às tarefas de ensinar e aprender história. Nessa mesma linha de pensamento, quando se refere à formação profissional de professores de história, Flávia Eloísa Caimi (2006) aponta alguns elementos que devem ser constantes na prática cotidiana do professor de história. 1. conhecer os interlocutores em aula, reconhecer seu lugar social, suas experiências prévias, suas práticas cotidianas, suas referências culturais, seus saberes cognitivos, para constituir uma proposta de trabalho que lhes seja significativa; 2. conhecer diversas possibilidades de produção e de expressão do conhecimento histórico, de modo a operacionalizar diferentes estratégias para viabilizar as aprendizagens em sala de aula e fora dela, superando os limites impostos pelo uso exclusivo do livro didático e pelo verbalismo vazio; 3. conhecer os estudos sobre desenvolvimento cognitivo e aprendizagem no campo da sociologia, da psicologia e da antropologia, para entender como as crianças e os adolescentes pensam, aprendem, se comportam, constroem conceitos e noções espaço-temporais. (CAIMI, 2006, p.31).

129 Página129 História nos colégios militares na visão de professores, p Importante salientar que esse exercício reflexivo sobre a própria prática é também gerador de novas práticas e posturas que podem desembocar em conflitos de diferentes naturezas: pedagógicos, intelectuais, da relação de poderes, etc. Especialmente no caso de Silvana, que sua decisão de não utilizar o livro gerou seu afastamento das suas funções de professora de história no Colégio Militar de Porto Alegre, cabe o questionamento sobre os limites e possibilidades das quais os professores de história estão inseridos nesse contexto que tem como epicentro uma tensão que envolve basicamente a disputa sobre versões do passado. Considerações finais A proposição deste texto, pelas suas características, bem como pela quantidade de entrevistados, não se direcionou à pretensão de fornecer um amplo panorama sobre o objeto, no que deve ser levada em conta inclusive a dificuldade de coleta de depoimentos para o caso. Entretanto, defendemos que os tópicos levantados pelo roteiro das entrevistas e pelas problematizações dos entrevistados aportam uma contribuição relevante para o conjunto de reflexões sobre o problema do ensino de História nos Colégios Militares brasileiros. Sobretudo, espera-se que este texto some-se ao esforço de conhecimento e de posicionamento político-pedagógico implicado em garantir o espaço para as vozes dos professores e o respeito aos seus conhecimentos nos processos de pesquisa sobre quaisquer assuntos que refiram-se à escola. Assim como acontece com todos os fenômenos sociais, em que o conhecimento de suas historicidades não pode senão reforçar o que se sabe, também no que tante a todos os fenômenos educacionais as vozes dos professores compõem saberes indispensáveis para saber, interpretar, avaliar e colaborar para reflexões e propostas de soluções e avanços. Referências ALBERTI, V. Manual de história oral. 2. ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Editora FGV, BERGMANN, K. A História na Reflexão Didática. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.9, n19, p.29-42, CARDOSO, L.C. Os discursos de celebração da Revolução de Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 31, nº 62, p

130 Página130 DOSSIÊ SOARES, F.B.; CERRI, L.F. CARDOSO, O. A Didática da História e o slogan da formação de cidadãos. São Paulo. Tese (Doutorado em Didática, Teorias de Ensino e Práticas Escolares) - Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, CHOPPIN, A. História dos livros e das coleções didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p , set./dez CHOPPIN, A. O historiador e o livro escolar. História da Educação. Pelotas, v. 11, p. 5-24, FALCÃO, L.F. A ilusão da verdade: história oral e a história do tempo presente. In: LAVERDI, R. MASTRANGELO, M. (orgs.). Desde las profundidades de la historia oral. Buenos Aires: Imago Mundi, FICO, C. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, nº 47, p GATTI JÚNIOR, D. Livros didáticos, saberes disciplinares e cultura escolar: primeiras aproximações. História da Educação. Pelotas: 29-50, set LAVERDI, R. Raymond Williams e história oral: aproximações social-construtivas. In: LAVERDI, R.; MASTRANGELO, M. (orgs.) Desde las profundidades de la historia oral. Buenos Aires: Imago Mundi, MUNAKATA, K. Devem os Livros Didáticos de história ser condenados? In: ROCHA, H.; MAGALHÃES, M.; GONTIJO, R. (orgs.). A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV Editora, OLIVEIRA, A.S. Autonomia vigiada: Caminhos para a construção da Identidade profissional dos docentes do Colégio Militar de Campo Grande. Campo Grande: (Dissertação de Mestrado), Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Católica Dom Bosco, PACIEVITCH, C. Nem sacerdotes, nem guerrilheros: consciência histórica de professores. Ponta Grossa: Dissertação (Mestrado em Educação) Programa de Pós-Graduação em Educação Universidade Estadual de Ponta Grossa, PACIEVITCH, C.; CERRI, L. F. Professores de História e sua relação com a política: uma abordagem comparativa na América do Sul. OPSIS. Catalão,v. 15, n. 2, p , PIMENTA, S.G. Formação de professores: saberes da docência e identidade do professor. Revista da Faculdade de Educação, São Paulo, v. 22, n. 2, p , jul./dez PORTELLI, A. Forma e significado na História Oral. A pesquisa como um experimento em igualdade. Projeto História, v.14, p 7-24, fev POZZI, P. Esencia y práctica de la historia oral. Revista Tempo e Argumento, vol. 4, núm. 1, p ,jan./jun RÜSEN, J. História Viva - Teoria da História III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: UnB, RÜSEN, J. Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão. Práxis Educativa. Ponta Grossa, v. 1, n. 2, p , jul.-dez RÜSEN, J. Qué es la cultura histórica?: Reflexiones sobre una nueva manera de abordar la historia. In: FÜSSMANN, K; GRÜTTER, H. T; RÜSEN, Jörn. Historische Faszination. Geschichtskultur heute. Tradução: COSTA, F. S.; SCHUMACHER, I. p REIS, D.A. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: O golpe e a ditadura militar: quarenta anos depois ( ). Bauru: EDUSC, SADDI, R. O parafuso da didática da história. Acta Scientiarum. Maringá, v. 34, n. 2, p , jul./ dez TOLEDO, C.N. 1964: O golpe contra as reformas e a democracia. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.24, n.47, p

131 As Articulações Entre Passado E Presente No Currículo De História: Desafios E Estratégias Nos Discursos Dos Professores The Articulations Between Past And Present In The History Curriculum: Challenges And Strategies In The Teachers Speeches RESUMO Diego Bruno Velasco* O artigo investigará as articulações mobilizadas entre conceitos como presente, passado e currículo a partir da análise de entrevistas realizadas com professores de História que lecionam na cidade do Rio de Janeiro. A proposta do texto é identificar quais discursos se hegemonizam quando se problematiza sobre como estes professores lidam com o desafio de aproximar o conhecimento histórico escolar com a realidade dos alunos. Palavras-chave: Currículo. Ensino de História. Conhecimento Escolar. Passado. Presente. ABSTRACT This paper will investigate the articulations forged among concepts such as present, past and curriculum in reliance on the analysis of interviews conducted with History teachers who work in Rio de Janeiro city. The article aims at identifying which speeches hegemonize themselves when the way in which the referred teachers deal with the challenge of approaching the historic knowledge to the students context is problematized. keywords: Curriculum. History Teaching. School-knowledge. Past. Present. * Doutorando em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor de História no Colégio de Aplicação da UFRJ. profdivelasco97@gmail.com

132 Página132 DOSSIÊ VELASCO, D.B. Introdução O presente estudo aborda um tema que foi um dos cernes das minhas preocupações acadêmicas durante os anos em que cursei o Mestrado em Educação na Universidade Federal do Rio de Janeiro: Como os professores de História da Educação Básica lidam com o desafio de trabalhar esta disciplina em articulação com o presente vivido pelos seus alunos dentro do ambiente das salas de aula? Esta temática interage com as inúmeras dificuldades que encontrei quando comecei a lecionar, estimulando-me, por conseguinte, a investigar no âmbito do mestrado sobre os processos de significação em torno de dois bordões muito presentes nas propostas curriculares de História que, de certo modo, são mobilizados para interagir com as demandas atuais por uma educação pública de qualidade: O Ensino de História deve ser trabalhado de forma articulada com a realidade de vida dos estudantes e A disciplina escolar História tem como uma de suas funções primordiais formar cidadãos críticos. Adianto que não é minha intenção fazer a apologia de um quadro teórico capaz de permitir a descoberta e/ou invenção de alguma estratégia didática infalível nem descrevê-la e, muito menos, prescrevê-la como sendo o caminho certo para resolver essa questão bastante complexa, pois, não acredito que exista uma única estratégia para fazer-se chegar à realidade do aluno através do conhecimento histórico escolar. Além disso, minha experiência no estudo de questões curriculares abre pistas para pensar que o problema não se limita apenas a questões de ordem metodológica e que não se produz uma pesquisa em Educação para revolucionar a realidade escolar, seja qualquer forma que estejamos nomeando-a. Minha proposta é fazer um exercício introdutório de análise de uma temática que considero desafiadora no ofício docente: as dificuldades e potencialidades de se articular as dimensões temporais do passado e do presente nas aulas de História da Educação

133 Página133 As articulações entre passado e presente no currículo de história..., p Básica, entendendo que esta tarefa é mobilizada levando em consideração as particularidades do saber que é ensinado na escola destinado a um público, majoritariamente, jovem. Assim sendo, revisitarei as transcrições de entrevistas que realizei (durante os anos de 2012 e 2013) com dez diferentes professores de História que lecionam no município do Rio de Janeiro para o segmento do Ensino Fundamental II, pelo fato de este ser o primeiro momento em que os discentes têm um contato mais efetivo com a disciplina escolar História. No entanto, cabe salientar que se naquela época meu alvo de análise foi principalmente as respostas concedidas às indagações como O que você entende pela ideia de trabalhar com a realidade do aluno no ensino de História atualmente? e O que você compreende pela ideia de formar cidadãos críticos no ensino da História?, neste momento concentrar-me-ei em analisar as respostas formuladas às seguintes indagações: Quais são os desafios atuais que os professores de História enfrentam para trabalhar esta disciplina? e Quais conteúdos históricos você destacaria como sendo indispensáveis para se articular ou com a realidade dos alunos ou com a formação do cidadão crítico?, que foram pouco esmiuçadas no âmbito da dissertação de mestrado. A ideia central deste texto é, portanto, trazer alguns fragmentos das entrevistas realizadas para a minha dissertação de mestrado que reflitam (em caráter introdutório) sobre os desafios de se ensinar esta disciplina atualmente bem como sobre algumas possíveis articulações que podem ser feitas entre o passado histórico ensinado e o tempo presente vivido pelos estudantes, buscando compreender quais elementos do conhecimento histórico escolar podem ser utilizados para se pensar o currículo de História da Educação Básica. Não pretendo fazer juízo de valor das falas proferidas pelos docentes, visto que meu objetivo é apenas analisar quais demandas do tempo presente, vivenciado pelos estudantes, são hegemonicamente mobilizadas em suas falas para se fazer uma relação com os variados conteúdos escolares referentes a tempos passados que são selecionados e narrados no espaço discursivo das suas aulas. Logo, assumo que minha reflexão reside em identificar como as articulações entre os períodos temporais do passado e do presente estão sendo mobilizadas no Currículo de História através dos conhecimentos escolares operados nas escolas públicas da cidade do Rio de Janeiro.

134 Página134 DOSSIÊ VELASCO, D.B. Para facilitar o entendimento sobre esta questão, proponho dividir o presente artigo em dois momentos. Na primeira seção, denominada O conhecimento histórico escolar e sua importância central nas discussões sobre Currículo apresentarei algumas questões pertinentes ao saber histórico escolar, enfatizando a relevância de insistir na sua centralidade quando mobilizamos sentidos em prol de uma educação pública de qualidade. Além disso, mencionarei os argumentos de alguns autores dedicados à pesquisa sobre o Ensino de História para reforçar os sentidos de importância fixados e direcionados a esta disciplina em nossa contemporaneidade. Na segunda seção, intitulada Professores de História e os desafios de articular as demandas do presente com a História que ensina em sala de aula, desenvolvo uma análise de alguns fragmentos das entrevistas prestadas procurando responder as principais questões que norteiam este artigo. O Conhecimento Histórico Escolar e sua importância central nas discussões sobre Currículo Segundo Silva (2011), a questão que serve de pano de fundo para qualquer Teoria do Currículo é a de saber qual conhecimento deve ser ensinado. As questões básicas, instigadoras, são entender qual saber os alunos devem dominar, ou seja, qual tipo de conhecimento é considerado importante para fazer parte do currículo e justificar por que certos conhecimentos são escolhidos em detrimento de outros. Interagindo com as finalidades deste texto, trabalho com o termo currículo compreendendo-o como um espaço no qual são produzidas, contestadas e negociadas políticas de diferenças e identidades, não nos afastando da problemática do conhecimento, podendo trazer pistas para pensar os mecanismos de regulação social e de constituição de hegemonia implementados na escola por meio dos saberes escolares. Defender a pertinência de se operar com a ideia de currículo como prática de significação ou como espaço de enunciação no qual vários discursos se entrecruzam, não significa abdicar de refletir sobre a questão dos saberes e das práticas discursivas que envolvem sua produção, distribuição e consumo específicos. Isso não significa reduzir todo o pensamento político do campo do currículo à questão da validade (ou não) dos conhecimentos escolares, porém é necessário avançarmos no debate sobre as

135 Página135 As articulações entre passado e presente no currículo de história..., p relações entre currículo, escola, poder e cultura insistindo na necessidade de enfrentarmos a questão da centralidade dos saberes (GABRIEL, 2008, p. 12). Concordando com a autora, aposto na potencialidade dessa centralidade, sem ingenuidades e nem niilismos, para discutir as relações de poder e a dimensão política do currículo. Neste sentido, é válido afirmar que os discursos para serem sobre escola, a despeito das matrizes teóricas mobilizadas, são discursos que significam essa instituição como lócus em que mantém relações privilegiadas com os saberes (GABRIEL, 2008, p ). Importa ainda sublinhar as potencialidades de um sistema de significação específico o da epistemologia social escolar no qual essas categorias (saber escolar, conhecimento escolar, dentre outros) são produzidas discursivamente para pensar os saberes como enunciados produzidos em espaços de enunciação como o do currículo escolar. Gabriel (2006, p.2) enfatiza que a perspectiva da epistemologia social escolar se propõe a incorporar articuladamente as contribuições da epistemologia escolar formuladas no campo e das teorias críticas e pós-críticas do currículo. Por um lado, ela se preocupa com a problemática da construção dos saberes que circulam na escola, a partir do reconhecimento da especificidade de suas condições de produção e transmissão. De outro, ela pressupõe a assunção de uma epistemologia histórica, plural, aberta ao reconhecimento da diversidade de formas de racionalidade e de validade do conhecimento o qual se legitima também através das relações de poder. Desta forma, considero válido pensar na importância dos conhecimentos escolares no campo do Currículo, como espaço discursivo de confrontos, no qual também ocorrem lutas pela transformação nas relações de poder, leva-nos a entendêlos como uma forma legítima de criação de significados e de enunciados. Nesse sentido, defendo que o conhecimento escolar precisa ser compreendido dentro de suas próprias lógicas internas de configuração e funcionamento. Durante muito tempo, essa não foi a opção predominante no campo educacional, pois, segundo Lopes, existe ainda uma tendência de restringir o conhecimento escolar, exclusivamente, às suas relações com o conhecimento científico, entendido como saber de referência. Por esse motivo, eram e continuam constantes afirmações que tendem a desvalorizar os saberes escolares entendidos como saberes reduzidos, simplificados ou deformados. Julgo que esse tipo de visão se torna insustentável,

136 Página136 DOSSIÊ VELASCO, D.B. uma vez que não problematiza a própria constituição do conhecimento escolar, não refletindo nem sobre a sua especificidade epistemológica nem sobre as finalidades particulares destes saberes. (LOPES, 2007) Trata-se de defender a hipótese que credencia o conhecimento escolar como sendo aquele tipo de saber produzido para atender a finalidades específicas de escolarização, expressando um conjunto de interesses e de relações de poder presentes num dado contexto histórico. Vale destacar que a ideia do conhecimento escolar como sendo um conhecimento com características, finalidades e funcionamento próprios que, se por um lado, dialogam com os saberes acadêmicos, por outro lado, não podem ser entendidos como versões reduzidas deles. Dentro desse debate, autoras como Gabriel e Costa (2010) apontam que: O ensino de História do Brasil apresenta-se como um terreno de disputas entre diferentes memórias coletivas no qual os sujeitos / alunos são interpelados a se posicionarem e a se identificarem com determinadas demandas de seu presente, tendo como base as reações estabelecidas com um passado inventado como comum e legitimado nas aulas dessa disciplina. (...) A disciplina escolar História, ao produzir sentidos sobre a nossa experiência no e com o tempo, participa de forma singular na fixação das fronteiras curriculares onde se disputam, em permanência sentidos de conhecimento escolar legitimado e validado. (GABRIEL & COSTA, 2010, p.94) As autoras, desta forma, nos fornecem valiosas ferramentas para analisar o currículo de História como espaço de hibridização epistemológica em que se fundem teorias das mais diferentes áreas de conhecimento, como um espaço discursivo no qual são travadas as lutas hegemônicas em nossa contemporaneidade e como um sistema discursivo em que são produzidos sentidos de conhecimento histórico legitimado e validado. No que se pretende justificar e legitimar a continuidade do estudo da História nos bancos escolares, Gabriel nos fornece outra pista: Com efeito, reconstruir memórias coletivas, sejam elas nacionais ou de um grupo social e cultural mais restrito, formar cidadãos críticos e explicar ou dar um sentido ao presente que se vive encontram-se entre os objetivos mais apontados para o estudo de História na atualidade. (GABRIEL, 2003, p. 167) Monteiro (2007) dialoga com as ideias acima ao destacar que nos depoimentos dos professores entrevistados, em sua pesquisa de doutoramento, expressam, possivelmente, uma característica da identidade profissional dos professores de

137 Página137 As articulações entre passado e presente no currículo de história..., p História: o compromisso com a dimensão formadora, no ensino de História, do cidadão, na medida em que se opera com referenciais que auxiliam os alunos a superarem a visão do senso comum e a realizarem uma leitura do mundo com maior potencial crítico. A autora deduz que havia uma preocupação dos docentes em ressaltar os alunos como cidadãos, capazes de realizar uma leitura ampliada e crítica do mundo em que se encontravam e capazes de pensar / questionar por si mesmos. Esta perspectiva acabava orientando os professores em seu trabalho de auxiliar seus alunos a se sentirem sujeitos da História, que, por sinal, pode ser considerada outra função atual estabelecida para o ensino desta matéria. Percebo que em nosso momento atual, tais atribuições fixadas para o ensino de História continuam sendo as mesmas daquelas citadas por Gabriel, Costa e Monteiro. Justificativas baseadas na importância dessa disciplina em formar cidadãos críticos e participativos, trabalhar com a realidade do aluno para tornar o ensino de História mais próximo do presente e das experiências de vida dos estudantes, constituir memórias e identidades, dentre outros, estão ainda plenamente expressas em propostas curriculares, cursos de licenciatura, livros didáticos e nos congressos de pesquisadores sobre o ensino de História. Articulando com esta questão, Bittencourt (2001, p.19) fez um levantamento das propostas curriculares de História para o Ensino Fundamental elaboradas entre os anos de 1990 a 1995 nos diferentes estados brasileiros e chegou ao resultado de que estas propostas são heterogêneas, podendo deixar uma impressão de ambivalências e contradições. Tais propostas estão relacionadas aos debates surgidos com o fim da Ditadura Militar que desejavam o retorno das disciplinas História e Geografia em detrimento dos Estudos Sociais. Para a maior parte destas propostas curriculares, o ensino de História teria como objetivo principal contribuir para a formação de um cidadão crítico, de modo que o aluno adquirisse uma postura crítica em relação ao mundo em que vive. Ao estudar as sociedades passadas, a História teria como escopo fazer o aluno compreender o tempo presente e perceber-se como agente social capaz de transformar sua realidade. Sobre os sentidos de cidadania e de formação do pensamento crítico, a autora afirma que a explicitação do conceito de cidadão que aparece nos textos é limitada à

138 Página138 DOSSIÊ VELASCO, D.B. cidadania política, ou seja, à formação do eleitor dentro das concepções democráticas do modelo liberal. A cidadania social tem sido pouco caracterizada nessas propostas porque, em apenas uma proposta, há a preocupação em situar a cidadania como uma conquista historicamente determinada e não como concessões do governo. Cardoso (2007) foi outro autor que mostrou uma preocupação central com os entrelaces entre História e Cidadania no âmbito escolar. Em sua tese afirma que a formação de cidadãos é um dos objetivos principais de muitas escolas brasileiras, podendo ser entendido como um slogan que une todos os membros participantes da comunidade escolar (professores, diretores, pais, autores de documentos curriculares, dentre outros). Para este autor, o conhecimento histórico escolar possui fortes vínculos com a formação para a cidadania em todo o mundo. Analisando pesquisas de autores oriundos de países como Canadá, Marrocos, Alemanha, dentre outros, ele observou que ao ensino de História eram atribuídas funções como preparar cidadãos capazes de participação social esclarecida e refletida ou preparar o aluno para se tornar um cidadão aberto à mudança, um cidadão militante pela democracia, um cidadão capaz de pensar criticamente ou ainda expressões como educar para a cidadania, criação da consciência política de que as condições sociais são permeadas pelo poder e formação do futuro cidadão (CARDOSO, 2007, p. 36). De forma mais amiúde, a expressão formação de cidadãos críticos transparecia, nas representações dos participantes (sujeitos de pesquisa) da sua tese, associado a noções como não aceitar passivamente o que se vê ou o que se ouve ou questionar o que se apresenta. Neste caso, Cardoso sugere que o criticismo emerge como algo que se direciona mais para os outros do que a si próprio, criando, por conseguinte, uma maior dificuldade no estabelecimento de empatia por pensamentos contemporâneos divergentes. Magalhães (2009), concordando com Bittencourt e Cardoso, destaca que na década de 90 do último século, a preocupação com a constituição do cidadão era um dos objetivos mais presentes nas propostas curriculares produzidas no Brasil para o Ensino Fundamental. Assim sendo, aponta para a existência de múltiplos e diversificados significados para o conceito de cidadania nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) em que suas possíveis definições encontram-se espalhadas pelos

139 Página139 As articulações entre passado e presente no currículo de história..., p mais diversos volumes que o constituem. Pautando sua análise na parte inicial do volume de História e na parte da apresentação dos chamados Temas Transversais, o autor afirma que esse documento repete as justificativas concedidas por outros documentos curriculares publicados anteriormente para reafirmar a manutenção da disciplina escolar História nos currículos escolares justificando sua importância na formação de indivíduos (cidadãos) críticos. (MAGALHÃES, 2009) O autor assegura ainda que os PCNs trazem uma marca de ambiguidade, quando se trata do entendimento de cidadania, afinal, por vezes, ela é entendida pela via da ampliação dos direitos civis, políticos, sociais e humanos (bem parecida com a leitura feita por Marshall 12 ), enquanto, em outras situações, relaciona-se com a questão da cultura, no sentido do elogio e da valorização das diferenças. Desse modo, concorda que nos Parâmetros Curriculares Nacionais de História a cidadania é entendida tanto a partir da perspectiva da ampliação / universalização dos direitos, tendo como parâmetros as noções de igualdade e de universalidade quanto associada à perspectiva do direito à diferença, ou seja, dentro da afirmação das diferenças, preconizando, assim, o respeito às particularidades de cada sujeito e grupo social, não se apresentando como incompatíveis, fazendo retornar o debate em prol da tensão entre universal e particular na esfera da instituição escolar. Finalizo, portanto, esta seção destacando que os estudiosos de questões relacionadas ao Ensino de História destacam a importância de pensá-lo como um espaço importante na construção de cidadãos críticos, tendo como eixo o diálogo com a realidade vivenciada pelos discentes da Educação Básica. Este breve panorama bibliográfico me fornece ferramentas para aprofundar a análise das entrevistas realizadas pelos docentes em que selecionarei trechos relacionados aos desafios e às estratégias empreendidos por estes professores na tentativa de articular diferentes dimensões temporais. 12 Marshall construiu uma análise do caminho percorrido pela cidadania na Inglaterra. O século XVIII ficou marcado pelo predomínio dos direitos civis (igualdade perante a lei, liberdade e propriedade), o século XIX foi o período do predomínio dos direitos políticos (direito de votar e ser votado, organizar partidos e fazer reivindicações políticas) e o século XX conheceu o apogeu dos direitos sociais (direito ao trabalho, à previdência, à saúde, à educação e à moradia). Para Magalhães, tal interpretação do conceito de cidadania pressupõe a existência de um movimento contínuo de expansão e universalização dos direitos. Uma das principais críticas à teoria de Marshall foi o fato de ter se concentrado exclusivamente no caso britânico, impedindo-lhe de perceber que existiram distintas trajetórias históricas de cidadania percorridas, não seguindo necessariamente o caminho linear entre os direitos civis, políticos e sociais. Em suma, o que mais se questiona de tal análise é o seu suposto grau considerável de etnocentrismo e de evolucionismo. (MAGALHÃES, 2009, p. 178).

140 Página140 DOSSIÊ VELASCO, D.B. Professores de História e os desafios de articular as demandas do presente com a história que ensina em sala de aula Segundo Spink, as categorias não podem ser compreendidas de forma desvinculada do uso e da história de sua construção. As categorias não têm um valor ou sentido que lhes seja intrínseco (SPINK, 2004, p. 83). Deste modo, parto do pressuposto de que toda pesquisa científica é uma prática social que produz sentidos e ressignificações sobre os eventos do mundo, remetendo-nos a um processo inacabado e contínuo que exige uma postura de busca permanente. Assim sendo, meu estudo busca compreender como certas categorias estão sendo mobilizadas e fixadas pelos docentes de História. Seguindo este raciocínio, considero que fazer pesquisa no campo educacional não é um processo totalmente neutro, uma vez que o pesquisador produz sentidos (provisórios) sobre os dados e o material empírico que foram recolhidos a partir de suas vivências na sociedade, seus diálogos e suas interlocuções teóricas. Entretanto, adotei certos procedimentos que evitassem direcionar as respostas dos professores entrevistados, como privilegiar no roteiro das entrevistas perguntas mais abertas as quais permitiam a eclosão de respostas diferenciadas, e que meus resultados não sugerissem possíveis prescrições. Silveira (2002) alega que as entrevistas são usadas como instrumento nas pesquisas de Ciências Humanas e, em destaque, de Educação, sendo tomadas constantemente como uma simples técnica a ser dominada, sem que se proceda a um exame radical dessa metodologia e de suas implicações. Na contramão dessa tendência, essa autora propõe que as observem como eventos discursivos forjados não apenas pelas relações entre entrevistador e entrevistado, mas também pelas imagens, representações e expectativas que circulam nos contextos de realização delas e de sua escuta/análise. Verifica-se, destarte, a presença de jogos de significação, negociações e disputas, escaramuças e retiradas estratégicas nas entrevistas realizadas para uma pesquisa

141 Página141 As articulações entre passado e presente no currículo de história..., p acadêmica; ou seja, as afirmações produzidas em uma entrevista realizada no contexto de pesquisa científica não são imparciais ou neutras, pois as falas (tanto dos entrevistadores quanto dos sujeitos entrevistados) estão situadas, tal como nos alerta Silveira: As lógicas culturais embutidas nas perguntas dos entrevistadores e nas respostas dos entrevistados não têm nada de transcendente, de revelação íntima, de estabelecimento da verdade : elas estão embebidas nos discursos de seu tempo, da situação vivida, das verdades instituídas para os grupos sociais dos membros dos grupos. (SILVEIRA, 2002, p.130) Dialogando com este entendimento sobre a importância das entrevistas nas pesquisas relacionadas ao campo educacional, concentrei minha análise nas falas dos docentes às seguintes indagações: Quais são os desafios atuais que os professores de História enfrentam para trabalhar esta disciplina? e Quais conteúdos históricos você destacaria como sendo indispensáveis para se articular ou com a realidade dos alunos ou com a formação do cidadão crítico? Minha ideia foi trabalhar com professores que lecionassem em escolas que apresentam contextos sociais, políticos e econômicos diferenciados por acreditar que poderia encontrar um universo de respostas diferentes e amplas (que se articulam ou não entre si), uma vez que, cada categoria assume um significado a partir do contexto em que se encontra inserida. Selecionei os professores através da escolha das escolas onde atuam a partir de alguns critérios: localização territorial, horário de funcionamento e desempenho na avaliação do IDEB. Adianto que, por motivos éticos, os nomes dos professores assim como das instituições escolares serão preservados. Assim sendo, farei uso de nomes fictícios para aqueles e a essas representarei por meio de códigos como Escola 1, Escola 2 e, assim, sucessivamente. Desta forma, escolhi dentre as escolas pertencentes à SME/RJ, uma escola diurna localizada no espaço urbano, uma escola diurna situada no espaço urbano com IDEB alto, uma escola diurna com IDEB baixo, uma escola classificada como Escola do Amanhã (situada em uma comunidade do Rio de Janeiro) e duas escolas onde funcionam, também, o chamado PEJA (Programa de Educação de Jovens e Adultos) nas quais as aulas são ministradas no turno da noite. Com exceção do PEJA, em que

142 Página142 DOSSIÊ VELASCO, D.B. só consegui entrevistar um educador por escola, decidi entrevistar dois professores de cada escola, uma vez que, interligando-se com meu referencial teórico, entendo os espaços das escolas como espaços abertos e múltiplos, nos quais apresentam uma multiplicidade de etnias, de gêneros, de territórios e de pertencimentos identitários. No que se refere à perspectiva que ressalta mais aos desafios enfrentados no ensino de História, observa-se pelos relatos dos docentes que tal disciplina manteve praticamente a mesma grade curricular (com exceção da inserção do ensino da História da África). Um dos grandes problemas observados pelos professores é a dificuldade de se sair de um ensino de história mais tradicional dada a quantidade elevada de matérias que são obrigados a ministrar em cada ano do Ensino Fundamental II, fazendo com que predomine ainda uma perspectiva de pouca reflexão crítica. Analisando as entrevistas, pude constatar três articulações mobilizadas em torno do conhecimento escolar. A primeira estabelece uma relação dicotômica entre reflexão crítica e conteúdo, entendendo-os como dois elementos incomunicáveis, por meio da qual não haveria possibilidade de se formar pessoas críticas através dos conteúdos escolares. Então, cada professor tem que trabalhar aquele conteúdo e da forma que ele quiser trabalhar. Ele pode trabalhar aquele conteúdo fazendo..., trazendo para a realidade do aluno ou pode fazer uma coisa super factual ou simplesmente mostrar como é que as sociedades passaram. (Roberta, Escola 4, 2012). Eu acho que o ensino de História hoje, ele até tem sofrido várias modificações graças à Internet, né, a gente tem tido várias formas de buscar, chamar atenção pra história, pros alunos terem interesse, mas, por outro lado, a minha impressão que dá é que esse interesse tá se perdendo. É que na verdade aquilo que é passado pra gente, pra gente passar pros alunos, a coisa obrigatória que a gente tem que dar, aquela estrutura enorme, são matérias extensas, às vezes você não consegue terminar e por causa disso você não consegue fazer aquilo que você estava imaginando... (Marcela, Escola 4, 2012). Os relatos acima permitem inferir a associação constante entre o ensino de história mais tradicional com os conteúdos, estando estes marginalizados, quando se pensa em questões como formação crítica do aluno ou trabalhar em interação com as experiências de vida dos estudantes. Articulado ao primeiro, o segundo discurso destacado sobre conhecimento histórico escolar pauta-se mais numa desvalorização dos conteúdos de História pelos órgãos governamentais de educação. De tal modo:

143 Página143 As articulações entre passado e presente no currículo de história..., p Eu acho que ele é muito dificultado pela pouca atenção que se dá, pelo pouco valor que se dá, a gente pode até rever isso de uma forma muito simples com as provas que o próprio município disponibiliza para os alunos. Você vê que é Português e Matemática, Ciências e, até agora, Geografia e História não. De uma maneira clássica e clara a desvalorização das matérias como se fosse uma parte que não tivesse nenhuma importância (...) (Renata, Escola 3, 2012) Na fala dessa professora é possível perceber fluxos de sentidos no que diz respeito ao ensino de História. Sua fala destaca a questão do enfraquecimento do conhecimento histórico escolar em detrimento de outras disciplinas como, por exemplo, Língua Portuguesa e Matemática. Na entrevista concedida por Renata, fica visível a preocupação em demonstrar como, ano após ano, aumentam as preocupações dos órgãos governamentais de educação em avaliar o que os alunos aprendem por meio da realização de provas padronizadas. Entretanto, a disciplina escolar História não aparece nesses tipos de avaliação, priorizando-se, principalmente aquelas duas citadas antes, mostrando, um caso, de segregação disciplinar. O terceiro discurso que se hibridiza em torno do significante conhecimento histórico escolar nestas entrevistas é aquele que o associa diretamente ao termo conteúdismo, que, por sua vez, encontra-se encadeado às concepções de história tradicional, positivista e linear. (...) eu posso dizer que pouco se avançou naquela perspectiva que ainda continua, a perspectiva conteúdista, a perspectiva de pouca reflexão crítica, de generalizações, de uma escola ainda voltada pra uma decoreba, posso assim dizer, e pouco se analisa uma perspectiva de uma História Crítica a partir de um ponto de vista dos de baixo ou numa perspectiva crítica, reflexiva da história. Então, de maneira geral, alguns colegas, que mais trabalho, pouco insistem trabalhar com uma História Crítica. (...) Então, de maneira geral não superou essa visão de uma escola, de um ensino positivista, baseado ainda nos grandes feitos, nos grandes nomes, enfim, muito inclusive dissociada da realidade que eles vivem. Parece um grande olhar pro passado, mas sem trazer questões pro presente. (Rafael, Escola 2, 2012) Em linhas gerais, as entrevistas possibilitam, portanto, fixar três sentidos para o conhecimento histórico escolar quando pensamos nas dificuldades e desafios atuais enfrentados pelos docentes que atuam na Educação Básica: (i) incompatível com a reflexão crítica; (ii) desvalorização em detrimento das outras disciplinas; (iii) associado à noção de conteudismo e da concepção de ensino de História mais tradicional.

144 Página144 DOSSIÊ VELASCO, D.B. Entretanto, não devemos pensar que as entrevistas se limitam a pontuar tais obstáculos. Considero um ponto interessante as respostas que surgiram sobre como estes docentes procuravam trabalhar a História em diálogo com o tempo presente vivido pelos seus discentes. Sobre esta questão, vale mencionar algumas ideias presentes nas obras de alguns teóricos da área da História. Por exemplo, Koselleck (2006) traz contribuições no sentido de raciocinar o tempo histórico. Para este autor, todas as histórias foram e continuam sendo constituídas pelas experiências vividas e pelas expectativas das pessoas. Deste modo, arrisca argumentar que tanto a expectativa e quanto a experiência são constitutivas do tempo histórico. Segundo seu pensamento, experiência e expectativa são duas categorias adequadas para nos ocuparmos com o tempo histórico, pois elas entrelaçam passado e futuro (KOSELLECK, 2006, p. 308). De forma sintética, pode-se afirmar que a experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados. Já a expectativa é futuro presente, para o ainda-não, para o que apenas pode ser previsto. Portanto, cada tempo presente constitui uma relação particular entre passado e futuro. Segundo Koselleck, o tempo histórico é produzido, consequentemente, pela tensão e pela distância criada entre o campo da experiência e o horizonte da expectativa. É na reflexão sobre essa tensão que o conceito de regime de historicidade, desenvolvido por Hartog, pode nos fornecer alguns esclarecimentos teóricos para nossa reflexão. Hartog (2014) defende que os regimes de historicidade são aportes teóricos potentes para colocar em foco os diferentes modos de relação com o tempo, ou seja, as formas da experiência do/com o tempo nas mais diferentes sociedades que existiram e ainda existem. O regime de historicidade não pretende falar da história do mundo que passou ou do que está por vir, mas sim indagar sobre as diferentes maneiras de ser no tempo (HARTOG, 2014, p. 29). Instigado a responder questões como: Que relações manter com o passado e com o futuro? Como habitar o presente? O que destruir, conservar, reconstruir?, este autor entende a fertilidade teórica deste conceito pressupondo que A hipótese do regime de historicidade deveria permitir o desdobramento de um questionamento do historiador sobre nossas

145 Página145 As articulações entre passado e presente no currículo de história..., p relações com o tempo. Historiador, por lidar com vários tempos, instaurando um vaivém entre o presente e o passado, ou melhor, passados, eventualmente bem distanciados, tanto no tempo quanto no espaço. Este movimento é sua única especificidade (HARTOG, 2014, p. 37). Em linhas gerais, cabe salientar que o cerne de sua preocupação é analisar as relações do tempo presente com os passados e futuros que o circundam, mostrando, assim, convergências com aquilo que destacamos do pensamento de Koselleck. Portanto, o chamado regime de historicidade se pretende uma ferramenta heurística com a finalidade de melhor compreender não a totalidade do tempo, mas principalmente os momentos de crise do tempo quando justamente as imbricações entre passado, presente e futuro se desestabilizam. Um regime de historicidade nunca foi uma entidade metafísica e de alcance universal. Vincula-se à expressão de uma ordem dominante do tempo, podendo, enfim, ser concebido como uma maneira de traduzir e de ordenar experiências do tempo e de dar-lhes sentido. No caso, um regime de historicidade instaura-se lentamente e tende a durar por longo tempo. Com o regime de historicidade, toca-se em uma das possibilidades da produção da escrita da história: de acordo com as relações respectivas do presente, do passado e do futuro, determinados tipos de história são possíveis e outros não (HARTOG, 2014, p. 39). As reflexões que me proponho aprofundar nas próximas páginas se inscrevem nesse mesmo movimento, contribuindo para pensar quais articulações temporais são elaboradas dentro das aulas de História. Revisitando as entrevistas realizadas, destaco que neste momento minha preocupação foi a de procurar responder a seguinte questão: Quais demandas/discussões atuais podem ser importantes pontos de partida para relacionarmos com os conteúdos e conhecimentos trabalhados na sala de aula? Analisando as entrevistas, constatei a hegemonia de três discursos no que se refere às temáticas do presente mobilizadas para fazer uma articulação com o passado histórico narrado e selecionado na esfera da sala de aula. O primeiro discurso hegemônico foi aquele relacionado às concepções de Democracia e Cidadania. Assim sendo, posso afirmar que as discussões em torno destes dois conceitos (seus significados, funcionamentos, avanços, mudanças e permanências) apareceram na

146 Página146 DOSSIÊ VELASCO, D.B. maior parte das entrevistas. Como podemos visualizar, alguns professores exemplificaram este tema enfatizando a questão da chamada Democracia Ateniense, conteúdo que tradicionalmente é trabalhado dentro da rede municipal do Rio de Janeiro no 6º ano do Ensino Fundamental II: Mais do que essa coisa, assim, do que ele adquirir conhecimento acadêmico, aquela coisa conteudista, é ele conseguir com elementos que tem com as ferramentas entender, por exemplo, que a questão da escolha, ela é melhor do que a imposição. Ou que ele tem que lutar para que haja escolhas. Numa das provas que eu fiz agora, eu coloquei, estava dando aula sobre Grécia Antiga, e um dos pontos é ele entender qual das opções abaixo seria a mais democrática (entre aspas). Então, (...) a mãe vai passear com o filho, mas não pergunta para que lugar ele quer ir, ela decide; ele ganha um sorteio de uma viagem, mas o destino é pré-determinado ou os alunos da sala fazem votação para escolher que filme vão ver durante a aula. Assim, essa ideia de que em um dos pontos eu escolho e nos outros me é imposto, eu acho que é o início, uma semente de formação que eu tenho o direito de escolher. (...) E depois, a gente... eu pulo, assim, vou destacar a parte de Grécia com a pseudodemocracia, que é bem diferente da atual. Noventa por cento não tinha acesso às decisões. Mulher não era considerada cidadão, existia escravidão, então, mostrar que a realidade atual é diferente e se é diferente, não continua igual, é porque alguém lutou para ser diferente (Aline, Escola 2, 2012). Aí trabalhei aquela questão da democracia ateniense, o que era o conceito de democracia deles, o que é o nosso hoje. Fiz questão de mostrar para ele, que colocar alguém no poder para representar a gente, talvez, não seja tão mais democrático do que uma minoria tomar decisões diretamente na Grécia. Mas, é sempre muito complicado, é sempre muito complicado, você trabalhar a realidade do aluno. (...)E eu pergunto essa democracia indireta, representativa é uma democracia? Quem é que tem condições de fazer uma campanha política? Quem é que... tá entendendo o que eu tô falando? Você está sendo representado lá? Então é uma forma de tentar contextualizar (Arthur, Escola 1, 2012). Percebe-se a preocupação dos professores em problematizar tal conceito a uma simples participação eleitoral. Além disso, é possível verificar o interesse em discutir tal temática no sentido de apresentar as limitações no funcionamento do atual sistema democrático brasileiro bem como suas contradições. Além disso, cabe destacar que o termo Democracia em algumas entrevistas foi utilizado não para fazer uma dicotomização com termos como Ditaduras ou Autoritarismos, mas na tentativa de estabelecer vínculos entre tais períodos, buscando problematizar a questão da violência do Estado no período atual como podemos verificar no extrato abaixo:

147 Página147 As articulações entre passado e presente no currículo de história..., p E, na realidade, a meu ver, História é hoje, ela continua sendo uma disciplina que possa contribuir para uma visão crítica de uma realidade qualquer. Como você trabalha hoje com, por exemplo, a questão da Ditadura se pouco se fala essa questão? Há mais de 40 anos, um pouco mais, você não trabalha isso porque ainda hoje não se fez um, minimamente, não se abriu para uma perspectiva mais crítica ainda que tenha algumas tentativas, né, Comissão da Verdade, mas poucos alunos conhecem. Então, acho que trabalhar com história, por exemplo, nessa perspectiva desse exemplo, você pode trabalhar com uma música do Chico Buarque, Vai Passar, e tentar inserir o que que foi a ditadura por mais difícil que seja, que você vai trabalhar com violência, pessoas que desapareceram, mas como é que se trabalha com um tema mesmo espinhoso, mostrando que a violência continua hoje, né? Nas prisões hoje, nos cárceres que não... as pessoas não morrem hoje na Ditadura, morrem hoje na Democracia. Então, tem uma continuidade, tem uma prática de criminalização da pobreza, tá nos guetos, nas favelas, nas periferias, tá e dá pra se fazer uma relação. Hoje, se fala que o Estado não mata, mas ainda hoje há, estudos, né, da ONU comprovam que o Estado brasileiro é ainda é um dos mais violentos. Então, você pode, a partir dessa perspectiva, fazer uma relação até com a Ditadura, dando esse exemplo. (...) Fazer boas questões do passado pra poder entender o presente e eles mesmos, na prática deles de cidadãos, poderem tá minimamente contribuindo pra transformar essa sociedade, as injustiças que continuam. Acho que História é isso, perceber o passado, mas que o presente ainda há questões que não foram resolvidas (Rafael, Escola 2, 2012). O discurso das relações de trabalho foi outro tema que apareceu de forma intensa nas entrevistas analisadas. Em termos gerais, as narrativas escolares históricas referentes aos conteúdos da Escravidão Colonial e da Revolução Industrial foram as mais mobilizadas pelos docentes no sentido de procurar fazer esta intermediação entre as escalas temporais do passado e do presente. Pensar as heranças do passado escravista na configuração social e econômica do Brasil atual, comparar as rotinas de serviços e tributos as quais os trabalhadores foram e são submetidos, refletir sobre o impacto do consumismo nas sociedades contemporâneas bem como analisar as condições atuais de emprego e exploração no chamado mercado de trabalho foram marcas discursivas que apareceram com bastante evidência nas falas dos docentes, como podemos destacar nos trechos abaixo: Depois, trabalhando a importância, falando a importância do trabalho. Então, em cada comunidade, em cada sociedade que a gente vai trabalhando, eu faço questão de mostrar como é que o trabalho era realizado, se era o trabalho escravo, se não era... E vamos ver hoje, né, quando se arruma um emprego, como é que é, quais são os tributos que a gente paga hoje? A gente paga tributos? Você acha

148 Página148 DOSSIÊ VELASCO, D.B. válido esse tributo? O tempo inteiro eu quero perguntar eles o que eles acham disso. Nem sempre as respostas são como você queria (Roberta, Escola 4, 2012). Olha, eu acho que partindo pra questão prática, o tema, o tema mais prático, que é o tema mais próximo do aluno é Revolução Industrial. Porque da Revolução Industrial, eu sempre costumo trabalhar, por exemplo, aquele filme Tempos Modernos. Aí, eu trabalho Tempos Modernos, aí tem uma outra música que também coloco sobre a questão de revolução, sobre a Revolução Industrial, aí eu entro na questão toda do que é necessário, do que é supérfluo, entro na questão do consumismo, entro na questão toda das novas tecnologias, entro na questão do trabalho. Então, o que que acontece? Aí, tudo interligado. Entendeu? (Gustavo, Escola 5, 2013). Cabe ressaltar o aparecimento de temas como marginalizações, exclusões, violências e práticas discriminatórias nas falas destes docentes. A emergência destas temáticas aparece principalmente na tentativa de fazer os alunos refletirem sobre os diferentes tipos de exclusões que ocorreram ao longo do tempo, identificarem as práticas de marginalização existentes nos dias atuais bem como combatê-las. Assim como pude perceber anteriormente, a temática da escravidão no Brasil bem como o contexto do país nos períodos pós-abolição da escravatura e após o final do período imperial foram enfatizados nos relatos selecionados. Assim sendo: É, dentro dessa minha ideia do que seja, que é mostrar a eles, pelo menos dar pistas a eles, de que o mundo nem sempre foi assim e por conta disso pode mudar. Eu acho que dentro das disciplinas, que os meus colegas não me ouçam, eu acho que a História é a que tem mais capacidade para fazer isso, entendeu? Porque a gente pode lidar com preconceito, mostrando, né, eu digo para eles: Vocês têm tanto medo de ser antigos e isso... Gente, o que é preconceito racial? Um negócio do século XIX, tu tá no século XXI... Cara, tira isso da cabeça! (...)Eu dei uma prova agora no 8º ano e estava falando sobre essa questão de, 8º ano tava chegando em final de Império, princípio de República e uma das questões, era eles refletirem sobre esse projeto, o projeto da abolição, que não incluía o pós-abolição e o interesse dos ingleses dentro desse projeto da abolição. Cara, eu tinha falado isso umas 3 aulas: Gente, pensa bem, não é possível você acreditar que se não tinha um projeto pós-abolição, que essa sociedade nunca aceitou esses negros, é possível acreditar que a Inglaterra estivesse de olho nos negros libertos, trabalhando, consumir produtos ingleses? Gente, para pra pensar! (Cláudia, Escola 3, 2012) Essa é uma pergunta bem... bem complexa porque há toda uma cobrança pra se dar, se passar o conteúdo. Mas sabemos que o conteúdo, ele isolado, ele acaba sendo, não tendo nenhuma importância útil nessa perspectiva que eu estou salientando e

149 Página149 As articulações entre passado e presente no currículo de história..., p sustentando de um processo cumulativo, integrador com a realidade do aluno. Eu confesso que é possível em algumas aulas, mas ainda eu não encontrei esse tipo de trabalho. Por exemplo, estava trabalhando agora com as Reformas Pereira Passos, as reformas urbanas que obviamente teve a ver com a integração, a subordinação de um modelo europeu, né... A cidade civiliza-se e que a população que vivia nos cortiços, população pobre, as camadas populares, negros e eximigrantes pobres foram relegados a cortiços e depois ao morro, à favela. Houve uma segregação, não racial, mas social do segmento da população do Rio de Janeiro. E é possível você perceber, nessas aberturas, nessas brechas, casa com a realidade deles. É a realidade que ainda hoje, esses locais pobres, não só favela, Baixada, as ocupações e por que que hoje, ainda hoje, as habitações populares, as habitações coletivas são tratadas de uma maneira, senão com pouca importância, até mesmo de maneira totalmente pouco prioritária pelos governos, né? Haja vista as desocupações que tão acontecendo agora. (Rafael, Escola 2, 2012). É importante destacar, outrossim, que outras questões apareceram de modo menos intenso na fala dos professores. Chamo a atenção para temáticas voltadas à participação das mulheres, buscando, por exemplo, comparar esta atuação ao longo do tempo e à corrupção, quando muitos professores afirmavam ter o interesse em demonstrar para os alunos que ela não é algo recente na construção da história do país. Podemos visualizar estas questões nos trechos abaixo: O tempo inteiro eu tenho tentado fazer isso, mas vamos traduzir em palavras. A cada momento que tem um fato, um acontecimento importante dentro do país, eu gosto que eles dêem o seu posicionamento. (...). Eu gosto que eles dêem o posicionamento. Você viu esse filme? Você gostou desse filme? O que que você gostou? Você acha que é bom um homem tratar uma mulher assim? Que as mulheres não pudessem fazer isso? Eu falei assim. Aí, eu pego uma música, Chico Buarque, mire-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas, vamos fazer, vamos refletir. Você acha que uma mulher hoje tem o papel disso? Pra eles, a maioria, na comunidade onde eu trabalho, eles são extremamente machistas. Então trabalhar isso de que a mulher tem o direito de ser uma mulher independente, é preciso discutir isso muito em sala. E isso dá muita briga, isso dá muita briga, então, o tempo inteiro trabalhando isso (Roberta, Escola 4, 2012). Eu acho que é muito importante, bem mais importante, pra eles entenderem o que tá acontecendo hoje, fica muito mais próximo, por incrível que pareça, a gente tá falando do início do século XX e parece pra eles que tá falando de hoje em dia porque tudo em História demora muito pra se transformar, né? (...)Então, é por isso que, pra eles: mas, professora, você tá falando de corrupção?, estou.

150 Página150 DOSSIÊ VELASCO, D.B. Mesma época, entendeu? Isso aproxima muito. Fica fácil deles entenderem. (Renata, Escola 3, 2012) Considerando ser este artigo um exercício inicial de reflexão, novas produções serão necessárias para confirmar, ou não, as considerações coletadas para este artigo. Em termos de considerações finais, destaco, portanto, que as entrevistas analisadas me permitem visualizar que conceitos como Democracia, Cidadania, Preconceitos, Discriminações, Relações de Trabalho principalmente quando se encontram articulados a temas da História do Brasil como Escravidão e Ditadura ou da História Geral como Democracia Ateniense e Revolução Industrial ocupam, provisoriamente, a cadeia definidora do que é um ensino de História de qualidade em que é importante articular o saber histórico escolar com o que tradicionalmente é denominado de realidade do aluno. Resta pesquisar em outros materiais didáticos de História ou nas falas de outros docentes como estas articulações entre as dimensões do passado e do presente estão se aproximando ou se distanciando destas minhas percepções iniciais. Considerações Finais Minha proposta de investigação sobre os desafios e estratégias adotados pelos docentes de História sustentou-se na aposta política no conhecimento escolar como objeto incontornável nas disputas pela construção de uma escola democrática (GABRIEL & CASTRO, 2013, p. 83). Assim sendo, coloco-me neste debate em prol da importância do conhecimento histórico escolar, analisando-o em outras bases, pensando-o sob rasura. Gabriel e Ferreira (2012, p. 227), citando Stuart Hall, apontam que o sinal de rasura indica que certos conceitos-chaves não são mais bons para pensar em sua forma original, não reconstruída. Mas como não foram ainda dialeticamente superados (ou como ainda não existem outros conceitos para suplantálos), o que se deve fazer é continuar pensando neles em outros paradigmas. Portanto, minha proposta aqui não foi a de criar nenhum tipo de juízo de valor sobre as falas analisadas, mas sim refletir sobre como os professores lidam com este desafio de trabalhar com o conhecimento histórico escolar no sentido de contribuir para um ensino público de qualidade. Minha intenção não foi de apontar soluções ou

151 Página151 As articulações entre passado e presente no currículo de história..., p estratégias, mas sim de compreender quais problemas/demandas atuais influenciam nas seleções destes docentes quando tentam interligá-las com as narrativas do passado histórico no espaço da sala de aula. Mais do que conclusões fechadas, a escrita deste artigo me suscitou novos questionamentos, tais como: Quais demandas do tempo presente aparecem com mais intensidade nos textos e exercícios dos livros didáticos de História? Como os alunos reconfiguram estas articulações entre as escalas do presente e do passado em seus processos de formação? Como estas discussões sobre as relações entre os tempos do presente e do passado aparecem nas avaliações? E quando aparecem, tal diálogo se torna mais potente na integração com quais conteúdos escolares? Como os cursos de formação inicial e continuada de professores pensam e trabalham essas discussões sobre as propostas de se ensinar a História de modo mais contextualizado com a realidade vivenciada pelos estudantes? Como lidar com este desafio de formar cidadãos críticos com o aparecimento de obstáculos como o Projeto do Escola Sem Partido? É em nome do potencial subversivo deste conhecimento escolar que defendo a pertinência de estudá-lo em seus diferentes contextos de produção, distribuição e apropriação.

152 Página152 DOSSIÊ VELASCO, D.B. Referências BITTENCOURT, C. Capitalismo e cidadania nas atuais propostas curriculares de história. In: BITTENCOURT, C (org.). O saber escolar na sala de aula. São Paulo: Contexto, CARDOSO, O. A Didática da História e o slogan da formação de cidadãos. Tese de Doutorado, Faculdade de Educação, USP, GABRIEL, C. T. Um Objeto de Ensino Chamado História: a disciplina de História nas tramas da didadtização. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro: PUC, GABRIEL, C. T. Currículo de História: investigando sobre saberes aprendidos e construções de sentido na educação básica. In: VII Colóquio sobre questões curriculares III Colóquio Luso Brasileiro: Globalização e (des) igualdades: desafios curriculares. Braga, GABRIEL C.T. e CASTRO. M. M. de. Conhecimento escolar: objeto incontornável da agenda política educacional contemporânea. Revista Educação em Questão, Natal, v. 45, n. 31, p , jan/abr GABRIEL, C. T. e COSTA, W. da. Que negro é esse que se narra no Currículo de História? Revista Teias, Rio de Janeiro, v. 11, n. 22, p , maio / agosto GABRIEL, C. T e FERREIRA, M. S. Disciplina escolar e conhecimento escolar: conceitos sob rasura no debate curricular contemporâneo. In: LIBÂNEO, J.C. e ALVES, N. (orgs.) Temas de Pedagogia: diálogos entre didática e currículo. São Paulo: Cortez, HARTOG. F. Regimes de Historicidade: Presentismo e Experiências do Tempo. Coleção História e Historiografia. Belo Horizonte: Autêntica Editora, KOSELLECK, R. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, LOPES, A.C. Conhecimento Escolar e Conhecimento Científico: Diferentes Finalidades, Diferentes Configurações. In: LOPES, A. C. Currículo e Epistemologia. Ijuí: Editora UNIJUÍ, MAGALHÃES, M. História e Cidadania: por que ensinar história hoje? In: ABREU, M e SOIHET. R. (org.). Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2009 MONTEIRO, A.M.F.C. Professores de História: Entre saberes e práticas. Rio de Janeiro: Mauad X, SILVA, T. T. da. Documentos de identidade: Uma introdução às teorias do currículo.belo Horizonte: Autêntica, SILVEIRA, R.M.H. A entrevista na pesquisa em educação uma arena de significados. In: COSTA, M.V. (org.). Caminhos Investigativos II: outros modos de pensar e fazer pesquisa em educação. Rio de Janeiro: DP&A, SPINK, M. J. (Org.). Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 2004

153 A Voz Do Professor: Tecnologia Digital, Ensino De História E Relações Étnico-Raciais The Teacher's Voice: Digital Technology, History Teaching And Ethnic-Racial Relations RESUMO Ana Carolina Mota da Costa Batista * A discussão aqui presente propõe retomar o debate sobre as relações étnico-raciais e o ensino da temática de história e cultura afro-brasileira no currículo, a partir das leis /2003 e /2008, considerando também a perspectiva da autonomia do trabalho docente na construção do currículo e no diálogo com os processos históricos de resistência negra e de enfrentamento das formas explícitas e implícitas de racismo. A partir das experiências e saberes acumulados, o professor e sua relevante contribuição foram considerados para se pensar nos possíveis avanços sobre a inclusão da História da África e Cultura Afro-brasileira no currículo. Tamanho debate traz como proposta pedagógica uma formação continuada que objetiva ofertar ao professor uma ferramenta tecnológica educacional para pesquisar, compartilhar e dialogar sobre as relações étnico-raciais junto a seus pares. Palavras-chave: Ensino de História. Currículo. Relações étnico-raciais. Voz do professor. Tecnologia educacional. ABSTRACT The discussion here present proposes to resume discussions on ethnic-racial relations and the teaching of the subject of history and african-brazilian culture in the curriculum, from the laws /2003 and /2008, also considering the prospect of autonomy of teaching in the curriculum construction and dialogue with the historical processes of black people resistance and confronting the explicit and implicit forms of racism. From the experiences and accumulated knowledge, the teacher and his outstanding contribution were considered to think about the possible progress on the inclusion of African History and Afro-Brazilian Culture in the curriculum. This huge debate brings as a pedagogical proposal the continued training which aims to offer the teacher an educational technology tool to research, share and dialogue on ethnic-racial relations with his peers.. keywords: History Teaching. Curriculum. Ethnic-racial Relations. Teacher s Voice. Educational Technology. * Mestra em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora de História na Educação Básica pela Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro (Ensino Médio Integral) e pela Secretaria Municipal de Educação de Araruama (Ensino Fundamental). annacarolina.edu@gmail.com

154 Página154 DOSSIÊ BATISTA, A.C.M.C Introdução Ao ingressar no PROFHISTÓRIA 13, em agosto de 2014, a Secretaria Municipal de Educação de Araruama (Baixada Litorânea, Rio de Janeiro) iniciou um debate junto aos professores da rede para a reforma de sua proposta curricular do ensino fundamental. Sendo eu professora de História da rede, também busquei participar das discussões. Logo, surgiu o interesse em fazer do currículo objeto da minha pesquisa no mestrado. Porém, o desafio foi identificar o que pesquisar especificamente sobre o currículo e o ensino de história. Algumas experiências pessoais e inquietações sociais foram orientando a delimitação do tema. Inicialmente, surgiu a ideia de uma discussão sobre valores presentes ou não no currículo. Mas foi o contato com as disciplinas e professores do programa de mestrado que abordaram temas como escravidão, identidade, patrimônio imaterial e movimento negro no pós-abolição, que me levaram a escolha das relações étnico-raciais no currículo. A contribuição das leituras e das discussões orientadas por professores especialistas como Hebe Mattos, Martha Abreu e Amílcar Pereira ofereceram uma rica oportunidade de se perceber o quanto o currículo ainda negligencia essas questões na Educação Básica. Logo, possibilitar que todos os brasileiros tenham acesso às mesmas oportunidades de protagonizar a História do Brasil e da sua localidade, valorizando a sua participação nessa construção, torna-se fundamental na formação das crianças e jovens. Em Por uma autêntica democracia racial!: os movimentos negros nas escolas e nos currículos de história, Pereira (2008), que tem se debruçado sobre a análise das relações étnicos-raciais na educação, assim como Silva (1995), em A discriminação do negro no livro didático, aproximam-se na seguinte conclusão: os materiais didáticos têm apresentado referências negativas, reproduzindo estereótipos atribuídos à 13 Programa Nacional de Mestrado Profissional em Ensino de História.

155 Página155 A voz do professor..., p população negra. Diante do quadro, podemos alcançar como resultado o desinteresse pelas questões políticas e pela luta contra as injustiças sofridas. Essas questões me levaram a aproximação com professores da rede municipal de Araruama, também dos coordenadores de áreas disciplinares. Uma escolha fundamental foi a escola da rede para o desenvolvimento da pesquisa, a Escola Municipal Pastor Alcebíades Ferreira de Mendonça. Essa Unidade recebe alunos da comunidade quilombola de Sobara e, como relatado por profissionais que integram a equipe da escola, realiza alguns projetos que objetivam levantar a autoestima dos seus alunos e da comunidade, a partir da memória, identidade, valorização local. Logo, dialogar com docentes, conhecendo suas experiências com as relações étnico-raciais no currículo representou uma significativa contribuição para a estruturação da plataforma. A proposta objetiva dialogar com o professor, negligenciado, na maioria dos debates curriculares. A partir da sua proximidade com os maiores interessados sobre valores representados no currículo, relaciona-se diretamente com o aluno e com a comunidade escolar. As experiências acumuladas em sala de aula ou fora dela, na sua formação e trajetória, podem contribuir expressivamente para a construção de um currículo que incorpore a demanda de grupos diversos em nossa sociedade. Inserir o professor nesse debate pode ser relevante, a fim de que o currículo se torne um documento de identidade plural, afastando-se da orientação dominante dos grupos que se perpetuam no poder. Levar uma expressiva discussão teórica sobre relações étnico-raciais e currículo à prática, a partir do uso de Tecnologias Digitais, é a finalidade desse trabalho. Apresentaremos A voz do professor, uma plataforma tecnológica educacional, que objetiva ofertar ao professor a possibilidade de pesquisar, compartilhar e dialogar questões voltadas à educação das relações étnico-raciais junto a seus pares. Um espaço online para contínuo diálogo entre professores A sala de aula é o espaço onde o professor entra em cena e apresenta aos seus alunos uma nova chance ou oportunidade para que crianças e jovens enxerguem o mundo de maneira diferenciada, a partir do conhecimento, que se produz também na escola, por meio das relações, do diálogo e das experiências vivenciadas dentro e fora

156 Página156 DOSSIÊ BATISTA, A.C.M.C dela. Segundo Chervel (1990), a escola não se orienta simplesmente pela transmissão dos saberes pensados além de seus muros. Caso se apropriasse exclusivamente dos saberes da ciência moderna, estaria correndo o risco de não cumprir a sua verdadeira missão. Quando exclui parte desse conhecimento, não é por incapacidade dos seus mestres, certamente. Sobre o caso, o autor afirma: A concepção de escola como puro e simples agente de transmissão de saberes elaborados fora dela está na origem da ideia, muito amplamente partilhada no mundo das ciências humanas e entre o grande público, segundo a qual ela é, por excelência, o lugar do conservadorismo, da inércia, da rotina. Por mais que ela se esforce, raramente pode-se vê-la seguir, etapa por etapa, nos seus ensinos, o progresso das ciências que se supõe ela deva difundir (CHERVEL, 1990, p.195) Inserido nessa dinâmica, o professor se apresenta como um dos personagens ativos, peça-chave na construção desse conhecimento, conjuntamente com os alunos. Sua relação com o discente e com toda a comunidade escolar, além das experiências acumuladas ao longo da sua trajetória, dentro e fora da escola, tem dinamizado a sala de aula. Algumas questões podem ser levantadas a fim de que possamos pensar nas condições que permitem ou favorecem a construção desse conhecimento, até que este ganhe forma e se estabeleça no espaço escolar, a partir do saber e fazer dos professores. Primeiramente pensemos: Como o professor tem planejado suas aulas? Ele parte de qual orientação dos conteúdos para planejar? Que usos o professor faz da pesquisa, ou seja, onde ele busca materiais que se articulem com seus alunos e com a comunidade escolar para trabalhar os conteúdos, principalmente sobre temas que não domina? Como esse professor tem dialogado com a comunidade escolar local? Ele tem acesso a fontes que representem a história, a dinâmica e a cultura local dessa comunidade? A apreensão da realidade é fundamental para o ato de ensinar, como já afirmou Paulo Freire (2011). Para que possamos intervir e transformar a realidade, o aprendizado é peça-chave, sua finalidade não se resume meramente a nossa adaptação. Considerar os saberes constituídos na prática comunitária, hábitos, costumes e práticas cotidianas do educando compõe essa maneira de intervir no mundo, através da educação. Essas práticas vêm sendo redesenhadas por novas tecnologias. Celulares, redes sociais, smartphones, jogos, twitter e ambientes virtuais de aprendizagem são utilizados tanto pelos alunos como pelos professores. De forma rápida e frequente, as

157 Página157 A voz do professor..., p Tecnologias Digitais de Comunicação e Informação (TDIC) vêm mediando a interação do indivíduo com a sociedade (GALASSO & SOUZA, 2014). Um universo que vertiginosamente vem fazendo parte da realidade do aluno e, raramente, meios ou recursos tradicionais têm ganhado a atenção de jovens mergulhados nas atrativas e fascinantes redes sociais. Porém, não só alunos se encontram envolvidos nessas redes, mas professores também participam de grupos, se relacionam, dialogam e se informam através delas. A tecnologia digital não compõe somente a realidade de crianças e jovens, mas integra a dinâmica de todas as faixas etárias, seduzindo muitos. Essa revolução digital, se assim podemos chamar, permitiu que saberes circulem de forma bastante diversificada, a partir de dados disponíveis na rede, interligados por hiperlinks que remetem o usuário a diferentes espaços nesse ambiente virtual. Esses dados podem ser acessados por dispositivos diversos, como desktops, laptops, smartphones, videogames e tablets, podem também ser salvos, por exemplo, em pendrives ou nas chamadas nuvens, que permite ao usuário visualizar seus arquivos salvos e transmitidos em tempo real, em qualquer um dos dispositivos enumerados anteriormente, de qualquer lugar, como exemplo, temos o Dropbox e o OneDrive. Muito além de entretenimento, o universo digital trouxe inúmeros benefícios para profissionais da educação. Hoje é possível pesquisar, obter informações com apenas alguns cliques, buscar aperfeiçoamento profissional, formar grupos para troca de mensagens instantâneas e experiências profissionais. Nesse sentido, a tecnologia educacional online não pode ser confundida com um canal fornecedor de informações, responsável pela construção da concepção compartilhada, de modo coordenado e singular. Trata-se de um processo em que os participantes interagem, compartilham e edificam o aprendizado, mutuamente, por meio da construção conjunta do conhecimento, respeitando a iniciativa de cada um. O aprendizado que ocorre no ambiente virtual dispensa hierarquias, ao contrário, se baseia no empenho coordenado em busca de um objetivo comum (GALASSO & SOUZA, 2014). Por esse motivo, é fundamental ter cautela, para que não se transforme plataformas tecnológicas educacionais num mero procedimento educacional presencial, sem reproduzir os ranços do tradicional numa moderna fachada, como é possível perceber em boa parte dos livros didáticos. Portanto, a EAD deve lançar mão das diferentes matrizes linguísticas, incluindo a corporeidade e a interatividade,

158 Página158 DOSSIÊ BATISTA, A.C.M.C correlacionando-as num todo mais ou menos coerente (CAVENAGHI & ANDRE, 2014, p.153) Apesar da distância da comunidade de Sobara com relação às áreas mais urbanas, muitas famílias possuem acesso a internet e as redes sociais, segundo informações fornecidas pela orientadora pedagógica da escola, porém essa não é a realidade da unidade escolar, que não possui acesso algum. Já as professoras informaram ter acesso particular, em suas residências. Isso tornou possível a proposta de elaborar um espaço online para formação continuada de professores. Lugar onde o docente poderá desenvolver a pesquisa e o planejamento escolar junto aos seus colegas, colaborando, aprendendo, trocando conhecimento e experiências curriculares voltadas às questões étnico-raciais na escola, na localidade e na sociedade em geral. A ideia é incentivá-lo a fazer da pesquisa, da leitura e do debate, uma prática, que pode perpetrar toda a diferença na sala de aula. A dinâmica do conhecimento é mutável, logo o planejamento também precisa ser, pois o aluno sente expressivamente essa mudança, a partir das tecnologias, das rupturas sociais, das resistências, dos confrontos, dos preconceitos, das reparações, dos direitos. A escolha O propósito aqui é apresentar o caminho trilhado até a escolha da plataforma Edmodo e como podemos explorar de maneira criativa os recursos oferecidos, refletindo sobre tecnologias digitais acessíveis ao professor na atualidade. Podemos apontar diversos meios que podem facilitar o diálogo e o aperfeiçoamento dos profissionais da educação, mas vamos focar em dois deles nas linhas a seguir: a plataforma voltada para educação à distância, como o Moodle 14 e a plataforma de mídia social, Edmodo 15. Como sugerido pelo PROFHISTÓRIA, o concluinte apresenta uma proposta de produto final, com o objetivo de contribuir para o Ensino de História na Educação 14 Utilizado principalmente num contexto de educação tecnológica, o programa permite a criação de cursos "online", páginas de disciplinas, grupos de trabalho e comunidades de aprendizagem, estando disponível em diversas línguas. Disponível em: < Acesso em: 25/06/ Edmodo é um microblog educacional, cujo dono é o LinkedIn. O aplicativo permite criar um grupo específico para estudantes e excluir quem não foi convidado. É uma ferramenta que auxilia a integração aluno-professor na internet. Disponível em: < Acesso em: 25/06/1016.

159 Página159 A voz do professor..., p Básica. De acordo com o levantamento teórico realizado anteriormente a estruturação dessa formação, a demanda do conhecimento que envolve as relações étnico-raciais no fazer docente é uma constante, seja na sua formação inicial ou continuada. Os avanços nas pesquisas sobre História da África e Cultura Afro-brasileira, gradualmente, estão avançando no espaço escolar, principalmente, a partir da lei /2003, complementada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Sobre o professor que está em sala de aula, percebemos que os saberes mobilizados por ele são provenientes de suas experiências vivenciadas dentro e fora da escola, do diálogo com pares, formação e material didático. Seria interessante reunirmos a tecnologia digital com algumas fontes desses saberes mobilizados, permitindo ao docente uma experiência capaz de compartilhar, pesquisar, acessar informações e discussões acadêmicas recentes sobre a temática, além de explorar conteúdos e recursos. Para essa finalidade, inicialmente, foi escolhida uma plataforma desenvolvida para fins educacionais, livre, ou seja, gratuita, que permitisse o gerenciamento de membros e inclusão de conteúdos diversos. Porém, a plataforma requer instalação complexa e conhecimento elementar de programação para configurar as ações e recursos disponíveis. Uma, entre as mais significativas experiências vivenciadas no PROFHISTÓRIA, foi a possibilidade de compartilhar experiências e projetos com pares nas disciplinas propostas pelo programa. Em agosto de 2015, teve início a disciplina de Seminário de Pesquisa, a dinâmica das aulas foi baseada nas apresentações dos projetos, os alunos ouvintes, após leitura prévia, apontavam críticas e sugestões a fim de enriquecer a pesquisa do colega. Na primeira apresentação do projeto em questão, foi sugerido o Edmodo. Prontamente realizei uma pesquisa sobre a plataforma e o cadastro. As vantagens dessa plataforma se comparada ao Moodle são consideráveis para a finalidade da formação. O tempo que seria dispensado na instalação e configuração do Moodle foi reduzido com o uso do Edmodo, uma Plataforma de Mídia Social voltada para fins educacionais, em que o usuário cria uma conta, gratuitamente. Alunos, professores e pais podem se inscrever e possuem diferentes possibilidades de acesso ao sistema. Além das funcionalidades, o Edmodo possui a interface inspirada no Facebook, o que facilita expressivamente na sua navegação. Uma das diferenças entre o Edmodo para o Facebook,

160 Página160 DOSSIÊ BATISTA, A.C.M.C é que a primeira não possibilita aos usuários uma comunicação aberta entre eles e só é possível para pais e alunos fazerem parte da plataforma a partir do convite de um professor, que fornece a outros participantes o código de inscrição do curso criado por ele. Realizada a inscrição, a etapa seguinte foi testar a plataforma, explorar ferramentas e possibilidades. As ferramentas são simples, porém permitem ao professor realizar atividades variadas, com recursos textuais e audiovisuais, logo as possibilidades são inúmeras, por oferecer ao docente um ambiente favorável para desenvolver sua criatividade. Desde a simples publicação de um post até a organização de uma biblioteca pessoal. Além dos testes, torna-se importante mapear o público do curso, para assim escolher o perfil dos usuários que serão inscritos, como exemplo, se a proposta do curso é uma formação continuada para professores, como neste caso, com o propósito de compartilhar experiências e saberes entre os participantes, é fundamental que os usuários possuam amplo acesso aos recursos, logo este deverá ser inscrito como professor, não como aluno. A Plataforma A escolha foi por uma ferramenta tecnológica educacional com a interface inspirada no Facebook, o que facilita bastante sua navegação tanto para professores quanto para alunos. A plataforma possibilita a formação de grupos, que podem funcionar perfeitamente para turmas do ensino fundamental e médio, assim como, para reunir grupos de professores. Sua navegação, que reproduz um ambiente bastante familiar para os usuários, faz com que o Edmodo possa ter melhor aceitação, se comparado a outras plataformas tecnológicas educacionais, como o Moodle, porém, é importante ressaltar aqui, que os professores também poderão alimentar o grupo com suas contribuições. O espaço terá como título A voz do professor, com o objetivo de facilitar o diálogo, permitindo ao docente compreender que o ambiente foi criado para que ele seja proativo, alimentando o debate com suas leituras, experiências ou dinâmicas. Propomos aqui um espaço que possibilite ao professor, através de uma Plataforma Educacional, vivenciar uma dinâmica virtual de troca e aprendizagem,

161 Página161 A voz do professor..., p esquadrinhando romper com barreiras de tempo e espaço. O interessante é trazer para o âmbito educacional um universo que boa parte dos professores já exploram nas redes sociais, já que a plataforma escolhida reproduz um ambiente inspirado no Facebook. O espaço, criado como grupo contará com as ferramentas de Observação, Tarefa, Teste e Enquete para publicação de temas em debate, notícias, links interessantes, produção e contribuições. Abaixo se encontra a descrição de cada ferramenta e como poderá atender as demandas da formação. Observação: Esse componente da plataforma propõe estimular a leitura e o debate. Sua principal usualidade é para publicar uma anotação ou lição. É possível, também, acompanhar os comentários dos participantes. Essa ferramenta do grupo tem como proposta inaugurar um debate sobre questões polêmicas que ocorrem dentro e fora do espaço escolar. As temáticas são, assim como apresenta o parágrafo primeiro do artigo 26-A, da lei /2003, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. Tarefa: Com essa ferramenta é possível postar uma atividade para o grupo, anexando recursos como arquivos, links e itens da biblioteca, previamente organizada no perfil do professor-administrador do grupo. A atividade poderá ter a postagem agendada e uma data de entrega. Essa ferramenta poderá ser utilizada para incentivar a leitura de textos e livros que discutam temáticas e conceitos relacionados a proposta da formação, assim como temas que se aproximem ao que apresenta o artigo 26-A da lei /2003. Teste: Permite criar uma atividade avaliativa dos participantes com questões de múltipla escolha, verdadeiro ou falso, resposta curta, entre outras. Ainda é preciso avaliar o uso desse recurso, para que o participante não tenha uma ideia equivocada dessa ferramenta, acreditando estar sendo avaliado pela formação, o que destoa do objetivo aqui proposto. Enquete: Com a ferramenta é possível diagnosticar o que os professores pensam a respeito de alguns temas que geram polêmica na escola e na sociedade, relacionados às questões étnico-raciais, sondar com o grupo o melhor momento, para um possível encontro presencial na escola ou para um encontro externo.

162 Página162 DOSSIÊ BATISTA, A.C.M.C A escolha do Edmodo objetiva estruturar um ambiente de aprendizagem dinâmico e atraente, pois os membros do grupo, organizado como A Voz do Professor, também terão a possibilidade alimentá-lo com suas contribuições, utilizando as ferramentas descritas acima. Um ambiente virtual de aprendizagem, em que muitos usuários que já participam do Facebook não terão grandes dificuldades na sua navegação. Segue um modelo com algumas orientações de discussões e atividades para a formação na plataforma, com a finalidade de organizar período, tema proposto, atividades teóricas e recursos, discussões e atividades práticas:

163 Página163 A voz do professor..., p O tempo médio programado para cada postagem de atividades no grupo é de uma semana, segundo a tabela, porém é importante que se investigue com o professor o intervalo de tempo que melhor o atende, assim como realizar uma avaliação contínua com os docentes sobre a plataforma e as atividades. Ouvir o professor em todo o processo é fundamental. A tabela acima apresenta quatro sugestões de temas para discussão na plataforma, que foram escolhidas, principalmente, com base em algumas questões sobre relações étnico-raciais presentes nesta pesquisa. Para iniciar as discussões e atividades na plataforma, foi proposto o tema "O que pensamos sobre relações étnicoraciais na educação?", com a finalidade de inaugurar um debate essencial no grupo de docentes. Na primeira atividade proposta para o tema, foi escolhida a imagem do professor universitário Marcos Augusto Leal de Oliveira, ela compõe um banner que questiona os alunos da Universidade Federal de Juiz de Fora sobre quantos professores negros eles possuem. Na imagem identificamos a hashtag "#NÃOÉCOINCIDÊNCIA. Uma imagem com o propósito de levar aos alunos a reflexão sobre questões raciais na universidade. Essa discussão inaugural na plataforma, aponta para o racismo e convida professores participantes a analisar o banner e registrar suas impressões sobre as informações nele contidas. Sobre o mesmo tema, a segunda atividade proposta é uma pesquisa de opinião sobre a trajetória da população negra no cenário da educação brasileira. Para formular a pesquisa, serão mobilizadas questões presentes neste trabalho, que serão estruturadas na ferramenta Enquete. Assim, é possível realizar um diagnóstico sobre o que pensam os professores. Essa pesquisa também poderá auxiliar na orientação dos possíveis caminhos que o grupo vai seguir ou que discussão poderá enriquecer, ainda mais, os saberes dos professores participantes. O segundo tema proposto para a formação é "Vista a minha pele: Uma reflexão sobre ser negro na sociedade brasileira". Na atividade inicial, o participante assistirá a paródia "Vista a minha pele", filme de aproximadamente quinze minutos. Na história, negros compõem a classe dominante brasileira e os brancos foram escravizados no passado. Os países em desenvolvimento são Alemanha e Inglaterra e, países africanos são os mais ricos. Maria, personagem que protagoniza o papel de uma menina branca, é pobre e estuda numa escola particular, graças à uma bolsa de estudos por sua mãe ser faxineira da escola. Grande parte de seus colegas a hostilizam, por sua cor e condição

164 Página164 DOSSIÊ BATISTA, A.C.M.C social, com exceção de sua amiga Luana, filha de um diplomata, que por já ter morado em países "pobres", possui um olhar diferenciado sobre a realidade. A segunda atividade proposta, na ferramenta Tarefa, é a leitura do Parecer sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF/186, apresentada ao Supremo Tribunal Federal, de Alencastro (2012). Após assistir o vídeo e realizar a leitura do texto é proposto ao professor uma terceira atividade com duas questões. A primeira, o professor é convidado a registrar sua impressão sobre as oportunidades oferecidas a população negra brasileira antes de assistir a paródia, o objetivo aqui é perceber se o filme desconstruiu ou não algum conceito que ele possui sobre "ser negro" na sociedade brasileira. A segunda questão, mais objetiva, busca sondar se a opinião do professor sobre os espaços ocupados pelo negro no Brasil sofreu alguma alteração, após assistir o filme e ler o texto de Alencastro (2012). Uma terceira proposta de atividade presente na tabela, propõe uma discussão sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, como em conversa com as docentes da E. M. Pastor Alcebíades Ferreira de Mendonça, foi identificado que não tiveram contato com o documento, logo trazê-lo para fomentar um debate no grupo é possibilitar que tenham acesso à discussão presente no documento. A primeira atividade, na ferramenta Observação, convida o professor à leitura do parecer encaminhado ao Conselho Nacional de Educação. O texto é apresentado como um possível ponto de partida, a fim de que o docente encontre uma orientação inicial para discutir o tema junto aos seus alunos. Após a leitura, a atividade propõe que os participantes compartilhem uma experiência relacionada com alguma exposição presente no texto das Diretrizes. A última proposta temática da tabela tem a finalidade de oferecer aos docentes o acesso a informações sobre a história, o processo de identificação e a disputa de terra na Comunidade de Sobara. A atividade inicial apresenta aos participantes o texto Terra de Cesária, Terra Solta, Terra de negócio: a comunidade de Sobara no processo de identificação e delimitação de terras quilombolas no Rio de Janeiro, de Malheiros (2012), na ferramenta Tarefa. Um convite ao professor para conhecer informações e detalhes valiosos sobre Sobara, na mesma ferramenta, após a leitura do artigo, o professor poderá compartilhar, com os participantes, histórias de alunos ou da comunidade e o impacto que as informações

165 Página165 A voz do professor..., p causaram. A escolha desse artigo tem o objetivo de permitir que o professor alcance informações mais aprofundadas sobre a comunidade de Sobara, o que pode servir de inspiração para projetos e atividades junto a comunidade escolar. As temáticas e atividades acima são apenas uma amostra do que é possível organizar para a formação continuada "A Voz do Professor". Outros temas sobre relações étnico-raciais poderão compor o grupo, assim como as postagens dos próprios professores que, poderão inserir discussões utilizando imagens, vídeos e textos, pois como já foi apresentado anteriormente, compartilhar experiências e saberes representa a essência dessa formação. Passamos por um momento de ebulição de opiniões sobre política, economia, cultura, muitos formalizam opiniões com base, apenas, em canais de informação unilaterais. Opiniões precisam se flexibilizar de acordo com argumentos a que se tem acesso, argumentos baseados em fatos. O discurso racista não tem mais sustentação e precisa ser abatido, não há mais fatos, nem argumentos que o mantenha de pé, somente opiniões vazias, sem base, construídas sobre um terreno arenoso. Através do conhecimento, dos argumentos baseados nos fatos acessados por canais diversificados é possível buscar um caminho para se flexibilizar opiniões enrijecidas pela ignorância. "A voz do professor" pode representar esse caminho, que permite ao docente acessar e compartilhar diversos canais que apontem para os fatos e argumentos que podem ajudar a desconstruir o preconceito ainda ancorado em rígidas opiniões de muitos brasileiros.

166 Página166 DOSSIÊ BATISTA, A.C.M.C Considerações finais Percebe-se a relevância desse trabalho, principalmente, quando se observa o cenário brasileiro, na atualidade. Vivenciamos em nossos dias, uma experiência marcante de intolerância nas redes sociais, que tem extrapolado os limites do mundo virtual. O preconceito está por toda parte, seja ele racial, sexual, de gênero. Tempos de crise política que tem confrontado profundamente opiniões e vem estremecendo relações. Discutir o tema currículo, relações étnico-raciais e a voz do professor parece pertinente, particularmente, num contexto de encontros e debates sobre a Base Nacional Comum Curricular nos diversos âmbitos, seja acadêmico, escolar ou na sociedade. As relações étnico-raciais na educação também se deparam com a problemática do negro na disputa e conquista por seu espaço, luta que já tem sido promovida no Brasil desde o século passado. Em tempos de emergência de perspectivas autoritárias como o Programa Escola Sem Partido, ouvir a voz do professor pode permitir que sua autonomia e suas escolhas sejam valorizadas e respeitadas na sala de aula. O trabalho também nos permite reconhecer as conquistas do movimento negro no Brasil que, para o âmbito educacional, culminou na lei /2003, transformando em obrigatório o ensino de História da África e Cultura Afro-brasileira na Educação Básica. Mas como seria possível a implementação desse conhecimento sem o envolvimento do professor? Compreendemos aqui que as ações do governo para essa implementação não têm valor sem a participação da escola e do professor. O assunto precisa ser continuamente debatido e pesquisado pelo docente, a fim de que possa se envolver, cada vez mais, despertando o interesse dos alunos e da comunidade escolar com relação à História da África e à Cultura Afro-brasileira. A plataforma pretende contribuir no sentido de estimular o compartilhamento de saberes e práticas de professores, no cotidiano da profissão, em especial no que se

167 Página167 A voz do professor..., p refere ao trabalho com os temas Relações Étnico-Raciais, Ensino da História e Cultura afro-brasileira na educação básica pública. Pensando em promover um espaço para o professor, surgiu a ideia de compartilhar esse saber e fazer. Mergulhado em meio aos estudos, pesquisa, ensino com horários incompatíveis, dificilmente possuem disponibilidade para fins de compartilhar saberes e experiências, principalmente sobre temáticas recentemente contempladas no currículo escolar, como é o caso da História da África e Cultura Afro-brasileira. Planejar, pesquisar e ensinar podem se tornar ferramentas enriquecedoras nas aulas a fim de que o professor troque leituras, práticas, vivências e, por que não, opiniões. Essa é a proposta da plataforma A voz do professor, que poderá ser utilizada por docentes não só para explorar uma única temática, mas inúmeras possibilidades. Referências ABREU, Martha; MATTOS, Hebe. Em torno das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana: uma conversa com historiadores. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.21, n.41, jan.-jun p.6. ABREU, Martha e Soihet, Rachel. Ensino de História, Conceitos, Temáticas e Metodologias. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, ALENCASTRO, Luiz Felipe. Cotas: prós e contras. Parecer sobre a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, ADPF/186, apresentada ao Supremo Tribunal Federal. Revista de História. 27 abr Disponível em Acesso em: 06 de fevereiro CAVENAGHI, Ana Raquel Abelha; ANDRE, Richard Gonçalves. Para além da virtualização: a educação a distância e a revolução comunicacional no mundo contemporâneo. In Revista História Hoje, ANPUH, v. 3, n. 5, p , Disponível em: acesso em 10/05/2016. CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, n. 2, p , GALASSO, José Betti; SOUZA, Denise Trento Rebello de Souza. Educação online colaborativa: implicações teórico-metodológicas de uma nova modalidade de ensino e aprendizagem. In Revista História Hoje, ANPUH, v. 3, n. 5, p , Disponível em: acesso em 10/05/2016. MALHEIROS, Márcia. Terra da Cesária, Terra Solta, Terra de negócio: a comunidade de Sobara no processo de identificação e delimitação de terras quilombolas no Rio de Janeiro. In: Eliane Cantarino O'Dwyer. (Org.). O fazer antropológico e o reconhecimento de direitos constitucionais: o caso das terras de quilombo no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: E-papers/LACED, p

168 Página168 DOSSIÊ BATISTA, A.C.M.C MATTOS, Hebe Maria. O ensino de História e a luta contra a discriminação racial no Brasil. In: ABREU, Martha e SOIHET, Rachel (orgs.). Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologias. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, p PEREIRA, Amilcar A. Por uma autêntica democracia racial!: os movimentos negros nas escolas e nos currículos de história. In Revista História Hoje, ANPUH, v. 1, n. 1, Disponível em: acesso em 31/01/2013. SILVA, Ana Célia da. A discriminação do negro no livro didático. Salvador: Ceao/UFBA, SOUZA, Richard Christian Pinto; SOUZA, Grace Kelly Silva Sobral. Contribuições do Movimento Negro e das teorias críticas do currículo para a construção da educação das relações étnico-raciais. In Revista História Hoje, ANPUH, v. 1, n. 1, Disponível em: acesso em 15/04/2016.

169 O Que Dizem Os Professores Sobre A Disciplina De História: A Visão Dos Professores Sobre O Programa São Paulo Faz Escola ( ) What Teachers Say About The Discipline Of History: The Teacher s Vision On The São Paulo Faz Escola Program ( ) Jose Antonio Gonçalves Caetano* RESUMO O presente artigo é parte de uma pesquisa do programa de Mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Londrina, que teve por objetivo estudar, de forma analítica e qualitativa, a visão e apropriação que os professores da rede estadual de São Paulo da disciplina de História fazem dos documentos reguladores, como o Currículo e os Cadernos didáticos. Palavras-chave: Ensino de História. Currículo. Currículo do Estado de São Paulo. ABSTRACT The present article is part of a research of master degree program in education by Londrina State University which aimed to study, in analytic and qualitative form, the vision and appropriation that the teachers of the Sao Paulo state network of history subjects from the regulatory documents, such as curriculum of São Paulo state, for the history and the notebook.. KEY-WORDS: Education of History. Curriculum. Curriculum State of São Paulo. * Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). zg_caetano@hotmail.com

170 Página170 DOSSIÊ CAETANO, J.A.G. Norteiam o dia a dia em sala de aula : o que dizem os professores sobre o material didático do estado de São Paulo? Ao pensarmos na palavra currículo no contexto escolar, é comum criarmos a imagem do texto em si, criado pelo governo e distribuído às escolas, a fim de selecionar aquilo que deve ser ensinado pelos professores e aprendido pelos alunos. Porém, muito mais que isso, currículo sugere uma infinidade de processos internos e externos à escola, que vão além do texto oficial, sendo que esses são apenas um dos aspectos visíveis do termo que, como afirma o autor Raimundo Cuesta Fernandez (2009), juntamente com os livros e materiais didáticos fazem partem de um Código Disciplinar, necessário para o desenvolvimento da disciplina ensinada. Nesse sentido, o material didático, tal como o texto curricular, fazem parte desse código disciplinar ao que o autor espanhol chama de textos visíveis da disciplina, que constituem em uma importante fonte para o estudo da disciplina escolar, como aponta Rosi Terezinha Ferrarini Gevaerd (2006): Na esteira dos estudos das disciplinas escolares, Cuesta, que tem buscado como fontes os manuais e os programas escolares, os denomina de textos visíveis da história escolar, pois, em sua opinião, os livros escolares constituem uma das mais importantes fontes de divulgação científica e, portanto, uma das formas adequadas para se estudar o ensino da História. Ressalta que, tanto o conteúdo do livro didático, quanto a legislação não são a prática da sala de aula, pois existem sujeitos sociais envolvidos e que tomam parte nos processos cotidianos de elaboração e reconstrução do conhecimento escolar. (GEVAERD, 2006, p.2) O Currículo do Estado de São Paulo foi proposto e posto em vigor através da Resolução SE 76/2008, de 07 de novembro de 2008, com o intuito de unificar todas as escolas paulistas sob um mesmo documento regulador. Coube à Coordenadoria de Gestão e Educação Básica, através do programa São Paulo Faz Escola, a elaboração do texto curricular assim como os documentos didáticos, Cadernos do Professor,

171 Página171 O que dizem os professores sobre a disciplina de história..., p Caderno do Aluno e Caderno do Gestor, que completam a ações da reforma proposta pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP). No entanto, podemos dizer que o processo de criação do programa aqui exposto, faz parte de um longo processo de projeto de escola e educação, criado pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEE-SP), ainda na década de 1990, com a gestão do então governador Mário Covas. Sob o governo de Mário Covas (PSDB), houve uma reestruturação do sistema educacional paulista 16, através do decreto nº , de 21 de novembro de 1995, dividindo os alunos por faixa etária e período de escolarização. Dessa forma, alguns prédios foram destinados aos anos iniciais do Ensino Fundamental, enquanto outros passaram a receber apenas os anos finais e Ensino Médio. Posteriormente, os primeiros passaram a pertencer às redes municipais de ensino. No entanto, algumas escolas estaduais ainda atendem a essa modalidade de ensino. Com a reorganização, as escolas que recebessem as modalidades de anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, contariam com laboratórios e salas ambientes por disciplinas, experiência que não teve grande êxito, em alguns casos, por falta de espaço físico, já que as escolas não receberam melhorias para tanto, e foi logo abandonada voltando à divisão comum das salas de aula. Vale lembrar, que no mesmo período, Fernando Henrique Cardoso, também do PSDB, era Presidente da República, o que mostra um afinamento entre os governos federal e estadual e nas políticas públicas, em especial para a educação, com forte teor neoliberal, dessa forma o projeto iniciado por Mário Covas possuía esse preceito, buscando a racionalização dos investimentos e gastos públicos com educação. De acordo com Cação e Mendonça (2011, 222) a reestruturação resultou: Em fechamento de salas de aula e escolas, na intensificação do processo de municipalização de 1ª a 4ª do ensino fundamental, na demissão de professores, significando um forte golpe na rede pública de ensino. Complementado a lógica da nova política, SEE-SP criou, ainda, um sistema próprio de avaliação, o Sistema de Rendimento Escolar (SARESP) Resolução SE n.27/96 visando à articulação com o Sistema de Avaliação da Educação Básica do MEC (Saeb), com 16 No ano de 2015 houve uma iniciativa semelhante por parte do governo de Geraldo Alckmin (PSDB) buscando a reorganização dos prédios escolares paulistas, no entanto, houve mobilização popular a partir da ação de alunos secundaristas contra o projeto, como ocupação de escolas e protestos que acabaram causando a saída do secretário da educação, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, e a suspensão do projeto.

172 Página172 DOSSIÊ CAETANO, J.A.G. o regime de progressão continuada no ensino fundamental (deliberação CEE-SP n. 08/97). Para as autoras, mesmo com a resistência por parte dos professores e profissionais da educação, o projeto foi posto em prática, causando o sucateamento do sistema educacional paulista, mais evidenciado pela novidade da progressão continuada que, na prática, significaria aprovação em massa dos alunos, buscando melhorias, não tão reais, dos índices negativos trazidos pela reprovação. No entanto, muitos estudiosos afirmam que a aprovação não significava aprendizagem, isso também ficou evidente principalmente nos baixos índices alcançados pelos alunos tanto na avaliação externa estadual quanto no Exame Nacional do Ensino Médio. Os índices do Saresp mostravam que quem mais excluía era a política educacional paulista, que priorizava a racionalidade de gestão, sacrificando as já precárias condições de trabalho nas escolas, comprometendo assustadoramente o processo de ensino e aprendizagem (CAÇÃO; MENDONÇA, 2011, p. 223) De certa forma, aquilo que seria um balizador, para mostrar o bom desempenho do ensino, no Estado de São Paulo, passou a ser a vitrine do baixo rendimento ocasionado pelas ações tomadas pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Pelo lado do trabalhador em educação, as mudanças levaram ao desgaste dos profissionais, o aumento da carga horária de trabalho e arrochos salariais. O projeto neoliberal do governo estadual institui, então, a bonificação por rendimentos que se baseava na assiduidade e frequências, que, segundo Cação e Mendonça evidentemente tal política descartava negociação salarial com sindicatos, bem como esvaziava a potencialidade de mobilizações intensas, como a greve, já que a única possibilidade de reajuste salarial pela SEE-SP era o bônus, que exigia assiduidade. (CAÇÃO; MENDONÇA, 2011, 223) Em 2007, iniciou-se no estado de São Paulo, sob a gestão do, então, governador José Serra (PSDB), a implantação de um novo projeto curricular, a partir da divulgação das 10 metas do plano de educação paulista. A articulação, para a elaboração de uma nova proposta curricular, se justificou pelos baixos índices de desempenho alcançados pelos alunos da rede estadual, em avaliações como, o Sistema de Avaliação da Educação

173 Página173 O que dizem os professores sobre a disciplina de história..., p Básica (SAEB) e Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), portanto, a criação de uma base estadual comum foi concebida como uma possibilidade de melhoria da educação. As metas anunciadas deveriam ser alcançadas até o ano de 2010, a saber, as metas, de acordo com Mota (2014, p. 20), eram: 1ª Todos os alunos de 8 anos plenamente alfabetizados; 2ª Redução de 50% das taxas de reprovação da 8ª série; 3ª Redução de 50% das taxas de reprovação do Ensino Médio; 4ª Implantação de programas de recuperação de aprendizagem nas séries finais de todos os ciclos de aprendizagem (2ª, 4ª e 8ª séries do Ensino Fundamental e 3ª série do Ensino Médio); 5ª Aumento de 10% nos índices de desempenho do Ensino Fundamental e Médio nas avaliações nacionais e estaduais; 6ª Atendimento de 100% da demanda de jovens e adultos de Ensino Médio com currículo profissionalizante diversificado; 7ª Implantação do Ensino Fundamental de nove anos, com prioridade à municipalização das séries iniciais (1ª a 4ª séries); 8ª Programas de formação continuada e capacitação da equipe; 9ª Descentralização e/ou municipalização do programa de alimentação escolar nos 30 municípios ainda centralizados; 10ª Programa de obras e melhorias de infraestrutura das escolas. Essas metas elencadas mostram uma preocupação de cunho neoliberal, emanadas de governos que se regem pelos princípios do Banco Mundial e de outros organismos internacionais, pautadas, portanto, nos pressupostos da globalização econômica, sob a égide do capital (CAÇÃO; MENDONÇA, 2011, 230), muito presente no governo paulista, que se alinhavam as políticas federais dos anos 1990 e que se estendem até os dias atuais no Estado de São Paulo. De acordo com a autora, as metas acima foram complementadas pela publicação das 10 ações para uma escola melhor e cinco medidas para que as ações fossem implantadas. (MOTA, 2014, 20). Dentre essas medidas, destaca-se a elaboração de um currículo único, para a rede estadual de São Paulo, tal como, a criação de formas de avaliar a proposta e o trabalho docente. De acordo com Paes e Ramos (2014, p.56): Após esse período inicial de elaboração, em novembro de 2007, o programa começou a ser apresentado aos dirigentes de ensino, diretores, vice-diretores, coordenadores e professores coordenadores por meio de diversas videoconferências, encontros e palestras mediadas pela coordenadora geral da proposta, Maria Inês Fini, preparando as escolas para sua implantação. Segundo a SEE-SP (SÃO

174 Página174 DOSSIÊ CAETANO, J.A.G. PAULO, 2007c), esses agentes escolares foram esclarecidos quanto às expectativas da proposta e preparados para sua implantação já no início de Objetivando, portanto, que as escolas estivessem preparadas para receber o programa, no início de 2008 as escolas da grande São Paulo receberam orientações sobre as ações previstas pela SEE-SP para o decorrer do ano. Teoricamente, assim como para a composição do currículo da década de 1980 e 1990, essa implantação e elaboração teria plena participação do professorado paulista que deveriam, entre outras coisas, contribuir com a construção do documento a partir de relatos de situações de sucessos pedagógicos desenvolvidos no âmbito escolar. Para isso, os professores deveriam enviar os seus relatos através de um site que fora criado com o mesmo nome do novo projeto educacional estadual, no mesmo ano da criação da proposta. No ano de 2008, o projeto foi efetivado nas escolas em forma de proposta. Nos primeiros quarenta e dois dias letivos desse ano foram aplicados o projeto com o intuito de recuperar e fazer uma reposição das estruturas de Língua Portuguesa e Matemática, consideradas pela coordenadoria como de vital importância para a implementação do currículo. Dessa forma foi enviado às escolas um instrumento didático intitulado Jornal do Aluno e Revista do Professor devido ao tipo de confecção e dimensões do material. Após esse período houve uma avaliação da proposta por parte da Secretaria onde novamente os professores deveriam enviar suas opiniões, dessa vez a respeito do material disponibilizado. Com isso a SEE-SP considerou positiva tanto a efetivação da proposta na escola como sua aceitação. No entanto, de acordo com Cação: As escolas não opinaram sobre os pressupostos e as necessidades de implantação de uma proposta curricular, sequer foram consultadas sobre suas experiências exitosas ou sobre as condições concretas de trabalho para o desenvolvimento dessas inovações. (CAÇÃO apud PAES; RAMOS 2014, p. 56.) Independente de haver ou não a participação dos professores, ou de suas opiniões terem sido levadas em conta, o Programa efetivou em 2008 a confecção e distribuição do material didático em uso hoje nas escolas paulistas, agora sob o nome de Cadernos do Professor, do Aluno e do Gestor, que, como afirma CATANZARO (2012, 21) e

175 Página175 O que dizem os professores sobre a disciplina de história..., p também no nosso entendimento, tais cadernos se tornaram efetivamente o Currículo Oficial do Estado de São Paulo. O programa São Paulo faz escola na visão dos professores Em nossa pesquisa procuramos ouvir os docentes em relação ao material destinado aos professores através do programa São Paulo Faz Escola. Ao analisarmos as respostas dos professores ao questionamento, adotamos como metodologia a Análise de Conteúdo, teoria proposta pela professora Maria Laura Puglini Barbosa Franco (2005). A Análise de conteúdo é um procedimento metodológico de pesquisa que busca meditar sobre a mensagem em seus diferentes âmbitos (Escrita, através de símbolos e verbais) configurando-se como parte ampla da teoria da comunicação. Fazer Análise de Conteúdo é criar inferências com diferentes categorias de análise para responder questões relacionadas à produção e recepção da mensagem: Com base na mensagem que responde as perguntas: o que se fala? O que se escreve? Com que intensidade? Com que frequência? Que tipo de símbolos figurativos são utilizados para expressar ideias? E os silêncios? E as entrelinhas?... e assim por diante, a análise de conteúdo permite ao pesquisador fazer inferências sobre qualquer um dos elementos da comunicação. (FRANCO, 2005, p. 20) Dessa forma, essas questões são o ponto de partida da Análise de Conteúdo e da criação de inferências ao responder tais questões. O que nos leva a entender que a mera descrição de conteúdo contribui pouco para uma pesquisa. As entrevistas partiram de um questionário semi-estruturado. Em nosso entendimento esta estratégia possibilita uma aproximação maior com o pesquisado, lhe direcionando questões que possam surgir durante as conferências não se prendendo apenas às perguntas já preliminarmente criadas. Além disso, ao não se prender em questões fechadas a entrevista cria um clima informal e mais confortável ao entrevistado. Quando se trabalha com entrevistas orais em pesquisa qualitativas, é necessário entendermos como as palavras ditas mostram e escondem aquilo que o entrevistado pretende colaborar, ou não, com a pesquisa, nem sempre as respostas atendem

176 Página176 DOSSIÊ CAETANO, J.A.G. exatamente aquilo que se espera, no entanto, é possível encontrar respostas que se põe quando as questões que a cercam são realizadas de outra forma. Foi isso que percebemos nas entrevistas concedidas a essa pesquisa, há, em alguns casos respostas que não se encontram ou que se contradizem. No ano de 2008 apenas um professor dos entrevistados estava efetivamente trabalhando na rede estadual paulista e acompanhou todo esse processo. Por isso, achamos importante destacar alguns pontos da narrativa desse professor devido a sua experiência, que inclui 25 anos de trabalho, com formação em Estudos Sociais e posteriormente em História. Perguntamos se ele se lembrava do período de implantação do projeto: Lembro, lembro se não me engano foi em 2008, com o Caderno do Professor, e 2009 com o Caderno do Aluno. Eu vou te falar, eu fiquei meio doida, em 2009 eu cheguei a ter um princípio de depressão, porque eu achei que não ia dar conta. Porque era muito diferente, só que depois de alguns anos, já faz bastante tempo, depois de alguns anos a gente vê que não é tão difícil assim. Cada um faz de um jeito, né?! Tem que completar o que não tem no Caderno do Aluno com aquilo que eu sei fazer, com livro, com filme, com outros livros, mas, no começo foi bem difícil por que não tinha ninguém pra dar uma mão pra gente. (PROFESSOR C, 2015)17 Diante dessa afirmação perguntamos ao professor se houve alguma formação aos docentes que iriam iniciar o trabalho com o material e fomos informados que: Não, não, não houve, não houve. Muito tempo depois teve algumas OTs e tal, mesmo assim foi muito fraco. Foi enfiado goela abaixo, a verdade é essa porque, no começo era uma proposta né?! Depois virou Currículo tal e tal só que, desde 2009 com o primeiro Caderno do Aluno até hoje, pouquíssimas coisas mudaram. (PROFESSOR C, 2015) Vemos então que o professor não teve um período de formação em que poderia tirar suas dúvidas acerca do projeto curricular, tão pouco como trabalhar a proposta do material e competências e habilidades, os professores se sentiram sozinhos para aprender a usar um material diferente. O professor ainda continua: 17 A fala dos professores foi mantida da forma original. Entendemos que a forma de construir as frases e mesmo as repetições de palavras são importantes para o entendimento da dimensão que o entrevistado confere a resposta.

177 Página177 O que dizem os professores sobre a disciplina de história..., p Olha, se em 2008 e 2009 a gente tivesse tido uma orientação melhor, senti muita falta sim, porque eu tive que caminhar no escuro. Pegar lá...eu não conheço tudo de História, pega um texto lá de História que você não conhece, não sabe direito o que ele quer dizer com aquilo você tem que se virar e procurar, descobrir e trabalhar do seu jeito. Fez muita falta sim, mesmo que não pagasse nada, que nem não tão pagando agora 18, porque na primeira vez pagaram né?! Agora não pagam mais, mas fez muita falta sim, eu sei por que eu caminhei no escuro, tive que virar tive que aprender. (PROFESSOR C, 2015) O professor responde ao ser questionado se houve uma preparação maior aos que chegavam e menos aos que já estavam em sala: Sim, sim, sim...porque você tava lá e tinha o livro didático pra trabalhar, de repente, é... não é que não vai mais usar o livro, a prioridade é o Caderno do Aluno, a gente não sabia como, teve que aprender, cada um aprendeu de um jeito. Tem colega que ouço, não sei se é verdade, que manda copiar texto do livro, eu não faço isso, pego os exercícios do livro e complemento com o Caderno, mas como eu falei...(pausa). Em 2009, no ano de 2009 eu tive um princípio de depressão, porque eu achei que não ia dar conta, eu não sabia como fazer. E olha que eu tinha tempo de sala de aula, eu sabia trabalhar, então você fica perdido, foi muito difícil, faltou preparo, preparação melhor para o professor. Porque foi difícil. (PROFESSOR C, 2015) São Paulo Faz Escola, muito mais que um simples título, carrega a vontade de retomar a posição de destaque da grande rede de ensino paulista em relação ao resto do país, retomar o bandeirantismo como sugere Ciampi et. al. (2009, p. 366). Para a autora essa perda de posição de destaque da educação de São Paulo pode ser percebida nos resultados obtidos pelas escolas nas avaliações citadas anteriormente, e no SARESP Sistema de Avaliação de Rendimento do Estado de São Paulo, nos anos que antecederam a implantação do novo projeto. Outro fator que merece destaque no desenvolvimento dessa proposta é o seu atrelamento ao SARESP. De acordo com o documento final, hoje Currículo de Ciências Humanas e Suas Tecnologias: História, a função primeira deste é unificar as escolas da rede estadual sob um mesmo currículo e preparar os alunos da rede às avaliações externas (SÃO PAULO, 2010, p.03). 18 O professor se refere à bolsa paga aos docentes ingressantes a partir do concurso público para a participação no curso Escola de Formação.

178 Página178 DOSSIÊ CAETANO, J.A.G. Estes documentos, que dão origem aos Cadernos do Professor do Aluno e do Gestor, são referências essenciais para o estabelecimento das matrizes de avaliação do Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp) Desde 1996, o Sistema de Avaliação de Rendimentos da Educação do Estado de São Paulo (SARESP), mede o desenvolvimento da educação paulista a fim de criar métodos e ações para a melhoria do ensino, em substituição ao Programa de Avaliação Educacional da Rede Estadual de Dessa forma, a avaliação externa serviria sempre como um termômetro do que vinha sendo desenvolvido nas escolas e, a partir dele, promover mudanças. Dessa forma, ao se pensar essa avaliação como prática pedagógica para traçar ações para o processo de ensino e aprendizagem, ela teria significado no que diz Luckesi ao afirmar que: A avaliação de aprendizagem escolar adquire seu sentido na medida em que se articula com um projeto pedagógico e com seu consequente projeto de ensino. A avaliação, tanto no geral quanto no caso específico da aprendizagem, não possui uma finalidade em si; ela subsidia um curso de ação que visa construir um resultado previamente definido (LUCKESI, 2013, p.39) Dessa forma, ao se propor avaliar a aprendizagem, a prova não deve ser um fim em si, mas uma possibilidade de propor ações que possam solucionar possíveis falhas e lacunas no processo de ensino e aprendizagem, uma porta para que sejam estabelecidos os caminhos para a melhoria da educação. Avaliar não é um elemento neutro, nem tão pouco desinteressado. Ao pensarmos numa avaliação num âmbito largo como o Saresp, estamos lidando com que se afirma Guimarães (2010, p.55): (..) a avaliação da aprendizagem se apresenta como um ato político, que se concretiza em função dos fins e dos objetivos da educação e da sociedade a que serve, subsidiando um curso de ação que visa construir um resultado previamente estabelecido. Vale ressaltar que a avaliação paulista se baseia apenas no aluno, ao buscar avaliar seu aprendizado através da prova, não avaliando, por exemplo, o professor, a equipe pedagógica e gestora das escolas, no entanto, os resultados obtidos pelos alunos balizam

179 Página179 O que dizem os professores sobre a disciplina de história..., p como está sendo o ensino nas escolas e está diretamente ligado ao recebimento ou não do bônus anual por rendimento. 19 A avaliação aqui ganha outro sentido, deixa de ser o balizador de ações pedagógicas e passa a ser um condicionante de uma política meritocrática, perde-se seu caráter de direcionamento para o processo de ensino e aprendizagem. Com o projeto São Paulo Faz Escola, o SARESP passa a ocupar um local de destaque dentro das ações promovidas pela Secretaria de Educação ao atrelar a proposta curricular diretamente à avaliação. De acordo com o já mencionado, o programa de educação do governo estadual é criado em 2007 a partir dos resultados das avaliações externas estaduais e federais para o Ensino Fundamental e Médio atrelado ao baixo resultado alcançado pelas escolas nesse período. De acordo com Catanzaro: Todo o material foi elaborado em função das avaliações externas: O Saresp de 2007 e 2008 apresentou inovações e o exame passou a ser a base das ações de gestão da Secretaria da Educação. No ano de 2009, o Saresp foi elaborado com base na proposta curricular de São Paulo, ou seja, o currículo do estado sendo planejado com base no Saresp e, mais tarde, o Saresp tendo sua elaboração com base nos cadernos do currículo nos revela a intenção da formulação de um sistema articulado de fontes de informações a respeito do rendimento escolar dos alunos do estado já quando da idealização do São Paulo faz Escola. (CATANZARO, 2012, 21) Isso mostra o quão importante é a ligação entre o Sistema de Avaliação e o projeto curricular do Estado de São Paulo. Ao elaborar o Saresp a partir Cadernos didáticos a Secretaria de Educação tutela de forma efetiva o uso do documento nas escolas, uma vez que a bonificação por rendimento está atrelada ao desempenho dos alunos nesta avaliação, assim, o Saresp do ano de 2007 estabeleceu as metas a serem alcançadas pelas escolas para o benefício do bônus: A avaliação externa das escolas estaduais (obrigatória) e municipais (por adesão) permitirá a comparação dos resultados do SARESP com as avaliações nacionais (SAEB e a Prova Brasil), e servirá como 19 O bônus por rendimento é uma gratificação paga aos professores e funcionários da rede estadual de educação anualmente. O recebimento do bônus está vinculado a uma meta pré-estabelecida à escola pela SEE-SP de acordo com o aproveitamento do Saresp do ano anterior, além disso, assiduidade, níveis de retenção e evasão de alunos contam para a avaliação da escola.

180 Página180 DOSSIÊ CAETANO, J.A.G. critério de acompanhamento das metas a serem atingidas pelas escolas. (...) Capacitação dos professores para o uso dos resultados do SARESP no planejamento pedagógico das escolas em fevereiro de (...) Divulgação dos resultados do SARESP 2007 para todas as escolas, professores, pais e alunos em março de (SÃO PAULO, 2007) Para os professores, foi perceptível essa mudança gradativa do SARESP, que aos poucos foi caminhando lado a lado com o material didático: No começo o Saresp e o Caderno do Aluno eram bem diferentes. A gente não tem acesso a prova do Saresp, mas agora parece que eles estão andando um pouquinho mais perto. Tem muita coisa que a gente ensina na sala e o aluno aproveita no Saresp, mas, no começo não era assim. No começo cada um pra um lado, era assim bem diferente mesmo, eu sei por que assim, a gente ensinava uma coisa e o aluno fazia a prova caia outra coisa. Daí a gente não gostava, a gente queria que o que fosse ensinado fosse cobrado e não era. Mas de um tempo pra cá mudou bastante, de um tempo pra cá. É que a gente não tem acesso as provas. (PROFESSOR C, 2015) Em uma das entrevistas o professor defende que: Se o Sistema de Avaliação do Estado ele acompanha, ele pega esse livro, esse Caderno, essa orientação, então é óbvio que a gente vai trabalhar com ele durante o ano né?! Mas, por exemplo, ele é flexível. Dependendo da realidade, do exercício, se ele não se encaixa daquela forma, a gente tem a liberdade de fazer uma adaptação, adequação, mas, sempre dentro do Currículo. (PROFESSOR A, 2015) A fala do professor mostra o quanto os dois, material e avaliação, caminham juntos. Para esse professor, que anteriormente disse não perceber pressão para que se usem os Cadernos, afirma que há uma ligação entre o material e o Sistema de Rendimento afinal, a matriz de referência do Saresp se baseia nas competências e habilidades a serem desenvolvidas em sala. Perguntamos a um professor se havia semelhanças latentes entre os exercícios propostos pelos Cadernos e o Saresp, a resposta foi de encontro com essa informação: Olha, se é parecido eu não sei... porque eu não aplico o saresp todo ano tá?! Eu não tenho aplicado. Mas, se eu pegar assim e olhar a matriz de referência, analisar os relatórios e analisar os exercícios, eu não vou dizer pra você que o exercício é igual. O assunto é, o assunto, o currículo ele é igual, o tema sim, mas os exercícios não. Pelo menos de História o exercício não é igual. (PROFESSOR A, 2015)

181 Página181 O que dizem os professores sobre a disciplina de história..., p O Saresp passa então a ser o objetivo das escolas, e o definidor das ações, ao mesmo tempo em que o uso do material didático, embora não obrigatório, se torna essencial para que se atinja um bom resultado, já que a partir de então a avaliação se desdobra dos Cadernos do Aluno e do Professor. Dessa forma, mesmo facultativo para o professor, a pressão externa para que se utilizem os Cadernos se torna constante num processo de cima para baixo, com as Diretorias de Ensino, através dos Professores Coordenadores de Núcleo Pedagógico, fiscalizando e os Professores Coordenadores das Unidades Escolares cobrando a sua utilização. Em outro momento pretendíamos entender qual a influência que o Saresp possui diretamente no que é ensinar e sua importância na escola. Para tanto fizemos questões diretas sobre como o Saresp influencia na escola, uma das respostas foi a seguinte: Antes de ingressar como efetivo eu fui categoria O eu acabei dando aula em muitas escolas e eu vi que a maioria prioriza muito o Saresp a ponto de... as vezes, bimestralmente dar um simulado para o Saresp e esse simulado servir como uma nota bimestral, ou então complementar e, pelo menos, cinquenta por cento da nota bimestral. Isso é um absurdo (PROFESSOR B, 2015) Para esse professor, a influência é muito grande, uma vez que, em algumas escolas por onde passou havia uma preocupação muito grande em preparar o aluno para um bom desempenho na avaliação externa. O mesmo professor ainda afirma que para ele: É, um treino, exatamente, um treino para o Saresp né?! E a gente sabe que tem essa pressão muito grande para prova do Saresp por causa do bônus, né?! Ou seja, a aprendizagem do aluno em si acaba ficando em segundo plano, se ele consegue ali dominar ali umas manhas pra ir bem no Saresp, tudo bem. Agora, o problema é que nem sempre o aluno que vai bem ou razoável no Saresp, ou a escola que tem uma meta razoável no Saresp, não necessariamente ela ta se preocupando com o desempenho do aluno em outros setores, como a cidadania né?! (PROFESSOR B, 2015) A questão do bônus é uma presença marcante nas escolas paulistas. O governo estadual criou uma política de bonificação por rendimento que está atrelada ao desempenho no Saresp e com outras medidas como diminuição de evasão e de repetências

182 Página182 DOSSIÊ CAETANO, J.A.G. Perguntamos também aos professores o que é o Saresp e como ele influencia o que é ensinar, um dos professores respondeu o seguinte: Influencia e muito. Porque assim, a realidade escolar que nós temos, o que acontece, o Saresp seria uma avaliação pra medir né?! Seja o conteúdo que o aluno conseguiu atingir, a abordagem desse conteúdo, como ele foi problematizado, já tendo em vista o ponto do currículo. (PROFESOR B, 2015) Para um dos professores a avaliação do Saresp já possui um lugar de grande destaque dentro da escola sendo que o simples boato da exclusão do Sistema causa entusiasmo na escola: Ah muito grande. Ano passado teve um boato que não ia ter Saresp, no começo do ano, a escola ferveu heim, entre os professores. Falava não vamos falar isso pros alunos não Porque chega no nono ano a grande preocupação da meninada é o Saresp, aí falaram que não ia ter, eu falei: Mas e agora?, de repente mudaram ah vai ter sim. Então é uma preocupação a mais para os alunos e pra gente. (PROFESSOR C, 2015) Essa narrativa mostra uma preocupação de como seria o trabalho caso não houvesse o Saresp naquele ano. A frase: não vamos falar isso pros alunos não, demonstra não uma preocupação com o aprendizado, que acreditamos que seja prejudicado com a exclusão do exame, mas com o trabalho pedagógico desprendido pelo Saresp. e o Saresp: Outro professor respondeu ao questionamento de haver influência no que ensinar Sim, sim. Porque... principalmente nas habilidades que não foram atingidas no Saresp anterior, pra que possa tentar sanar, tem toda uma análise de tipos de habilidade que não foram atingidas pela suas turmas, dá pra se ver mais ou menos naquilo lá que precisa trabalhar em cima. E somos cobrados pela equipe gestora pra justamente trabalhar em cima, dessas habilidades que não foram atingidas. (PROFESSOR D, 2015) A partir da resposta desse professor nós podemos começar a perceber como essa influência se dá. Segundo o argumento acima, a partir do desempenho obtido no ano anterior na avaliação do estado são traçadas metas para que sejam trabalhadas no ano letivo. Sobre tais medidas e a importância do Saresp nas decisões da escola, Catanzaro afirma:

183 Página183 O que dizem os professores sobre a disciplina de história..., p De acordo com o entrelaçamento das metas e medidas tomadas por meio dessa política, podemos notar que se entende que a melhoria do rendimento escolar dos alunos também está diretamente ligada ao desempenho do professor e de sua presença em sala de aula. Sua assiduidade e sua maneira de ensinar estarão sendo monitoradas para afiançar a bonificação da escola, criando tensões na relação do professor com a escola,com demais profissionais desta e, em relação do professor com a escola, com os demais profissionais desta e, em relação aos alunos, na sua forma de apresentar os conteúdos, o que consequentemente aparecerá nos resultados do Saresp. Seguindo e garantindo esses fatores, a escola teria todas as condições de alcançar suas metas e receber sua bonificação, pois aposta-se que o resultado seria necessariamente um melhor desempenho dos alunos na avaliação externa. (CATANZARO, 2012, p. 25) Há uma reunião anual nas escolas paulistas chamado de Dia do Saresp na Escola, essa reunião pedagógica é destinada para toda comunidade escolar como afirma o professor D: O Dia do Saresp... é uma data em que os professores... Na realidade seria também a comunidade né?! Mas acaba sendo mais os professores e a equipe gestora da escola. É uma reunião, onde nós assistimos... alguma coisa, uma conferência do estado sobre o Saresp, orientando, e depois nós analisamos os dados do Saresp do ano anterior e dos anos anteriores, vendo aquilo que foi atingido, o que não foi atingido, estabelecendo as metas. É um dia de avaliação, a gente avalia internamente e avalia nossa escola em comparação as outras do município e da região inclusive do estado. (PROFESSOR D, 2015) Nesse dia de avaliação da escola, são traçados os passos a serem dados no que diz respeito a preparação dos alunos ao Saresp como podemos confirmar com a resposta de outro professor: É um dia que a gente se reúne, pra discutir, pra analisar os índices passados né?! Do ano passado, analisar os resultados das avaliações diagnósticas, das avaliações bimestrais e como estão os alunos, que ações, que medidas vamos tomar, vamos fazer pra melhorar né?! Como que a gente vai trabalhar. Então a gente faz um levantamento pra... visando sempre melhorar esse, esse resultado. (PROFESSOR A, 2015) Outro professor ainda comenta que : O dia do Saresp é ver as metas, ver os anos anteriores, os desempenhos anteriores, as metas que foram alcançadas e, grosso modo, o que precisa pra atingir essas metas (risos), a preocupação do dia do Saresp é essa (risos) (PROFESSOR B, 2015)

184 Página184 DOSSIÊ CAETANO, J.A.G. O riso nervoso do professor acima ao comentar sobre o que de fato seria o dia do Saresp se completa com sua insatisfação com esse sistema, para ele o ensino em si fica em segundo plano, uma vez que o que se pretende é criar estratégias para que se alcance as metas estabelecidas pela SEE-SP. A resposta de outro professor nos chama a atenção: É visto como foi trabalhado no outro ano. Mas é o que eu te falei... não que História não seja importante, mas o que é mais cobrado, o que é mais exigido é Português e Matemática, a gente faz o que a gente pode, faz aquilo que é possível, mas o que é cobrado mesmo é Português e Matemática. Então, tirando a parte de leitura e escrita... pra História não se faz tão significativo. Não que eu não ache importante ler e escrever, mas tinha que ter mais coisas pra História e Geografia e a gente sabe, não tem. (PROFESSOR C, 2015) Vale Lembrar que, embora nas edições anteriores a 2015 houvesse avaliação em Ciências Humanas ou Ciências da Natureza, as disciplinas que possuem peso para determinarem o rendimento da escola são Língua Portuguesa e Matemática, o que foi lembrado pelo mesmo professor anterior quando lhe perguntamos se a prova influencia o ensino. Você vai, você vai, vai cobrar do aluno ele fala: Mas isso cai no Saresp? Professora, Português e Matemática, o resto não cai no Saresp é a reposta, a resposta que ele tem pra gente é essa. Enfim, pega um nono ano aí, a sempre assim Mas isso aí não cai no Saresp. Por que o que é valorizado ainda na escola, infelizmente, ainda é Português e Matemática. (PROFESSOR C, 2015) Para o aluno essa cultura da avaliação já está posta, e ele entende em quais disciplinas realmente será avaliado, a inexistência da prova, apavorante para os professores, determina uma mudança no projeto pedagógico da escola, ou seja, uma mudança em todo o trabalho, uma ruptura nessa cultura. O que nos parece diante dessas afirmações é que o Saresp assumiu tamanha influencia dentro da escola a ponto de levar as disciplinas menos valorizadas realmente se sentirem menores e com menos importância. Obviamente que isso não surgiu com essa avaliação, no entanto para acentuar outros fatores como a diferença entre o número de aulas semanais para determinadas matérias mostra a importância que elas ocupam dentro de um projeto pedagógico.

185 Página185 O que dizem os professores sobre a disciplina de história..., p Não podemos deixar de acrescentar que o apreço da proposta pedagógica paulista para o desenvolvimento da habilidade leitora e escritora direcionam, talvez erroneamente, a uma importância maior à disciplina de Língua Portuguesa, uma vez que ler e escrever é entendido como um dos pilares da educação e o desenvolvimento da habilidade leitora e escritora é de importância para todas as disciplinas. No entanto, entendemos que quando o professor faz essa alegação é porque percebe que os esforços da DE e da SEE-SP para as disciplinas de Matemática e Língua Portuguesa são muito maiores e com muito mais recursos, obviamente devido à importância das avaliações externas. As narrativas dos professores revelam a angustia de trabalhar com um material com tantas particularidades e como um sistema de avaliação que lhes parece não atingir sentidos reais para o seu trabalho cotidiano, no entanto, seu uso tutelado, ou não já se fez efetivo, sendo hoje parte do Código Disciplinar de História no Estado de São Paulo.

186 Página186 DOSSIÊ CAETANO, J.A.G. Conclusão O que é ensinar História no estado de São Paulo hoje? Encontrar a possível resposta para essa questão não foi fácil e, podemos dizer certamente, não chegamos a uma resposta unânime e definitiva, ao invés disso tivemos outros questionamentos que nos levaram a outras respostas não menos importantes. Ensinar História perpassa por um ideal de governo que prioriza o resultado deixando de lado seus caminhos, decorre por políticas públicas para educação que busca uma unificação curricular que promova cortes de despesas, aumento do número de alunos por sala de aula, diminuição do número de professores da rede e menor responsabilidade do governo estadual em alguns setores. Impossível não nos atermos a essas questões para respondermos a nossa dúvida. As angústias dos professores nesse sentido não estão apenas no fato de que há uma valorização muito grande para o desempenho que o aluno terá na prova do Saresp, também está em perceber que a sua disciplina é considerada como de segundo plano, de menor importância e, assim sendo, com menor preocupação por parte da equipe gestora e pela própria Secretaria de Educação através da Diretoria Regional de Ensino. Prova disso foi que durante as entrevistas os professores expressavam o descontentamento com o número de Oficinas Técnicas destinadas à disciplina de História em comparação a outras disciplinas, por exemplo, e a atenção que matérias como Português e Matemática, as quais as avaliações externas possuem maior peso, dentro da escola, vemos isso pelo número de aulas semanais destinadas as mesmas, as formações continuadas oferecidas aos professores, por exemplo. Ainda que os professores não vejam a cobrança por parte da equipe gestora da escola ao uso do material didático como pressão, podemos perceber que seu uso está enraizado na escola, até mesmo por parte dos discentes. Mesmo seu uso, de acordo com as orientações do programa São Paulo Faz Escola, não sendo obrigatório é fato

187 Página187 O que dizem os professores sobre a disciplina de história..., p que ele já faz parte dessa tradição inventada da cultura escolar e, se desvencilhar dele não é fácil. Os professores salientaram que o material didático facilita seu trabalho cotidiano, e por isso lançam mão dele para o seu trabalho. É importante entender o que os professores chamam de facilitar, essa palavra denota que os diversos problemas da carreira docente como grandes jornadas de trabalho, trabalharem com diferentes turmas em diferentes níveis de escolarização, o número elevado de alunos, são, de alguma forma, amenizados com um material que lhes mostram como se deve trabalhar, quais as aulas serão ministradas e até em quanto tempo. Não percebem talvez essa facilitação, mesmo que velada, é uma forma de imposição. Não tivemos a ambição de esgotar as discussões acerca do tema, e as nossa dúvidas decorrentes do processo de pesquisa são a prova disso porém, esperamos que essa pesquisa ajude a levantar o debate sobre o tema que propomos e promova questionamentos que levem à melhoria do trabalho docente.

188 Página188 DOSSIÊ CAETANO, J.A.G. Referências CAÇÃO, M.I., MENDONÇA, S.G.L. São Paulo Faz Escola"?: Contribuições à reflexão sobre o novo currículo paulista. In: GRANVILLE, M.A.(Org.). Currículo, sistemas de avaliação e práticas educativas: Da escola básica à universidade. Campinas: Papirus, p CATANZARO, F. O. O programa São Paulo Faz Escola e suas apropriações no cotidiano de uma escola de ensino médio f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Educação, Usp, São Paulo, Disponível em: <file:///c:/documents and Settings/User/Meus documentos/downloads/fabiana_olivieri_catanzaro (1).pdf>. Acesso em: 06 set CIAMPI, H. et al. O currículo bandeirante:: a Proposta Curricular de História no estado de São Paulo, Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 29, n. 58, p Disponível em:. Acesso em: 20 mar FERNÁNDEZ, R. C. Sociogénesis de una disciplina escolar: la historia. Barcelona: Pomares-corredor, 2009 FRANCO, M. L. P. B. O que é análise de conteúdo. São Paulo: PUC; GEVAERD, R. T. F.. A construção do código disciplinar da História do Paraná: a presença desse ensino na cultura escolar. In: VI CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, 2006, UBERLÂNDIA. VI CONGRESSO LUSO-BRASILEIRO DE HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO, p GUIMARÃES, A. L. B.. A Avaliação de aprendizagem em arte: Desvelando realidades f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Educação, Universidade Estadual de Londrina, Londrina, LUCKESI, C. C.. Avaliação da aprendizagem escolar: estudos e proposições. São Paulo: Cortez, MOTA, B. M. C. S. Ensino de história e cultura afro-brasileira uma análise do caderno do professor de história do ensino médio público paulista: uma análise do caderno do professor de história do ensino médio público paulista f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Educação, Unesp, Marília, Disponível em: < Graduacao/Educacao/Dissertacoes/mota_bmcs_me_mar.pdf>. Acesso em: 20 mar PAES, M. V.; RAMOS, G. P. O Programa "São Paulo Faz escola" e seu modelo de gestão tutelada. Comunicações, Piracicaba, v. 2, n. 21, p.53-66, jul./dez Semestral. Disponível em: < Acesso em: 20 mar SÃO PAULO (Estado). Secretaria da Educação nº 1, de Currículo do Estado de SÃO PAULO, S.E.E. CENP - Proposta Curricular de História, 1º grau. São Paulo, S.E.E./ CENP/, 1986, p. 04. SÃO PAULO: Ciências humanas e suas tecnologias. São Paulo, SP: Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, 2010.

189 Clivagens Sociais E Relações Étnico-Raciais: Um Estudo Sobre A Consciência Histórica Nos 7º E 8º Anos Do Ensino Fundamental Social Differences And Ethnic-Racial Relations: A Study Of Historical Consciousness In The 7th And 8th Years Of Elementary School RESUMO Guilherme Gomes Moerbeck * Este artigo tem como objetivos fundamentais discutir as possíveis relações entre os debates em teoria e ensino de História, tomando como ponto de partida o conceito de consciência histórica. Entre março e dezembro de 2015 foi realizado um trabalho de campo junto a quatro turmas do Ensino Fundamental da Escola Municipal Célia Rabelo, que pertence à Rede Municipal de Duque de Caxias, localizada no Distrito de Xerém. Durante o ano letivo foram realizadas atividades pedagógicas com duas turmas de 7º ano e duas de 8º ano, cujo objetivo fundamental era o de estimular a reflexão discente em torno de temáticas atinentes ao currículo escolar para as séries em questão. Tendo por base a ideia de consciência histórica, foram selecionados conceitos e temas que especialmente ensejassem o debate sobre as clivagens sociais e as diferentes formas de identificação étnico-raciais. Palavras-chave: Ensino de História. Consciência Histórica. Didática da História. Teoria da História. ABSTRACT This article aims to discuss the possible relationship between some debates in theory and teaching of history, considering the concept of historical consciousness. From March, up to December 2015 it was carried out a field work along four classes of elementary public school Célia Rabelo, which belongs to the Duque de Caxias County, Rio de Janeiro State. During the year, were carried out educational practices with two 7th year classes and two 8th year classes as well. The main goal was to stimulate student reflection on issues related to the school curriculum, but also to understand how the students were building their historical consciousness. To make it possible, were selected some historical themes to develop in their regular classes, especially those concerned to the debate about social differences and, equally, about the possible forms of ethnic and racial identification. keywords: Teaching of History. Historical Consciousness. Didactic of History. Theory of History. * Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Visiting Research Fellow no Department of Classics da Brown University. Pós-doutor em Ensino de História pelo PPHPBC do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV-Rio). Atualmente, é professor de História da Arte e Arquitetura no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola Superior de Desenho Industrial da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Esdi/UERJ). É pesquisador de pós-doutorado no Laboratório de Estudos Sobre a Cidade Antiga LABECA/MAE/USP e filiado ao Leitorado Antiguo - UPE. Bolsista PDJ do CNPq. gmoerbeck@yahoo.com.br

190 Página190 DOSSIÊ MOERBECK, G.G. O laboratório de estudos: onde está a sala de aula? Com o passar dos anos, qualquer docente, pode-se imaginar, seja do ensino básico ou do superior, depara-se com desafios de várias ordens em sala de aula. No caso específico em que essa pesquisa se insere, uma espécie de etnografia escolar junto à uma escola da baixada fluminense, há um conjunto de objetivos que estão ligados não apenas à prática docente no ensino básico, mas igualmente e quiçá, ainda mais importante, nas formas de reflexão e de trocas entre a teoria da História e a sua didática. O objetivo fundamental desse artigo, em certo sentido híbrido (já que une tanto reflexões teóricas a relatos de experiências), é aproximar algumas reflexões ensejadas em disciplinas de didática e ensino de história no nível superior no âmbito da FGV- Rio 20 e do curso de História da Universidade Candido Mendes, da prática escolar propriamente dita. Especificamente em uma escola pública localizada no município de Duque de Caxias, no Estado do Rio de janeiro. Segundo dados do IBGE, o município de Duque de Caxias contava com docentes vinculados ao Ensino Fundamental em Trata-se do segundo maior número de docentes municipais de todo o Estado do Rio de Janeiro, inferior apenas à capital. O número de matrículas nas escolas municipais da rede em questão ultrapassou 62 mil no ano de Note-se ainda que, o salário percebido pelos docentes de tal rede é considerado um dos maiores do país, levando-se em conta apenas as redes de ensino municipais. Apesar disso, a prefeitura não realizou concursos públicos durante quase dez anos ( ), o que ocasiona, hoje, uma carência significativa de docentes para atender a demanda da rede 21. Considerando dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP de 2013, a meta do município para o Índice de 20 Meus sinceros agradecimentos ao Prof. Américo Freire e à aluna Aline Melo, ambos, de diferentes maneiras, indispensáveis no desenvolvimento desse trabalho. 21 Cf. visita em 25/02/16. Houve um concurso público no ano de 2016, com número de vagas sensivelmente reduzido em relação ao tamanho da rede.

191 Página191 Clivagens sociais e relações étnico-raciais: um estudo sobre a consciência histórica..., p Desenvolvimento da Educação Básica - IDEB para os AIEF (Anos Iniciais do Ensino Fundamental) era de 4,4. Esta não foi atingida, ficando apenas com 4,3 em seu resultado final. Ainda segundo o INEP, neste segmento, a cada 100 alunos, 17 foram reprovados, o que agrava o problema da relação entre idade e ano escolar. Avaliando-se os mesmos dados para o segundo segmento do Ensino Fundamental, a situação é significativamente mais crítica. O fluxo é de 0,78, isto é, a cada 100 alunos 22 não foram aprovados. E a nota final do IDEB foi de 3,3, enquanto a meta do município era de 3,6. Segundo o Prova Brasil de 2011, a Escola Municipal Célia Rabelo obteve apenas 30% de aprendizagem de português no 5º ano do Ensino Fundamental, enquanto, apenas 15% obtiveram resultado satisfatório para a mesma disciplina, avaliando-se o 9º ano 22. Ao considerar esses dados como uma amostra geral, temos fortíssimos indícios da necessidade de intervenções e melhorias pedagógicas na rede em questão. Há gargalos na relação ensino-aprendizagem que podem estar ligados tanto ao processo educativo, realizado nas escolas em questão, quanto a problemas de estrutura e apoio ao desenvolvimento do alunado. Evidentemente, os problemas sociais atravessam toda a região, mas o escopo deste trabalho é bem mais circunscrito, vincula-se apenas às práticas que podem ser formuladas intramuros para a melhoria da aprendizagem de História dos discentes. Ainda assim, cabe lembrar que qualquer prática docente deverá levar em consideração o ambiente no qual a escola está inserida para a organização dos seus próprios objetivos. Sobre a consciência histórica: reflexões teóricas A noção de consciência histórica ganhou espaço na última década entre os historiadores brasileiros, embora seja, em países como a Alemanha, um dos conceitoschave para a educação em História. Conceito este que, na Alemanha, foi transformado até mesmo em competência para a avaliação do desenvolvimento do pensamento histórico nos alunos (Kölb e Konrad, 2015, p. 17). A tendência em legar à noção de consciência história maior importância aparece em outros países, como o Canadá, em especial na província do Quebec, na qual, desde 2003, os professores avaliam a 22 Cf. ; visita em 25/02/16.;

192 Página192 DOSSIÊ MOERBECK, G.G. capacidade do desenvolvimento do pensamento Histórico em seus alunos 23 (Duquette, 2015). No Brasil, as reflexões em torno dessa problemática começam a aparecer em propostas oficiais, como ocorre, por exemplo, nas Diretrizes Curriculares Nacionais - DCN. Na parte dedicada ao Ensino da História da África, cultura africana e seus desdobramentos no Brasil, é mencionada a importância de desenvolver nos alunos a consciência política e histórica da diversidade (Brasil, 2013, p. 504) 24. O conceito de consciência histórica possui hoje um longo percurso, que vem sendo discutido, cada vez mais, em trabalhos publicados no Brasil. A origem dessa noção é da República de Weimar, portanto, ainda antes da 1ª Guerra Mundial, na área da Psicologia da Educação. Há certo esquecimento dos educadores e historiadores da referida arqueologia do termo, o que pode ter relação com a apropriação que opera no Brasil, cuja origem remete ao trabalho de dois historiadores que produziram a partir da década de Para o primeiro deles, Hans-Jürgen Pandel, pode-se constatar na consciência histórica uma divisão em sete níveis intercomunicantes. Assim, há os níveis básicos: tempo, realidade e historicidade que se referem ao domínio da História propriamente dito; os níveis sociais: identidade (relativo ao sentimento de pertencer, de perceber o outro); o político (relativo às clivagens de poder); o econômico-social (relativo às clivagens sociais e diferenças de classe) e o moral (relativo às diferenciações de julgamento de valor, histórico e culturalmente condicionados). No que tange aos níveis básicos, a consciência do tempo é relevante na medida em que é possível discernir o passado, presente e futuro, bem como pôr os eventos em uma ordem temporal perceber porque algumas datas foram tornadas importantes, por exemplo. A consciência da realidade é relevante na medida em que se possa diferenciar fenômenos históricos reais dos fictícios, o que é uma tarefa difícil, sobretudo para os mais jovens. Já a consciência da historicidade significa a percepção da mudança 23 Embora os conceitos em questão - consciência história e pensamento histórico - não sejam equivalentes, eles operam dentro de um mesmo quadro geral, a saber: a definição de possibilidades das pessoas em articular o passado, presente e possibilidades de futuro por meio da análise diacrônica de dados sociais e históricos. 24 A parte da DCN mencionada é um dos desdobramentos da Lei 10639/03 que tornou obrigatório, em todas as redes de ensino básico, o ensino de História da África e da Cultura Afro-brasileira. Faz parte das contradições de nossa própria historiografia e de nossas clivagens sociais que tivesse que se tornar lei o ensino desses conteúdos para que os próprios cursos universitários, flagrantemente influenciados pela cultura e historiografia europeia, ajustassem seus currículos. Note-se que, era perfeitamente possível que um estudante de graduação, antes da referida lei, saísse de um curso de quatro a cinco anos em História sem sequer ter aberto um mapa da África. Hoje, esse nefando esquecimento não pode ser considerado nem desejável e nem aceitável.

193 Página193 Clivagens sociais e relações étnico-raciais: um estudo sobre a consciência histórica..., p e das relações entre as várias formas de associação histórica nações, etnias, segmentos de grupos sociais e assim por diante (Kölb e Konrad, 2015). A produção historiográfica brasileira 25, no que se refere à noção de consciência histórica, foi profundamente influenciada por outros dois historiadores, o primeiro deles Reinhart Koselleck e o segundo, e mais importante nesse sentido, Jörn Rüsen. A abertura do diálogo com os historiadores nos impulsionam a algumas digressões de caráter teórico. Traçar uma etiologia do conhecimento dos autores em questão é tarefa árdua. As reflexões que seguem apontam muito mais no sentido da orientação dos leitores das origens e conexões filosóficas que podemos encontrar, sobretudo em Rüsen, um dos mais influentes teóricos discutidos na produção historiográfica brasileira contemporânea 26. Considerando ainda a complexidade, em nosso caso, cujos objetivos apontam muito mais para aspectos práticos do ensino de História, o estudo a seguir não se pretende, de maneira alguma, exaustivo. As conexões entre a hermenêutica e o giro linguístico contemporâneo têm em uma de suas possíveis manjedouras a obra Investigações Filosóficas de Ludwig Wittgenstein. Para este, o significado não está mais na forma em que se dá a proposição, mas pelo uso que se faz no emprego das expressões linguísticas (no jogo de linguagem); assim, O significado de uma palavra é seu uso na linguagem (Wittgenstein, 1996, pr.43). Como o uso da linguagem é uma prática social concreta, para se compreender seus significados mais profundos, deve-se recorrer ao uso que é feito dela, no contexto em que se utiliza, a partir de suas próprias regras. Outro autor, absolutamente influente, sobretudo na produção da hermenêutica alemã recente foi Hans-George Gadamer, pois, para ele: cada época entende um texto transmitido de uma maneira peculiar, pois o texto constitui parte do conjunto de uma tradição pela qual cada época tem um interesse objetivo e na qual tenta compreender a si mesma. O verdadeiro sentido de um texto, tal como este se apresenta a seu intérprete, não depende do aspecto puramente ocasional que representam o autor e o seu público originário. Ou, pelo menos, não se esgota nisso. Pois este sentido está sempre determinado também pela situação histórica do intérprete e, por 25 Há uma proposital omissão dos principais autores e debates sobre o conceito em língua portuguesa nessa área, apenas por uma questão de espaço. Dentre eles, não poderiam deixar de ser mencionados, por exemplo: Maria Lima, Maria Auxiliadora Schmidt, Luis Fernando Cerri, Isabel Barca, Rafael Saadi e Oldimar Cardoso. Cf. a bibliografia. 26 Ao lado de Rüsen, são inegáveis as contribuições nessa linha de debate de Paul Ricoeur e François Hartog.

194 Página194 DOSSIÊ MOERBECK, G.G. consequência, pela totalidade do processo histórico. (Gadamer, 1997, p. 366) Ainda em Gadamer, como o conhecimento se move em círculos, não se pode existir livre de pressuposições, o que torna absolutamente complexa a questão da objetividade, isto é, a compreensão só é possível a partir de um ponto particular da História. A compreensão da sociedade está ligada às normas linguísticas de atribuição de significados. A hermenêutica é a possibilidade de se criar descrições da vida social, cuja centralidade da língua opera como instrumento organizador do mundo vivido. Gadamer enfatizou que o indivíduo vive na e por meio da linguagem. Como a linguagem é um fenômeno social enraizado, a autocompreensão do indivíduo está ligada às formas pelas quais a linguagem dá conta dos fenômenos de maneira mais coletiva. O problema da recepção se torna ainda mais importante em Koselleck, pois ao se ler um clássico, escrito há 200 anos; faz-se isso, na verdade, por meio dos filtros de leitura contemporânea e pelas experiências e releituras já feitas do referido texto tornado clássico, e que acabam por influir em uma nova possível interpretação. A historicidade se une à experiência na medida em que uma obra literária caminha através de uma sucessão de análises e por horizontes de expectativas (Koselleck, 1992). Assim, certamente não se pode ler hoje um texto, como o fora feito no momento de seu lançamento. O que permite o entendimento histórico, nesse sentido, é a junção da leitura sincrônica com a dimensão diacrônica. O trabalho de Koselleck deve, doravante, ser compreendido como uma contribuição para a nossa autocompreensão e não simplesmente como um método de análise histórica para ser replicado, aplicado e comparado (Tribe, 2004, p. XIX). É no sentido de uma produção historiográfica que também é compreensão de si que aparece o trabalho de Rüsen. Esta perspectiva guarda origens, como já delineado, não apenas na hermenêutica, mas, a meu ver, na Fenomenologia, especialmente na de Edmund Husserl. Há elementos centrais no pensamento de Rüsen que parecem remeter ao do filósofo em questão. Dessa forma, pratica-se o abandono de uma causalidade de origem racionalista e iluminista para se trilhar em caminhos mais relativos à experiência e aos atos de consciência no problema da produção e interpretação historiográficas.

195 Página195 Clivagens sociais e relações étnico-raciais: um estudo sobre a consciência histórica..., p Uma das preocupações de Rüsen dizem respeito às experiências, que também aparece na Fenomenologia, e relaciona-se com as formas através das quais as pessoas retém o passado e como são antecipadas as questões do futuro, protensions isto é uma projeção das questões do passado e presente como futuro imaginado, algo como ocorre racionalmente em filmes de ficção científica, por exemplo. É por isso mesmo, que as relações entre passado, presente e futuro são fundamentais dentro das formulações do teórico alemão e naturalmente para a História Escolar. A História ganha importância nesse viés interpretativo, pois, como todo problema é apresentado à consciência, então se deve supor que consciência é modelada em um momento histórico. A História é sempre presente em nossas experiências (Weberman, 2009). Aproximando-se ainda mais de Husserl, está o problema acerca da teoria das intersubjetividades, pois nesta é afirmado que nós adotamos muito de uma comunidade que nos rodeia. Assim, os atos da consciência sedimentam-se em atitudes culturais e predisposições, alguns historiadores vêm trabalhando com a noção de cultura histórica. O que pensamos não é uma questão apenas de nossa realidade presente e nossa experiência individual, mas ligados à cultura e ao ponto da História no qual nos encontramos. Constrói-se, assim, a noção de Lebenswelt, isso é, o mundo da vida (life-world). Não é a totalidade do mundo, mas o mundo que carregamos em nossas atividades e experiências. E ele é modelado por nossa cultura e forma particular de vida. Toda consciência constrói os seus horizontes dentro desse mundo 27. O mundo do Lebenswelt é o histórico, captado pela consciência, o que não pressupõe a verdade do conhecimento científico, embora essa exista de maneira rudimentar [em minha opinião significa que não se precisa compreender profundamente a ciência para utilizar o que se deriva dela]. No Lebenswelt a consciência é moldada historicamente, mas sem 27 Na verdade, o mundo da vida de Husserl é uma contraposição e talvez uma extensão do universo que pode ser entendido pela ciência; embora este impacte naquele. Esta é uma das questões que, talvez os teóricos da história possam responder de maneira mais adequada do que eu mesmo. Parece que há uma tensão na base epistemológica a que se propõe Rüsen. É a sua ciência histórica muito mais uma História fenomenológica e/ou hermenêutica? Considerando que a Fenomenologia nasce, muito por conta de uma crítica à causalidade, na qual se erige o conhecimento da ciência moderna, um dos problemas das ciências em Husserl era que ela excluía as formas de compreensão do mundo subjetivas. A própria noção de uma ciência objetiva parecia, naquele momento, uma ingenuidade para o filósofo. No entanto, os debates epistemológicos, hoje, não são mais esses, o que não nos faz saltar aos olhos a tentativa de Rüsen, de uma ciência histórica dentro de parâmetros subjetivos, no âmbito da experiência, que seria uma ciência que inclui o mundo.

196 Página196 DOSSIÊ MOERBECK, G.G. pressuposições ou estruturas teóricas prévias. O mundo da vida está incrustrado na consciência (Weberman, 2009). Construindo uma relação com os problemas mais específicos desse artigo, tomemos as ideias de Rüsen, especificamente em dois livros traduzidos para o português em 2001 e 2008, mas que originalmente foram publicados na década de 1980 na Alemanha. A teoria da História, de alguma maneira, tem como função amalgamar o fracionamento histórico causado pela especialização, não se perdendo, como o próprio Rüsen menciona, a visão de conjunto, a visão da floresta em favor da visualização microscópica das folhas. A teoria da História deve, de maneira dinâmica, mostrar a interdependência sistemática dos fatores determinantes do conhecimento histórico, que acabam por delimitar o campo da atuação do historiador. O objeto da teoria da História é, portanto, os fundamentos e princípios da ciência histórica, o que Rüsen chama de Matriz Disciplinar sinônimo de paradigma, apropriado da noção originária de Thomas Kuhn. O tratamento dos fatores e princípios, aos quais menciona Rüsen, deve ser feito por meio de uma reconstituição. O melhor ponto de partida seria o da própria vida cotidiana, na qual os fundamentos surgem como consciência histórica 28. Da carência humana da orientação do agir, surge o problema neste universo de ideias. A ciência histórica é erigida, assim, como forma de dar resposta a uma carência existencial e intelectual a uma questão, como solução de um problema. O processo de orientação no fluxo temporal pressupõe uma dinâmica de apropriação do passado no presente. A recuperação do passado é condição sine qua non para a compreensão do presente e a projeção de futuros possíveis (Rüsen, 2001). Dessa maneira, Rüsen estabelece cinco fatores inter-relacionados que fazem parte de sua matriz disciplinar, são eles: 1) as carências de orientação da prática humana no tempo; 2) busca de interesses específicos do conhecimento histórico; 3) os métodos que acabam por caracterizar a pesquisa empírica; 4) as formas de apresentação (elemento fundamental para os nossos propósitos aqui, pois engloba meios narrativos, curadorias e, inclusive, a própria didática na composição de aulas); 5) orientação 28 Em Rüsen, os tipos ideias de consciência histórica são: exemplar, tradicional, crítico e genético.

197 Página197 Clivagens sociais e relações étnico-raciais: um estudo sobre a consciência histórica..., p existencial como ponto de chegada, mas também de recomeço nas carências de orientação, pois das respostas encontradas surgem novas perguntas. A formação histórica, lato sensu, se constitui como o conjunto de processos de aprendizagem em que a História não se dirige, em princípio, à formação profissional, pois há esse tipo de aprendizado nas escolas; nos meios de comunicação e na vida cotidiana (famílias, grupos, etc.). Uma das mais evidentes contribuições de Rüsen para as reflexões em questão está na simbiose existente entre a teoria da História [comumente produzida, como diria Pierre Bourdieu, como uma reflexão à dimensão historiográfica dentro do próprio campo científico], a vida prática e a didática da própria História, esta muitas vezes reduzida problematicamente apenas à função metodológica do ensinar-como (Cardoso, 2008). A teoria da história assume, pois, no campo da formação histórica, uma função didática de orientação (Rüsen, 2001, p. 49). Note-se que, para o autor em questão, não é necessário aprender a História científica para se orientar no tempo. Na verdade, segundo Rüsen, o produto historiográfico da pesquisa histórica não [é] dos mais apropriados à formação da consciência histórica, nos quais nãohistoriadores aprendem a elaborar um sentido histórico para sua experiência da evolução temporal de si mesmos e de seu mundo (Rüsen, 2001, p. 49). De alguma forma, Rüsen nos leva a refletir, igualmente, sobre as diferenças entre o ensino no nível superior e no básico, que devem ser observadas, pois os artifícios de ensino-aprendizagem são qualitativamente diferentes. Em síntese, as reflexões, metodologias e conteúdos que são aprendidos na especialização como pesquisador em história não são coincidentes com as competências que o trabalho em uma escola exige. Dessa maneira, A didática é a disciplina em que essa competência específica para a sala de aula, para ensinar, é formulada e refletida. As experiências, investigações, conhecimentos e testes necessários para isso possuem peso e lógica próprios, não coincidentes com o que a História como Ciência pode produzir e produz. A didática da história leva sistematicamente em conta, em sua autonomia e independência disciplinares relativas, as diferenças entre o trabalho cognitivo da ciência histórica e a atividade do aprendizado de história na sala de aula (Rüsen, 2008, p. 91). Para Rüsen, qualquer professor deveria se empenhar em dois esforços: no de uma especialização e na do ensino. O problema a ser superado é considerar a didática da história apenas como um recurso técnico, metodológico, alheio aos mecanismos

198 Página198 DOSSIÊ MOERBECK, G.G. cognitivos da história (Rüsen, 2001, p. 91). Caso a didática fosse apenas um conjunto de conhecimentos acessórios à produção historiográfica, não faria o menor sentido tentar fazer relações entre a teoria e o ensino de história. Uma das questões para o autor alemão é que o ensino de História transforma a consciência histórica em tema da didática da História (Rüsen, 2001, p. 91). Lembrando que a história não é aprendida apenas nas salas de aula, mas nos mais variados contextos da vida. O vasto campo de reflexão em torno da consciência histórica acaba trazendo a reboque a didática da história para o campo da teoria da história. E vice-versa, pois as carências de orientação no tempo fazem com que haja a busca pelo conhecimento histórico, e lá está a didática aliada à função de orientação existencial. Em nosso caso, à guisa de síntese, nos preocupa a maneira pela qual os estudantes do Ensino Fundamental, que participaram dessa experiência, se apropriaram do conhecimento da História Escolar, programático; e como, por meio desse mecanismo, releram o seu próprio mundo. Assim, estão em questão as relações entre as diferentes maneiras de julgar, identificar, e selecionar elementos-chave de um passado histórico e/ou de vida para a compreensão e projeção de futuros possíveis. Tudo isso, tomado por meio de trabalhos em sala de aula que hoje estão em arquivo pessoal, e da própria experiência etnográfica, que se parece um pouco com o que Pierre Bourdieu chamava de objetivação participante, que acaba por explorar não somente a experiência vivida daquele que conhece, mas as condições sociais de possibilidade dessa experiência, inclusive levando em consideração tornar possível a objetivação da relação subjetiva com o objeto em busca de resultados mais ou menos palpáveis, comparáveis e úteis aos colegas que ora leem esse artigo (Bourdieu, 2003, p. 44). Um exemplo desse percurso, muito mais refinado do que essas tortas linhas que escrevo e no qual me inspiro, é o trabalho da Antropóloga e Designer, Zoy Anastassakis, em Triunfos em Impasses: Lina Bo Bardi, Aloisio Magalhães e o Design no Brasil (Anastassakis, 2014, p ) Percurso de uma pesquisa: algumas ideias e resultados de uma experiência no 7º e 8º anos do Ensino Fundamental A ideia inicial e mais prosaica dessa parte empírica da pesquisa foi o de fazer com que um trabalho escolar cotidiano da disciplina História não assumisse apenas a

199 Página199 Clivagens sociais e relações étnico-raciais: um estudo sobre a consciência histórica..., p formalidade da entrega de um papel ao final de um bimestre. Então, o primeiro desafio estava posto, como fazer com que os alunos compreendessem que não se tratava de um trabalho que ficaria pronto em apenas um bimestre, mas seria desenvolvido ao longo de três longos bimestres. Assim, foi feito um escalonamento das atividades que foram reveladas aos alunos paulatinamente, para que também não causasse um efeito de pânico. Uma das piores coisas que poderiam acontecer era que eles começassem a pensar que se tratava de algo muito complexo, inexequível, e gerar de antemão desinteresse. Desta maneira, o trabalho empírico é uma janela da minha própria sala de aula que abro agora. Vocês encontrarão um misto de minhas próprias experiências e relatos com a produção dos alunos das turmas 702, 703, 801 e 802, 7º e 8º anos de escolarização, portanto, na instituição de ensino mencionada anteriormente, envolvendo em torno de 120 alunos. Devo alertar ao leitor, especialmente se for um colega do ensino básico, que este trabalho, em momento algum, se pretende paradigmático. Isso significa dizer que, mesmo que se queira tomar essa experiência como referência, dever-se-á ater às especificidades e necessidades de cada local e público-alvo 29. A ideia inicial era dividir a turma em grupos de aproximadamente quatro alunos que continuariam a existir ao longo do ano, tratando-se de uma experiência de longo prazo, pouco usual em nosso cotidiano escolar que, geralmente, divide o ano em ciclos de quatro bimestres ou três trimestres. 29 À guisa das reflexões em torno da noção de consciência histórica, foi utilizado o percurso resumido a seguir: Passado - a) Incentivar os alunos a buscarem imagens do Brasil Colônia que mostrassem a sociedade da época, em especial, o trabalho do escravo em suas mais variadas utilizações (8º ano). No caso do 7º ano, as imagens deveriam mostrar, em suas diferentes matizes as relações entre ricos e pobres na Idade Média, considerando, inclusive casos de exploração, sofrimento, doenças, etc. b) Foram feitos exercícios com vídeos em sala de aula, tais como: Vídeo 1-8º ano: Zumbi. Cf. Série Construtores do Brasil Câmara dos Deputados. Vídeo 2 8º ano: Entradas e Bandeiras Episódio 4 (Série: Histórias do Brasil - Por TV Brasil e Grupo Conspiração Fonte: TV Brasil). Vídeo 3-7º ano: Série grandes civilizações: Os Francos. c) Montar, em sala de aula, um quadro único com as imagens trazidas pelos alunos de cada turma. Uma nova organização espacial da sala de aula foi feita para a realização dessa etapa. Presente - A partir desse momento, o trabalho com o 7º e 8º anos foram unificados, guardados as nuances temáticas trabalhadas em sala de aula. a) Fontes em sala de aula: Leitura de fontes sobre a 1ª Revolução Industrial com depoimento de crianças que eram utilizadas no trabalho em fábricas têxteis. Seguido de um exercício comparativo com fontes textuais que mostram a exploração do trabalho infantil no Brasil contemporâneo. b) Foi pedido aos integrantes dos grupos que trouxessem depoimentos de parentes e amigos que tivessem sofrido exploração no trabalho infantil. c) Curta-metragem: 10 centavos, Diretor: Cesar Fernando de Oliveira. d) Imagens e poemas produzidos por Abelardo da Hora. e) Houve um grande debate em torno das temáticas fazendo-se uma nova organização espacial da sala de aula. Futuro - Redação pedida individualmente aos alunos do 7º e 8º anos em que deveriam refletir sobre a temática: Pobreza, um problema de todos?

200 Página200 DOSSIÊ MOERBECK, G.G. O planejamento partiu de uma reflexão em torno dos conceitos de raça e etnia e a sua aplicabilidade à realidade do mundo colonial brasileiro com os alunos do 8º ano. Os mesmos conceitos deveriam ser pensados para o Brasil e mundo contemporâneo a posteriori. Da mesma maneira, mutatis mutandis, o 7º ano partiu da questão da pobreza e das clivagens sociais na Idade Média, não apenas a europeia, para convergir em reflexões sobre o mesmo núcleo temático, abordando a questão na Inglaterra da Primeira Revolução Industrial e no Brasil contemporâneo. Após todo esse processo, as turmas foram estimuladas a imaginar o futuro dessas questões. Como se pode notar, há a explícita tentativa de fazer com que os alunos fossem desafiados a refletir acerca de um dos elementos basilares do pensamento histórico: a perspectiva histórica (Seixas, 2010). É de amplo conhecimento social que em escolas municipais e estaduais, via de regra, os docentes não contam com certos equipamentos para o ensino como e-bords, computadores nas salas com projetores multimídia e, nem mesmo, muitas das vezes, pode-se contar com televisores e reprodutores de mídias com facilidade. A despeito de dificuldades de manutenção, muitas escolas contam com a famosa sala de vídeo ou videoteca. É claro que é melhor ter isso a nada; no entanto os colegas costumam vivenciar pequenos problemas como: a condução da turma até a sala de vídeo, o cabo HDMI que sumiu, a pilha do controle que não está lá. Enfim, toda sorte de problemas cotidianos que não impedem, mas dificultam a execução de trabalhos com as tecnologias da informação. No que se refere ao acesso à internet, a situação é ainda pior. A escola onde trabalho conta com rede WI-FI em suas dependências e com equipamentos de projeção multimídia móveis, mas isso é mais uma exceção em nosso quadro geral das escolas públicas do que uma regra. O objetivo da primeira parte, para o 8º ano, foi apresentar aos alunos um conjunto de informações que falassem da vida, do cotidiano, das formas de trabalho e do sofrimento dos escravos no período colonial. Para tal, foram utilizados textos didáticos retirados de revistas e livros desenvolvidos para a faixa etária em questão; bem como uma seleção de imagens e vídeos. A mesma lógica foi aplicada ao 7º ano. Os alunos deveriam produzir, ao final desta etapa, um trabalho de pesquisa sobre uma imagem de época ou que fizesse menção aos seus respectivos períodos e temáticas.

201 Página201 Clivagens sociais e relações étnico-raciais: um estudo sobre a consciência histórica..., p A surpresa dessa etapa, e que deixou parte significativa dos alunos perplexa, foi o fato da forma da apresentação não ser individualizada. Assim, as práticas faziam convergir os grupos montados para um produto que representava a turma como um todo. A ideia era, igualmente, utilizar os mais prosaicos materiais, tentando mostrar que não é necessário utilizar de parafernália tecnológica para buscar os sentidos do pensamento histórico nas meninas e meninos dessa idade. Na mostra dos vídeos, que tinham função propedêutica, tentou-se intervir o mínimo possível, apenas fazendo considerações de conteúdo ou impedindo que houvesse demasiada dispersão em alguns momentos. Note que, as reações espontâneas dos alunos são muito interessantes, em especial o nível de estranhamento ao entrar em contato com a descrição de outras culturas. Por exemplo, ao assistir ao vídeo sobre a vida de Zumbi dos Palmares, notei risos nervosos, um sério estranhamento ao rugir dos atabaques que surgiam em alguns momentos de transição na narrativa do vídeo. Esses tambores eram utilizados como uma espécie de cliché musical, identificado naquele contexto, como elemento cultural intrínseco à cultura dos escravos na época colonial. Esse riso foi entremeado de palavras como macumba, por parte dos alunos. O incômodo de alguns alunos não é de causar surpresa, em uma região em que as denominações neopentecostais evangélicas predominam 30. O assunto não foi contornado naquele momento, o interesse por esse tipo de reação prevalecia em minhas intenções ao simplesmente interromper aquele fenômeno. O vídeo continuou sem maiores intercorrências. Numa época em que felizmente temos que trabalhar a História Africana e do negro no Brasil em sala e aula, é um ótimo momento para sentir essas tensões, entre o trabalho pedagógico do professor e aquilo que aluno traz de fora da escola como forma de consciência histórica e valores sobre o mundo. Quando passamos ao vídeo sobre as Entradas e Bandeiras, adentramos um novo universo possível de diferenciações étnicas e processos de identificação. O olhar para os povos indígenas parecia até mesmo uma novidade, os alunos mostravam certo desconhecimento sobre a importância deles antes da chegada do colonizador e, 30 Segundo dados do IBGE, o município de Duque de Caxias, em 2010, um IDH de 0,711 e uma população residente de pessoas, dentre as quais, declararam-se evangélicas e católica apostólica romana. Há apenas pessoas de religião espírita segundo o censo. No trecho de dois quilômetros que vai do centro de Xerém, a Mantiquira, até a escola em que leciono, no bairro da Pedreira, há 12 congregações religiosas de Batistas e Presbiterianos até a Universal do reino de Deus e Igreja Paz e Vida. Cf.

202 Página202 DOSSIÊ MOERBECK, G.G. igualmente, no Período Colonial. O vídeo inspirou-os à leitura de textos sobre o papel dos povos indígenas, retirados principalmente de leituras complementares do livro didático Projeto Araribá para o 8º ano, livro este diferente do adotado pela escola atualmente. O entusiasmo das turmas de oitavo ano foi tanto que chegamos a ler um trecho e fazer uma análise em grupo, de uma peça de teatro escrita com ideais pedagógicos e doutrinários pelo missionário jesuíta José de Anchieta. Embora não tivéssemos nos aprofundado ainda mais, os alunos revelaram grande interesse pela história das populações indígenas e forte indignação pela forma como a população autóctone brasileira foi tratada pelo colonizador europeu. Após as leituras e a mostra de vídeos foi proposta a montagem de um cartaz. Assim, expliquei que eles deveriam trazer duas imagens que demonstrassem as tensões entre as relações étnico-raciais no período colonial e, para o caso do sétimo ano, a questão da pobreza e clivagens sociais na Idade Média. Em princípio, imaginei ser a internet o locus de maior facilidade pela qual os alunos, tão familiarizados com esse mecanismo, poderiam acessar tais imagens. Surgiram então as dificuldades dos usos das tecnologias da informação na educação escolar. O primeiro problema: como imprimir as imagens? Segundo: como buscar as referências na internet? Para a maioria dos alunos, imprimir em cores as imagens era uma dificuldade, quando o conseguiam, como não sabiam manipular imagens de boa e má qualidade, acabavam por tentar me entregar imagens de péssima definição em que os pixels apareciam dada a deformação causada pelo zoom. Assim, foi necessário improvisar, o que acabou sendo uma ótima solução. A escola em que trabalho conta com uma enorme quantidade de livros didáticos de coleções passadas guardados, sem nenhum uso aparente e que muito provavelmente seriam descartados. Acessamos esse lixo extraordinário e nos pusemos a fazer recortes das imagens; aliás, os alunos fizeram isso muito animados. Com a sala toda reorganizada (alguns colegas diriam que estava uma bagunça), foram surgindo as imagens e seus respectivos contextos. Este que era um dos requisitos dessa etapa: saber quem produziu a imagem, quando a produziu e em qual contexto específico. Nesse momento, tornou-se flagrante uma das fraquezas de parte significativa de nossos livros didáticos aprovados pelos PNLD anteriores ao atual, a ausência de maiores preocupações com a referência histórica em sua seleção iconográfica. Pintura em telas, afrescos, fotos e toda sorte de ilustrações surgiam sem menção ao autor e mesmo a data

203 Página203 Clivagens sociais e relações étnico-raciais: um estudo sobre a consciência histórica..., p estimada de produção. Quando muito, havia referência aos detentores dos direitos ou ao museu de onde foi extraído. Embora não fosse a totalidade dos livros a apresentar esse deslize no rigor acadêmico, era o suficiente para causar certo desconforto nos próprios alunos que sentiam dificuldade em realizar uma tarefa, em princípio, bastante prosaica. Superada essa dificuldade, tendo os alunos as imagens que consideraram conveniente para o trabalho em mãos, levaram os livros velhos para casa para passar à pesquisa histórica das imagens. O resultado foi muito bom, quase todos os grupos das duas turmas conseguiram realizar essa atividade a contento. O curioso foi que, uma parte menor dos grupos, mas não uma parcela desprezível, trouxe o trabalho montadinho em folhas de papel almaço. Notem que, a ideia apresentada aos alunos era a de que trouxessem as figuras separadas dos textos e não como um trabalho fechado. Disso, ficou claro que eles não haviam entendido ser um trabalho da turma e não apenas dos grupos. Quando reorganizei a sala de aula espacialmente, quase todos ficaram perplexos, porém logo em seguida muito à vontade em poder circular livremente. Alguns, um pouco menos empenhados, subitamente ficaram felizes com a ideia de colar a imagem numa enorme folha de papel pardo e se livrar de qualquer consideração mais complexa. Foi quando apresentei aos grupos um desafio final. Para que eles entrassem no quadro da turma, teriam que inventar uma palavra-chave, definidora do sentimento, da ação, do tema principal mostrado em suas imagens. O desespero tomou conta das turmas de maneira bastante semelhante, até porque, sequer sabiam do que se tratava uma palavrachave. O processo de escolha das palavras-chave foi um dos mais intensos e interessantes que pude vivenciar nessa etapa do trabalho. A dificuldade em sintetizar tudo em apenas um termo, adicionada às discordâncias entre os membros dos grupos, dava a este antropólogo amador um dos momentos de mais intensa e curiosa observação. Um dos grupos do 8º ano havia escolhido uma imagem que narrava a chegada do Príncipe Dom João à Igreja do Rosário na cidade do Rio de Janeiro Óleo de Armando Martins Viana. Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro RJ.

204 Página204 DOSSIÊ MOERBECK, G.G. Os alunos deste grupo não sabiam qual seria a palavra-chave para a narrativa da imagem em questão. Eu apenas incentivava de maneira sutil, pois não pretendia tornar fácil a reflexão dos discentes. Um deles então falou algo como: [...] respeito, acho que a palavra é essa, professor. Possivelmente influenciado pela posição prostrada do negro na imagem (escravo, liberto?), o aluno decidiu por respeito. Então, tornei a situação mais difícil para eles, indagando: Vocês acham que se trata de respeito numa situação como essa? O que significa respeito para vocês? A quem vocês respeitam? Um dos alunos respondeu que respeitava a sua própria mãe. Eu perguntei: por quê?. Subitamente e de forma abrupta, um aluno que estava quieto até então, fala ao colega: seu idiota, ele é um escravo, ele está com medo!. Pouco importou a pequena falta de cortesia do colega, todos do grupo em uníssono gritavam medo, nossa palavra é medo! E assim, cada grupo à sua maneira foi montando o quadro da turma, com as palavras-chave escrita abaixo da imagem. Notem que, a estratégia foi fazer com que eles trabalhassem efetivamente em grupos e em sala de aula desfigurada para que eu observasse essa interação e ao mesmo tempo evitasse a dispersão de obrigações que os trabalhos para casa causam. O que geralmente acontece com trabalhos passados para casa, em minha trajetória em escolas públicas, é que apenas um aluno faz a atividade do grupo ou nada é feito. Sentese aqui a ausência das famílias a viabilizarem a interação dos alunos para fora dos muros da escola. Também nesse sentido, a escola, da maneira como é organizada hoje, pouco tem como prover esse tipo de interação continuada. O resultado geral do trabalho pareceu-me excelente. Houve significativa adesão dos alunos, o desafio da palavra-chave desmontou a pré-condição de um esquema mecânico de copiar da internet e apresentar trabalhos-sem-alma. E, por fim, a relação necessária a ser estabelecida com o documento iconográfico impôs a necessidade da leitura por meio de ícones, signos, índices; forçando-os ao mundo da decodificação de uma linguagem com a qual não costumam estar habituados. A segunda e terceira parte do trabalho são inextrincáveis. Se por um lado, na primeira parte, enfocamos o passado de questões como as relações étnico-raciais e da pobreza/clivagens sociais, respectivamente no 8º e 7º anos; por outro lado, a partir da segunda etapa, o objetivo era articular as mesmas problemáticas, mas tomando o

205 Página205 Clivagens sociais e relações étnico-raciais: um estudo sobre a consciência histórica..., p presente para que os alunos pudessem produzir por meio de uma redação, uma visão, agora individualizada, do porvir. Assim, a esta parte foi constituída de pequenos debates que fazia em sala de aula a partir da leitura de fontes escritas sobre a exploração do trabalho infantil. A escolha da temática foi absolutamente estratégica. Em primeiro lugar, por incutir uma espécie de solidariedade nos alunos, afinal de contas, todos eles, de variadas maneiras, estão imersos no conjunto de relações sociais circunscritas ao universo infanto-juvenil e em segundo lugar, porque era uma maneira de unir as temáticas para ambos os anos de escolaridade, isto é, poder-se-ia falar de pobreza, clivagens sociais, diferenças de classe e racismo, tous ensemble. Demos a partida em vários debates novamente bagunçando a sala de aula segundo a nossa disposição espacial por grupos e com o professor sempre em movimento entre as bases dos grupos. No início, novamente, os alunos mostraramse perdidos e às vezes desconfortáveis em participar. Outros levaram para a brincadeira, tentando chamar a atenção para si. Isso, no entanto, durou pouco, mesmo os que estavam brincando no início, ao adentrarmos a leitura das fontes, mudaram a sua postura pouco a pouco. Ao termo, eles sequer sabiam que estavam sendo avaliados e debatiam entre si, dada a conversa que traduziu a leitura compartilhada das fontes 32. Embora pareça uma parte mais fluida, esta requereu um tempo significativo para a seleção das fontes a para a execução dos trabalhos, já que houve a necessidade de se produzir cópias para os alunos, com apoio indispensável da escola o que nem sempre é simples em escolas públicas além de uni-las no menor número possível de folhas para que a leitura se tornasse mais econômica. Dessa maneira, a vivência cotidiana dos alunos se unia às narrativas produzidas pelos depoimentos encontrados nas fontes escritas. Como imaginar o futuro e construir uma consciência histórica? Essa relação entre o estudo temático de questões surgidas no passado, presente e imaginadas em seus desdobramentos futuros chega ao nosso objetivo final. Um encerramento dos mais prosaicos, mas, ao mesmo tempo, dos mais valiosos para se tentar inferir as formas de construção do pensamento histórico por meio de uma narrativa produzida pelos 32 As fontes foram extraídas do livro didático Projeto Araribá 8º ano.

206 Página206 DOSSIÊ MOERBECK, G.G. alunos. Assim, foi cobrado deles, individualmente, uma redação cujo tema era: Pobreza: um problema de todos?. Em grupo, outra responsabilidade, esta facultativa. Trabalhando um pouco de História Oral, os discentes tentariam obter depoimentos de amigos e familiares que sofreram de exploração do trabalho em sua infância e adolescência. Uma metodologia possível para a avaliação dos resultados: Ao invés de utilizar a tipologia de modos de geração de sentido pela consciência histórica construídos por Rüsen, a saber: tradicional, exemplar, crítico e genético (Rüsen, 2001, p. 62), prefere-se aqui, tomar como parâmetro para a avaliação dos alunos, um estudo aplicado aos alunos de escolas do Quebec, feito pela pesquisadora Patrícia Duquette. Notem que, isto não é uma bula de remédio com posologia, muitas outras formas de approach poderiam e deveriam ser pensadas para tal tipo empreendimento. Assim, tem-se o primary level of historical consciousness: segundo o qual os alunos não estão aptos a prover uma resposta precisa para o problema levantado. Em geral seria como se os alunos vissem o problema da injustiça social genericamente, estando muito a favor ou contra sem maiores explicações. Assim, a maioria dos estudantes poderia achar que a pobreza é algo imutável, difícil de explicar, pois é muito complexa. O segundo nível é o intermediate level of historical consciousness. Aqui, os alunos respondem a problemas históricos mencionando causas tomadas de sua vida cotidiana. O que se traduziria na utilização de Duque de Caxias ou da realidade mais próxima de Xerém como referência, para responder ao problema da pobreza. Novamente, os alunos não tomariam o passado como critério de análise do presente e futuro. No terceiro nível, temos o Composite level of historical consciousness. Aqui, pode-se dizer que desenvolveram uma forma de pensamento histórico, identificam mudanças e continuidades, bem como causas e consequências. Eles ainda estão, no entanto, em busca da "melhor resposta. Apesar disso, esse é o momento em que os estudantes estão caminhando no sentido de pensar historicamente. E por que ainda? Porque ainda não questionam, por exemplo, a confiabilidade que se pode depositar nas fontes históricas. Nesse nível os estudantes ainda creem que apenas uma simples resposta pode dar conta

207 Página207 Clivagens sociais e relações étnico-raciais: um estudo sobre a consciência histórica..., p do problema apresentado. Ainda creem também que programas de TV e filmes são absolutamente confiáveis como fontes históricas. O último nível é o Narrative level of historical consciousness. Neste, os alunos se mostram aptos a relacionar os eventos do passado com o presente por meio de uma narrativa. Esses são os únicos a se aproximarem de uma forma reflexiva de consciência histórica. Geralmente referem-se a documentos e não a si próprios para produzir uma explicação. A historical empathy, conceito utilizado para demarcar a capacidade de perceber a relação entre causas e consequências, bem como continuidade e mudança são encontradas nos discursos dos alunos que se encontram nesse nível. O que mais os diferencia, no entanto, é a capacidade de perceber a complexidade do passado. Estão cônscios da subjetividade das próprias fontes históricas e aceitam que um simples evento pode guardar mais de uma explicação. Assim, eles são os únicos a questionar o valor fiduciário de alguma fonte. (Duquette, 2015) Ao termo, foram avaliadas vinte e sete redações. A expectativa de um número mais alto de redações não se cumpriu devido ao fato desta atividade ter ficado muito para o final do ano. Parte dos alunos já estava desmobilizada pelo aproximar das férias. Efetivamente, a frequência na escola caiu muito nas duas últimas semanas de aula. Apesar disso, trata-se de uma mostra razoável, a partir da qual se pode esboçar uma conclusão para a pesquisa ora empreendida. O fato curioso e inesperado foi a entrega dos relatos conseguidos por meio de entrevistas com familiares e amigos sobre a exploração o trabalho infantil, que em muito superou as expectativas. A tal ponto, de constituir, por si só, um corpus documental que merecia análise individualizada, que não será feita aqui. Note que, este material foi pensado, inicialmente, apenas como uma maneira de impelir os alunos ao trabalho de pesquisa investigativa que nós, historiadores profissionais, costumamos empreender, sobretudo em trabalhos que requerem o uso da História Oral como elemento metodológico. Das vinte e sete redações, um dado preocupante: nove foram copiadas de outros lugares. Fosse de fontes de internet ou livros, o fato é que nove discentes optaram por uma transcrição ipsis literis, a tão famosa cópia. Essa prática, em hipótese alguma, era o objetivo da redação em questão. Aos alunos foi explicado que eles deveriam entregar

208 Página208 DOSSIÊ MOERBECK, G.G. uma redação de aproximadamente vinte linhas. A atitude da cópia acrítica é contumaz, especialmente em exercícios de interpretação de textos extraídos de livros didáticos, um verdadeiro mau hábito escolar em nossos dias. Assim, ao invés de se aventurarem nas incertezas de um texto dissertativo, baseado em vários tipos de fontes, muitos optaram pelo mecanicismo da cópia e a eventual segurança que isso possa trazer. O problema fulcral aqui é quando os alunos deixam de querer interpretar para simplesmente reproduzir. Terá sido esse mecanismo perverso reflexo das próprias práticas tradicionais dos docentes? A cultura do erro como elemento negativo, a falta de habilidade na utilização da linguagem escrita não induziria os discentes a optar pelo caminho mais fácil? Mais do que dar respostas, acredito que todos nós professores deveríamos reavaliar o papel de certas formas de exercícios utilizados em sala de aula para não criarmos autômatos que apenas copiam aquilo que deve estar certo. É claro que, para além disso, reside a dúvida sobre o domínio por parte dos discentes da língua portuguesa, especialmente para a construção de textos, pois, mesmo dentre aqueles que pudemos avaliar as redações, havia, de fato, problemas de construção frasal, concordância e ortografia. Chegamos a segunda década do século XXI com sérios déficits relativos ao alcance dos níveis mais sofisticados do letramento 33. Numa avaliação geral, os alunos, do ponto de vista da construção das redações transitam entre o Intermediate level e o Composite level da consciência histórica, mas o que isto quer dizer em termos práticos? 34 Das dezoito redações avaliadas, onze fazem explicitamente, em diversas medidas, uma relação entre pobreza e exploração, tanto no passado quanto no presente. Nem sempre há uma relação de causalidade, mas deixa a impressão ao leitor de que é um problema que atravessa diversas sociedade e períodos históricos. Notem que preferi manter a escrita original dos textos entregues pelos alunos. No que diz respeito a este apontamento, há algumas reflexões bastante interessantes. Um dos alunos do 8º ano disse o seguinte 35 : 33 Cf. Relatório INAF (Indicadores de Alfabetismo Funcional) Brasil Instituto Paulo Montenegro. 34 Considero agora, de maneira unificada, os alunos do 7º e 8º anos. 35 A manutenção da escrita dos alunos ajuda a revelar o desafio no âmbito da linguagem escrita formal que os educadores, especialmente, professores de línguas têm pela frente.

209 Página209 Clivagens sociais e relações étnico-raciais: um estudo sobre a consciência histórica..., p Se existe algo constante na História da humanidade é a pobreza. Sociedade ergueram-se e caíram e os pobres necessitados raramente foram cuidados no fundo, se olharmos para as histórias que a sociedade foi sempre dividida entre os ricos classe média e os necessitados [L.F.C]. Note-se que, se por um lado, o aluno em questão deixa de lado uma análise mais específica do ponto de vista espaço-temporal, por outro é brilhante ao ver a pobreza como elemento de continuidade que atravessa a História da humanidade; numa capacidade de abstração pouco comum entre as redações avaliadas. Na maior parte das redações a relação entre passado e presente era induzida pelas próprias fontes disponibilizadas. Assim, havia uma realidade de exploração do trabalho infantil na Inglaterra da Primeira Revolução Industrial o que também existe no Brasil atual. Isso era de certa forma esperado e desejado, mas de tal maneira que funcionasse como base para reflexões que pudessem ser mais abrangentes. É deste ponto que começam as boas surpresas. Uma parte dos alunos construiu um texto menos dissertativo e impessoal e mais em tom de denúncia do problema. Se por um lado a articulação entre o passado e presente mostrou-se frágil às vezes, por outro, ganhou em força de análise sincrônica e crítica dos fatos. Assim, em muitos textos, surgia a figura do culpado pela pobreza. Em alguns deles, aparecia uma noção mais genérica e que tendia à ausência maior de reflexão histórica, como por exemplo: todos podemos ajudar, se cada um fizer um pouco podemos melhorar o quadro de pobreza geral. No entanto, a corrupção na política aparece como um dos elementos mais deletérios e que perpetuam a pobreza, por exemplo: A prática do trabalho infantil tem que acabar definitivamente, mas me preocupo muito com isso pois quem deveria dar um fim nisso é o causador de tanta miséria. os políticos corruptos [M.Z.]. Ainda por sima nosso país é governado por políticos corruptos que tiram de quem já não tem nada, políticos que ao invés de luta pela igualdade social faz aumentar ainda mais a desigualdade social no nosso Brasil [P.C.]. A minoria da população com grandes capitais e ambições enriquecem as custas dos mais pobres, a minoria é de políticos quem não administram bem o dinheiro do país logo o que mais se precisa é posto de lado e continuam com coisas que não se precisam, aumentando os impostos onde os únicos favorecidos são eles [P.H.]. A pobreza em certos países se dá muito pelo governo que rouba verbas das famílias carentes [P.P.]. Esses exemplos se multiplicam em outras redações, sempre no mesmo sentido. Se por um lado pode ser considerada uma visão crítica sobre a atuação dos políticos no

210 Página210 DOSSIÊ MOERBECK, G.G. Brasil, por outro, não faz quaisquer distinções entre bons e maus políticos. Assim, são todos corruptos e prejudicam, sobretudo, a população mais pobre. Parece que o imaginário da juventude na segunda década do século XXI está impregnado pelo signo da corrupção na política. Em que medida isso se desdobrará em uma atitude futura progressista politicamente ainda é impossível prever. Sabe-se que o mesmo discurso que condena a corrupção pode ser contraditoriamente, o mais conservador e corruptor possível. A História do Brasil e mundo contemporâneo é tradicionalmente trabalhado no 9º ano de escolaridade. Momento crucial para se discutir essas questões e contornar certos maniqueísmos. Em tempos de polarização, radicalismos e cegueira política a dúvida é um privilégio. Um diagnóstico predominou nas redações: a ideia de que a pobreza expulsa as crianças da escola e de que a necessidade de trabalhar obriga os jovens a ajudarem as suas famílias ao invés de se dedicarem à instrução escolar na época certa. A pobreza é um dos piores problemas mundiais, as vezes muita situações estão na miseriais, colocar crianças para trabalhar para ganhar dinheiro, para a família, a falta de escolaridade [P.P.]. A pobreza é compartilhada com milhares de pessoas que dividem uma realidade umilde sem muitas regalias, a pobreza priva as pessoas de terem uma oportunidade de estudar e a de emprego. Muitas das vezes essas pessoas para conseguirem sobreviver elas partem para a vida do crime e muitas outras coisas erradas [L.A.P.]. Muitas das vezes oficiais até mesmo não oficiais tentando combater o trabalho infantil [possível sentido de políticas de auxílio], mesmo assim as crianças continua deixando os brinquedos e a escola de lado para trabalhar ajudar a família [V.S.M.]. E muitas vezes o filho não estuda para trabalhar para trazer alimento, dinheiro, e medicação. Muitas vezes procurando um bom recurso as pessoas saem dos seus Estados para outro procurando emprego muitas das vezes não consegue e acabam sem emprego, sem dinheiro e acabam ficando na rua [M.T.] Dessa maneira, um discurso vai se formando em torno da ideia de que a pobreza é a mazela que acaba por impedir que as crianças não apenas aproveitem o universo lúdico delas próprias, tão importante para a sua própria formação emocional, mas também as privem do ensino formal que poderia, ao menos supostamente, ser um trampolim para um futuro melhor. Novamente, os políticos aparecem como culpados de não proverem uma eficaz política social inclusiva para esses jovens. Ademais, notem no último trecho que o aluno menciona até mesmo o deslocamento para outros Estados da federação em busca de oportunidades de emprego. Não é à toa, se tratar de um rapaz pertencente a uma das muitas famílias de

211 Página211 Clivagens sociais e relações étnico-raciais: um estudo sobre a consciência histórica..., p Xerém que migraram para esta região devido à concentração de centros de treinamento de clubes de futebol na Baixada Fluminense, que fazem frequentes peneiras com meninos entre dez a quinze anos. Essas oportunidades acabam por deslocar famílias inteiras, oriundas geralmente do Nordeste brasileiro, atrás do Eldorado do Futebol Carioca. A verdade é que muitos meninos vêm desacompanhados e, a milhares de quilômetros do acolhimento de suas famílias, vivem a vida e frequentam a escola de maneira sazonal e precária. Não é incomum que alunos simplesmente desapareçam no meio do ano letivo porque voltaram para casa, acabou o sonho do estrelato no futebol? Mudando um pouco a lente de observação, deve-se apontar que alguns poucos alunos atingiram ou ao menos se aproximaram daquilo que Duquette chamou de Narrative Level of Historical Consciousness, seja porque articularam de maneira bastante tenaz a relação entre passado presente e futuro, seja porque mergulharam em uma análise sociológica pouco comum entre os seus próprios colegas. Para entender um pouco melhor a análise aqui feita, passo agora a fazer uma avaliação mais detalhada de cinco casos. Três alunos do 8º ano [dois meninos e uma menina] e duas alunas do 7º ano. Tomemos, primeiro, as duas redações do 7º ano. Na primeira, a aluna H.C. começa afirmando o fato de as crianças trabalharem por necessidade e isso prejudicar o futuro profissional delas próprias, quase um topos discursivo dentre seus colegas. A percepção de que trabalho não combina com a continuidade nos estudos e prejudica o futuro, parece-me uma interessante maneira de articular passado, presente e futuro nos discursos dos alunos. Porque o trabalho infanto-juvenil deriva de uma condição social pregressa que se perpetua por conta das condições sociais do presente. O futuro é dado pela aluna H.C: Essas crianças, quando crescem, não arrumam um bom emprego, por falta de estudos [...], Mas geralmente as crianças que trabalham, quando crescem viram bandidos, ou arrumam um emprego com muita dificuldade, e o emprego não é tão bom quanto das crianças que estudaram. Notem que a escola, na visão da aluna, é um instrumento não apenas de ascensão social, mas também uma maneira indireta, é verdade, de evitar que as pessoas entrem no mundo do crime. Mais adiante, a consciência legal da proibição do trabalho infantil surge em seu discurso, elemento que foi indicado durante os debates com as fontes

212 Página212 DOSSIÊ MOERBECK, G.G. escritas em sala de aula. Ao termo, a aluna afirma sobre as crianças: Pois assim elas aproveitam a vida, e conseguimos melhorar o nosso mundo, pois se as crianças em vez de trabalharem, estudarem, quando crescerem seram pessoas que teram um belo lar, um bom emprego e uma boa família [H.C]. A aluna A.C. inicia o seu texto com uma frase que articula passado e presente: Há muito tempo atrás já existia a pobreza e ela continua fazendo parte da população até os nossos dias. O topos ressurge, a pobreza como causa-mor que impele os alunos ao trabalho na infância. A diferença fundamental entre a primeira redação e esta é que a aluna A.C. questiona a causa da pobreza em nossa sociedade, pois, para ela, a sociedade e o governo deveriam agir para que a exploração do trabalho infantil acabasse. Ao termo, o salto qualitativo da interpretação reside no fato de ela ter citado a fonte estudada para estruturar a sua narrativa, sem dúvida alguma se aproximando de uma das premissas fundamentais do que chamamos de Narrative level of historical consciousness. Passando aos alunos do 8º ano, iniciamos com a aluna I. Esta faz, já no primeiro parágrafo de seu texto, a articulação entre passado e presente da questão e das fontes fornecidas: Percebi, que nos textos ao grupo entregue que desde 1820 até os anos de hoje, quase em 2016, que a exploração infantil, [?] até a escravidão infantil é uma coisa que infelizmente não acabou. O desenrolar da redação, ao contrário dos outros colegas, empresta maior atenção naquilo que poderia inferir a partir das fontes foi o maior esforço individual nesse sentido. Segundo o aluno L.A.P. a pobreza é a causa-mor dos males que afligem milhares de pessoas, inclusive fazendo menção ao mundo do crime que acaba sendo o destino de muitas dessas pessoas. O aluno então faz um convite e uma profunda crítica social: Se olharmos ao nosso redor nós iremos perceber que a maioria das pessoas são pobres, pessoas que só querem seu lugar no mundo pessoas que tem um passado marcado pelo preconceito pela violência e pela insencibilidade das pessoas que nos sercam [...] esse tempo de separar crianças negras de crianças brancas crianças pobres de crianças ricas já deveria ter chegado ao fim [...] chega de separar as pessoas por clases sociais nós somos todos seres humanos merecemos vida digna.

213 Página213 Clivagens sociais e relações étnico-raciais: um estudo sobre a consciência histórica..., p Por fim, embora não menos importante, temos a redação do aluno M.T. Além da isotopia 36, também aqui presente, o aluno chama a atenção (CARDOSO, 1999, p. 174): E muitas vezes o filho não estuda para trabalhar pra trazer alimento, dinheiro e medicação. Muitas vezes procurando um bom recurso as pessoas saem de seus estados para outro procurando emprego muitas vezes não consegue e acabam sem emprego, sem dinheiro e acabam ficando na rua. E a maioria das pessoas são negras. Várias vezes as pessoas ficam com preconceitos com a cor da pele das pessoas, que infelizmente no mundo em que vivemos a desigualdade racial prevalece... Importante notar alguns dados biográficos deste último aluno. É um dos poucos, juntamente com o citado anteriormente, a abordar o tema étnico-racial concomitantemente ao da pobreza. Isto significa dizer que, embora a maioria dos alunos tenha se empenhado em discorrer sobre as causas da pobreza e seus elementos mais deletérios como a exploração infantil de maneira bastante congruente, a questão étnico-racial ficou quase intocada. Isso pode ser indício de que os alunos, para o meu caso de estudo, não veem na realidade brasileira, que a pobreza muitas vezes está estigmatizada em pessoas de cor negra? O que este quase silenciar nos indica? Nas fontes escritas fornecidas para o estudo da exploração infantil também havia fotos: dois meninos brancos para o caso inglês e um menino negro para o caso brasileiro. Ainda assim, isso não engendrou uma reflexão mais profunda, os alunos não historicizaram, talvez não tenham se sentido aptos ou à vontade para pensar nos problemas étnicos entre o Brasil colonial e o contemporâneo. Houve uma fratura, pois o tema referido só apareceu em pequenos flashes nos dois últimos casos acima. Se no primeiro caso temos uma crítica das divisões sociais por classes e raciais, no segundo texto o estigma da pobreza e da questão racial foi mais bem delineado por um menino branco, mas que, no entanto, como muitos outros, é jogador de futebol em um dos clubes que alocam seus centros de treinamento na região. O elemento biográfico pode ter sido um forte componente em seu relato sobre pobreza, deslocamento e discriminação. Vive-se um momento em que não há fórmulas certeiras para respondermos as questões que estão presentes em nossas pesquisas. Decerto, as respostas tenderão a variar segundo a partir das próprias premissa teóricas tomadas e organização 36 Conjunto de elementos de significação recorrentes e/ou redundantes que apareçam no texto.

214 Página214 DOSSIÊ MOERBECK, G.G. metodológica, isso não significa necessariamente certo ou errado. O trabalho ora apresentado teve um percurso deliberadamente traçado para criar essa tensão entre a teoria e a prática docente e buscar uma saída metodológica. Os dados são parciais em uma pesquisa que jaz incompleta. Apesar disso, pode ser um impulso a outros trabalhos que continuem a romper as barreiras hoje ainda existentes entre a produção acadêmica e o cotidiano escolar. Não propusemos um manual, muito menos uma cartilha a ser seguida. É apenas uma experiência que pode ter lançado alguma luz sobre a forma pela qual se pode desenvolver a pesquisa acerca da formação da consciência histórica em alunos do ensino fundamental. Referências ANASTASSAKIS, Z. Triunfos e impasses: Lina Bo Bardi, Aloísio Magalhães e o Design no Brasil. Rio de Janeiro: lamparina, BOURDIEU, P. L observation participant. In: Actes de la recherche em Scienses Sociales. n.150, p , BARCA, I. Marcos de consciência histórica de jovens portugueses. In: Currículo sem fronteiras. v.7, nº 1, jan/jun 2007, p CARDOSO, O. Para uma definição de didática da História. In: Revista Brasileira de História. vol. 28, nº55, p , CARDOSO, C.F. Narrativa, Sentido, História. Campinas: Papirus, DUQUETTE, C. Relating historical consciousness to historical thinking through assessment. In: ERCKIKAN, K. & SEIXAS, P. New directions in assessing historical thinking. New York: Routledge, 2015, p CERRI, L.F. Ensino de História e consciência história. Rio De Janeiro: FGV, GADAMER, H.G. Verdad Y Metodo. Salamanca: Ediciones Sígueme, HARTOG, F. Régimes d historicité: présentisme et expériences du temps. Paris: Éditions du Seuil, KOSELLECK, R. Uma História dos Conceitos [Begriffgeschichte]: problemas teóricos e práticos. Estudos Históricos. FGV, KOSELLECK, R. Futures past: On the semantics of historical time. New York: Columbia University Press, LIMA, M. Consciência Histórica e educação histórica: diferentes noções, muitos caminhos. In: MAGALHÃES, M. et al. (Org.). Ensino de História: usos do passado, memória e mídia. Rio de Janeiro: FGV, P RÜSEN, J. Razão Histórica Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília: UNB, Vol. I RÜSEN, J. História Viva: Teoria da História III. Formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: UNB, 2007, Vol. III. SCHMIDT, M.; BARCA, I. MARTINS, E.R. (Orgs.). Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: Editora UFPR, SCHMIDT, M. Jovens brasileiros, consciência histórica e vida prática. In: Revista História Hoje. V.5, nº 9, p 31-48, TRIBE. Keith, Introduction. In: KOSELLECK, Reinhart. Futures past: On the semantics of historical time. New York: Columbia University Press, WEBERMAN, D. Phenomenology. In: TUCKER, A. (Org.). A Companion to the Philosophy of History and Historiography. Blackwell Publishing, 2009, p

215 Didática Da História: Formação De Professores/As De História Nas Universidades Federais Do Rio Grande Do Sul Didactics Of History: Training Of History Teachers In The Federal Universities Of Rio Grande Do Sul RESUMO Maria Caroline Aguiar da Silveira* O objetivo do presente artigo é expor análises realizadas sobre a formação de docentes em História Licenciatura em seis Universidades Federais do RS, tendo como perspectiva teórica a Didática da História. Buscou-se, a partir de discussões de cunho teórico e conceitual, evidenciar a funcionalidade formativa que a Didática da História desempenharia nos cursos destinados a formação de docentes em História, justamente devido ao papel fundamental que esta disciplina especializada desempenha para o aprendizado histórico. Palavras-chave: Didática da História. Formação docente. Ensino de História. Currículo. ABSTRACT In this article, we present some analysis carried out on the training of teachers in History Degree in six Federal Universities of RS, having as theoretical perspective the Didactics of History and using as sources of the research the curriculum grades and summaries of the subjects of major in History of the mentioned six federal universities. keywords: Didactics of History. Teacher training. Teaching of History. Curriculum. * Licenciada em História pela Universidade Federal do Rio Grande. Integrante do Laboratório Independente de Pesquisa em Ensino de Ciências Humanas e Projeto de Avaliação de Impacto ao Patrimônio Arqueológico na área da CGH Rio dos Bugres.

216 Página216 DOSSIÊ SILVEIRA, M.C.A Introdução No presente artigo, apresentamos resultados da pesquisa realizada como Trabalho de Conclusão de Curso de História Licenciatura, orientando pela Prof. Dr. Júlia Matos, com os objetivos de compreender, averiguar e analisar aspectos formativos, em nível curricular, dos/das docentes em História no Rio Grande do Sul, a partir da perspectiva teórica da Didática da História. De modo a delimitar a análise, optou-se pela realização da pesquisa nas grades curriculares e ementas das disciplinas relacionadas às licenciaturas das Universidades Federais do Rio Grande do Sul, sendo estas: Universidade Federal do Rio Grande FURG; Universidade Federal da Fronteira Sul UFFS; Universidade Federal do Pampa UNIPAMPA; Universidade Federal de Pelotas UPFEL; Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS e Universidade Federal de Santa Maria UFSM. Consideramos pertinente restringir a pesquisa às universidades federais de modo a possibilitar a análise e expôr resultados mais aproximados. As ementas também contam com uma delimitação, tendo em vista que tomando como referência o foco concedido ao aprendizado em história pela Didática da História voltamos nosso olhar às disciplinas relacionadas ao ensino e aprendizagem históricas. A análise das ementas possibilita que percebamos qual perspectiva norteia as concepções de ensino e aprendizagem em História, partindo do foco concedido nas disciplinas destinadas ao saber fazer pedagógico. Nossa análise excluiu, portanto, disciplinas que lidam com a educação e contextos escolares de forma mais ampla, restringindo-nos a averiguar as ementas das disciplinas voltadas às práticas pedagógicas, metodologia do ensino de história, estágio supervisionado, etc. Os aspectos formativos que propomos para análise buscam evidenciar a significância da Didática da História para uma formação mais crítica e centrada nos saberes históricos e suas relações com a aprendizagem para a formação de docentes em

217 Página217 Didática da história: formação de professores/as de história nas universidades..., p História. Acreditamos que nossa proposta, de se pensar a Didática da História enquanto uma disciplina fundamental para a formação de professores/as de História, evidência uma carência formativa sentida pelos/as discentes em História na Universidade Federal do Rio Grande, universidade esta que será tomada como comparativo para a realização das análises dos Quadros de Sequência Lógica (SQL) e ementas. Ao percebermos alguns temores e déficits formativos por parte dos/das discentes, buscamos na Didática da História, além de uma perspectiva teórica para pensar a aprendizagem em História, um fio condutor que viabilizaria uma ligação eficiente entre os saberes históricos e os saberes pedagógicos, em contraponto a preeminência percebida do saber ensinar sobre o ensinar os conteúdos históricos de forma útil e significativa. A busca por diálogos que estejam na alçada da disciplina Didática da História dentro da Licenciatura em História, ou seja, um curso de formação de professoras e professores de História, bem como nas ementas das disciplinas voltadas a educação/licenciatura, nos permitirá averiguar alguns aspectos referentes a configuração dos cursos de Licenciatura em História no RS, bem como contribuir para os debates que estão surgindo e que devem tomar cada vez mais espaço dentro dos ambientes acadêmicos. Queremos deixar claro que a presente pesquisa não possui o intuito de qualificar ou desmerecer as universidades e os cursos que se constituem como objetivo de pesquisa desse trabalho, apenas visa trazer algumas reflexões que contribuam para o debate acerca do ensino de História e da educação superior, bem como das discussões a respeito de formação docente. A partir disso, reiteramos a proposta de buscar e averiguar como a Didática da História, enquanto uma ciência com um papel fundamental para o aprendizado histórico auxiliaria numa formação mais efetiva, crítica e completa dos/as professores/as de História e de que modo a mesma está, ou não, presente nos cursos de formação de professores e professoras de História.

218 Página218 DOSSIÊ SILVEIRA, M.C.A Didática da história e a formação do/a professor/a de história A Didática da História pode ser definida, conforme Rüsen (2015), como a ciência que lida especificamente com o aprendizado em História e, portanto, possui relações com o ensino da disciplina História como também com o campo de pesquisa intitulado Ensino de História, com o saber histórico acadêmico/científico e com os saberes que são produzidos fora desses ambientes, ou seja, os saberes que são construídos a partir das vivências dos homens e mulheres no tempo. Percebemos na Didática da História, a possibilidade de sairmos da estagnação metódica e técnica que ainda permeia os cursos e disciplinas da História, para olhar para a mesma com um foco no aprendizado desses conteúdos e na sua ressignificação; não mais pelo viés tradicional, mas na busca de saberes sociais e culturais dentro da perspectiva que desejamos para o ensino de História, particularmente, nos cursos destinados a formação de docentes em História. Buscamos evidenciar um aspecto que consideramos fundamental a respeito do ensino de História e que é a base da Didática da Historia: a função didática do conhecimento histórico produzido por historiadoras e historiadores. Ou seja, é, ou deveria ser, uma função inerente ao trabalho de historiadoras e historiadores difundir e explicar os conhecimentos que produzem, tendo em vista a função social do conhecimento histórico. A história, em um primeiro momento, esteve estritamente vinculada a uma função social, destinava-se a suprir carências provenientes das pessoas. Conforme Bloch (2001) uma/um historiadora/historiador deve saber falar, no mesmo tom, aos doutos e aos estudantes. (BLOCH, 2001, p. 41) Entendemos que um bom historiador, ou uma boa historiadora, não produz conhecimento histórico apenas para si e para seus pares, mas compreende que esse conhecimento deve destinar-se à sociedade e àquelas e àqueles que a constituem.

219 Página219 Didática da história: formação de professores/as de história nas universidades..., p Encontramos apoio teórico em uma área que vem se solidificando e abarcando uma série de pesquisas e debates em relação à aprendizagem e ensino em História calcados na própria ciência História, a Educação Histórica. Levando em consideração os diálogos possíveis entre Educação Histórica e Didática da História, trazemos algumas reflexões acerca desse campo de pesquisa em nosso trabalho. Em Passados Possíveis: A Educação Histórica em debate (2014), Schmidt, Barca e Urban apresentam análises que consideramos enriquecedoras para o debate em torno da Didática da História, aprendizagem histórica e formação do/a docente em História. Marlene Cainelli, destaca um aspecto relacionado ao campo da Educação Histórica que pensamos ser fundamental no diálogo que buscamos estabelecer entre a pesquisa aqui apresentada e a Educação Histórica. Segundo Cainelli, Ao abordar uma questão epistemológica de uma cognição histórica situada na própria ciência da História, que privilegia a construção do pensamento dos sujeitos a partir dos conceitos relacionados à natureza do conhecimento histórico, essa área está criando um caminho em busca da construção de um novo paradigma para a aprendizagem histórica e, portanto, para o seu ensino, descortinando novas possibilidades de se aprender a lidar com o passado. (CAINELLI, 2014, p. 11) A partir da colocação da autora acima citada, procuramos evidenciar que a Educação Histórica, enquanto um campo de pesquisa que busca relacionar-se com questões referentes ao ensino e aprendizagem históricas, tendo como ciência de referência a própria ciência histórica adentra o campo de pesquisa da Didática da História, considerando as reflexões que Rüsen (2006; 2015) e Bergmann (1990) atribuem a essa disciplina especializada que lida com a aprendizagem histórica. Podemos dizer que esses campos de pesquisa buscam mudar as formas como compreendemos tanto o ensino de História quanto as relações já tradicionalmente consolidadas sobre os passados, a construção desses passados e os usos do conhecimento histórico, aspectos esses que se constituem enquanto primordiais quando é proposta a tarefa reflexiva da Didática da História. Schmidt e Barca, em capítulo intitulado Uma epistemologia da pesquisa em Educação Histórica: limites e possibilidades ressaltam esse aspecto dialógico entre Educação Histórica e Didática da História em relação a aprendizagem histórica,

220 Página220 DOSSIÊ SILVEIRA, M.C.A enxergando na Didática da História uma possibilidade epistemológica para que se pense a pesquisa na área de Educação Histórica. Ressaltamos o papel primordial que a aprendizagem histórica desempenha nesses dois campos de pesquisa. Um e outro abarcam, também, questões referentes a natureza da própria História enquanto ciência, o papel fundamentador da teoria da História enquanto um meio para a resposta do que é a História, pois segundo Rüsen a função desempenhada pela teoria da história na didática da história consiste [...] na formulação da pergunta O que é história? e na resposta a ela (RÜSEN, 2015, p. 248). Ambos os campos, Didática da História e Educação Histórica dialogam e possibilitam um caminho para que comecemos a compreender o aprendizado histórico em prol da construção de uma História com um sentido de orientação prática na vida dos sujeitos, refletindo, também, sobre a própria construção dos saberes históricos. Jörn Rüsen, em artigo intitulado Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão (2006), trata da Didática da História na Alemanha Ocidental, porém suas colocações trazem luz a guinada que a história dá a um viés muito mais teórico e metodológico. A racionalização científica da produção historiográfica, ocorrida ao longo do século XIX, foi o fator que ocasionou no distanciando demasiado das narrativas históricas e dos conhecimentos produzidos de uma preocupação formativa e didática, ou seja, a escrita da história foi se tornando cada vez mais científica e acadêmica e cada vez mais distanciada da compreensão por àqueles e àquelas que deveriam obter tais conhecimentos, não mais dialogando com as necessidades sociais e formativas da História. Consideramos que a Didática da História possui um caráter essencial para a formação de docentes em História pela preocupação que esta disciplina especializada possui para com os usos dos saberes históricos na vida prática das mulheres e dos homens, justamente a sua função social e formativa. Partindo dessa lógica, Rüsen salienta que o maior espaço de transmissão e recepção do conhecimento histórico é a sala de aula. A opinião comum que se tem acerca da funcionalidade da didática da história no que tange ao ensino de História, conforme nos aponta Rüsen, é que a mesma se configura enquanto a transposição de conhecimento acadêmico para o ensino básico, ou seja, os historiadores profissionais; àqueles/as que detêm o saber acadêmico ou

221 Página221 Didática da história: formação de professores/as de história nas universidades..., p produzido academicamente, convertem-se em professores; é uma disciplina que faz a mediação entre a história como disciplina acadêmica e o aprendizado histórico e escolar. (RÜSEN, 2006, p. 23). Porém, ainda segundo o autor, a simplicidade dessa ideia é falha, uma vez que não se centra nos reais problemas que concernem ao aprendizado histórico, o ensino de história e conhecimento histórico, nem a relação entre didática da história e pesquisa histórica. Essa perspectiva acerca da Didática da História não passa de uma transfusão do rico conteúdismo acadêmico para cabeças vazias de alunos e alunas. Sobre esse aspecto de se perceber a didática específica da história, Jörn Rüsen apresentou a relevância que esta tem para o aprendizado histórico, uma vez que a didática da história teria como um aspecto fundamental a preocupação com os usos que a História tem para a vida humana. Klaus Bergmann (1990) em sua obra A História na Reflexão Didática trará alguns apontamentos acerca das tarefas que estão sob a alçada da disciplina Didática da História. Bergmann afirma que o que guia os questionamentos que provém da Didática da História são questionamentos práticos e, que a partir disso, indaga sobre o caráter efetivo, possível e necessário de processos de ensino e aprendizagem e de processos formativos da História (1990, p. 29). Questionamentos esses que são urgentes, necessários e muito atuais; questionarmos sobre a História enquanto ciência e a maneira como esta vem se consolidando academicamente e sua relação para com o ensino demonstra que a história em si, enquanto ciência e disciplina acadêmica, está deixando passar essas perguntas. Portanto, uma autorreflexão da disciplina História se faz urgente, bem como a forma como estamos formando nossos professores e professoras de História é urgente. É preciso que a disciplina História, tão consolidada cientificamente e academicamente, ultrapasse pontos de vista e situações cômodas, para dar continuidade e cada vez mais voz aos questionamentos de a que e a quem está servindo. A própria produção do conhecimento histórico necessita se questionar: a quem este conhecimento serve e se não serve, porque não. Essa afirmação contempla o motivo dessa pesquisa e aquilo que buscamos trazer de relevante para a Didática da História. A Didática da História está amplamente ligada a formação da consciência histórica, através da aprendizagem. Uma ciência que está inteiramente ligada aos

222 Página222 DOSSIÊ SILVEIRA, M.C.A processos que resultam na formação da consciência histórica, que lida com esses processos de ensino e aprendizagem particulares da História e da consciência história deveria ser uma disciplina obrigatória dentro dos cursos de formação de professores/as de História, deveria ser um campo de pesquisa amplamente divulgado e mais que isso, deveria ser um tema de amplo debate entre os cursos de História. Porém, o que percebemos é que os diálogos acerca desse assunto ainda não se constituem enquanto um tema prestigiado dentro dos espaços ocupados pela História. Sobre esse fato, Cerri (2005) atenta para o fato de que um aspecto que dificulta esse diálogo é a ideia de que as discussões acerca do ensino de história estejam ligadas apenas àqueles/as que pertencem a licenciatura em história ou que atuam no campo da educação, quando na verdade deveria ser um debate que ocorre dentro dos cursos de História. O autor discorre que As discussões do teórico alemão Jörn Rüsen sobre a historiografia e o ensino da história constituem uma contribuição importante para o campo de pesquisa que, no Brasil, situa-se na intersecção entre a História e a Educação, materializando-se mais especificamente nos espaços institucionais e entre as pessoas relacionadas à Licenciatura em História, seus profissionais e atividades de ensino e pesquisa. Ao mesmo tempo em que corrobora a discussão que vem ocorrendo no Brasil nas últimas décadas, sobre a necessidade de extrapolar as preocupações sobre o como ensinar, em direção a reflexões mais amplas sobre as motivações sociais do ensino da História e a natureza do saber envolvido nesse fenômeno social [...] (2005, p. 1) Cerri atenta para o fato de que necessitamos ir além das questões práticas do ensino para compreender os processos de aprendizagem da História pela História, justamente compreendo o aspecto formativo para o social, o mundo. Além disso, a citação de Cerri evidencia a localização das discussões que abarcam aspectos educativos dentro da História, estando estas fortemente associadas a espaços destinados a licenciatura ou então restritos as questões de ensino de História. Compreendendo a consciência histórica enquanto um aspecto fundamental da identidade humana, devido ao teor funcional e prático que esta desempenha nas relações de como os homens e mulheres organizam e vivem sua vida prática, envolvendo a temporalidade e as relações passado presente futuro a partir de considerações históricas, visamos ressaltar a significância que a Didática da História, enquanto a disciplina e a ciência que investiga a formação da consciência história, a partir dos processos de ensino e aprendizagem

223 Página223 Didática da história: formação de professores/as de história nas universidades..., p que irão resultar nessa consciência, possui para uma formação mais efetiva, crítica e centrada nos processos e significados próprios à História dos/das licenciados/as em História. A História é vivenciada a partir de experiências da própria vida cotidiana, ou seja, da vida prática dos sujeitos; ou então, a partir de conhecimentos que não partem da experiência própria dos sujeitos, mas de conhecimentos históricos que serão instruídos e interpretados. É tarefa empírica da Didática da História investigar como está acontecendo o ensino e a aprendizagem (transmissão e recepção) do conhecimento histórico produzido pela Ciência Histórica. Dizemos conhecimento produzido pela ciência histórica, pois são os conteúdos tradicionais que são difundidos através do ensino. Segundo Bergmann Nos parâmetros dessa tarefa, a Didática da História é também uma didática da própria Ciência Histórica: ela analisa e explicita os fatores didáticos imanentes da própria Ciência Histórica e investiga o significado geral desta para a vida cultural e espiritual e para a práxis social do seu tempo. (1990, p. 31) A tarefa reflexiva da Didática da História, sob nosso ponto de vista através das afirmações feitas pelo autor, é sobre para o que e para quem está servindo o conhecimento produzido pela ciência histórica; uma vez que se a tarefa reflexiva tem ligação com os usos na vida prática da História enquanto uma ciência que resulta na formação e auto formação de sociedades, culturas e indivíduos, a História necessita ter uma aplicabilidade prática na vida. Compreendemos, portanto, que uma competência da Didática da História, considerando sua relação com os processos de ensino e aprendizagem e reflexão sobre a ciência História, é a formação da consciência histórica, com os usos do conhecimento histórico para a vida, e com o ensino em História. Percebemos, a partir das reflexões feitas por Klaus Bergmann, que a Didática da Historia encontra-se no âmbito do ensino e da aprendizagem, e isso não quer dizer que ela se reclusa aos ambientes acadêmicos ou escolares, mas encontra-se envolvida nos processos de aprendizagem que ocorrem fora desses espaços, na vida dos sujeitos históricos. Segundo o autor, Essas três tarefas, sinteticamente esboçadas, são dimensões diferentes de uma única conexão constituída

224 Página224 DOSSIÊ SILVEIRA, M.C.A pela indagação sobre o surgimento, a qualidade, os efeitos e a influência da consciência histórica. (BERGMANN, 1990, p. 31) A Didática da História, enquanto um campo de investigação empírica da aprendizagem histórica ultrapassa os limites da História acadêmica e escolar, com saberes já tradicionalmente consolidados. Ela busca também compreender e investigar os saberes históricos que são construídos e constituídos fora dos espaços tradicionais, àqueles que ocorrem na socialização dos indivíduos, na sua vida cultural, social e política. Achamos pertinente ressaltar essa reflexão de Bergmann por entendermos que uma ciência que lida com uma disciplina específica, no caso a História, e busca reconhecer em outros espaços a existência de saberes históricos que ultrapassam àqueles consolidados pela tradição historiográfica ou acadêmica, é uma ciência capaz de proporcionar amplos debates e uma ressignificação nos conhecimentos históricos que são produzidos e difundidos através do ensino. Uma ciência da autorreflexão, com foco na aprendizagem histórica em suas mais diversas formas e ambientes e que busca por conhecimentos que sejam válidos para a vida dos sujeitos definitivamente merece mais espaços para debates, reflexões e mais que isso, merece adquirir espaço dentro da ciência à qual pertence, a História. Ainda partindo das reflexões de Bergmann, consideramos pertinente salientar que para o autor Um setor privilegiado da pesquisa empírica da Didática da História é o Ensino de História como uma instituição social que deveria oficialmente formar uma determinada consciência histórica e que, ao mesmo tempo, revela a consciência histórica predominante. (1990, p. 32) Assim como Rüsen quando salienta que Um dos campos mais importantes de aplicação prática do conhecimento histórico é o ensinar e aprender história. (2015, p. 247), podemos perceber o papel essencial do ensino de História em relação ao conhecimento histórico, afinal, a aula de História é um momento bastante social, no sentindo de se socializarem saberes e ideias referentes à formação de identidade, cultura, cidadania e, como bem salientou Bergmann, capaz de evidenciar que tipo de consciência histórica predomina nesses espaços institucionalizados de saber. A partir dessas colocações, acrescentamos que um sujeito fundamental da aula de História é o/a docente, que possibilitará a instrumentalização dos/as discentes, mas que para tal também necessita de uma formação que o/a possibilite entender como tal

225 Página225 Didática da história: formação de professores/as de história nas universidades..., p e compreender os processos históricos enquanto um conhecimento que necessita uma aplicabilidade e sentido. Esse questionamento, sobre os usos da História na vida e seu processo de ensino e aprendizagem, já foi central nas discussões de historiadores e historiadoras, uma vez que antes de focarem-se apenas em questões teóricas e metodológicas, estes/as [...] discutiram as regras e os princípios da composição da história como problemas de ensino e aprendizagem. Ensino e aprendizagem eram considerados no mais amplo sentido, como o fenômeno e o processo fundamental na cultura humana, não restrito apenas na escola. (RÜSEN, 2006, p. 24) Ou seja, conforme nos aponta o autor, podemos dizer que a História e o seu ensino perderam o foco quando os/as historiadores/as passaram a focar seus esforços apenas em questões teóricas e metodológicas, abstendo-se de pensarem, refletirem e resignificarem a História enquanto seu objetivo vital: os problemas práticos da vida e a sua difusão através do ensino. A Didática da História que defendemos está preocupada com o processo de ensino e aprendizagem histórica, e com uma função social prática dos conhecimentos produzidos e que proporcionará aos alunos e alunas dos cursos de Licenciatura em História se relacionar com o conhecimento histórico e suas próprias formas de compreender a História, para além do conteúdismo recorrente nas disciplinas voltadas à História propriamente dita. Servirá para sustentar e instrumentalizar as relações de ensino e aprendizagem da História, indispensáveis para a real formação de futuros/as docentes. A partir dessas reflexões acerca da Didática da História e a formação docente, buscamos, através da análise das grades curriculares das seis Universidades Federais do Rio Grande do Sul, bem como nas ementas das disciplinas voltadas a Licenciatura em História, averiguar a existência ou não de uma disciplina intitulada Didática da História e compreender qual é a perspectiva que norteia as disciplinas destinadas ao ensino e aprendizagem em História.

226 Página226 DOSSIÊ SILVEIRA, M.C.A Os QSLs da licenciatura em história x a didática da história Buscamos analisar, a nível curricular, de que forma estão organizadas e concebidas as discussões sobre ensino e aprendizagem históricas, partindo da existência de um código disciplinar da Didática da História. Tomamos então como objetos da análise as grades curriculares das Universidades Federais do Rio Grande do Sul, nos atendo às ementas das disciplinas voltadas a Licenciatura em História, nesse contexto, pertinentes ao campo da educação. Optou-se por realizar a pesquisa apenas em universidades federais do Rio Grande do Sul, de modo a ter um parâmetro mais igualitário de grade curricular para as análises. Segundo o mesmo site do MEC, o Brasil conta com 216 cursos de História Licenciatura, em atividade em Universidades e instituições Federais, na modalidade presencial. Após ter conhecimento das instituições públicas no RS que possuem cursos de Graduação em História Licenciatura, foram examinadas suas grades curriculares, por meio de consulta aos sítios eletrônicos dessas instituições. O foco da consulta foi fazer levantamento das disciplinas relacionadas a educação dentro da grade curricular. A cerca das grades curriculares, podemos perceber, de um modo geral, que estas encontram-se dividas em: áreas especificas da História, os conteúdos teóricos, as disciplinas relacionadas a licenciatura e as disciplinas relacionadas ao bacharelado. Procuramos então localizar as informações que nos proporcionarão, senão as respostas totais, pelo menos uma avaliação mais ampla e objetiva sobre os questionamentos levantados nessa pesquisa. Nesse primeiro momento, compreendemos que as análises podem parecer superficiais, mas a intenção da pesquisa é justamente a configuração das grades curriculares. Temos como objetivo aprofundar essas análises para além das ementas, podendo contar com o PPP de cada instituição, para analisar bibliografia, programa das

227 Página227 Didática da história: formação de professores/as de história nas universidades..., p disciplinas de modo averiguar mais detidamente a forma como o conhecimento histórico está sendo trabalho nas universidades federais do RS. Os currículos dos cursos de História ainda mantêm uma organização curricular tradicional, linear e progressista que ignora, por consequência, os avanços acerca de discussões sobre a própria História no Brasil. Embora, nas ementas, algumas disciplinas se proponham a realizar a relação entre o conteúdo histórico e as práticas pedagógicas para ensinar esse conteúdo, ainda sentimos que não é o suficiente. Entendemos que essas dimensões precisam ser mais aproximadas, melhores articuladas para que de fato ocorra esse diálogo para além das práticas e métodos de ensino. São necessários procedimentos e discussões realmente voltados para os processos cognitivos que resultam na aprendizagem histórica e na construção histórica de sentido. Nossa proposta é justamente analisar como a Didática da História está sendo pensado dentro dos documentos analisados, portanto, direcionamos nosso olhar às disciplinas voltadas ao ensinar e aprender História. Na tabela abaixo, enumeramos as disciplinas da Licenciatura em História da FURG, de modo a poder localizar nas demais universidades as mesmas disciplinas. Acrescentamos em nossa tabela ainda uma disciplina intitulada Didática da História, para evidenciar que, de fato, não encontramos em nenhuma grade curricular uma disciplina própria de didática para a História. As disciplinas selecionadas, a partir da tabela construída entre os cursos de História Licenciatura das seis universidades selecionadas e da análise das ementas, estão dispostas na abaixo: DISCIPLINAS FURG UFRGS UFSM UFPEL UNIPAMPA UFFS LICENCIATURA/ EDUCAÇÃO Didática da História Psicologia da X X X X X Educação Elementos X X X X X filosóficos da educação Práticas pedagógicas X X X módulo 1º sem. Elementos X X X X sociológicos da educação Práticas pedagógicas X módulo 2º sem. Didática X X X X X

228 Página228 DOSSIÊ SILVEIRA, M.C.A Políticas Públicas da Educação Práticas Pedagógicas módulo 3º sem. Práticas pedagógicas módulo 4º sem. Estágio Supervisionado I Práticas Pedagógicas módulo 5º sem. Metodologia do Ensino de História I Estágio Supervisionado II Metodologia do Ensino de História II X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X X Tabela 1: comparativo entre QSLS em relação às disciplinas da licenciatura. Fonte: Elaboração própria. As disciplinas selecionadas acima não possuem a mesma nomenclatura em todas as universidades analisadas, dessa forma, através da leitura e da comparação entre as ementas, seus objetivos e intencionalidades se pode reuni-las e agrupá-las enquanto equivalentes; tendo como base o currículo que nos serve de comparativo, no caso, o currículo da Universidade Federal do Rio Grande. Além disso, possuem disciplinas a mais ou a menos. Compreendemos que as ementas não carregam em si tudo que será ministrado em determinada disciplina, porém, são parte integrante dos currículos acadêmicos e podem revelar informações pertinentes sobre como o ensino e aprendizagem em História, e portanto a Didática da História, vem sendo pensada nos cursos de formação de professores e professoras de História. A análise das ementas foi realizada a partir da forma utilizada por Ana Claudia Urban em seu livro Didática da História contribuições para a formação de professores (2011), buscando por elementos que se aproximem da Didática da História, sendo esses o foco na aprendizagem em história e na reflexão sobre a própria ciência histórica e sua funcionalidade para a vida e a aproximação com a Didática geral e suas características normativas para o ensino. Dessa maneira, iremos realizar nossas análises das categorias elencadas por Urban: da Didática da História e o que concerne ao aprendizado em História e a natureza da própria ciência histórica; da Didática Geral e sua relação com o ensino e sua normatização.

229 Página229 Didática da história: formação de professores/as de história nas universidades..., p Essa forma de estruturar a análise utilizada por Ana Claudia Urban contempla também a perspectiva metodológica empregada nessa pesquisa, que consiste em realizar levantamentos de dados para então criar categorias de análise, que é chamada de Grounded Theory, ou Teoria de Fundamentação de Dados. Utilizamos a metodologia denominada Grounded Theory, pois partimos da premissa de que, ao extrairmos as informações desejadas dos QSLs e das ementas, vamos compreender um fenômeno do qual temos duas categorias, ou mesmo, hipóteses de análise, sendo estas Didática da História, compreendendo a cognição histórica, e Didática Geral, compreendo tarefas normativas do ensino. Em Grounded Theory: problemas de alicerçagem, António Rodrigues et al. (2004) abordam alguns aspectos relacionados a essa metodologia de pesquisas. Segundo os autores Os três elementos básicos da GT são: conceitos, categorias e preposições. Os conceitos são a unidade básica da analise uma vez que é da conceitualização dos dados, e não dos dados per si, que uma teoria emerge e evoluí até atingir o ponto de saturação. (RODRIGUES, et al., 2004, p. 3) Portanto, é a partir dos conceitos empregados para a análise, ou seja, as duas categorias propostas, que podemos verificar as premissas até então pensadas, porém não comprovadas. De modo a elucidar a construção e separação das ementas de acordo com as categorias de análise, a partir do que é proposto pela metodologia GT pensamos as próprias categorias como conceitos, conforme explicaremos: Para além de enquadrar a ementa em uma categoria, se buscou perceber nelas aspectos que se relacionassem com discussões acerca do aprendizado em História e discussões sobre a própria ciência histórica e sua funcionalidade e produção; e aspectos que priorizassem as questões práticas do ensino, tais como seleção de conteúdo, organização de conteúdo, método de ensino. Esses aspectos analisados foram tomados nessa análise como os próprios conceitos, no caso aprendizagem histórica/cognição histórica e normatização do ensino. Abaixo, apresentamos as tabelas que possibilitam uma melhor visualização da análise empregada, bem como evidencia que aspectos da ementa nos levaram a elencálas nas categorias propostas: CATEGORIA: Didática da História

230 Página230 DOSSIÊ SILVEIRA, M.C.A Aprendizagem histórica/cognição histórica Disciplina Excerto da ementa Práticas ped. 5º sem. Situar a disciplina histórica como base e referencial teórico e prático para a formação do profissional de História Prática docente II Proporcionar ao acadêmico oportunidades para desenvolver atividades de ensino monitorados em instituições fora do Ensino fundamental e médio, em caráter voluntário e de cunho social. Estágio III Fomentar a reflexão da realidade do ensino de história e a elaboração de um referencial teórico próprio para o ensino de História. Experiênciar o ensino de História de forma criativa, crítica e socialmente engajada. Teoria e metodologia do A Didática da História e a Teoria e Metodologia da História. ensino de história O Ensino de História como parte do ofício do historiador. História do Ensino de História no Brasil/ Possibilitar aos alunos de História uma aproximação com as questões teóricas e metodológicas que envolvem o Ensino de História, tanto como área de atuação profissional, quanto como área de produção de conhecimento Introdução à prática e estágio de história histórico. Oportunidade de integração dos aprendizados em História e Educação, objetivando compreender os fenômenos da sala de aula e construir programas de ensino/aprendizagem, considerando quem são os alunos, os contextos escolares e as finalidades do ensino. Tabela 2: agrupamento das disciplinas em relação a categoria didática da história. Fonte: Elaboração própria. CATEGORIA: Didática Geral Normatização do ensino Disciplina Práticas ped. 1º sem. Didática Práticas ped. 2º sem. Práticas ped. 3º sem. Práticas ped. 4º sem. Estágio Supervisionado em História I Práticas ped. 5º sem. Met. Do ensino de história I Met. Do ensino de história II Estágio superv. II Sem. De ensino de história Excerto da ementa Relações de ensino/ práticas educativas Processos avaliativos/ relação geral entre ensino e aprendizagem/ currículos nacionais/ História das disciplinas escolares/ Práticas inovadoras no ensino de História Teoria e prática/ Prática de Ensino nas Séries Iniciais e Prática de ensino na Educação Infantil. Teoria e prática/ Prática de Ensino no Ensino Fundamental Teoria e prática/ Prática de Ensino no Ensino Médio Formação do professor/ aspectos gerais do espaço escolar/ organização didática da prática escolar Métodos de ensino possíveis de aplicação ao ensino de História Metodologias do ensino de história/ estrutura do planejamento do processo de ensino-aprendizagem/ as técnicas de ensino e os recursos pedagógicos para o ensino de história/ análise do livro didático e práticas pedagógicas. Desenvolvimento das competências e habilidades no ensino de História/ pedagogia de projeto aplicada ao ensino de história/ método didático-problematizador como possibilidade e meio de ensino/ as tecnologias e meios de ensino na sala de aula/ estrutura do planejamento do plano de aula/ plano de ensino/ plano de trabalho. Aspectos de formação para o ensino de história no Ensino Médio Estratégias de ensino/ aprendizagem de História em nível Fundamental e Médio/ relação aluno x métodos de ensino

231 Página231 Didática da história: formação de professores/as de história nas universidades..., p Educação contemporânea: currículo, didática, planejamento Estágio de docência em história I - ensino fundamental Estágio de docência em história II - ensino médio Estágio de docência em história III - educação patrimonial Laboratório de prática de ensino em história I Laboratório de prática de ensino em história II Didática geral para o ensino de história Laboratório de prática de ensino em história III Laboratório de prática de ensino em história IV Prática de ensino em história I Teoria e metodologia do ensino da história Prática de ensino em história III Prática de ensino em história IV Relações entre currículo, didática, culturas, subjetividades, identidades e diferença/ Discute os diversos movimentos de planejar, ensinar, aprender e avaliar produzidos na Educação. Prática de ensino no ensino fundamental/ planejamento Prática de ensino no ensino médio/planejamento de aulas Realização de experiências de observação, monitoria e estágio de docência na área de História em instituições culturais, tais como arquivos históricos, museus, memoriais, bibliotecas, acervos históricos de acesso público... Criar materiais didáticos relacionados à História Antiga e Medieval, com o fim de tanto aprender a adequar os conteúdos ao ensino fundamental e médio como meios de facilitar o ensinoaprendizagem. Produzir materiais didáticos relacionados a América e o Brasil do período anterior ao século XIX, os quais possam auxiliar na prática do ensino fundamental e médio. Compreender as diferentes teorias da Educação e sua aplicação no ensino da História. Conhecer a relação entre a teorias e a metodologia utilizada no ensino, e as noções básicas da didática geral Produzir materiais didáticos relacionados ao mundo contemporâneo, dirigidos para a História Mundial, da América e do Brasil Contemporâneos, os quais possam auxiliar na prática do ensino de história no ensino fundamental e médio. Preparar os acadêmicos na produção de aulas e de recursos técnicos e teóricos para trabalhar com os cursos de extensão, alfabetização de jovens e adultos. Proporcionar ao acadêmico atividades para atualização de professores no ensino da História, através de atividades de laboratório e preparação de material didático atualizado. Analisar as diferentes alternativas metodológicas para o ensino da história, tendo em vista a realidade brasileira e latino-americana. A definição e execução da proposta pedagógica para o ensino da história no ensino fundamental. O relatório da prática de ensino de história. A definição e execução da proposta pedagógica para o ensino da história no ensino médio. O relatório da prática de ensino de história. Estágio supervisionado III Experiências de observação, acompanhamento e estágio de docência em espaços não-escolares Teoria e metodologia do Abordagens teóricas e metodológicas sobre a prática docente do ensino de história professor de História. Tabela 3: Agrupamento das disciplinas em relação a categoria didática geral. Fonte: Elaboração própria. A análise realizada nos documentos selecionados permitiu com que pudéssemos compreender qual perspectiva de ensino e aprendizagem em História norteiam as ementas das disciplinas selecionadas para a análise. Percebemos que existem em certo nível, disciplinas voltadas ao ensinar e aprender História que se preocupam em abordar temas que pertencem a Didática da História, fazendo referência então a natureza do

232 Página232 DOSSIÊ SILVEIRA, M.C.A conhecimento histórico para o ensino de História, a História e a disciplina história como a base para a formação dos professores/as de História; Didática da História enquanto parte do oficio do/a historiador/a; referenciais próprios ao Ensino de História; as dimensões da História que ultrapassam espaços escolares. Porém, notemos nas analise que o maior destaque é justamente referente ao segundo elemento de averiguação dessa pesquisa, relacionados a elementos da Didática Geral. Majoritariamente, o que percebemos das análises das ementas é que estas se remetem a questões normativas do ensino e aprendizagem em História, voltadas aos conteúdos a serem transmitidos, como transmiti-los, que métodos e recursos didáticos são os mais eficazes, como elaborar materiais que facilitem o processo de ensino, práticas docentes para o ensino. Buscamos, nessa pesquisa, evidenciar e analisar alguns aspectos formativos de docentes em História tendo como perspectiva teórica a Didática da História. Pudemos compreender em que instância reside a relevância da Didática da História para a formação do/da docente em História, justamente pelo foco que essa disciplina especializada traz em relação aos processos de aprendizagem histórica, autorreflexão da própria ciência histórica e, também, abarca as questões metodológicas do ensino, reunindo assim, em uma disciplina, todos os aspectos que consideramos fundamentais para uma formação realmente efetiva e completa de docentes em História. Buscamos evidenciar que tipo de formação almejamos, principalmente no que diz respeito a sairmos do conteudismo que segue permeando as disciplinas da História para atentarmos ao fato de que os conteúdos históricos precisam estar em diálogo com os saberes pedagógicos. Em relação aos saberes pedagógicos, fomos capazes de perceber, a nível curricular, qual concepção de ensino e aprendizagem históricas norteiam as disciplinas destinadas aos saber fazer pedagógico. Através da metodologia GT e das categorias de análise propostas por Urban, fomos capazes de expor que existe uma pedagogização das disciplinas que compõem o quadro de Licenciatura em História, sendo estas majoritariamente destinadas a ensinar metodologias de ensino, planejamento docente, organização do conteúdo, práticas de ensino dentre outras tarefas que compõem uma função mais aproximada com a Didática Geral, em referência a predominância dessas tarefas normativas no ensino da História.

233 Página233 Didática da história: formação de professores/as de história nas universidades..., p Atentando para o fato de que algumas discussões se fizeram de maneira superficial, aproveitamos para expor o desejo de se continuar com a pesquisa, podendo trabalhar com cada currículo em sua particularidade. Além disso, temos como expectativa poder analisar a narrativa de acadêmicos/as de História Licenciatura que se encontrarem em momento de estágio, para perceber como esses sujeitos centrais em nossa pesquisa, os/as futuros/as docentes em História, compreendem sua própria formação. Ademais, esperamos que a pesquisa que aqui se inicia venha a contribuir para esse campo de investigação que está ocupando cada vez mais espaços, e esperamos que um dia venha a ser central dentro dos cursos de História no Brasil. Referências BERGMANN, Klaus. A História na Reflexão Didática. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 9, n. 19, pp , set. 1989/fev BLOCH, M. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, CERRI, L.F. A didática da história para Jörn Rüsen: uma ampliação do campo de pesquisa. XXIII Simpósio Nacional de História - ANPUH, pp. 1-4, Londrina, E-MEC SISTEMA DE REGULAÇÃO DO ENSINO SUPERIOR. Disponível em: < acessado em 10/09/2016. Quadros de Sequência Lógica Universidade Federal de Pelotas UFFS. Disponível em f acessado em 10/10/2016. Quadros de Sequência Lógica Universidade Federal de Pelotas UFPEL. Disponível em acessado em 10/10/2016. Quadros de Sequência Lógica Universidade Federal de Santa Maria e ementas UFSM. Disponível em < acessado em 10/10/2016. Quadros de Sequência Lógica Universidade Federal do Pampa e ementas UNIPAMPA. Disponível em < Licenciatura-UNIPAMPAfinal-redux.pdf> acessado 10/10/2016. Quadros de Sequência Lógica Universidade Federal do Rio Grande e ementas FURG. Disponível em acessado em 10/10/2016. Quadros de Sequência Lógica Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ementas UFRGS. Disponível em acessado em 10/10/2016.

234 Página234 DOSSIÊ SILVEIRA, M.C.A RODRIGUES, A. et al. Grounded Theory: problemas de Alicerçagem. Métodos de Investigação Científica, Coimbra, p. 9, abr Disponível em acessado em 01/11/2016. RÜSEN, J. Didática da história: passado, presente e perspectivas a partir do caso alemão. In: Jörn Rüsen e o ensino de História. Curitiba: Ed. UFPR, p RÜSEN, J. Teoria da História: uma teoria da história como ciência. Trad. Estevam C. de Rezende Martins. Curitiba: Editora UFPR, SCHMIDT, M.A.; BARCA, I.; URBAN, A.C. (Org.). Passados possíveis: a educação histórica em debate. Ijuí: Unijuí, URBAN, A.C. Didática da História contribuições para a formação de professores. Curitiba: Juruá, 2011.

235 ENTRE O SINGULAR E O COLETIVO: PRESENÇA DE (AUTO)BIOGRAFIAS EM LIVROS DIDÁTICOS DO PNLD BETWEEN THE SINGULAR AND THE COLLECTIVE: (AUTO) BIOGRAPHIES PRESENCE IN PNLD TEXTBOOKS RESUMO Carlos Eduardo Ströher* Carla Beatriz Meinerz** A proposta do trabalho é investigar se a presença de narrativas biográficas em materiais didáticos atuais reflete uma nova abordagem historiográfica. Definiram-se, como amostra, cinco obras de História, destinadas ao 9º ano do Ensino Fundamental. Usou-se como metodologia a análise de conteúdo, que orientou o estabelecimento de categorias segundo a forma de inserção de obras ou de trechos biográficos nos livros em análise. Palavras-chave: (Auto)biografia. Livros didáticos. Ensino de História. Memória ABSTRACT The purpose of this paper is to investigate if the biographical narratives presence in current textbooks reflects a new historiographic approach. Five history works were defined as samples. They are all used in 9th grade of elementary school. It was used as methodology the content analysis which oriented the establishment of categories according to the way of inserting works or biographical excerpts in the books under analysis. keywords: (Auto) biography. Textbooks. History teaching. Memory *Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor da Universidade Feevale, dos cursos de História e Pedagogia. carloseduardo@feevale.br **Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora adjunta do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. carlameinerz@gmail.com.

236 Página236 DOSSIÊ STRÖHER, C.E.; MEINERZ, C. Introdução A operação histórica consiste em recortar o dado, segundo uma lei presente, que se distingue do seu outro (passado), distanciando-se com relação a uma situação adquirida e marcando, assim, por um discurso, a mudança efetiva que permitiu esse distanciamento. Assim, a operação historiográfica tem um efeito duplo. Por um lado, historiciza o atual. Falando mais propriamente, ela presentifica uma situação vivida. Obriga a explicitar a relação da razão reinante com um lugar próprio que, por oposição a um passado se torna o presente (CERTEAU, 1982, p. 93). Esse texto tem como ponto de partida a indissociablidade entre a constituição da História como disciplina escolar e a História como área do conhecimento científico, cujos aportes teórico-metodológicos lhe são próprios e aqui identificados com o conceito de operação historiográfica (CERTEAU, 1982), aquela que produz uma relação ímpar entre passado e presente. Essa indissociablidade é tematizada a partir da segunda metade do século XIX, quando o contexto das instituições de ciência e de ensino começa a sedimentar-se socialmente. Propõe-se, num primeiro momento, uma reflexão do ponto de vista cronológico, estabelecendo conexões entre a historiografia e o ensino de História e, na sequência, insere-se a análise de um gênero narrativo específico, a biografia, nestes espaços de produção de saber, quais sejam, o acadêmico e o escolar. Pesquisa e ensino de História: qual o lugar da biografia nesses espaços? Pesquisar e ensinar são tarefas que a tradição historiográfica tratou de separar, destinando funções distintas para o historiador e para o professor. Esses dois ofícios, apesar de intimamente relacionados, foram dicotomizados desde os oitocentos e são objeto de análise de poucas obras. Uma delas, de autoria da pesquisadora Thais Nívia de Lima e Fonseca (2003), propõe-se a realizar um exercício reflexivo sobre a trajetória

237 Página237 Entre o singular e o coletivo: presença de (auto)biografias em livros didáticos do PNLD, p do ensino da disciplina nos espaços escolares, considerando este algo importante para esclarecer muito mais do que se imagina sobre questões que envolvem o trabalho de historiadores e de professores, questões que vêm se acumulando nos cantos das salas de aulas (p. 7). A despeito dos descompassos entre a escrita da História acadêmica e o seu ensino, ambas devem ser compreendidas a partir do paradigma moderno, que moldou as sociedades ocidentais, tanto no discurso científico, quanto no que tange às práticas escolares, concebidas a partir dos interesses de determinadas instituições, especialmente a Igreja e o Estado. Os saberes que posteriormente configuraram-se em disciplinas, também se respaldaram nas intencionalidades destes grupos. Os historiadores do século XIX estavam imbuídos do espírito iluminista, que valorizava o cientificismo frente ao providencialismo que predominara no Antigo Regime. Dessa forma, buscavam desvincular a História do seu caráter profano, vinculado ao estudo dos textos clássicos, e do aspecto sagrado, sobretudo bíblico, relacionado às igrejas cristãs. O legado da Revolução Francesa produziu uma série de legislações que instituíam a educação como um direito do cidadão, sendo que a História se tornou cada vez mais um instrumento de referência para a reflexão sobre as civilizações e sobre o progresso da humanidade (FONSECA, 2003, p. 23). Nesse contexto, os ideais iluministas legaram aos processos de escolarização a tarefa de disseminar os saberes sistematizados pelas distintas áreas da ciência, com a promessa de, através da razão, modificar o mundo. Esse projeto transformador passou pela organização de sistemas públicos de ensino que atendiam aos objetivos de disciplinamento e de controle das populações, formando cidadãos adequados ao sistema socioeconômico capitalista em desenvolvimento no período. Tal estratégia visava ao fortalecimento das identidades nacionais e a disciplina histórica tinha um papel fundamental nisso. A História, enquanto campo de conhecimento, moldou-se ao sistematizar os métodos de investigação e ao adquirir os contornos de ciência. Segundo François Furet, nesse mesmo momento, ela foi também escolarizada, ou seja, transformada em disciplina escolar. O processo de afirmação das nacionalidades e a legitimação dos poderes políticos garantiram uma proeminência da disciplina de História no espaço escolar, pois ela tratava de mostrar às crianças e aos jovens o passado glorioso de sua nação, os grandes

238 Página238 DOSSIÊ STRÖHER, C.E.; MEINERZ, C. heróis e seus feitos extraordinários. Esse percurso ocorreu, ao longo do século XIX, concomitantemente na Europa e nas jovens nações americanas, que precisavam construir suas identidades como nações, forjando um passado inteligível e compatível com os interesses das elites locais. Esse método de escrita da História utilizava como fonte privilegiada os documentos escritos, sendo considerados como tais apenas os ditos oficiais atas, decretos, leis, mandatos, proferidos por indivíduos significativos membros de altos cargos políticos, militares e religiosos. O gênero biográfico, nesse contexto, tinha um papel fundamental, pois o sujeito retornava ao centro da História, deixando de ser um mero coadjuvante de forças transcendentais sagradas ou profanas. No Brasil, a missão de elaborar uma história da nação recém-independente coube ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), fundado em A aplicação em estudos escolares iniciou nessa mesma época no Colégio Pedro II e rapidamente influenciou as demais escolas. Produzia-se e ensinava-se, a julgar pelos programas e pelos textos dos livros didáticos, uma História eminentemente política, nacionalista e que exaltava a colonização portuguesa, a ação missionária da Igreja católica e a monarquia (FONSECA, 2003, p. 47). A estrutura curricular reproduzia o modelo quatripartite francês Histórias Antiga, Média, Moderna e Contemporânea, denominado como História Geral e, posteriormente, Universal. A História do Brasil ainda era escassa, pois carecia de material e constituía um apêndice das demais. No âmbito historiográfico, o século XIX vivenciou também a ascensão do positivismo e do materialismo dialético como correntes de pensamento antagônicas: enquanto a primeira tinha em sua base o evolucionismo de Darwin, acreditando que as sociedades evoluíam até chegar à ciência e que, para que o progresso ocorresse, era fundamental o estabelecimento da ordem; o materialismo, teorizado por Karl Marx, inaugurou uma leitura economicista da História, privilegiando as relações entre as instâncias infra e superestruturais. As referências teóricas dessa vertente historiográfica centravam-se na utilização de uma cronologia narrada através da evolução dos modos de produção, na luta de classes, no antagonismo dominador/dominado e na valorização das relações do trabalho humano. Nos espaços escolares, tanto da Europa quanto do Brasil, o ensino relacionado às ideias positivistas se manteve predominante, apoiado pelas elites que dominavam a

239 Página239 Entre o singular e o coletivo: presença de (auto)biografias em livros didáticos do PNLD, p esfera sócio-política. Com a instalação do governo republicano, a partir do final do século XIX, a vinculação da disciplina de História com a responsabilidade de formar cidadãos incutidos de valores de civismo e de nacionalidade permaneceu, especialmente durante o primeiro governo de Getúlio Vargas, na década de 1930, quando a educação pública foi organizada e se buscou estabelecer bases nacionais nos currículos escolares. Posteriormente, na década de 1960, com a instalação da ditadura civil-militar, observou-se uma visível vigilância sobre os conteúdos desenvolvidos na área das Ciências Humanas, especialmente a História. Uma reestruturação curricular oficializou o ensino de Estudos Sociais nas escolas brasileiras, aglutinando os conteúdos gerais da História e Geografia e incluindo uma nova disciplina, a Educação Moral e Cívica, que visava à exaltação dos valores patrióticos para fins claramente políticos. O objetivo era esvaziar a crítica social dos conteúdos, mantendo a História atrelada às concepções tradicionais dos grandes personagens, das datas comemorativas e da História como ciência que glorificava o passado. A partir de meados do século XX, as propostas baseadas no positivismo e no materialismo histórico passaram a dividir a atenção com outras influências historiográficas. A principal delas foi a chamada Nova História, ligada à renovação historiográfica francesa que vinha ocorrendo através da chamada Escola dos Annales. Esse movimento teve sua origem no lançamento, pelos historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre, do periódico acadêmico francês Annales d'histoire économique et sociale, em Entre as diversas críticas e rupturas ensejadas, está a chamada revolução documental, questionando a interpretação positivista que estabelecia o documento como sinônimo de prova escrita, de confirmação de um passado com um discurso único e definitivo. A história dos grandes heróis foi fortemente criticada, razão pela qual as biografias perderam terreno no campo historiográfico. No contexto educacional, também em meados dos anos 1980, em concomitância ao processo de abertura política e redemocratização brasileira, novas perspectivas para o ensino de História se tornaram foco de discussões, através de congressos, simpósios e encontros organizados por grupos ligados aos meios acadêmicos, como a Associação Nacional de História (ANPUH). As disciplinas de História e Geografia voltaram a ser autônomas e independentes, garantindo o retorno de discussões conceituais e metodológicas. Ganharam destaque nesse momento temas relacionados ao

240 Página240 DOSSIÊ STRÖHER, C.E.; MEINERZ, C. materialismo histórico e a nova história, notadamente aqueles que contemplavam temáticas de grupos menos favorecidos pela história positivista, como trabalhadores, negros, indígenas, mulheres, pobres e marginalizados, inserindo-os como sujeitos da história. É nesse contexto de ampliação das perspectivas acerca dos sujeitos históricos que o gênero biográfico se inseriu novamente como uma possibilidade narrativa. A biografia apresentava-se na historiografia somente pela abordagem positivista que privilegiava os grandes líderes, mas que fora menosprezada pelas teorias estruturalistas que, como o materialismo, subjugaram o sujeito ao contexto em que estavam inseridos. A história deveria identificar as estruturas e as relações que, independentemente das percepções e das intenções dos indivíduos, comandam os mecanismos econômicos, organizam as relações sociais, engendram as formas do discurso (CHARTIER, 1994, p. 102). Esse panorama alterou-se gradativamente a partir dos anos 1960, com o avanço de um fenômeno chamado de retorno da biografia. Schmidt considera que a recuperação dos sujeitos individuais na história pode ser vista como uma reação aos enfoques excessivamente estruturalistas, descarnados de "humanidade", que caracterizaram boa parte da produção historiográfica contemporânea: o modo de produção de Marx e a longa duração de Braudel, por exemplo. Metodologicamente, esta mudança implica o recuo da história quantitativa e serial e o avanço dos estudos de caso e da micro-história. No círculo mais estritamente acadêmico, é importante salientar a aproximação da história com a antropologia, na qual o resgate das histórias de vida já é uma praxe, e com a literatura, preocupada com as técnicas narrativas de construção dos personagens (1997, p. 5). Schmidt sinaliza que diferentes correntes historiográficas, de diversos países, demonstraram, nas últimas décadas do século XX, o interesse pelo resgate de trajetórias singulares. Essa curiosidade atraiu também outros profissionais, como os jornalistas, que atualmente vêm empreendendo muitas obras de caráter biográfico e que têm entrado inclusive em confronto com historiadores, principalmente por estes considerarem que aqueles se apropriam das fontes sem o devido rigor metodológico. No esteio da revolução documental proposta pela nova história, que estimulava diferentes possibilidades de investigação histórica, fontes até então renegadas foram incorporadas ao fazer historiográfico e, consequentemente, biográfico: vestígios materiais, iconográficos, sonoros e audiovisuais. O mercado editorial acompanhou o

241 Página241 Entre o singular e o coletivo: presença de (auto)biografias em livros didáticos do PNLD, p processo de mudanças e lançou uma leva de novas publicações didáticas, efetuando um rearranjo da seleção e estruturação dos conteúdos, com vistas a uma História [...] mais crítica, dinâmica, participativa, acabando, assim, com a História linear, mecanicista, etapista, positivista, factual e heroica (FONSECA, 2003, p. 62). As concepções fundamentadas na crítica ao documento permitiram a incorporação de outras tendências historiográficas, como a história das mentalidades e do cotidiano. Concomitantemente às questões levantadas nos meios acadêmicos e nas esferas dos movimentos sociais; observou-se, no âmbito brasileiro, uma proposta de regulamentação das referências curriculares nacionais. Esse movimento iniciou-se com a entrada em vigor da Lei Federal n , de 20 de dezembro de 1996 a Lei de Diretrizes e Bases da Educação que, a partir do estabelecimento de novas orientações para a organização de currículos e conteúdos, abriu caminho para os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN s) para os quatro ciclos do Ensino Fundamental, entre os anos de 1997 e Na área da História, os PCN s incorporaram a discussão sobre a relevância da narrativa biográfica ao estabelecer como um dos objetivos do ensino da disciplina era compreender que as histórias individuais são partes integrantes de histórias coletivas (PCN, 1998, p. 43). Além disso, contemplando as reflexões acerca da nova história, lançaram a proposta de transformação dos conteúdos tradicionalmente organizados em ordem cronológica para eixos temáticos e desdobrá-los em subtemas, orientando estudos interdisciplinares e a construção de relações entre acontecimentos e contextos históricos no tempo (idem, p. 46). O protagonismo aferido, por correntes historiográficas recentes, ao papel do sujeito no processo histórico confronta as teorias tradicionais, que privilegiavam as macroestruturas político-econômicas e os grupos sociais. Nesse cenário, em que o gênero biográfico se revitaliza e adquire maior relevância, é possível a ascensão de narrativas de diversos personagens históricos, que, durante muito tempo, ficaram à margem da historiografia. A partir do marco temporal de 2003, momento de conquista social decorrente das lutas dos movimentos negros em nosso país, instauraram-se novas políticas públicas que atingiram diretamente a pesquisa, o ensino e a extensão no campo da História e do ensino de História. A Lei /03 criou o artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da

242 Página242 DOSSIÊ STRÖHER, C.E.; MEINERZ, C. Educação Nacional (LDBEN), responsável por trazer ao debate público, via educação escolar, as práticas do racismo, do preconceito e da discriminação, tradicionalmente negadas ou mantidas no plano privado. Esse artigo incidiu diretamente sobre os currículos prescritos e praticados da disciplina História, na Educação Básica e Superior. Do ponto de vista educativo, são as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro- Brasileira e Africana, de 2004, que vão apontar possibilidades diretas, depois desdobradas nas metas do Plano Nacional de Educação. Nessas diretrizes, encontram-se orientações específicas sobre o ensino, a partir de biografias de africanos, afro-brasileiros e indígenas, apontando para o fato de que, além de ensinar conteúdos antes invisibilizados e desconhecidos, o professor pode contribuir com a promoção de valores como justiça, cidadania, diálogo intercultural, ética, paz e equidade étnico-racial. Sob essa perspectiva de diálogo entre a produção acadêmica e a didática, em contextos de políticas públicas educacionais, a proposta do presente trabalho é investigar se a presença de narrativas biográficas em materiais didáticos atuais reflete na Educação Básica essa nova abordagem historiográfica. A escolha dos livros didáticos como corpus de análise justifica-se pelo poder que estas obras têm para legitimar discursos historiográficos e orientar o trabalho docente (STRÖHER, 2012). Percursos metodológicos Definiram-se, como amostra da pesquisa, cinco obras destinadas ao 9º ano do Ensino Fundamental, inscritas no Programa Nacional do Livro Didático PNLD 37 de Destaca-se que o livro didático é compreendido como um artefato cultural 37 O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) tem como principal objetivo subsidiar o trabalho pedagógico dos professores por meio da distribuição de coleções de livros didáticos aos alunos da educação básica. Após a avaliação das obras, o Ministério da Educação (MEC) publica o Guia de Livros Didáticos com resenhas das coleções consideradas aprovadas. O guia é encaminhado às escolas, que escolhem, entre os títulos disponíveis, aqueles que melhor atendem ao seu projeto político pedagógico. O programa é executado em ciclos trienais alternados. Assim, a cada ano o MEC adquire e distribui livros para todos os alunos de um segmento, que pode ser: anos iniciais do ensino fundamental, anos finais do ensino fundamental ou ensino médio. À exceção dos livros consumíveis, os livros distribuídos deverão ser conservados e devolvidos para utilização por outros alunos nos anos subsequentes. Disponível em: Acesso em: 14 jul

243 Página243 Entre o singular e o coletivo: presença de (auto)biografias em livros didáticos do PNLD, p do ensino de História, portanto condicionado pelas disputas e guerras de narrativas (LAVILLE, 1999) que extrapolam o campo da História e da Educação. Os livros selecionados pertencem a coleções que foram classificadas pelo Guia dos Livros Didáticos como as que apresentaram as melhores propostas pedagógicas e de componente curricular de História segundo os avaliadores. As informações gerais sobre as obras estão sistematizadas na tabela 1. Livro didático Autor(a)(es) Editora Edição/Ano História em Documento: Joelza Esther imagem e texto (HD) Domingues FTD 2ª/2012 História, Sociedade & Cidadania Alfredo Boulos (HSC) Júnior FTD 2ª/2012 Nelson Piletti História e Vida integrada Claudino Piletti (HV) Thiago Tremonte Ática 4ª/2010 Projeto Teláris Gislane Azevedo História (PTH) Reinaldo Seriacopi Ática 1ª/2012 Projeto Araribá Maria Raquel História (PAH) Apolinário Moderna 3ª/2010 Tabela 1: Livros didáticos analisados. Fonte: elaboração própria. Empregou-se como metodologia a análise de conteúdo, que orientou o estabelecimento de categorias segundo a regularidade e a forma de inserção do gênero biográfico nos livros em análise. Essa opção metodológica possibilitou a análise de dados quantitativos e qualitativos acerca da temática. Bardin (1977) afirma que tal método, corresponde aos objetivos de ultrapassagem da incerteza e enriquecimento da leitura, traduzidos por desejo de rigor e necessidade de descobrir, de adivinhar, de ir além das aparências (p. 29). Conforme a autora, essa metodologia é empírica na medida em que depende do tipo de fala a que se dedica e do tipo de interpretação que se pretende como objetivo. (BARDIN, 1977, p. 30). Bardin alerta, entre outros aspectos, que o pesquisador deve ter cuidado quanto a escapar da ilusão da transparência dos fatos sociais, tornar-se desconfiado, lutando contra a evidência do saber subjetivo, adotando uma vigilância crítica, dizendo não à leitura simples do real, sempre sedutora (p. 22). Considerando as diferentes formas de organização dos livros e os projetos gráficos diferenciados, utilizou-se como filtro inicial para verificação da manifestação do gênero biográfico nos livros didáticos a sua aparição destacada do corpo do texto,

244 Página244 DOSSIÊ STRÖHER, C.E.; MEINERZ, C. seja em boxes laterais, subtítulos ou proeminência em alguma listagem de bibliografias. Dentre os registros identificados, optou-se por classificá-los em quatro macro categorias, conforme critérios previamente definidos: Menção biográfica, que consiste na indicação e sugestão de narrativas biográficas, apenas como referência bibliográfica; Relato biográfico, uma breve descrição de algum personagem através de uma síntese elaborada pelo(s) autor(es) da obra; Trecho biográfico, uma citação literal de excerto a respeito de um sujeito histórico, relatado ou divulgado em obra de outra autoria; Trecho autobiográfico, uma citação literal de fragmento de um relato que o próprio indivíduo escreveu e posteriormente colocou em divulgação. A definição das categorias passou por escolhas metodológicas e também pela compreensão de algumas balizas teóricas, como a que distingue biografia de autobiografia. A escrita biográfica é sempre permeada pela presença do escritor, que interfere na descrição do biografado a partir de sua pesquisa em diversas fontes além do próprio relato oral do indivíduo: arquivos pessoais e depoimentos de outras pessoas que tiveram relação com o sujeito. Esse texto é, portanto, resultado da montagem do escritor, que insere a sua interpretação dos fatos na narrativa construída. Já na autobiografia, o próprio narrador estrutura seu texto sem a intermediação direta de outro sujeito, constituindo-se um relato da experiência própria do sujeito (RICCI, 2000, p. 154). Análise quantitativa e qualitativa A análise das obras didáticas levou em conta o conteúdo disponível para o aluno, desconsiderando o manual do professor, que geralmente apresenta um capítulo destinado às questões teóricas e metodológicas da História e do seu ensino. A tabela 2 apresenta uma síntese dos dados quantitativos coletados no corpus selecionado:

245 Página245 Entre o singular e o coletivo: presença de (auto)biografias em livros didáticos do PNLD, p Livro didático História em Documento: imagem e texto (HD) História, Sociedade & Cidadania (HSC) História e Vida integrada (HV) Projeto Teláris História (PTH) Projeto Araribá História (PAH) Total por categoria Menção biográfica Relato biográfico Trecho biográfico Trecho autobiográfico Total por obra Tabela 2: Distribuição das categorias biográficas por obra analisada. Fonte: elaboração própria. Não é do interesse dessa investigação uma análise criteriosa de cada um dos livros didáticos, uma vez que esta seria bastante exaustiva e extrapolaria os limites desta pesquisa. O corpus documental escolhido servirá apenas para embasar as apreciações acerca da presença do gênero biográfico e da forma como este se apresenta nestas obras. Na perspectiva quantitativa, observou-se uma distribuição bastante irregular entre as diferentes obras analisadas, variando entre incidências esparsas como na obra PTH, com cinco aparições ao total ou bastante frequentes, tal qual a obra HD, com quase uma centena de registros. No que tange às categorias, percebeu-se uma maior presença de menções a referências e relatos biográficos, correspondendo a mais de 78% do total de apontamentos. As menções biográficas apresentaram-se nos livros didáticos como indicações de leitura complementar, predominantemente no final dos capítulos e conteúdos, e a maior parte delas identificou-se como livros ou revistas. No entanto, vários registros desta categoria, em torno de 43%, constituíram-se como sugestões de cinebiografias ou sites destinados à trajetória de vida de sujeitos históricos considerados relevantes, demonstrando uma maciça inserção de fontes além das documentais nessas obras. Os relatos biográficos constam dos livros como pequenas sínteses da vida de personagens escolhidos como proeminentes dentro de determinado contexto. Esses

246 Página246 DOSSIÊ STRÖHER, C.E.; MEINERZ, C. resumos sempre ocupam pequenos boxes laterais, geralmente acompanhados de fotografias dos sujeitos. Dessa forma, na maior parte das vezes, apresentam-se como adendos ao texto principal, atuando como imagens-documento, que comprovam a perspectiva discursiva construída (STRÖHER, 2012). Em alguns casos, especialmente nos relatos mais longos, eles vêm acompanhados de algumas atividades destinadas aos alunos, comumente de mera localização de informações no texto e de síntese de algumas ideias consideradas centrais sobre a trajetória daquele indivíduo. Em relação aos trechos biográficos e autobiográficos, estes corresponderam a pouco mais de 22% do total de registros. A maior parte destes verificou-se na obra HD, de Joelza Esther Domingues. A obra diferencia-se das demais por utilizar um projeto gráfico que divide, de maneira uniforme, texto principal e trabalho com fontes históricas, em páginas espelhadas. Nos espaços destinados às fontes, há uma variedade bastante significativa de documentos, como obras de arte, mapas, fotografias, ilustrações, tabelas, gráficos e depoimentos, acompanhados de questões que contribuem para desenvolver a capacidade de analisar as fontes históricas (DOMINGUES, 2012, p. 9). Outro recurso diferenciado são os textos de abertura dos capítulos, que trazem excertos de contos, mitos ou relatos biográficos que permitem conhecer o passado de um povo começando por seu patrimônio cultural (idem, p. 8). Entre as temáticas mais recorrentes de trechos (auto)biográficos nos livros didáticos estão relatos de indivíduos expostos a situações de grande sofrimento e privação, como nas guerras mundiais, a partir do registro de impressões de combatentes e membros da sociedade civil. A fim de exemplificar essa inserção, apresenta-se a figura 1.

247 Página247 Entre o singular e o coletivo: presença de (auto)biografias em livros didáticos do PNLD, p Figura 1 Página do livro com trecho biográfico de Anne Frank (DOMINGUES, 2012, p ). No livro de Domingues, trechos extraídos do diário de Anne Frank abrem o capítulo que contextualiza a Segunda Guerra Mundial. Acompanham o relato uma ilustração, uma breve sinopse da vida da jovem e algumas questões que permitem refletir acerca da trajetória da adolescente judia. Dessa forma, percebe-se que tanto as inserções biográficas quanto as autobiográficos são resultado da seleção feita pelo(s) autor(es) e visam reforçar os discursos historiográficos que o livro apresenta no texto principal e nas outras fontes apresentadas. Essa utilização da trajetória do indivíduo vinculada a fatos históricos específicos, como o caso de Anne Frank, traz à tona e denuncia o que Giovanni Levi chama de ambiguidades da biografia: Em certos casos, recorre-se a ela para sublinhar a irredutibilidade dos indivíduos e de seus comportamentos a sistemas normativos gerais, levando em consideração a experiência vivida; já em outros, ela é vista com o terreno ideal para provar a validade de hipóteses científicas concernentes às práticas e ao funcionamento efetivo das leis e das regras sociais (LEVI, 2002, p. 167). Levi problematiza essa questão perguntando se é possível escrever a vida de um indivíduo. Ele salienta que as simplificações que os historiadores biógrafos apresentam

248 Página248 DOSSIÊ STRÖHER, C.E.; MEINERZ, C. vão além do pretexto da falta de fontes, uma vez que imaginamos que os atores históricos obedecem a um modelo de racionalidade anacrônico e limitado, [...] com modelos que associam uma cronologia ordenada, uma personalidade coerente e estável, ações sem inércia e decisões sem incertezas (LEVI, 2002, p. 169). Esse determinismo é exemplificado na utilização da carta testamento de Getúlio Vargas, que consta de duas das obras analisadas. Sua citação é apresentada sempre como um registro das convicções do presidente, sem considerar que as ideias presentes no texto são fruto de uma situação excepcional e que culminou em um ato extremo, seu suicídio. Basta aprofundar o estudo da trajetória histórica do ex-presidente para compreender que ele não representa um personagem coerente e estável, mas um sujeito inconstante que reagiu a cada acontecimento de forma diferenciada. Essa armadilha também é apontada por Pierre Bordieu que considera uma ilusão biográfica acreditar que é possível compreender uma vida como uma série única e, por si só, suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outra ligação que a vinculação a um sujeito cuja única constância é a do nome próprio (BORDIEU, 2002, p. 189). Outro aspecto considerado na análise foi a escolha dos personagens citados como singulares. A despeito da aparição de depoimentos de sujeitos que sobreviveram a conflitos bélicos, a maioria deles com ínfima notoriedade a exceção de Anne Frank, que se popularizou no pós-guerra como um registro icônico desse contexto, constatou-se a predileção de grandes personagens nas narrativas biográficas. No corpus analisado, verificou-se a presença de trechos de discursos de personalidades públicas Getúlio Vargas, Leonel Brizola, Nelson Mandela, Martin Luther King e relatos que alcançaram notoriedade a partir da sua publicação em obras literárias, como Nada de novo no front, de Erich Maria Remarque ou Feliz Ano Velho, de Marcelo Rubens Paiva. Percebe-se, dessa forma, um distanciamento da elaboração dos materiais didáticos em relação ao processo de renovação biográfica das narrativas produzidas no âmbito acadêmico, que vêm abrindo espaço para histórias de vida de membros de grupos historicamente não privilegiados, como escravizados, operários, indígenas, negros ou mulheres. Uma particularidade nesse conjunto de dados foi a aparição de um excerto do livro Persépolis, da iraniana Marjane Satrapi, na obra PTH, que inseriu a história

249 Página249 Entre o singular e o coletivo: presença de (auto)biografias em livros didáticos do PNLD, p em quadrinhos e uma perspectiva islâmica em um cenário em que predominam relatos escritos e de procedência de países ocidentais. Considerações finais No Brasil, a História consolidou-se como disciplina escolar obrigatória, inclusive nos imaginários socialmente compartilhados, num processo contínuo de disputas de narrativas que atingem políticas curriculares, como o artigo 26-A da LDBEN, assim como políticas de Estado como o PNLD. Tais disputas são o que Cristian Laville (1999) identificou como as guerras de história ou guerras de narrativas. O contexto recente da aprovação da Reforma do Ensino Médio (Lei número , de 16 de fevereiro de 2017) polemiza a presença da História nos currículos escolares desse nível de ensino e sugere um novo estatuto para a mesma: de disciplina escolar para estudos e práticas. Tal proposição faz o sujeito contemporâneo viver intensamente essas disputas ou guerras de narrativas, expressas, por exemplo, em manifestações públicas como a da Associação Nacional de História (ANPUH) e a da Associação Nacional dos Pesquisadores em Educação (ANPED). Mesmo no atual contexto, brevemente citado acima, para a maioria dos meninos e meninas em fase escolar, a História não passa de uma disciplina a mais, com distintas relações (ou não) com sua vida cotidiana. Dados de uma investigação realizada há mais tempo (Meinerz, 2001) somam repetidas afirmações que confirmam essa representação de História apenas enquanto disciplina escolar obrigatória, como nas seguintes palavras de um adolescente: a história é uma matéria como as outras, que serve para passar de ano. A pesquisa realizada no corpus selecionado, que inclui uma política em vigência no Brasil, o PNLD, longe de encerrar as possibilidades de análise das temáticas envolvidas, permite algumas considerações. Observou-se nos livros didáticos analisados, o predomínio de menções e da redação, pelos autores das obras, de breves relatos acerca da vida de personalidades notáveis dos períodos históricos abordados. A reprodução de trechos biográficos especialmente os de autoria do próprio sujeito cujas memórias foram registradas ocorre de maneira ocasional e, muitas vezes, com teor ilustrativo.

250 Página250 DOSSIÊ STRÖHER, C.E.; MEINERZ, C. Verifica-se, dessa forma, a artificialidade da inserção do gênero biográfico em produções didáticas, uma vez que os fragmentos das trajetórias individuais se destinam a diferentes finalidades. Uma dela é corroborar identidades e representações de memórias coletivas. Halbwachs afirma que é muito comum atribuirmos a nós mesmos, como se apenas em nós se originassem, as ideias, reflexões, sentimentos e emoções que nos foram inspiradas pelo nosso grupo. Estamos em tal sintonia com os que nos circundam, que vibramos em uníssono e já não sabemos onde está o ponto de partida das vibrações, se em nós ou nos outros. (HALBWACHS, 2006, p. 64). Dessa forma, na perspectiva do ensino de História, é importante contextualizar que excertos biográficos não constituem apenas descrições de experiências vivenciadas unicamente por determinado sujeito, mas que podem ser decalcadas nas versões oficiais ou no imaginário popular através de situações coletivas e que nunca são homogêneas ou uniformes. O estudo a partir de biografias permite visualizar aspectos particulares acerca da interação sujeito-contexto. Schmidt pontua que habitualmente se diz que uma boa biografia é aquela que insere o indivíduo em seu contexto [...] como se [este] fosse uma tela pronta e acabada, onde se colariam os personagens [...] Estes seriam os autômatos, pois o autor os inscreveria em um espaço já formatado (SCHMIDT, 2000, p ). Essa falsa naturalidade na relação do sujeito com o seu tempo desconsidera a própria subjetividade humana, sempre inconstante, movente, em devir, que não estabelece automaticamente relações de simbiose com a estrutura sociocultural de cada período histórico. Os livros didáticos, como espaços privilegiados da problematização dos conhecimentos históricos, perdem duplamente ao subestimar a potencialidade do gênero biográfico: tanto quando alocam o indivíduo dentro de um cenário préestabelecido, desperdiçando a oportunidade de tensionar o próprio papel do indivíduo como agente da História, quanto ao privilegiar personagens considerados notórios em detrimento de outros, reforçando a hierarquização das narrativas na falsa ideia de que a trajetória de alguns indivíduos excepcionais sobrepõe-se à dos que tiveram vidas infames. Estudos no campo do Ensino de História (BERGAMASCHI, 2010; PEREIRA, 2013) têm analisado criticamente as presenças e ausências, em livros didáticos, dessas

251 Página251 Entre o singular e o coletivo: presença de (auto)biografias em livros didáticos do PNLD, p vidas infames, incorporadas em trajetórias de grupos sociais e sujeitos individuais, afrobrasileiros, africanos e indígenas. São investigações que apontam o quanto tal produção didática permanece distante dessas histórias, memórias e saberes fundamentais na formação de todos nós, cidadãos brasileiros. Finalmente, cabe lembrar, que muitas dessas histórias e memórias estão guardadas na tradição oral e na história local, através dos saberes tradicionais criados e recriados pelos curandeiros, artistas, líderes religiosos, contadores de histórias, cantadores, tocadores, griôs, lideranças quilombolas e indígenas, sábios na relação com as plantas medicinais e com a cultura ancestral de suas comunidades, mestres espirituais, mestres da música e do artesanato, entre outros. São desafios para novas operações historiográficas, novas relações com saberes distintos, incluindo os escolares, capazes de colocar passado e presente em relação de distanciamento e indissociabilidade. Referências APOLINÁRIO, M.R. Projeto Araribá História 9º ano. 3ª edição. São Paulo: Moderna, AZEVEDO, G.; SERIACOPI, R. Projeto Teláris História 9º ano.. São Paulo: Ática, BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, BERGAMASCHI, M.A. Povos indígenas e ensino de História: a lei /2008 como caminho para a interculturalidade. In: BARROSO, V.L. et all (org.) Ensino de História Desafios Contemporâneos. Porto Alegre: ST: Exclamação: Anpuh/RS, BORDIEU, P. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M.M.; AMADO, J. Usos e abusos da história oral. 5. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2002, p BOULOS JÚNIOR, A. História, Sociedade & Cidadania 9º ano.. 2ª ed. São Paulo: FTD, CERTEAU, M.. A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, CHARTIER, R. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Cpdoc/FGV, vol. 7, n. 13, 1994, p DOMINGUES, J.E. História em Documento: imagem e texto 9º ano.. 2ª ed. São Paulo: FTD, FONSECA, T.N.L. História & Ensino de História. 2ª Ed. 1ª reimp. Belo Horizonte: Autêntica, Coleção História & Reflexões. FURET, F. O nascimento da história. In: A oficina da história. Lisboa: Gradiva: s/d. GUIA de livros didáticos: PNLD 2014: História. ensino fundamental: anos finais. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, LAVILLE, C. A guerra das narrativas: debates e ilusões em torno do ensino de História. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 19, no 38, p

252 Página252 DOSSIÊ STRÖHER, C.E.; MEINERZ, C. LEVI, G. Usos da biografia. In: FERREIRA, M.M.; AMADO, J. Usos e abusos da história oral. 5. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,2002, p MEINERZ, C. B. História Viva: a história que cada aluno constrói. Porto Alegre: Mediação, PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: HISTÓRIA./Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC /SEF, PEREIRA, A.A.(org.) Ensino de História e Culturas Afro-brasileiras e indígenas. Rio de Janeiro: Pallas, PILETTI, N. et al. História e Vida integrada 9º ano. 4ª ed. São Paulo: Ática, RICCI, M. Como se faz um vulto na história do Brasil. In: GUAZELLI, C.A.B. et al (org.) Questões de Teoria e Metodologia da História. Porto Alegre: Editora da Universidade, p SCHMIDT, B.B. A biografia histórica: o retorno do gênero e a noção de contexto. In: GUAZELLI, C.A.B. et al (org.) Questões de Teoria e Metodologia da História. Porto Alegre: Editora da Universidade, p SCHMIDT, B.B. Construindo biografias... Historiadores e jornalistas: Aproximações e Afastamentos. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Cpdoc/FGV. v. 10, n. 19, 1997, p STRÖHER, C.E. Aprendendo com imagens: a função das fontes visuais nos livros didáticos de História. Aedos, UFRGS. n. 11, vol. 4 Set. 2012, p STRÖHER, C.E. Intempestivo e infame: o ensino de História na perspectiva foucaultiana. Dissertação. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Disponível em: Acesso em 10 jul

253 Representações Visuais Dos Indígenas No Livro Didático De História: Estereótipos E Colonialidade Visual Representations of Indigenous People In The Textbook Of History: Stereotypes And Coloniality RESUMO Maria Aparecida Lima dos Santos* Ana Carla Bérgamo Gomes Domingues ** Realizou-se uma análise de reproduções iconográficas de indígenas presentes em uma coleção de livros didático do componente curricular História. Objetivou-se destacar a permanência de aspectos de um discurso marcado pela colonialidade. Conclui-se que as imagens inseridas nos livros didáticos de História, associadas a um texto escrito que veicula uma narrativa de viés eurocêntrico, contribuem para a disseminação de preconceitos e induzem à formação de estereótipos relacionados aos povos indígenas. Palavras-chave: Livro didático de História. Povos indígenas. Imagens e ensino de História. Representações sociais. ABSTRACT An analysis of iconographic reproductions of indigenous people present in a collection of didactic books of the curricular component History was carried out. The objective was to highlight the permanence of aspects of a discourse marked by coloniality. We conclude that the images inserted in History s textbooks, associated with a written text that conveys an Eurocentric bias of narrative, contribute to the spread of prejudice and induce the formation of stereotypes related to indigenous peoples. keywords: History textbook. Indian people. Images and teaching History. Social representations. *Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). maria.lima-santos@ufms.br **Especialista em Antropologia e História dos Povos Indígenas pela UFMS. Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). acdomingues18@hotmail.com

254 Página254 DOSSIÊ SANTOS, M.A.L; DOMINGUES, A.C.B.G. Introdução Muito embora a produção imagética seja abordada na contemporaneidade na perspectiva da visualidade, destacando-se que a imagem deve ser estudada no contexto da cultura visual de uma sociedade, de forma a abordar questões sobre as transformações que nela ocorrem (GEJÃO, 2009, 260), as ilustrações nos livros didáticos ainda obedecem a critérios que conceitualizam a imagem como um dado transparente, aspecto que reforça ainda mais seu poder de veicular estereótipos e representações que se pretende superar. É notável, também, a convivência de concepções de História presentes no texto em paralelo a outras veiculadas pelas imagens, aspecto que salta aos olhos quando se trata da temática indígena, remetendo às permanências e continuidades de uma cultura histórica que muitas vezes constituída no século XIX. Imagem e texto têm sido colocadas em relação de forma que o valor icônico que a imagem carrega chega a se sobrepor aos conteúdos veiculados pelo texto escrito, exacerbando usos do passado que atendem a lógicas do discurso da colonialidade a serviço do qual a produção editorial se coloca. A imagem tratada como um aspecto à parte, e como ilustração, consolida-se como um discurso que se justapõe ao escrito uma vez que condensa uma série de elementos que remetem a representações sociais em nossa sociedade e, nesse sentido, o poder e a claridade peculiares das representações isto é, das representações sociais deriva do sucesso com que elas controlam a realidade de hoje através da de ontem e da continuidade que isso pressupõe (MOSCOVICI, 2003, p. 38). Partindo do pressuposto de que as representações presentes nos livros didáticos de História desempenham um papel relevante na formação do conhecimento histórico e contemporâneo sobre os povos indígenas (FREIRE, 2002), apresentamos neste artigo alguns apontamentos sobre o uso de fotografias e de gravuras em um manual didático

255 Página255 Representações visuais dos indígenas no livro didático de história..., p de História direcionado às crianças e jovens da escolaridade de 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental. Na leitura da coleção didática escolhida, a fim de sistematizar alguns aspectos dessas representações, observando como o indígena aparece nas imagens selecionadas, norteamos nossas considerações a partir das seguintes indagações: há um padrão para a utilização de imagens nos livros didáticos? Como os indígenas são apresentados através das imagens? As imagens de indígenas presentes nos livros didáticos contribuem para a superação de estereótipos ligados a uma perspectiva colonialista ou, contrariamente, reforçam visões preconceituosas? Levando em consideração os aspectos mencionados, apresentamos nossa reflexão neste artigo estruturado em quatro partes. Na primeira, discorremos sobre a metodologia empregada na leitura do manual escolhido, atentando para delinear os aspectos que procuramos analisar nas imagens, e justificamos, na segunda parte, o porquê da escolha da coleção analisada. A terceira parte insere o exercício de análise de algumas das imagens de indígenas presentes na coleção de livros didáticos selecionada. Finalizando o artigo, apresentamos uma sistematização das principais conclusões derivadas do exercício de leitura de imagens empreendido. As imagens como objetos visuais: aspectos teórico-metodológicos Para a realização da análise proposta, foi escolhida a coleção de livros didáticos de História, voltada aos Anos Finais do Ensino Fundamental e intitulada Estudar História Das origens do homem à era digital, segunda edição, do ano de 2015, editada e publicada pela editora Moderna, cuja autoria é atribuída à Patrícia Ramos Braick. O motivo da escolha da coleção analisada foi, por um lado, a sua aprovação pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2017, e, por outro, por se tratar de uma coleção eleita para ser utilizada em escolas públicas do município de Campo Grande MS Por se tratar de uma coleção produzida recentemente para ser utilizada no início do ano letivo de 2017, os exemplares utilizados foram fornecidos pela Secretaria Municipal de Educação (SEMED) de Campo Grande MS.

256 Página256 DOSSIÊ SANTOS, M.A.L; DOMINGUES, A.C.B.G. O PNLD tem por objetivo distribuir livros didáticos às escolas públicas de ensino fundamental e médio. Esses livros somente são entregues aos alunos após terem passado por uma avaliação. Como parte do processo avaliativo, é elaborado o Guia do Livro Didático, composto das resenhas de cada obra aprovada, que é disponibilizado às escolas pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Cada escola escolhe dentre os livros constantes no Guia, aqueles que deseja utilizar, levando em consideração seu currículo, constante do Projeto Político Pedagógico. O Programa é executado em ciclos trienais alternados. Assim, a cada ano, o FNDE adquire e distribui livros para todos os alunos de determinada etapa de ensino, repõe e complementa os livros reutilizáveis para outras etapas. Nas leituras iniciais dos volumes selecionados, percebemos algumas características nas imagens dos povos indígenas inseridas como ilustração dos textos e temáticas abordadas. É importante citar que a avaliação das obras didáticas inscritas no PNLD considera a imagem um elemento relevante nas obras. Por essa razão elas são analisadas e avaliadas com muito rigor pelo Programa. Com relação à coleção: Estudar História Das origens do homem à era digital, o PNLD coloca que: As ilustrações são um ponto forte da coleção, pois, além da qualidade gráfica, são bem referenciadas e integradas, retratando, de forma adequada, a diversidade étnica do povo brasileiro e as etnias da América Pré-Colombiana, da América do Norte, da África e da Ásia (BRASIL, 2016, p. 73). Ressalte-se a necessidade de considerar que as imagens e os textos contidos nesses materiais didáticos obedecem a alguns critérios editoriais, passando por uma seleção que abrange a escolha dos ilustradores, revisores, editores. Faz-se, dessa maneira, um trabalho de produção mais amplo e muitas vezes impessoal. Iniciamos a leitura e desmontagem dos elementos de algumas das imagens presentes na coleção, compreendendo-as como objetos visuais (MOLINA, 2007), ressaltando-se a necessidade de descrever, desmontar, buscar dados do contexto, dentre outros elementos, que permitissem acessar alguns significados possíveis para as imagens. Pautamo-nos, portanto, pela ideia de que existe uma relação entre imagem e imaginação, em que vários elementos são considerados, como as relações do lugar social e o recorte político. Assim:

257 Página257 Representações visuais dos indígenas no livro didático de história..., p A linguagem visual não é universal. Seus significados obedecem a um sistema de representações que se orientam por convenções que implica o exercício estruturado de (de) codificação. Entre a imagem e o que se representa, existe uma série de mediações, que não restituem o real, mas, reconstrói, voluntária ou involuntariamente a apreensão do real (MOLINA, 2007, p. 23). Antes de iniciar a análise referida anteriormente, foi necessário realizar a leitura e sistematização de dados de todos os livros didáticos da coleção. A organização dos dados em um quadro foi elaborada objetivando constituir uma visão ampla de todos os assuntos relacionados aos povos indígenas. Tal sistematização possibilitou identificar e selecionar as imagens significativas para nossa análise, como também observar, de forma panorâmica, a sequencia dos tópicos. Chegamos, assim, ao seguinte resultado: 6º ano (12 capítulos) 1. O que é história 2. A história e o tempo 3. O ser humano em busca de suas origens 7º ano (12 capítulos) 1. A alta idade média e a formação do feudalismo 2. Nascimento e expansão do Islã 3. A África antes dos europeus 4. Da aldeia à cidade 4. A baixa idade média 5. Os primeiros habitantes da América 5. O renascimento e as reformas religiosas 6. Mesopotâmia e China 6. As grandes navegações 7. Egito e Núbia 8. Hebreus e fenícios 9. A civilização grega 10. Cultura e cotidiano na Grécia antiga 7. A América Pré- Colombiana 8. O império português na África e na Ásia 9. A colonização espanhola na América 10. Conquista e colonização da América portuguesa 8º ano (12 capítulos) 1. A expansão da América portuguesa 2. A mineração no Brasil 3. A revolução industrial 4. O iluminismo e a independência dos Estados Unidos 9º ano (14 capítulos) 1. O imperialismo na Ásia e na África 2. O Brasil da primeira República 3. A primeira guerra mundial 4. A Revolução Russa 5. A revolução francesa 5. Entre duas guerras 6. O império napoleônico e o Congresso de Viena 7. A independência das colônias espanholas 8. O processo de independência no Brasil 9. As revoluções e as novas teorias políticas do século XIX 10. Brasil: o primeiro reinado e as regências 11. A civilização romana 11. O nordeste açucareiro 11. O segundo reinado 12. Expansão e crise do império romano 12. Ingleses e franceses na América 12. Os Estados Unidos no século XIX 6. A segunda guerra mundial 7. A Era Vargas 8. O mundo dividido pela guerra fria 9. As independências na África e a da Índia 10. O Brasil entre duas ditaduras 11. Os governos militares no Brasil 12. Crise e desagregação do bloco soviético 13. A volta da democracia ao Brasil 14. O mundo contemporâneo Quadro 1: Estrutura das unidades dos exemplares da coleção: Estudar história: Das origens do homem à era digital. Fonte: Elaboração própria.

258 Página258 DOSSIÊ SANTOS, M.A.L; DOMINGUES, A.C.B.G. Observamos, desse modo, um conjunto de quarenta e sete imagens de indígenas presentes na coleção, sendo oito na edição do 6º ano, vinte e nove na do 7º ano, seis na do 8º ano e quatro na edição do 9º ano. Procuramos analisar cada imagem cuidadosamente, considerando sua relação com o texto, a diagramação da página e a relação do índio 39 com outros povos. Nesse sentido, a partir da percepção de algumas recorrências e dado o espaço que temos neste texto, selecionamos, dentre o total identificado, um conjunto de seis imagens, procedendo à descrição dos elementos que as compõem, seguida do agrupamento das imagens por coincidência dos elementos descritos e características semelhantes. Colonialidade: imagens e estereótipos A primeira imagem selecionada para a análise encontra-se no volume referente ao 6º ano, no capítulo 2, intitulado A história e o tempo, no qual são abordados conteúdos sobre o tempo. Observando a imagem 40 1, é possível supor que os editores tenham procurado estabelecer uma relação de sentido entre as brincadeiras realizadas por crianças indígenas (representadas, na foto, quase desnudas, com cortes de cabelo praticamente iguais, fazendo referência a um ambiente bucólico, rural árvores e chão de terra batida) e a passagem do tempo, que é o tema tratado no capítulo. Os braços dados e os pés posicionados de maneira a sugerir um movimento concatenado remetem a uma associação entre o deslocamento no espaço e a passagem do tempo físico. Esse elemento, somado à ideia de um tempo psicológico, que passa de maneiras diferentes para cada sujeito (o tempo da criança, o tempo do adulto) compõem a cena associando 39 É importante ressaltar que, neste trabalho, optamos por utilizar o termo índio (os), mesmo considerando que: [...] o termo índio segundo historiadores e pesquisadores da temática, procede de um equívoco histórico, equívoco devido ao entendimento errôneo dos colonizadores. [...] esses acreditaram ter chegado à Índia. Embora a denominação indígena signifique o que é original de determinado país, região ou lugar. Nativo. Aborígene (CALDERONI, 2016, p.20). Utilizaremos o termo em nosso texto dado que a categoria genérica de índio hoje também tem sido apropriada pelos próprios indígenas brasileiros enquanto instrumento de lutas, e reivindicações de seus territórios (CALDERONI, 2016, p. 20). Diante desse fato, considerou-se a denominação índio neste trabalho sem desconsiderar a pluralidade de culturas indígenas existentes. 40 Escolhemos nomear como IMAGEM os exemplares escolhidos por se tratarem de documentos iconográficos produzidos a partir de duas técnicas diferentes: fotografia e pinturas, muito embora, no livro didático, esses documentos apareçam como captações fotográficas.

259 Página259 Representações visuais dos indígenas no livro didático de história..., p Imagem 1 Legenda da imagem: Crianças indígenas do povo Sateré-Mawé. Aldeia Inhâa-bé, no Igarapé do Tiú, em Manaus (AM), fotografia de Foto de Fábio Colombini. Consideramos a legenda um elemento relevante na análise das imagens, por esse motivo, os textos que aparecem junto às imagens foram transcritos dos livros didáticos. Desse modo, o leitor deste trabalho pode identificar do que se trata a representação imagética de acordo com o autor; pode visualizar sua autoria, sua origem e a data em que foi produzida. Fonte: BRAICK, P. Livro didático: Estudar História: Das origens do homem à era digital, 6º Ano, 2015, p. 20. um tempo natural àquele controlado, do relógio e do calendário. A força da relação é exacerbada pelo espaço que a imagem ocupa na página, equivalente àquele do texto. É pertinente destacar que a escolha das imagens que ilustram o livro, assim como o lugar que ocupam na relação com o texto, não é feita apenas pelo chamado autor. Segundo Fernandes (2009), um fator importante a ser considerado é o problema da autoria do livro didático, arrolando os profissionais que, muito além do historiador, acabam compondo o produto final. A esse respeito, Bittencourt esclarece que: A questão da ilustração dos livros está relacionada, assim, aos aspectos mercadológicos e técnicos que demonstram os limites do autor do texto quando observamos os livros também como objeto fabricado. A diagramação e a paginação do livro são estabelecidas por um profissional especializado e, dessa forma, os caracteres, a dimensão, as cores das ilustrações enfim são decisões de técnicos, de programadores visuais, sendo que o autor, pouco ou nada interfere, na maior parte das vezes, na composição final do livro. (1997, p. 77) Essa informação permite afirmar que textos e imagens carregam indícios das concepções sobre os povos indígenas não de um autor, mas de todos aqueles que participam da elaboração do livro didático. Nesse sentido, identificamos um mecanismo através do qual certas representações sociais sobre os indígenas circulam e se renovam uma vez que os manuais didáticos, dentre outros aspectos, são importantes veículos portadores de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura (BITTENCORT, 1997, p. 72).

260 Página260 DOSSIÊ SANTOS, M.A.L; DOMINGUES, A.C.B.G. Outra imagem que nos trouxe elementos importantes para análise se encontra no capítulo 5, Os primeiros habitantes da América, também presente na edição do 6º ano. (Imagem 2). Imagem 2 - Legenda que aparece no livro didático [no canto superior direito]: 1. Indígena do povo Paresi tira fotos nos XII Jogos dos povos indígenas. Tangará da Serra, Mato Grosso, Imagem: Mario Friedlander/Pulsar Imagens. 2. Indígenas do grupo étnico Quéchua com roupas tradicionais. Peru, Imagem: Wigbert RTH/IMAGEBROKER/ GLOW IMAGES. 3. Mulher do povo Sioux carregando criança. Estados Unidos, Imagem: H. ARMSTRONG ROBERTS/GETTY IMAGES. 4. Caçador Inuit, popularmente conhecido como esquimó, caminha sobre o gelo no Alasca, em Imagem: Kevin G Smith/Alamy/Latinstock. 5. Crianças Kayapó brincam em uma praia no Pará, em Imagem: Rosa Guaditano R. Fonte: BRAICK, 6º Ano, 2015, p. 62 e 63. Livro didático Estudar História: Das origens do homem à era digital, 6º Ano. Observa-se que a Imagem 2 ocupa as duas páginas, assim como o texto, que trata dos primeiros habitantes da América e indica que as sociedades indígenas tiveram presença marcante na formação cultural e política dos países americanos. Destaca ainda que a língua tupi serviu para dar nome a bairros e praças em grandes centros urbanos. Cita que as festas indígenas são celebradas até hoje, que as demarcações de terras, embora insuficientes, foram feitas para garantir a sobrevivência de diversas comunidades e que cada povo indígena contribuiu para tornar ainda mais variado o mosaico cultural que caracteriza o continente americano (BRAICK, 2015, p. 62). Ainda nesse mesmo texto, afirma-se que os pesquisadores, ao escavar o passado dos grupos humanos que aparecem nas fotos, nos revelam alguns aspectos do modo de

261 Página261 Representações visuais dos indígenas no livro didático de história..., p vida dos primeiros habitantes da América, ou seja, dos antepassados dos povos indígenas (BRAICK, 2015, p. 63). A leitura atenta das fotografias que acompanham o texto nos fornece pistas de como a equipe que produziu o livro considerou importante representar os primeiros habitantes da América. Na primeira foto do conjunto que aparece na Imagem 2, da esquerda para a direita, o indígena aparece com adornos, penas coloridas, com arco em um dos ombros e manuseando uma câmera fotográfica. Ao fundo, vemos mulheres e crianças indígenas com roupas que remetem a uma cultura andina. A terceira fotografia, em preto e branco, é de uma mulher indígena com uma criança nas costas que se pode supor ser um costume de sua cultura. Mais ao fundo, separado das demais imagens, observa-se um homem, do povo esquimó, com roupas que, pelo conjunto das imagens dispostas na página, pode-se supor que sejam características desses povos. Por último, no canto direito, duas crianças indígenas aparecem com adornos coloridos, supostamente brincando ou conversando. Desse modo, ao observar a Imagem 2, notamos que, os indígenas aparecem caracterizados com adornos, alguns com pinturas e instrumentos característicos de determinadas culturas relacionados a suas etnias. Não observamos nenhum indígena vestido de maneira não folclorizada, com exceção do esquimó que pode ser visto ao fundo, distante das demais representações. Ele aparece em menor escala e quase isolado pela claridade que o cerca. Cabe ressaltar que a disposição das fotografias na página (onde cada imagem foi situada, as cores que possuem, a relação que se estabelece entre as mesmas e o texto) foi composta de acordo com critérios que consideram a necessidade de constituir uma narrativa coerente, estética e conceitualmente, uma vez que o livro didático é, antes de tudo, uma mercadoria, um produto do mundo da edição que obedece à evolução das técnicas de fabricação e comercialização pertencentes à lógica do mercado (BITTENCOURT, 1997, p. 72). A permanência de elementos folclorizados (roupas e ambiente rural) sustentam a hipótese de que as Imagens 1 e 2 apresentam indícios de estereótipos de forma recorrente no interior da coleção analisada. Assim, se observarmos a roupagem dos indígenas apresentados nas diferentes fotografias, nota-se uma tendência à reprodução de uma representação de matriz colonial, uma vez que se perpetua, em uma e outra

262 Página262 DOSSIÊ SANTOS, M.A.L; DOMINGUES, A.C.B.G. imagem, uma forma de se vestir e de morar que não se transforma, um passado que não passa, reafirmando uma concepção de povos sem história. A esse respeito Calderoni faz uma importante consideração: Para que um olhar outro sobre os povos indígenas seja construído é preciso problematizar como são e/ou foram construídas historicamente as representações e/ou apropriações estereotipadas que geram tantos preconceitos sobre as populações indígenas no Brasil. Esse índio conectado ao passado, ou quando muito com alguma presença pouco significativa na formação da colônia e na constituição do povo brasileiro é uma estratégia colonizadora que se mantem viva, como afirmamos, pela colonialidade (CALDERONI, 2016, p. 14). É o que se pode identificar também nas fotos da Imagem 3, encontradas na coleção analisada, no livro referente ao 7º ano: Imagem 3 - Fonte: (BRAICK, 2015, p.185. Livro didático: Estudar História: Das origens do homem à era digital, 7º Ano). O texto apresentado junto à Imagem 3 leva o título: A expedição de Pedro Álvares Cabral. Na página seguinte, há outro texto: O indígena segundo Pero Vaz de Caminha. Segundo a legenda da imagem: [...] na região de Porto Seguro, onde chegaram os portugueses, viviam os povos Tupiniquim. Um pouco mais para o interior das matas, viviam povos não Tupi, como os Botocudo e os Pataxó. Povos de

263 Página263 Representações visuais dos indígenas no livro didático de história..., p tradição guerreira, Tupi, Pataxó e Botocudo viviam em guerra entre si (BRAICK, 2015, p.185). Na primeira imagem à esquerda, os indígenas são representados com características de corte de cabelo e adornos supostamente referentes à cultura desses povos. É possível perceber, pelos traços faciais, somente uma imagem de mulher indígena com corte de cabelo diferente. Na imagem à direita, o indígena adulto aparece segurando uma criança também indígena e ambos estão com adornos de penas e colares. Na ilustração, a criança está segurando um instrumento que aparenta ser um chocalho. Não é possível visualizar com precisão o ambiente ao fundo, porém parece se tratar de um ambiente natural. Uma relação direta entre os elementos presentes na fotografia pode ser estabelecida com aqueles que aparecem nas gravuras. O indígena que aparece na foto tem seus traços confrontados com as gravuras de Rugendas, produzidas em 1835, impondo-se o estabelecimento de uma ligação direta entre os elementos referentes ali apresentados. Observamos que, na Imagem 3, os indígenas aparecem todos folclorizados, com adornos e pinturas. É importante considerar que essas características são típicas desses povos em momentos de celebração e rituais, como as grandes festas animadas por músicas, danças e bebidas, que utilizam adornos, pinturas corporais e roupagens específicas e que marcam momentos importantes na vida das pessoas ou da sociedade (TASSINARI, 1995, p.451). Porém, é um equívoco dizer que todos os índios vivem nas aldeias, enfeitados, pintados e que todos caçam para sobrevier. Representá-los sempre dessas maneiras é deixá-los estáticos, presos num tempo passado, deixando-se de fornecer elementos para se pensar a existência desses indivíduos como inseridos em uma sociedade que se transforma ao longo do tempo. Tal maneira de ver, divulgada amplamente nos materiais didáticos, alimenta estranhamentos que levam outras pessoas, de diferentes grupos sociais, a acharem que o índio não pode utilizar computador, relógio, celular, alimentando, assim, crenças de que, fazendo isso, ele perde suas características e deixa de ser índio. Ou seja, muito embora hoje o indígena vá à universidade, more na cidade em casas de alvenaria e participe de atividades diversas na sociedade, transformando-se e

264 Página264 DOSSIÊ SANTOS, M.A.L; DOMINGUES, A.C.B.G. produzindo diferentes modos de ser, o imaginário divulgado no livro didático de História ainda reforça a ideia de um povo que vive isolado, ressaltando-se que os conceitos articulados nessas produções resultam de um conjunto de práticas discursivas estabelecidas socialmente e, portanto, a partir de relações de poder que, por sua vez, possibilitam a quem tem mais força (força essa representada através das mais variadas formas e sentidos) atribuir aos outros seus significados (OLIVEIRA, 2003, p. 25). Torna-se possível afirmar, dessa forma, que o conteúdo do livro didático se constitui em meio a relações de poder. Choppin (2004, p. 561) destaca que ao se fazer uma análise, tanto de conteúdos de livros escolares, como também ao contar sua história, é preciso considerar as regras que o poder político, ou religioso, impõe aos diversos agentes do sistema educativo, quer seja no domínio político, econômico, linguístico, editorial, pedagógico ou financeiro. Para o autor, se esses aspectos não forem considerados, todo o trabalho educativo não faz qualquer sentido. É nesse segmento que os conteúdos abordados no meio escolar precisam ser considerados como parte de um currículo definido como as experiências escolares que se desdobram em torno do conhecimento, em meio a relações sociais, e que contribuem para a construção das identidades de nossos/as estudantes (MOREIRA & CANDAU, 2007, p. 18). Assim, os conteúdos que historicamente têm sido vistos como os mais importantes, e que em tese costumam ser avaliados segundo padrões vistos como mais rigorosos, na realidade foram selecionados com base em critérios derivados de relações de poder. Percebemos, dessa forma, que índios e negros são quase sempre enfocados no passado, sendo que o índio aparece em função do colonizador (GRUPIONI, 1995, p.487) e a história não é apresentada como um processo histórico, mas como algo estanque. Os livros didáticos privilegiam feitos e a historiografia das potências europeias, silenciando ou ignorando os feitos e vivência dos povos que aqui viviam, marca de um discurso de colonialidade, o qual se refere a um padrão de poder que emergiu como resultado do colonialismo moderno, mas em vez de estar limitado a uma relação formal de poder entre dois povos ou nações, se relaciona à forma como o trabalho, o conhecimento, a autoridade e as relações intersubjetivas se articulam entre si através do mercado capitalista

265 Página265 Representações visuais dos indígenas no livro didático de história..., p mundial e da ideia de raça. (TORRES 41, 2007, p. 31, apud OLIVEIRA & CANDAU, 2010, p. 18). É nesse sentido que a narrativa veiculada nos manuais didáticos aponta para a existência de regimes de produção do passado, ressaltando a dimensão política subjacente a essa forma de uso social do passado (GUIMARÃES, 2009) no interior da qual as imagens exercem um papel central de veiculadoras de traços fundamentais de uma certa representação que se intenta perpetuar. Tal aspecto pode ser observado também na Imagem 4, inserida na unidade do 8º ano que segue. Imagem 4 - Legenda que aparece no livro didático abaixo da imagem: Dança Tapuia, pintura de Albert Eckhout, Museu nacional da Dinamarca. Tapuia era o nome dado pelos índios Tupi aos povos que falavam línguas que não pertenciam ao tronco Tupi. Os colonizadores se apropriaram da divisão tupi-tapuia para acirrar ainda mais as guerras entre povos rivais. Fonte: (BRAICK, 2015, p.21. Livro Didático: Estudar história Das origens do homem à era digital, 8º Ano). O texto que aparece na mesma página da Imagem 4 trata da Confederação Cariri, informando que este, também chamado de Guerra dos Bárbaros, foi um movimento de resistência de indígenas brasileiros, da nação Cariri, à dominação portuguesa. É possível que a representação imagética da Dança Tapuia tenha sido apresentada na intenção de possibilitar que o aluno do 8º ano a associe à temática do texto, como um referencial da cultura desse povo, cuja composição, veiculada em uma pintura do século XVI, apresenta os indígenas em um ambiente de floresta, todos desnudos e alguns com seus corpos adornados. Fernandes (2009), ao analisar um livro didático do atual 6º ano, observou que as imagens referentes aos índios, em sua grande maioria, os inserem em um ambiente de 41 MALDONADO-TORRES, Nelson. Sobre la colonialidad del ser: contribuciones al desarrollo de un concepto. In: CASTRO-GÓMEZ, S.; GROSFOGUEL, R. (Orgs.) El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global. Bogotá: Universidad Javeriana-Instituto Pensar, Universidad Central- IESCO, Siglo del Hombre Editores, p

266 Página266 DOSSIÊ SANTOS, M.A.L; DOMINGUES, A.C.B.G. floresta, destacando, dessa forma, as especificidades genéricas como pinturas corporais, adornos, armas, danças, numa relação tradicional e homogeneizadora, a despeito das legendas indicarem com precisão os nomes de tribos, locais e momentos em que as fotos foram tiradas (FERNANDES, 2009, p.292). elementos A presença de folclorizados para identificar indígenas é um elemento recorrente nas imagens veiculadas pelos manuais didáticos, mesmo quando a abordagem remete à temáticas da contemporaneidade, como pode-se perceber no exemplar a seguir (Imagem 5), inserido no volume do 7º ano e que acompanhada o texto intitulado Os índios do Brasil de hoje, em que são abordados assuntos relativos às terras indígenas. Imagem 5 - Legenda que aparece no livro didático: À esquerda, o cacique Raoni observa o então presidente da Câmara dos Deputados, Henrique Alves, assinando a criação de uma comissão especial sobre a Proposta de Emenda Constitucional 215/00, que transfere ao Poder Legislativo a competência de aprovar a demarcação de Terras Indígenas. Fotografia de julho de Alan Marques/Folhapress. (Fonte: BRAICK, 2015, p.144. Livro didático: Estudar História: Das origens do homem á era digital, 7º Ano). No texto que acompanha a Imagem 5, lemos que os indígenas vêm sofrendo, desde 1.500, o impacto do modo de vida trazido pelo europeu (grifo nosso). Cita também a questão das doenças, da má alimentação e do alcoolismo. Em que pesem as afirmações generalizantes e excludentes, o que nos chamou a atenção foi o último parágrafo transcrito a seguir: Depois de perderem grande parte de suas terras e de sua cultura tradicional, os índios continuam lutando para manter suas terras, para preservar sua língua e seus costumes e para garantir meios de

267 Página267 Representações visuais dos indígenas no livro didático de história..., p sobrevivência, adequando-se até mesmo a novas tecnologias, como a internet (grifo nosso, BRAICK, 2015, p. 144). Observamos que as narrativas configuradas nos trechos assinalados partem do olhar de estranheza, de uma herança colonial que assume uma opinião sobre os povos indígenas. Desse modo, a leitura do excerto leva à compreensão de que, nesta última citação, as novas tecnologias, no caso a internet, é algo muito distante da realidade dos mesmos. O texto adquire um tom de verdade proclamada, mobilizando termos que posicionam o universo indígena em uma relação de subalternização, ocultando seu tom de narrativa e, como tal, de visão histórica sobre o passado, uma vez que Narrativas são sempre históricas, sempre posicionais, sempre um acontecimento e assim devem ser analisadas, sem sentidos fixos, sem verdades definitivas, sem pontos finais, como práticas nas quais disputam significados diversos. E não há narrativas situadas fora de regimes de verdade, ou que se produzam sem articulação de conjuntos de saberes tidos como válidos em certa cultura, em certo tempo histórico (BONIN, 2007, p.189). O caráter de narrativa produzida possibilita exacerbar também um outro componente importante a ser levado em conta quando analisamos uma imagem: seu caráter de objeto cultural, possuidor de uma autoria e data. Ao observamos as legendas que acompanham cada uma das fotos, vemos inseridos dados como o nome do fotógrafo e a data de sua produção, indicando que a cena congelada na fotografia é um fragmento do real, fruto de um recorte produzido por aquele que a captou. Muito embora sua captação tenha sido limitada pelas condições técnicas e convenções culturais de produção e consumo (GEJÃO, 2009), nota-se um apagamento dessa condição de existência da imagem fotográfica pela força do texto que lhe confere sentido (aquele da legenda), fixando um significado para a imagem que atende a propósitos didáticos. É justamente nesta fixação que vislumbramos a veiculação de discursos que propagam representações e maneiras de ver e compreender os povos indígenas na contemporaneidade. Assim, ao observarmos a fotografia (IMAGEM 5), é possível identificar uma composição que foi elaborada em torno da ideia de como se vê o contato do indígena com o não índio. Vemos que os indígenas aparecem separados à esquerda, e os não indígenas à direita. Aquilo que aparentemente é apresentado como uma naturalidade, na realidade reforça a ideia de separação entre índios e não índios,

268 Página268 DOSSIÊ SANTOS, M.A.L; DOMINGUES, A.C.B.G. talvez em uma alusão à relação entre civilizados (com terno e gravata) e não civilizados (indígenas com seus adornos). Muito embora os indígenas apareçam vestidos com roupas diferentes daquelas que vimos nas imagens anteriores, assemelhando-se, por isso, àqueles que estão postados ao lado direito da imagem, a presença de referentes relacionados ao mundo natural estão fortemente presentes tanto nos adornos que utilizam (penas e miçangas), quanto no realce das cores verde, amarelo e azul que, em última instância, associam esses personagens às cores da bandeira e, portanto, a uma pretensa nação da qual o indígena faz parte. Nesse movimento, os indígenas são, novamente, conectados a um passado que não passa, exacerbando-se, mais uma vez, a ideia de assimilação a um cenário previamente definido como aquele consagrado pelo quadro de Pedro Américo, em Assim, também consideramos importante destacar outra imagem presente na edição referente ao 9º ano, acompanhada do texto intitulado o mundo contemporâneo, completando os quatro únicos exemplares, em toda a coleção, em que os indígenas aparecem postos em relação a aspectos culturais que não são considerados originais de sua cultura. O texto trata sobre várias questões, dentre elas a globalização. São abordados temas sobre as novas tecnologias, a biotecnologia, a robótica e a informática. No Box Saiba mais é apresentado um texto sobre A internet. De acordo com esse parágrafo: A internet tornou-se um dos principais símbolos do mundo globalizado, uma ferramenta que a cada dia nos apresenta novas possibilidades de uso (BRAICK, 2015, p. 256). Neste exemplar, gostaríamos de ressaltar um outro aspecto muito comum nos manuais didáticos na contemporaneidade: as orientações para o professor. Nas últimas décadas, elas extrapolaram o espaço reservado ao chamado Manual do Professor para invadir o interior do livro, fornecendo informações ao professor sobre como deve ser realizada a atividade/leitura/problematização. Na Imagem 6, lê-se, em cor de rosa, 42 Referimo-nos aqui ao quadro intitulado A Primeira missa no Brasil, pintura de Victor Meirelles, produzida em 1861e que se encontra no Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. Neste, opera-se um conceito de nação que é eminentemente restrito aos brancos, sem ter, portanto, aquela abrangência a que o conceito se propunha no espaço europeu. Construída no campo limitado da academia de letrados, a nação brasileira traz consigo forte marca excludente, carregada de imagens depreciativas do outro, cujo poder de reprodução e ação extrapola o momento histórico preciso de sua construção (MOLINA, 2007, p. 20). As referências ao verde/amarelo presentes na fotografia analisada, com sua forte relação aos elementos de nacionalidade brasileira, possibilitam acreditar em uma permanência nas maneiras de ver o indígena na contemporaneidade.

269 Página269 Representações visuais dos indígenas no livro didático de história..., p A imagem mostra um indígena utilizando um computador e indica que até mesmo comunidades supostamente isoladas, como as comunidades indígenas, utilizam tecnologias criadas pela Terceira Revolução Industrial. [grifos nossos]. Imagem 6 - : Legenda que aparece no livro didático ao lado da imagem: Indígena Kalapalo utiliza notebook, AlçdeiaAiha, Parque Indígena do Xingu, no Mato Groso do Sul, em 2011/ Imagem: Fábio Colombini) Fonte: (BRAICK, 2015, p Livro didático: Estudar História: Das origens do homem à era digital. 9º Ano). A legenda indica que a imagem mostra. Portanto, ela é transparente e, por isso, conecta o indivíduo a uma certa realidade. Desconsidera-se seu caráter de construção, de enquadramento, de composição por luz e sombra. Além da concepção de imagem como sinônimo de real e de verdade, tal legenda ainda reforça preconceitos e estereótipos ao afirmar que até mesmo comunidades supostamente isoladas, como as comunidades indígenas..., operando por generalizações que associam todas as comunidades indígenas à ideia de isolamento. O destaque dado, posto em relação com a fotografia que, mais uma vez, caracteriza um indígena com vestimenta e moradia folclorizadas, faz saltar aos olhos os mecanismos de reprodução de um discurso colonial através de mecanismos de colonialidade entremeados em um regime de visualidade.

270 Página270 DOSSIÊ SANTOS, M.A.L; DOMINGUES, A.C.B.G. Considerações finais Em nosso texto, procuramos destacar que, na maioria das representações visuais inseridas na coleção didática analisada, os indígenas têm sua imagem associada na maior parte do tempo, a momentos históricos de um passado longínquo. Destaca-se que essas imagens compõem um conjunto que reforça a incorporação de uma visão folclorizada, que remete a uma perspectiva colonialista e de colonialidade, conforme apontamos no conteúdo deste texto. Nesse sentido, o colonizador destrói o imaginário do outro, invizibilizando-o e subalternizando-o, enquanto reafirma o próprio imaginário, pois: [...] a colonialidade do poder reprime os modos de produção de conhecimento, os saberes, o mundo simbólico, as imagens do colonizado e impõe novos. Opera-se, então, a naturalização do imaginário do invasor europeu, a subalternização epistêmica do outro não-europeu e a própria negação e o esquecimento de processos históricos não-europeus (OLIVEIRA e CANDAU, 2010, p.19). Na contemporaneidade, o indígena que se transformou, se adaptou à cultura do não índio e é visto nas universidades, trabalhando no comércio, em escritórios, ou em qualquer outro setor, não é denotado na coleção de livros didáticos. Muito embora em algumas passagens da coleção, o índio da atualidade figure em situações de luta por seus direitos, em uma rápida análise das imagens, percebemos que não se efetivou uma transformação de fato nas representações dos povos indígenas veiculadas por esse material didático. Ao analisar a coleção escolhida, percebemos que ela apresenta os indígenas desconsiderando as rupturas e permanências que compõem o cotidiano desses povos. Diante disso, as imagens de indígenas presentes na coleção, não contribuem para a superação de estereótipos ligados a uma perspectiva colonialista. Pelo contrário, operam-se generalizações que remetem a um discurso marcado pela colonialidade. Por ser um produto do trabalho de vários profissionais que fazem parte de sua elaboração, o que esse material apresenta não é meramente uma visão fragmentada dos

271 Página271 Representações visuais dos indígenas no livro didático de história..., p povos indígenas, mas sim uma concepção inserida em relações de poder presentes em nossa sociedade. Como mercadoria, que circula, é comprada e vendida, os critérios de apresentação das informações e das imagens são provenientes, principalmente, do objetivo de compor uma estética agradável aos olhos de quem vê, uma vez que elas ainda têm que se adequar ao tamanho da página e a estrutura do texto, conforme determinação da editora e dos ditames do mercado editorial. Entende-se, desse modo, que a transmissão de preconceitos e formação de estereótipos relacionados aos povos indígenas persistem no interior do livro didático de História, compondo a imagem uma uniformidade com a narrativa veiculada pelo texto escrito. As representações presentes na coleção analisada produzem valores e estabelecem diferenças, e encontram-se inseridas em relações de poder nas quais os indígenas figuram como dominados e subordinados à cultura dos brancos. Referências BRAICK, P.R. Estudar história: das origens do homem à era digital- 2 ed. Coleção (6º ao 9º Ano) São Paulo: Editora Moderna, BRASIL. PNLD. Apresentação. Disponível em:< Acesso em: abril de BRASIL.. Ministério da Educação. PNLD 2017: história - Ensino fundamental anos finais / Ministério da Educação - Secretária de Educação Básica - SEB Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Brasília, DF: Ministério da Educação, Secretária de Educação Básica, BITTENCOURT, C.M.F. Livros didáticos entre textos e imagens. In: BITTENCOURT, C. (org) O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, BONIN, I.T. E por falar em povos indígenas... Quais narrativas contam em práticas pedagógicas? Tese (doutorado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de Educação. Programa de Pós-Graduação em Educação Alegre, CALDERONI, V.A. M. O. Desconstruindo preconceitos sobre os povos indígenas. Campo Grande: Editora da UFMS, CHOPPIN, A. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, set./dez. 2004, p FERNANDES, E.B.B. Imagens de índios e livros didáticos: uma reflexão sobre representações, sujeitos e cidadania. In: ROCHA, H.A.B.; REZNIK, L.; MAGALHÃES, M.S.(Org.). A história na escola: autores, livros e leituras. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009, p FREIRE, J.R.B. A imagem do índio e o mito da escola. In MARFAN, M.A. (org). Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação - Formação de Professores: educação escolar indígena, p Brasília: MEC, 2002.

272 Página272 DOSSIÊ SANTOS, M.A.L; DOMINGUES, A.C.B.G. GEJÃO, N. A fotografia como mediador cultural na construção do conhecimento histórico escolar. Antíteses, vol. 2, n. 3, jan.-jun. de 2009, pp GRUPIONI, L.D.B. Livros didáticos e fontes de informações sobre as sociedades indígenas no Brasil. In: GRUPIONI, L.D.B. ARACY, L.S. (Org). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus, Brasília, MEC/MARI/ UNESCO, 1995, p GUIMARÃES, M.L.S. Escrita da história e ensino da história: tensões e paradoxos. In: ROCHA, H.; MAGALHÃES, M. & GONTIJO, R. (orgs). A escrita da história escolar: memória e historiografia. Rio de Janeiro: FGV, 2009 MOLINA, A.H. Ensino de História e Imagens: possibilidades de pesquisa. Domínios da Imagem. Londrina, Ano I, n. 1, p Nov MOREIRA, A.F.B.; CANDAU, V.M. Currículo, conhecimento e cultura. In: BRASIL. Indagações sobre currículo: currículo, conhecimento e cultura. Organização do documento: Jeanete Beauchamp, Sandra Denise Pagel, Aricélia Ribeiro do Nascimento. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, p Disponível em: Acesso em: abril de OLIVEIRA, L.F. & CANDAU, V.M.F. Pedagogia decolonial e educação antirracista e intercultural no Brasil. Belo Horizonte. Educação em Revista, v. 26, n.01, p abr Disponível em: Acesso em: 19 de novembro de OLIVEIRA, T.S.. Olhares que fazem a diferença : o índio em livros didáticos e outros artefatos culturais. Revista Brasileira de Educação. Rio Grande do Sul Nº 22, Disponível em: Acesso em: abril de TASSINARI, A.M.I. Sociedades indígenas: introdução ao tema da diversidade cultural. In: GRUPIONI, L.D.B. ARACY, L.S. (Org). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus, p Brasília, MEC/MARI/ UNESCO, 1995.

273 O Indígena No Ensino De História: Representações Indígenas Em Uma Coleção De Livros Didáticos Para O Ensino Fundamental The Indian In The Teaching Of History: Indigenous Representations In A Collection Of Teaching Books For Fundamental Teaching RESUMO Ricardo Lima Bezerra* Este texto objetiva compreender as representações sobre os indígenas apresentadas em uma coleção didática adotada na disciplina de história para o Ensino Fundamental da Escola de Aplicação Profa. Ivonita A. Guerra, situada na Universidade de Pernambuco-Campus Garanhuns. Buscamos assim, através de uma leitura crítica da coleção didática escolhida e amparada na contribuição teóricametodológica das referências utilizadas perceber se os índios são caracterizados nesta amostra da historiografia didática brasileira estereotipadamente ou não, conforme já estudavam pesquisadores sobre a temática desde os anos Palavras-chave: Índios; História e Representação Indígena; Livro Didático. ABSTRACT This text aims to understand the representations about the Indians presented in a didactic collection adopted in the history discipline for the Elementary School of the School of Application Profa. Ivonita A. Guerra, located at the University of Pernambuco-Garanhuns Campus. Thus, through a critical reading of the didactic collection chosen and supported in the theoretical and methodological contribution of the references used to understand if the Indians are characterized in this sample of Brazilian didactic historiography stereotypically or not, as already pointed out by researchers on the subject since the 1990s. keywords: Indians; History and Indigenous Representation; Textbook. * Doutor em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor Adjunto da Universidade de Pernambuco (UPE) - Campus Garanhuns e integrante do Núcleo de Estudos sobre África e Brasil da Universidade de Pernambuco. ricardo.bezerra@upe.br

274 Página274 DOSSIÊ BEZERRA, L.R. Introdução O presente texto apresenta brevemente o processo de escolha do livro didático de História na escolarização brasileira e, em seguida, propõe uma compreensão das representações sobre o índio nos livros didáticos adotados pelo ensino fundamental da Escola de Aplicação Profa. Ivonita Alves Guerra da Universidade de Pernambuco Campus Garanhuns. O livro didático é um significativo instrumento didático-pedagógico do trabalho docente nas escolas da Educação Básica. Inúmeras pesquisas têm sido empreendidas sobre a sua importância, enfatizando uma abordagem que explicita que tipo de ensino de história é veiculado pelos livros didáticos, suas representações da história e a criação de uma historiografia escolar e didática, como encontramos em Munakata (1997 e 2003), Araújo (2001), Fracalanza e Megid Neto (2006), D Ávila (2008), Fonseca (2004) e Coelho (2009). Sobre a importância e sua relevância para a escolarização, ressalta Abud (2007) que desde os anos 1970, o livro didático assumiu a centralidade desse processo, tornando-se o mais importante recurso de aprendizagem das escolas brasileiras, em especial na educação pública. O livro didático é um artefato cultural condicionado pelo mercado editorial, pelas políticas educacionais e concepções que norteiam o pensamento e a prática dos autores. Assim, ele não é isento, não é neutro, mas formador de práticas culturais e representações de mundo, conforme Barros: Um livro é um objeto cultural bem conhecido no nosso tipo de sociedade. Para a sua produção, são movimentadas determinadas práticas culturais e também representações, sem contar que o próprio livro, depois de produzido, irá difundir novas representações e contribuir para a produção de novas práticas (2008, p. 80). Ademais, os livros didáticos assumem um caráter de centralidade na prática docente e nas políticas públicas educacionais financiadas pelas agências internacionais, como o Banco Mundial, sobretudo nos países em desenvolvimento, segundo a

275 Página275 O indígena no ensino de história..., p afirmação de Lockheed e Verspoor, ao escrever sobre a estrutura da educação básica nesses países. De acordo com a visão apresentada em sua obra, os textos escolares constituem em si mesmo o currículo efetivo, definindo suas práticas e, ainda, trata-se de um instrumento de baixo custo e alta incidência sobre a qualidade da educação e o rendimento escolar nessas nações em desenvolvimento (LOCKHEED; VERSPOOR, 1991 apud TORRES, 1998, p. 156). Sendo assim, torna-se importante estudar os discursos sociais que veiculam as representações que disseminam os livros didáticos bem como os saberes e valores que desejam socializar. Objetivamos, assim, entender que tipo de representações os livros didáticos veiculam sobre populações distintas da maior parte dos consumidores dos livros didáticos. Estudar as representações disseminadas pelos livros didáticos significa estudar a concepção de mundo que se deseja disseminar e como essas representações constroem outras representações na e sobre a sociedade. Sobre representação, entendemos que elas incluem os modos de pensar e de sentir, inclusive coletivos [...] pois o campo das representações engloba todas e quaisquer traduções mentais de uma realidade exterior percebida (LE GOFF, 1985 apud BARROS, 2008, p. 82). A representação é, portanto, uma construção social, uma produção que cria, transforma e concebe mundos e práticas. Reforçamos a tese de que livro didático é um objeto cultural condicionado já que, como afirmamos acima, é produzido sob a demanda das políticas educacionais vigentes, das pressões do mercado editorial e das orientações conceituais e metodológicas de autores e pesquisadores, acadêmicos ou não. Ou seja, sobre o livro didático uma série de fatores exerce pressão e influencia na sua produção, distribuição, consumo e utilização didática. Neste trabalho, então, pretendemos compreender as representações veiculadas em uma coleção de livros didáticos sobre os índios brasileiros, a Coleção Projeto Araribá, editada por Maria Raquel Apolinário para a Editora Moderna, curiosamente nomeada por uma palavra de origem tupi, que significa árvore frondosa e de crescimento rápido. Esta coleção é utilizada na Escola de Aplicação Profa. Ivonita Alves Guerra, situada na Universidade de Pernambuco Campus Garanhuns, onde o autor atua como docente e pesquisador na área de Ensino de História e Estágio Supervisionado.

276 Página276 DOSSIÊ BEZERRA, L.R. A trajetória do livro didático de História no Brasil A partir da década de 1930 surgem os manuais didáticos para a disciplina História com base nas primeiras políticas públicas sobre esta disciplina escolar. O Instituto Nacional do Livro (INL), a partir de 1938, instituiu a Comissão Nacional do Livro que teve como incumbência incrementar a produção desse material e oferecer legitimação para o uso do livro em todo o país. Por meio do Decreto-Lei n. 8460, de 26 de dezembro de 1945, ocorreu uma consolidação governamental da legislação sobre as formas, utilização e importação do livro didático, ficando os docentes incumbidos da responsabilidade em definir os livros a serem adotados pelas escolas no país. Nos anos 1960, o convênio do MEC com a United States Agency for International Development (USAID), agência norte americana para o desenvolvimento da educação e da cultura em países parceiros dos EUA, estabeleceu acordos que direcionaram recursos para possibilitar a distribuição de 51 milhões de livros didáticos, gratuitamente, durante 3 anos. Mais adiante, já na década de 1970, o Estado brasileiro começou a estabelecer uma política de financiamento para a compra de livros didáticos diretamente para as escolas, sendo criado assim o Fundo do Livro Didático. Com o fim do convênio MEC- USAID nesta década, o INL inicia um programa para os livros didáticos do ensino fundamental coordenado e executado pelo próprio Ministério da Educação brasileiro. Ainda na década de 1970, o INL foi extinto. Em seu lugar foi criado a Fundação Nacional do Material Escolar (FENAME), em Esta fundação assumiu a função de executor do Programa do Livro Didático para as escolas públicas brasileiras. Na década seguinte, os anos 1980, o FENAME foi substituído pela Fundação de Assistência ao Estudante (FAE). Em 1985, por meio do Decreto n ocorreram outras significativas mudanças na política nacional para o livro didático com a criação

277 Página277 O indígena no ensino de história..., p do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), no qual houve a inclusão de diferentes disciplinas encontradas no currículo escolar e abertura para a participação dos professores no processo de escolha dos livros didáticos. Instituiu-se, também, a reutilização e o reaproveitamento dos livros por outros estudantes, além da criação de um banco de dados de livros didáticos no Brasil como estabelecimento de uma política de controle de preços e aquisição de obras por parte do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), órgão administrativo e executor das ações de escolha e aquisição dos livros didáticos por parte do governo federal. Devido às limitações orçamentárias, durante os primeiros anos da década de 1990, a aquisição dos livros didáticos ficou restrita à 4º série do ensino fundamental. No entanto, entre 1995 e 1996, houve aquisições e distribuições de livros didáticos, e, a criação de uma Comissão para implementar a avaliação das obras, estabelecendo critérios que serviam para orientar os professores na escolha dos livros. Entre 1999 e 2005 ocorreram três processos de avaliação de livros didáticos de história destinados aos anos finais do ensino fundamental, e, em cada processo, os critérios foram sendo aprimorados. Por exemplo, em 1999, cada volume era avaliado de modo unitário e independente da coleção ao qual pertencia, o que acarretava circunstâncias conflitivas em relação à viabilidade no processo de escolha e utilização das obras. No PNLD de 2002 esta situação foi alterada, quando a coleção passou a ser a unidade básica de avaliação (MIRANDA; LUCA, 2004). Também foi alterado o procedimento de avaliação, de um modelo classificatório e distintivo, baseado em estrelas e menções discriminatórias, para um modelo unicamente indicativo das obras aprovadas, o que modificou a própria organização do guia do livro didático que, na versão de 2005, apresenta-se ao professor como um catálogo organizado em ordem alfabética (MIRANDA; LUCA, 2004, p. 127). Desde 1997, o governo federal incluiu o livro didático de História e o de Geografia entre as obras adquiridas para o ensino fundamental ao lado dos livros de Matemática, Língua Portuguesa e Ciências. Nas duas últimas décadas, foram incrementadas as políticas públicas de acesso e distribuição dos livros didáticos, como por exemplo, a distribuição de dicionários de Língua Portuguesa, de Língua Inglesa, além de Atlas e Mapas Geográficos como

278 Página278 DOSSIÊ BEZERRA, L.R. também a elaboração e distribuição de livros em Braile e audiobooks para escolas que atendem crianças com deficiências. Segundo Ananias e Bettini (2008), com a valorização por parte do governo federal, muitos pesquisadores e professores universitários se interessaram em produzir livros didáticos de História, como Jobson Arruda, Ricardo Faria e Joana Neves. Esses autores procuraram modificar os livros na linguagem, na forma das ilustrações e na estrutura dos capítulos para atender às demandas do governo e da política de aquisição e distribuição dos livros didáticos de História, criando assim uma verdadeira historiografia didática oficial contemporânea brasileira, com a influência do que é produzido na academia, mas moldado e adequado pelo mercado editorial e pelas políticas curriculares nacionais definidas pelo MEC. Ainda de acordo com Ananias e Bettini (2008), outro elemento que merece destaque diz respeito a linguagem dos livros didáticos, que passou a ser mais coloquial e simplificada atendendo às necessidades das editoras e da clientela. Assim, importa perceber que o livro didático é um precioso objeto cultural, pois acompanha estudantes e professores por longas fases e situações no processo de escolarização, sobretudo no nosso país. Descortinar suas formas de produção, distribuição e seus usos escolares nos permitem, conforme afirma Chartier (1999, p. 8), compreendê-los na perspectiva de que: As obras, os discursos, só existem quando se tornam realidades físicas, inscritas sobre as páginas de um livro [...]. Compreender os princípios que governam a ordem do discurso pressupõe decifrar, com todo o rigor, aqueles outros que fundamentam os processos de produção, de comunicação e de recepção dos livros. Os índios nos Livros Didáticos de História do Ensino Fundamental: entre simplificações e preconceitos. Em geral, os livros didáticos de história empregados nas escolas brasileiras, na atualidade, não têm valorizado a recente produção acadêmica, tanto em história quanto em outras ciências sociais, sobre as questões relacionadas aos indígenas e suas temáticas. Bittencourt afirma que, em recentes pesquisas, (RODRIGUES, 2005; COELHO, 2009) destacam-se:

279 Página279 O indígena no ensino de história..., p as defasagens entre a produção escolar e a acadêmica, concluindo-se por assertivas bastante categóricas de que os indígenas eram representados nas obras didáticas de maneira equivocada pelo desconhecimento dos autores recentes das produções historiográficas. (2013, p. 104) Representando os índios de maneira estereotipada e/ou simplista, uma parcela considerável da historiografia didática reforça falsas representações sobre as populações indígenas no ensino de história. Corroborando essa afirmação, Coelho, analisando obras didáticas de história produzidas entre 1995 e 2005, percebeu que entre a produção didática e a historiográfica existe: uma gritante ambiguidade: enquanto, por um lado, se percebe um processo de redimensionamento do lugar das populações indígenas na composição dos conteúdos, em todo atento às pesquisas mais recentes, por outro, nota-se a permanência de aportes que se aproximam daquela antiga vocação: as populações indígenas são representadas conforme aquela cultura histórica que as via como ingênuas, vítimas dos colonizadores, cujo traço cultural fundamental era, fora a preguiça, a relação com a natureza. (2009, p. 274) Conforme exposto acima, o conhecimento produzido na academia a respeito dos indígenas não tem exercido, adequadamente, a atuação que poderia ter sobre espaços e saberes escolares. Em história escolar, ainda costuma-se ensinar sobre um indígena que mora em florestas, longe das cidades, habitando ocas e tabas, que cultua deuses ancestrais e fala apenas Tupi, sendo, em geral, estas informações transmitidas como a única representação possível em muitas escolas sobre os índios, veiculadas, através e principalmente, por meio dos livros didáticos oficiais (GRUPIONI, 1995). As questões relativas aos índios são abordadas com uma visão evolucionista e eurocêntrica pelos autores de muitos livros didáticos, de acordo com a visão de pesquisadores sobre esta temática. Os indígenas, de acordo com Gobbi (2006), são apresentados como primitivos, atrasados e incapazes de ingressarem na era da civilização como estariam os homens brancos das sociedades europeias. Há ainda, a recorrente afirmativa, na historiografia didática-escolar, de que a presença indígena brasileira restringe-se ao início do período colonial, vindo a desaparecer nos séculos seguintes. Sugerindo, assim, o desaparecimento ou a inexistência de populações nativas nessas etapas posteriores da história brasileira. Essa produção didática sobre os povos indígenas na história ensinada nas escolas tem, sobremaneira, dificultado o cumprimento da Lei nº de 2008, que tornou

280 Página280 DOSSIÊ BEZERRA, L.R. obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nos estabelecimentos escolares do país, sobretudo pela dificuldade em introduzir e desenvolver as contribuições históricas e sociais dos povos indígenas a partir das discussões sobre questões étnico-raciais sob novas perspectivas e abordagens historiográficas e acadêmicas A partir dessa caracterização, propomos, a seguir, uma interpretação das representações veiculadas nos livros didáticos da coleção Projeto Araribá, publicada pela editora Moderna, adotada nos Anos Finais do Ensino Fundamental da Escola de Aplicação Profa. Ivonita Alves Guerra, situada na Universidade de Pernambuco (UPE) - Campus Garanhuns. Primeiramente, compete-nos esclarecer que esta é uma unidade escolar pública do Estado de Pernambuco, dotada de ensino em nível fundamental e médio. A Escola de Aplicação Profa. Ivonita Alves Guerra foi criada pela Resolução Estadual nº. 24/1995, com gestão escolar compartilhada pela Secretaria Estadual de Educação de Pernambuco e a UPE, servindo como campo de vivência para o estágio supervisionado dos estudantes das diversas licenciaturas, bem como locus de pesquisas pedagógicas da referida Universidade. Nesta escola há oito turmas de Ensino Fundamental, sendo duas turmas do 6º ao 9º Ano, e todas adotam essa mesma coleção didática para o ensino de História, escolhida com base no Guia PNLD para o Livro Didático de História Neste texto, nossa preocupação é observar a adequação, ou não, da coleção a uma política de valorização da Educação para as Relações Étnico-Raciais e respeito da pluralidade cultural e alteridade em busca da superação do mito da democracia racial e dos preconceitos raciais através das representações sobre a história e a cultura indígenas por ela veiculadas. Assim, buscamos compreender as representações sobre os indígenas disseminadas pelo principal recurso didático utilizado nesta escola para o ensino da disciplina escolar História. A presença (ou não) indígena na Coleção de Livros Didáticos de História Projeto Araribá A coleção é composta por quatro livros dedicados aos 4 anos finais do ensino fundamental. Segundo o Guia do Livro Didático PNLD 2014 utilizado pela escola

281 Página281 O indígena no ensino de história..., p no processo de definição dos seus livros didáticos o Projeto Araribá é uma coleção que: Adota uma organização cronológica linear dos conteúdos sob a perspectiva integrada na história geral de matriz europeia com a do Brasil possibilitando a percepção de semelhanças, diferenças e especificações dos processos históricos. Também são abordados conteúdos sobre a história da África e da Ásia (2013, p. 102). Ainda de acordo com o Guia, a coleção aborda temáticas como a discriminação, o preconceito racial e preservação do meio ambiente (2013, p. 103). A coleção teria como mérito tratar a história dos afrodescendentes e dos grupos indígenas, além de dar destaque ao papel das mulheres (idem, p. 103). Destarte, o Guia analisa a forma como é abordada a história e a cultura indígena nesta coleção. De acordo com ele: As relações entre passado e presente também são levantadas na coleção para conectar as experiências pretéritas às problemáticas contemporâneas dos grupos indígenas, promovendo seu conhecimento, a percepção e o respeito à diversidade (2013, p. 106). É importante destacar que o próprio Guia chama a atenção que a história indígena é compreendida principalmente a partir da chegada dos europeus a América, apontando as relações travadas, as representações sociais construídas, a experiência da escravidão e as formas de resistência (idem, p. 108). Essa perspectiva de abordagem vai de encontro à visão de Gobbi quando afirma que as referências às culturas nãoeuropeias são feitas sempre em relação às culturas europeias, dando a essas últimas uma valoração positiva, em detrimento das outras (2006, p. 61). Dessa forma, os índios são representados como seres integrantes de um passado distante e acabado. Gobbi (2006) ressalta que os autores dos livros didáticos, em geral, defendem que são poucas as sociedades indígenas brasileiras que conservam suas características originais, sendo que certos autores insistem que esses grupos índios deveriam estar até os dias atuais comportando-se culturalmente da mesma forma desde a chegada dos conquistadores portugueses ao continente americano. Da mesma forma, percebemos que a coleção analisada apresenta uma concepção de mundo, uma representação dominante, que propõe uma história que seja de cunho civilizatório à moda ocidental, eurocêntrica e branca como sendo a mais

282 Página282 DOSSIÊ BEZERRA, L.R. correta, senão a única, a ser predominantemente ensinada nas escolas do ensino fundamental. Podemos ver também que a coleção Projeto Araribá contempla apenas sete capítulos, em todos os quatro livros que a compõem, destinados ao estudo da temática indígena brasileira, os quais concentram-se majoritariamente na periodização da história do Brasil durante a fase colonial, enfatizando os acontecimentos relacionados aos contatos iniciais entre as culturas índias e não-índias. Com relação ao período imperial e a época republicana, há uma prevalência da temática indígena neste último período, concentrando-se nas últimas décadas do século XX e do início do século XXI, como se reaparecessem na narrativa histórica. Em todo o volume dedicado ao 9º Ano, de 296 páginas, há apenas uma página dedicada à temática indígena, com o título Os índios no Brasil atual. Neste capítulo, decerto preocupado em retratar a condição indígena na atualidade brasileira, é apresentada uma abordagem demográfica e sociológica, com dados estatísticos oriundos do IBGE relativos ao número de indígenas remanescentes em 2010 (aproximadamente 817 mil pessoas) e dados do Instituto Socioambiental, em 2012, sobre o número de hectares de terras indígenas demarcadas na Amazônia Legal (cerca de 100 milhões de hectares). Dessa forma, a abordagem histórico-cultural dá lugar a uma abordagem que se restringe a discorrer sobre as demandas sociais atuais dos indígenas. Nos primeiros volumes da coleção, destacamos as representações dos indígenas encontradas no livro didático dedicado ao 6º Ano. Uma das unidades, intitulada de tema, destinada ao estudo do Povoamento do Brasil, é inteiramente voltada para a temática. Esta seção chama a atenção para uma época em que o espaço geográfico brasileiro era muito diferente, com áreas florestais mais densas e clima seco e frio. Também ressalta este capítulo que escavações arqueológicas em diferentes épocas, desde o século XIX, apontaram para uma ocupação do território realizada por povos de origem asiática, africana e aborígene australiana. O tema 4 A vida dos primeiros habitantes do Brasil preocupa-se em descrever diversas características sociais e econômicas dos primeiros habitantes do território brasileiro, tais como a vida nômade antes do desenvolvimento da agricultura,

283 Página283 O indígena no ensino de história..., p os sambaquis, as moradias rudimentares, o cultivo da mandioca e a prática da arte ceramista com finalidades para o uso alimentar e nos processos funerários. Apesar de bastante generalizante e sem apontar muitas das pesquisas recentes no campo da arqueologia sobre a vivência indígena antes do contato com os portugueses, o volume dedicado ao 6º ano traz uma abordagem interessante da história indígena antes da chegada dos colonizadores. De forma genérica, as populações do pré-contato com os europeus, são vistas como habitantes rudimentares e órfãos do paleolítico, sem expressividade cultural mais complexa ou modelo econômico definido. No entanto, percebemos que em toda a Coleção Projeto Araribá utilizada pela escola estudada, a posição dos indígenas é sempre secundária, só havendo menção a sua importância quando esta é desencadeada pelo contato com o europeu ou o protagonismo exercido pelo colono estrangeiro. Assim, confirma o que Grupioni ressalta, pois evidencia-se que os manuais didáticos privilegiam os feitos e a historiografia das potências europeias, silenciando ou ignorando os feitos e a vivência dos povos que aqui viviam. (1995, p. 487) Chama atenção, no volume dedicado ao 7º ano, que quando os autores se referem às populações que habitavam o Brasil, no momento do contato com os europeus, estes são chamados de índios, e, quando há referência aos incas, maias ou os astecas estes são chamados de Império Asteca, Civilização Maia e Civilização Inca. Essa forma de abordagem atribui aos índios brasileiros a identidade de atrasados e selvagens, enquanto que aos índios Mesoamericanos, da América do Norte e da América Andina são atribuídas características de povos evoluídos, civilizados e com uma alta cultura. Essa perspectiva contribui para reforçar as representações presentes na educação básica de nosso país de que os indígenas correspondem a um povo sem relevância econômica e social para a formação histórica brasileira, inerte e sem continuidade temporal, posto que se encontrariam estagnados. O livro didático, destinado ao 7º ano indica, de forma muito resumida, os conflitos entre os indígenas e os conquistadores portugueses, afirmando que tensões se tornaram inevitáveis quando os portugueses começaram a escravizar os nativos e as guerras entre conquistadores e nativos, conhecidas como guerras justas, tornaram-se frequentes. Este pequeno tópico do tema 3, do livro dedicado ao 7º ano, também faz uma breve observação indicando que, no século XVII, muitas populações indígenas já

284 Página284 DOSSIÊ BEZERRA, L.R. haviam sido dizimadas e as restantes isolaram-se no interior do território ou foram aldeadas sob o domínio europeu. Isso reproduz uma tendência da historiografia didática brasileira de que os índios verdadeiros desapareceram com o avançar do tempo e do processo de transformação do Brasil. No entanto, apesar das simplificações, estereótipos e reducionismos que encontramos nesta coleção Projeto Araribá, é justamente no livro dedicado ao 7º ano que encontramos o maior tópico relacionado ao estudo didático dos povos indígenas do Brasil. Mesmo assim, são apenas seis páginas que procuram destacar algumas diferenças linguísticas entre os grupos indígenas que habitavam o Brasil na época dos descobrimentos e ainda ressalta a dificuldade de, na atualidade, registrar o número de pessoas que se autodeclararam indígenas comparando a uma estimativa de 3 a 5 milhões de índios no nosso território, no século XVI, época da chegada dos portugueses. Nesta seção, destaca-se ainda que o crescente desaparecimento dos povos indígenas ocorreu devido às perseguições, ao processo de aprisionamento e escravização, às doenças que estes sofreram e às diversas formas de violência física durante o período colonial e o Império. Além disso, informa também que, apesar da Constituição brasileira garantir a posse e propriedade das terras, que tradicional e historicamente ocuparam aos índios, esse direito vive em constante ameaça na atualidade, devido a ação predatória de mineradores, madeireiros e fazendeiros nos territórios indígenas em várias partes do país. O volume da coleção Projeto Araribá dedicado ao 8º ano tematiza, logo em sua abertura, na Unidade 1, da Expansão da América Portuguesa, com um texto e algumas imagens ressaltando a presença indígena no Brasil. Nesta abertura do volume, é ressaltado que os povos indígenas sofreram violência desde o início da conquista portuguesa e esta continuou nos anos seguintes. Em um texto um tanto lúcido e atual, fazem parte assuntos como as doenças trazidas pelos europeus e a exigência do trabalho forçado, além da perda das suas terras tradicionais, obrigando as populações a refugiarem-se em locais distantes do litoral. O tema 1, continuidade a esta seção, tem como tema as missões jesuíticas. É afirmado, logo no caput que as missões ou reduções representaram o principal meio de cristianização dos indígenas na América Ibérica (2010, p. 12). E ao longo do capítulo, o papel dos jesuítas no processo de cristianização e formação de aldeias ou

285 Página285 O indígena no ensino de história..., p reduções indígenas é tratado como parte do processo de colonização, favorecendo a pacificação das populações a partir do processo de aculturação das suas práticas, crenças e modos de vida diante da imposição do cristianismo. No tema 2, em sequência, nos chama a atenção, entre as representações didáticas sobre os indígenas, o tópico Assimilação de conhecimentos indígenas. Neste item, o texto do livro didático afirma que os exploradores paulistas conseguiram resistir às dificuldades da colonização colocando em prática alguns conhecimentos assimilados dos indígenas, como por exemplo, saber guiar-se através das matas com base nas estrelas e a reconhecer a aproximação de cobras e onças nos caminhos. Outros conhecimentos indígenas também foram assimilados como o uso do arco e flecha nos confrontos travados nas florestas e o emprego de canoas feitas com o tronco de uma única árvore, para navegarem os rios da colônia. Essa abordagem, aparentemente favorável às populações indígenas, por certo acaba por reforçar o estereótipo de que as contribuições culturais indígenas se restringiram ao período colonial sendo ressaltadas como fundamentais, para os colonos, no processo de enfretamento das adversidades do território colonial para a criação de um ambiente civilizatório. A escrita didática reforça, assim, que o protagonismo histórico é exercido pelo colono paulista, que sabe utilizar os conhecimentos dos indígenas, estes vistos como coadjuvantes no processo de expansão colonial. Além desse aspecto, estas representações reforçam o fato de as populações indígenas serem abordadas em função do passado, a partir das relações sociais mantidas com o colonizador português. Ou seja, mantém o caráter tradicional da historiografia didática que insere a contribuição dos povos indígenas na formação da cultura brasileira como oriunda de um tempo histórico remoto e acabado, olvidando a importância e a significação da cultura indígena na contemporaneidade. Essa abordagem remota e reducionista da contribuição cultural das populações indígenas, concentrada essencialmente no período colonial, traz a perspectiva de uma cultura cristalizada e estagnada, que não avançou no tempo, com saberes acabados. Isso dificulta, assim, que professores e estudantes do ensino fundamental percebam as contribuições culturais indígenas na/para atualidade, e valorizem a sua importância e a sua vitalidade para a cultura brasileira.

286 Página286 DOSSIÊ BEZERRA, L.R. Aspectos da contemporaneidade dos povos indígenas, como sua luta por melhores condições ambientais e a defesa pelas terras tradicionais, como repositórios de cultura, não são destacados na Coleção Projeto Araribá, que concentra a abordagem das populações indígenas como não-presentes na atualidade, representantes do passado evolutivo na forma de populações primitivas e inferiores ao colono europeu, representante de um estágio cultural mais desenvolvido. Considerações Finais: Sempre o mesmo índio, sempre a mesma história. Em 1996, Luis Donisete Benzi Grupioni publicou na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos um artigo intitulado Imagens Contraditórias e Fragmentadas sobre o lugar dos Índios no Livros Didáticos, no qual questiona qual a imagem do índio veiculada nos manuais escolares? e de que forma são tratados?. Embora dedicado ao estudo dos livros didáticos destinados a disciplina de Estudos Sociais, da hoje nomeadas séries iniciais do ensino fundamental (1º a 4º série, na época da publicação do artigo), suas reflexões a respeito do lugar dos índios nos livros didáticos são especialmente importantes para percebemos as representações dos livros didáticos da época. No seu texto, Grupioni nos chama a atenção para as eventuais críticas que os livros didáticos podem sofrer a respeito de qual o papel desempenhado pelos índios na história brasileira representada nos livros didáticos da disciplina escolar História. Destaca ainda que, falar em índios é falar do passado, e fazê-lo de uma forma secundária: o índio aparece em função do colonizador (1996, p. 427). Essa situação, segundo Grupioni, permite-nos perceber a dificuldade em lidar com as contribuições culturais e a existência da pluralidade étnica, no nosso país, na atualidade trazida pelos livros didáticos, relegando a contribuição cultural e a presença dos grupos indígenas, em especial, a um passado longínquo da sociedade brasileira. O autor, citando Telles, afirma que essa situação também dá margem a que se faça mais uma crítica a imagem representada dos índios no texto didático: a de que a história [indígena é] estanque, marcada por eventos, eventos significativos de uma historiografia basicamente europeia (TELLES Apud GRUPIONI, 1996, p. 427). A presença indígena, dessa forma, no continente americano não era problematizada nos

287 Página287 O indígena no ensino de história..., p textos didáticos, pois a questão das origens dos povos indígenas nas Américas é tomada como algo dado a priori que não precisa de reflexão. Grupioni chama a atenção para o fato dos livros didáticos privilegiarem os feitos e a historiografia europeias, relegando a segundo plano as experiências e vivências dos grupos humanos que habitavam as Américas antes dos descobrimentos. Assim, acabam por reforçar o fato de o índio aparecer como coadjuvante na história e não como sujeito histórico, o que revela o viés etnocêntrico e estereotipado da historiografia em uso (TELLES apud GRUPIONNI, 1996, p ). As críticas apontadas por Grupioni, em seu texto de 1996, são facilmente reconhecidas nos livros didáticos da atualidade, conforme nos esforçamos por apresentar na avaliação da coleção Projeto Araribá. No mesmo sentido, Silva afirma que: Ainda hoje, quando são lidos alguns livros didáticos de História, temse a impressão de que as populações indígenas pertencem exclusivamente ao passado do Brasil. Os verbos relacionados aos índios invariavelmente estão no pretérito, e a eles são dedicadas apenas algumas poucas páginas, geralmente na chamada préhistória e/ou no cenário do descobrimento. A partir da chegada dos portugueses ao continente americano, os indígenas desaparecem, e os alunos não fazem a mínima ideia do que teria ocorrido nos séculos seguintes com os diferentes grupos (bem como com seus descendentes) que habitavam as terras que viriam a se tornar o território brasileiro. (2015, p.21) O que nos chama a atenção, contudo, é a distância temporal entre o artigo de Grupioni (publicado em 1996) e a continuidade do mesmo tipo de representação dos povos indígenas em uma coleção de livros didáticos que continua sendo bastante utilizada nas escolas. É emblemático, no entanto, que, neste meio tempo, ocorreu a reforma no artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº. 9394/1996), realizada pela Lei nº de 2008, que tornou obrigatório o estudo da História e Cultura Africana, Afro-brasileira e Indígena nas disciplinas escolares de artes, literatura e história, que poderia melhorar e aprofundar a produção e disseminação de uma historiografia didática mais condizente com representações indígenas que superassem as visões estanques, estereotipadas e passadistas ainda recorrentes em muitas obras.

288 Página288 DOSSIÊ BEZERRA, L.R. Essa situação, contudo, não vem ocorrendo satisfatoriamente, de acordo com o nosso entendimento. A forma como muitos livros didáticos representam as populações indígenas, na atualidade, com base no estudo que empreendemos, continua reforçando a cultura indígena em termos da sua precariedade em face da cultura europeia e colonizadora. Para Grupioni, os indígenas são tratados como desprovidos de traços culturais considerados significativos: falta de escrita, falta de governo, falta de tecnologia para lidar com metais, nomadismo etc. (1996, p. 428). Além disso, afirma que é significativo que as fontes de informações sobre povos indígenas sejam retiradas de produções de cronistas, viajantes e missionários reforçando assim, para os estudantes do ensino fundamental, o caráter não contemporâneo da cultura indígena, além de dependente e secundarizada, em relação à cultura do colono europeu. Mas, a mais contundente crítica do autor, diz respeito aos autores de livros didáticos que Operam com a noção de índio genérico, ignorando a diversidade que sempre existiu nessas sociedades. Eles são tratados como se formassem um todo homogêneo e como se a generalização fosse a maneira correta de estudá-los (GRUPIONI, 1996, p. 430). Em todo o texto da Coleção Projeto Araribá os indígenas são constantemente tratados como os índios do Brasil com clara generalização e estandardização das suas características linguísticas, territoriais, alimentares e ritualísticas. Olvidando-se a diversificada e complexa gama de traços culturais dessas populações, seja no período colônia/império, seja na contemporaneidade, pois cada grupo, cada nação indígena tem sua lógica e representações culturais, encontram-se em áreas diversas ambientalmente do território brasileiro e tem tido contato diferenciado com outros grupos humanos não-índios. Assim: Cada sociedade indígena se pensa e se vê como um todo homogêneo e coerente e procura manter suas especificidades, apesar dos efeitos destrutivos do contato. Um Guarani ou um Yanomami, apesar de índios, vão continuar se pensando como um Guarani e como um Yanomami. (GRUPIONI, 1996, p ). Para Grupioni, e para nós, quando lidamos com uma importante coleção didática para a disciplina História, como é o Projeto Araribá, é interessante que a rica diversidade de traços sociais, territoriais e culturais, historicamente constituídas das

289 Página289 O indígena no ensino de história..., p populações indígenas brasileiras, não apareçam adequadamente referenciadas, mesmo reconhecendo ser esta uma série didática aprovada pelo PNLD após as mudanças na legislação e na estrutura curricular brasileira, que prevê uma adequação inclusiva do ensino da história e cultura indígena. A esse respeito, convém concordar mais uma vez com Silva quando afirma que: Crianças, adolescentes e jovens brasileiros infelizmente ainda convivem, desde a infância, com as estereotipadas imagens do índio genérico (expressão cunhada por Darcy Ribeiro, antropólogo, escritor e político brasileiro), alimentam inúmeras fantasias sobre o que consideram espécies de "fósseis humanos. (2015, p. 24) As tantas lutas e reivindicações dos povos indígenas e as tantas produções acadêmicas de pesquisadores em História, Antropologia e outras ciências sociais sobre o conhecimento da identidade indígena, o respeito a alteridade e o tratamento adequado da diversidade étnica e cultural para uma educação intercultural não são aproveitadas pelos autores da Coleção Projeto Araribá. A despeito de um projeto gráfico bem apresentado, ricamente ilustrado em volumes com textos ágeis e bem escritos, lamentavelmente esta coleção, no que diz respeito aos índios, constrói uma representação que há muito poderia estar superada. Sendo assim, ainda lidamos, como pesquisadores, professores e alunos (nãoíndios e índios) da educação básica brasileira, com muitos livros didáticos que representam as populações indígenas com preconceitos, simplificações, reducionismos, subestimando suas diferenças e contribuições para a cultura, a sociedade e a formação étnica brasileira, índios genéricos do passado e, infelizmente, como povos atrasados e deslocados da contemporaneidade brasileira. Referências ABUD, K. A história nossa de cada dia: saber escolar e saber acadêmico na sala de aula. In: MONTEIRO, A. M. F. et al. Ensino de História: sujeitos, saberes e práticas. Rio de Janeiro: Mauad X, p ANANIAS, N. T.; BETTINI, R. F. A. J. O livro didático de história numa visão para ensino fundamental. Cascavel; UNOESTE, Disponível em: APOLINÁRIO, M. R. (edt.). Projeto Araribá: história. 4 ed. São Paulo: Moderna, ARAÚJO, L.T. O uso do livro didático no ensino de História: depoimentos de professores de escolas estaduais de ensino fundamental situadas em São Paulo/SP. São Paulo, Dissertação (Programa de Estudos Pós-graduados em Educação: História, Política, Sociedade). PUC - São Paulo.

290 Página290 DOSSIÊ BEZERRA, L.R. BARROS, J. D A. O campo da história: Especialidades e abordagens. Petrópolis-RJ: Vozes, BITTENCOURT, C. F. História das populações indígenas na escola: memórias e esquecimentos. In: PEREIRA, A. A.; MONTEIRO, A. M. (orgs.). Ensino de história e culturas afro-brasileiras e indígenas. Rio de Janeiro: Pallas, 2013, p CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, CHARTIER, R. A aventura dos livros: leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília: EDUNB, COELHO, M. C. A história, o índio e o livro didático: apontamentos para uma reflexão sobre o saber escolar. In: ROCHA, H.; REZNIK, L.; MAGALHÃES, M. (orgs.). A História na Escola. Rio de Janeiro: FGV, p D ÁVILA, C. M. Decifra-me ou te devoro: o que pode o professor frente ao livro didático. Salvador: EDUNEB, FRACALANZA, H.; MEGID NETO, J. (orgs.). O livro didático de ciências no Brasil. Campinas-SP: Komedi, FONSECA, T. N. de L. e. História e Ensino de História. Belo Horizonte: Autêntica, GOBBI, I. A temática indígena e a Diversidade Cultural nos Livros Didáticos de História: uma análise dos livros recomendados pelo Programa Nacional do Livro Didático. São Carlos, Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) Universidade Federal de São Carlos. GRUPIONI, L. D. B. Livros didáticos e fontes de informações sobre as sociedades indígenas no Brasil. In: SILVA, A. L. da; GRUPIONI, L. D. B. (orgs.). A temática indígena na escola: novos subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, p GRUPIONI, L. D. B.. Imagens Contraditórias e Fragmentadas: sobre o Lugar dos índios nos Livros Didáticos. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos. Brasília, v.77, n.186, p , mai/ago GUIA DE LIVROS DIDÁTICOS: PNLD 2014: HISTÓRIA: ENSINO FUNDAMENTAL: ANOS FINAIS. Brasília: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica, TORRES, R. M. Melhorar a qualidade da educação básica? As estratégias do Banco Mundial. In: TOMMASI, L. de; WARDE, M. J.; HADDAD, S. (orgs.). O Banco Mundial e as políticas educacionais. 2 ed. São Paulo: Cortez, 1998, p MIRANDA, S. R.; LUCA, T. R. O livro didático de história hoje: um panorama a partir do PNLD. Revista Brasileira de História. São Paulo, v24, n. 40, 2004, p MUNAKATA, K. Produzindo livro didáticos e paradidáticos. São Paulo, Tese (Programa de Estudos Pós-graduados em Educação: História e Filosofia da Educação) PUC - São Paulo. MUNAKATA, K. Histórias que os livros didáticos contam, depois que acabou a ditadura no Brasil. In: FREITAS, M. C. de (org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. 5ed. São Paulo: Contexto, RODRIGUES, I. C. A temática indígena nos livros didáticos de História do Brasil para o ensino fundamental. In: ARIAS NETO, J. M. (org.). Dez anos de pesquisas em ensino de História. Londrina-PR: Atrito Art, p SILVA, G. J. da. Ensino de História Indígena. In: WITTMANN, L. T. (orga.). Ensino d(e) História Indígena. Belo Horizonte: Autêntica, p TELLES, Norma. A imagem do índio no livro didático: equivocada, enganadora. In: SILVA, A. L. da (Org.). A questão indígena na sala de aula: subsídios para professores de 1 e 2º graus. São Paulo: Brasiliense, 1987.

291 A GUERRA DO PARAGUAI NAS EDIÇÕES DO LIVRO DIDÁTICO HISTÓRIA DO BRASIL: DA COLÔNIA À REPÚBLICA, DAS AUTORAS ELZA NADAI E JOANA NEVES THE WAR OF PARAGUAY IN THE EDITIONS OF THE DIDACTIC BOOK HISTORY OF BRAZIL: FROM THE COLONY TO THE REPUBLIC, THE AUTHORS ELZA NADAI AND JOANA NEVES RESUMO André Mendes Salles * Neste artigo foi analisado o livro didático História do Brasil: Da Colônia à República, das autoras Elza Nadai e Joana Neves, em três diferentes edições: 1980 (1ª edição), 1989 (12ª edição) e 1997 (19ª edição), no que se refere especificamente a Guerra do Paraguai, com enfoque especial às causas do conflito. O objetivo primordial foi perceber se, com o passar do tempo e as novas discussões historiográficas em torno do conflito, as autoras foram incorporando ou não essas discussões na construção das novas edições. Ao findar as nossas apreciações sobre as edições didáticas em tela, percebemos que não houve mudanças na formulação do texto e na interpretação em relação ao conteúdo curricular Guerra do Paraguai. Destacamos, ainda, que a abordagem empreendida pelas autoras em relação ao conteúdo curricular Guerra do Paraguai compôs-se, sobretudo, a partir da perspectiva historiográfica do revisionismo histórico. Palavras-chave: Livros Didáticos. Ensino de História. Historiografia da Guerra do Paraguai ABSTRACT This article analyzed the textbook History of Brazil: from colony to Republic, of the authors Elza Nadai and Joana Neves, in three different editions: 1980 (1st Edition), 1989 (12th Edition) and 1997 (19th Edition), as regards specifically the war of Paraguay, with special focus on the causes of conflict. The primary objective was realized, with the passage of time and the new historiographical discussions around the conflict, the authors were incorporating or not these discussions in the construction of new editions. At the end of our evaluations on the didactic editions on screen, we noticed that there were no changes in the formulation of the text and in the interpretation in relation to the curricular content the Paraguay War. We also emphasize that the approach undertaken by the authors in relation to the curricular content War of Paraguay was composed, above all, from the historiographic perspective of historical revisionism. keywords: Textbooks. History teaching. Paraguay war historiography. * Doutor em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Mestre em História pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). andremendes.s@hotmail.com

292 Página292 DOSSIÊ SALLES, A.M. Introdução O presente artigo analisa a obra didática das professoras Elza Nadai e Joana Neves, intitulada História do Brasil: Da Colônia à República, em três diferentes edições: 1980 (1ª edição), 1989 (12ª edição) e 1997 (19ª edição), no que se refere especificamente ao conteúdo curricular Guerra do Paraguai, com enfoque especial às causas do conflito. Contudo, é importante indicar que foram observados também alguns aspectos relacionados à materialidade do livro nas diferentes edições. O objetivo primordial foi perceber se, com o passar do tempo e as novas discussões historiográficas em torno do conflito, as autoras foram incorporando ou não essas discussões na construção das novas edições. A passagem da década de 1980 para a década seguinte, no Brasil, foi marcada por um repensar em torno do conflito. Neste sentido, apresentamos o interesse em analisar diferentes edições de livros didáticos de História do Brasil que foram produzidos na década de 1980 e que continuaram sendo reeditados na década seguinte. Nesse sentido, o livro didático de História do Brasil de Elza Nadai e Joana Neves atendia aos critérios estabelecidos. Não obstante, antes de começarmos a análise das edições do livro didático selecionado para pesquisa cabe falarmos um pouco da trajetória das autoras enquanto professoras/pesquisadoras e autoras de livros escolares. Joana Neves e Elza Nadai exerceram intensas atividades acadêmicas, tendo trabalhado conjuntamente na composição de livros escolares de História. Produziram textos didáticos em parceria desde a década de 1970 até o falecimento da professora Nadai nos anos 90. A partir disso, Neves assumiu, junto à Editora Saraiva, a responsabilidade de promover as atualizações de novas edições. Seus livros escolares foram constantemente reeditados até o final dos anos 90, o que demonstra a relevância

293 Página293 A Guerra do Parguai nas edições do livro didático História do Brasil..., p da obra e corrobora com nossa intenção em analisar um livro didático que tivesse exercido grande influência na formação histórica dos estudantes brasileiros. A autora Joana Neves é graduada em Licenciatura e Bacharelado em História pela Universidade de São Paulo desde 1965 e possui Mestrado em História Econômica (1981) e Doutorado em História Social (2011), ambos pela Universidade de São Paulo (USP). Atuou como docente no Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) de 1978 a 1995, quando se aposentou. Por sua vez, a professora Elza Nadai realizou mestrado e doutorado em História Social, também pela USP, onde atuou como professora de Prática de Ensino de História. Nadai é considerada uma importante pesquisadora da área, tendo participado da criação do Encontro Nacional Perspectivas do Ensino de História em 1988, evento este que ocorre até os dias atuais e se constitui como um dos principais eventos da área. Apesar de aposentada desde 1995, a professora Neves continuou desenvolvendo atividades de pesquisa na Universidade Federal da Paraíba como pesquisadora voluntária, sobretudo junto ao Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional/NDIHR. Nesse Núcleo, a mesma prestou assessoria ao Projeto de Resgate do Processo Histórico e Cultural dos Municípios Paraibanos, que, dentre outras atividades, elaborava livros e materiais didáticos em história local. Além do mais, a conclusão da tese de Doutorado, em 2011, quer dizer, 16 anos após ter se aposentado, demonstra que a professora Joana Neves não deixou as atividades acadêmicas de lado e que continua pesquisando e produzindo ativamente. As professoras Neves e Nadai atuaram na Educação Básica e no Ensino Superior. Exerceram ativamente, portanto, a profissão docente por décadas. Suas atuações como autoras de livros didáticos, nesse particular, não podem ser desvinculadas de suas atividades como docentes. Suas obras carregam a indelével marca de suas experiências na docência no ensino superior, Neves na área de História do Brasil e Nadai na área de Ensino de História.

294 Página294 DOSSIÊ SALLES, A.M. Livros didáticos como materializadores da disciplina escolar Apesar de o livro didático poder ser hoje facilmente identificado dentre uma gama de livros diversos, devido, é claro, a sua familiaridade entre nós professores, pais, novos e antigos estudantes, requer-se certos cuidados por parte dos pesquisadores em relação à sua definição, pois definir o que se entende por livro didático é, sem sombra de dúvidas, uma tarefa que deve ser realizada de forma mais cuidadosa do que simplesmente identificá-lo diante de um conjunto diverso de outros livros. Nesse sentido, questionamo-nos, o que caracteriza um livro didático e, principalmente, como os pesquisadores que se debruçam sobre tal estudo o concebem? Ou como coloca Choppin (2009): Quais limites, quais fronteiras separam ou separaram o território dos manuais escolares e das categorias editoriais vizinhas? (p. 14). Para Choppin, a dificuldade em se definir um manual escolar se dá porque este: Asume simultáneamente varias funciones y se pueden tener de él visiones de naturaleza bien distinta. Para sobrepasar la visión inmediata y apasionada que todos tenemos de forma espontánea de los libros de clase, es necesario optar por una perspectiva histórica y/o comparativa. (CHOPPIN, 2001, p. 209). Para este destacado autor francês, os pesquisadores, ao buscar definir os livros didáticos, devem se afastar o quanto possível de visões espontâneas dos livros escolares para se acercarem cada vez mais de perspectivas históricas e/ou comparativas dos mesmos. Em outro texto de sua autoria (2009), realça que foram os historiadores a primeira comunidade científica a se interessar, ainda na década de 1960, pelos antigos livros escolares. (CHOPPIN, 2009). Circe Bittencourt, ao tratar à questão, afirma: A familiaridade com o uso do livro didático faz que seja fácil identificá-lo e estabelecer distinções entre ele e os demais livros. Entretanto, trata-se de objeto cultural de difícil definição, por ser obra bastante complexa, que se caracteriza pela interferência de vários sujeitos em sua produção, circulação e consumo. Possui ou pode assumir funções diferentes, dependendo das condições, do lugar e do

295 Página295 A Guerra do Parguai nas edições do livro didático História do Brasil..., p momento em que é produzido e utilizado nas diferentes situações escolares. É um objeto de múltiplas facetas, e para sua elaboração e uso existem muitas interferências (BITTENCOURT, 2004, p.301). Choppin (2004), ao tratar da dificuldade de definição dos livros escolares, assim como da complexa natureza dos mesmos, diz o seguinte: Se hoje consideramos o livro didático como um objeto banal, um objeto tão familiar que parece inútil defini-lo, o historiador que se interessa pela evolução dos livros escolares ou das edições escolares depara, logo de início, com um problema de definição. A natureza da literatura escolar é complexa porque ela se situa no cruzamento de três gêneros que participam, cada um em seu próprio meio, do processo educativo: de início, a literatura religiosa de onde se origina a literatura escolar, da qual são exemplos, no Ocidente cristão, os livros escolares laicos por perguntas e respostas, que retomam o método e a estrutura familiar aos catecismos; em seguida, a literatura didática, técnica ou profissional que se apossou progressivamente da instituição escolar, em épocas variadas entre os anos 1760 e 1830, na Europa -, de acordo com o lugar e o tipo de ensino; enfim, a literatura de lazer, tanto a de caráter moral quanto a de recreação ou de vulgarização, que inicialmente se manteve separada do universo escolar, mas à qual os livros didáticos mais recentes e em vários países incorporaram seu dinamismo e características essenciais. Essas categorias, sem se excluírem, frequentemente se interpenetram [...] (p.552). Para Itamar Freitas de Oliveira (2009), não é suficiente a definição que os dicionários de língua portuguesa fornecem em relação ao livro didático. É preciso, antes de qualquer coisa, perceber as finalidades que esses livros cumprem. Para Oliveira (2009), uma das principais características dos livros didáticos seria a materialização da disciplina escolar, o que quer dizer que este artefato está intimamente ligado ao processo de disciplinarização dos saberes escolares (OLIVEIRA, 2009, p.13). Para Stamatto, Parece óbvio afirmar que o livro didático de História, nas várias nomenclaturas que já teve, como por exemplo, manual escolar, compêndio, está intrinsecamente associado à disciplina História. Mas ao se afirmar isto, quer-se evidenciar a estreita relação biunívoca entre o livro escolar e a disciplina que o usa como recurso didático, ou seja, o manual de História é um dos elementos constituidor da disciplina História e é constituído pela e para esta matéria. (STAMATTO, 2009, p. 23, grifos nossos). O livro didático de História, para além de reunir conteúdos desta disciplina para situações de ensino, cumpre, antes de qualquer coisa, uma função de materialização da disciplina histórica escolar. Como afirma a professora Maria Inês Stamatto, o livro

296 Página296 DOSSIÊ SALLES, A.M. didático de História é um dos elementos constituidores da disciplina História e, ao mesmo tempo, em uma perspectiva dialética, é constituído por ela. Para Munakata (2016), O livro didático é, em primeiro lugar, o portador dos saberes escolares, um dos componentes explícitos da cultura escolar (p. 123). Assim, ao ser selecionado para fazer parte do currículo escolar e figurar nos livros didáticos de História, o evento Guerra do Paraguai passa a se constituir enquanto conhecimento escolar. Para o referido autor, de modo geral o livro didático é a transcrição do que era ensinado, ou que deveria ser ensinado, em cada momento da história da escolarização (p. 123). De tal modo, ao se investigar sobre o conhecimento escolar sobre a Guerra do Paraguai em diferentes períodos, podemos vislumbrar como cada época construiu o conhecimento sobre esse evento histórico para a escola. Tendo em vista o livro didático como elemento próprio da cultura escolar, afirma: [...] não há como negar que haja coisas que só existem na escola. [...] Uma dessas coisas peculiares à escola é precisamente o livro didático. Certamente ele pode estar em outros lugares, como na biblioteca de um colecionador excêntrico, nos gabinetes do avaliador ou do pesquisador de livros didáticos, mas a sua existência só se justifica na e pela escola (MUNAKATA, 2016, p Grifos nossos). Não obstante, é preciso que se diga que, na seleção dos conteúdos que estarão presentes nos livros didáticos, não houve/há consenso. O livro didático, como elemento materializador da disciplina curricular História, se constitui em um terreno de grande contestação, fragmentação e mudança (GOODSON, 1997, p. 27). Os conteúdos a se constituírem em conhecimentos escolares são frutos de seleções, inclusive no âmbito da forma em que os mesmos serão abordados, não apenas em termos historiográficos, mas pedagógicos (a reelaboração didática assinalada por Forquin, 1993). Nesse sentido, Munakata (2016) assinala que o livro didático, além da função de depositário de conteúdos escolares, é também depositário de métodos de ensino : Toda essa incursão pelas lições de coisas mostra outro aspecto do livro didático: ele não é apenas o depositário dos conteúdos, mas também dos métodos de ensino, dimensão fundamental da cultura escolar. A esse respeito as cartilhas e os abecedários são exemplares, pois não têm, a rigor, nenhum conteúdo, mas apenas método. Isso não significa que esses livros não apresentem valores ideológicos, religiosos, políticos, morais, cívicos, de gênero, de etnia - o que de resto acontece com todos os livros, didáticos ou não, mas tão somente que as cartilhas e os abecedários não têm propriamente um conteúdo disciplinar (MUNAKATA, 2016, p Grifos nossos).

297 Página297 A Guerra do Parguai nas edições do livro didático História do Brasil..., p Conforme assinala Munakata (2016), apesar de o livro didático poder ser entendido como depositário de conteúdos escolares, não é sempre que o livro didático se limita a transcrever os conteúdos consagrados ou em vias de consolidação de uma disciplina escolar. Há vezes que ele tem papel determinante na definição da disciplina (p. 126). O autor cita o exemplo de um livro escolar de Matemática que, juntamente com outros fatores envolvidos, contribuiu para estimular uma reforma curricular em relação à disciplina. Nesse sentido, nem sempre os livros didáticos estariam em consonância completa com sua ciência de referência. Além de ser entendido como depositário de conteúdos escolares e de métodos de ensino, o livro didático pode ser analisado, ainda, como um veículo portador de sistemas de valores e ideologias, carregadas das concepções, das ideias, dos conceitos e preconceitos de uma determinada época (CHOPPIN, 2004; BITTENCOURT, 2004, 2008a; 2008b). O livro didático, nessa perspectiva, passa a ser entendido como um produto cultural, produzido por grupos sociais que, intencionalmente ou não, veiculam suas formas de pensar e agir, além de suas identidades culturais e tradições. Nessa perspectiva, o livro didático ultrapassa a questão puramente pedagógica, apresentando implicações políticas, econômicas, ideológicas e teóricas (CAIMI, 1999, p.28). Correntes historiográficas sobre a Guerra do Paraguai: breves considerações Nosso interesse em abordar correntes historiográficas brasileiras sobre a Guerra do Paraguai advém da necessidade de se contextualizar as análises dos livros didáticos selecionados. Nesse sentido, no que diz respeito a essas correntes, concentrar-nosemos nas questões relacionadas as explicações que as mesmas teceram sobre as causas para a Guerra do Paraguai, categoria analítica construída para as análises dos livros didáticos. Em nossos estudos, localizamos quatro perspectivas historiográficas brasileiras em relação à Guerra do Paraguai: a memorialístico-militar-patriótica, a dos positivistas ortodoxos, a revisionista e a neo-revisionista. A corrente memorialístico-militar-patriótica se constituiu, praticamente, na visão oficial propagada pelo exército brasileiro, que buscava não apenas apresentar o Brasil

298 Página298 DOSSIÊ SALLES, A.M. como o glorioso vencedor da guerra, mas também enaltecer os comandantes militares. Esse primeiro momento historiográfico se configurou mais como uma narrativa memorialístico-patriótica daqueles que participaram da guerra, com extensas descrições de campanhas de guerra, do que por análises históricas propriamente ditas. Nessas primeiras narrativas prevaleceu, via de regra, uma interpretação que apontava o governo paraguaio como o responsável pela guerra, uma vez que, segundo esta visão, foi esse governo que invadiu e agrediu o Império do Brasil. A corrente memorialística tendia a personificar a guerra na figura do presidente do Paraguai, Francisco Solano López, mas também, por parte do Brasil, nas figuras dos comandantes militares, de alguns poucos militares de baixa patente e do Imperador D. Pedro II. Contudo, vale ressaltar que, para o período histórico sobre o qual estamos nos reportando, prevaleceu uma escrita da história marcada pelos grandes homens, isso valia tanto para aqueles enaltecidos, como para os demonizados. Para autores que compunham a corrente historiográfica memorialístico-militarpatriótica, como Cerqueira (1980) e Duarte (1981), por exemplo, as explicações em torno das razões para a Guerra do Paraguai passam a ser associadas à figura de Francisco Solano López. Havia um forte discurso nessas primeiras interpretações que apontam para a Guerra do Paraguai como um conflito entre a civilização e a barbárie, em que o Brasil era entendido como o representante da primeira enquanto que Solano López era tido como o símbolo maior da segunda. Uma segunda corrente historiográfica sobre a Guerra do Paraguai surgiu concomitantemente à primeira e estava relacionada às críticas que positivistas ortodoxos e republicanos fizeram das interpretações da corrente memorialísticomilitar-patriótica (MAESTRI, 2013). Um importante pensador do positivismo ortodoxo que refletiu acerca da Guerra do Paraguai foi Raimundo Teixeira Mendes (1920). Enquanto republicanos convictos, os positivistas ortodoxos buscaram questionar os feitos do Império, pondo em xeque toda a política imperial. Nesse sentido, teceram profundas críticas em relação à atuação do Brasil na Guerra do Paraguai. Nas primeiras décadas da instalação do regime republicano no Brasil, estabeleceuse certa ambiguidade acerca da Guerra do Paraguai, pois ao mesmo tempo em que os intelectuais positivistas ortodoxos brasileiros ligados ao novo regime tentavam

299 Página299 A Guerra do Parguai nas edições do livro didático História do Brasil..., p desconstruir a imagem dos feitos em relação ao conflito, inevitavelmente associados ao governo imperial, personagens que haviam participado da guerra ainda estavam vivos, relatando suas memórias, tecendo suas narrativas e interpretações acerca deste evento. Enquanto estes últimos apresentavam uma história que valorizava as virtudes dos militares brasileiros que participaram da guerra, destacando sua importância para a História nacional, aqueles primeiros ensaiavam uma espécie de revisionismo histórico, apresentando o país guarani como vítima do governo imperial, contestando a importância e necessidade do conflito e pondo em xeque a política externa do Segundo Reinado (Doratioto, 2009). Assim, o início da República é não somente marcado pelo confronto de ideais políticos entre republicanos e restauradores monarquistas, mas também pelo confronto de construções de uma História nacional, na qual a Guerra do Paraguai desempenhou um relevante papel. Entre discursos e contradiscursos em torno das explicações acerca da Guerra do Paraguai, teria prevalecido como abordagem mais usual, na historiografia brasileira, pelo menos até meados de 1960, a perspectiva memorialístico-militarpatriótica. O revisionismo, que se constitui na terceira corrente historiográfica estudada, teve forte repercussão no Brasil no final da década de 1970, com a publicação do livro Genocídio Americano, do jornalista José Júlio Chiavenatto (1983), e de traduções de obras como as de León Pomer (1980) e Eduardo Galeano (1983). A vertente historiográfica revisionista aponta para o imperialismo, sobretudo aquele realizado pela Inglaterra, como o principal motor da guerra. Busca-se, nas análises desta corrente, dar relevância às causas econômicas, oriundas do capitalismo internacional. Contudo, apesar da indicação das causas econômicas, em que o imperialismo inglês teve um papel fundante, a referida corrente não deposita exclusivamente nas elites econômicas inglesas toda a responsabilidade pela guerra, pois reconhece a atuação das elites locais latino-americanas como agentes que favoreceram a penetração e exploração na/da região pela potência inglesa. Esta vertente procurou desconstruir mitos criados pela historiografia memorialístico-militar-patriótica e suscitou novo ânimo às pesquisas sobre a Guerra do Paraguai. Contudo, é importante que se diga, ao tentar desconstruir mitos criados pela historiografia precedente, a

300 Página300 DOSSIÊ SALLES, A.M. historiografia revisionista findou por criar novos mitos, como o suposto desenvolvimento paraguaio do pré-guerra. Em meados da década de 1980, nos centros de produção do conhecimento histórico, começou a emergir uma quarta perspectiva historiográfica para tratar do assunto, que ficou conhecida, genericamente, como neo-revisionismo. Esta perspectiva aglutinou diversas pesquisas acadêmicas, com variados enfoques sobre a Guerra do Paraguai, mas que apresentam algumas características em comum: questionam a participação e responsabilidade inglesa no conflito; questionam o desenvolvimento econômico do Paraguai; apresentam como razões para a Guerra os conflitos e interesses regionais. Destacamos aqui as obras dos professores/as Luiz Alberto Moniz Bandeira (1982), Ricardo Salles (1990), Francisco Doratioto (1991, 2002), Alfredo da Mota Menezes (1998; 2012) André Toral (2001), e Ana Paula Squinelo (2002), apenas para ficar em alguns exemplos 43. História do Brasil: Da Colônia à República - A Guerra do Paraguai em foco Para o presente artigo, nos detemos às análises das edições de 1980 (1ª edição), 1989 (12ª edição) e 1997 (19ª edição) do livro didático História do Brasil, das autoras Elza Nadai e Joana Neves, cujas duas primeiras edições citadas apresentam o subtítulo Da Colônia à República. Atendo-nos primeiramente nas análises da 1ª e da 12ª edições, percebemos que as mesmas são praticamente idênticas. A começar pelo formato (19x27 cm) e pela capa, que são iguais. Os profissionais responsáveis pela copy deskagem, a programação visual, a cartografia, as fotos, a fotocomposição e o Departamento de Artes também são os mesmos nas duas edições analisadas, ficando a obra, nesses nove anos que as distanciam, praticamente inalteradas. 43 Em Doratioto (2009) e em Maestri (2009) é possível encontrar análises em torno das correntes historiográficas a respeito da Guerra do Paraguai. Na coletânea organizada por Maria Eduarda Marques (1995), que reúne capítulos oriundos das discussões realizadas no Colóquio Guerra do Paraguai 130 anos depois, é possível encontrar diversas reflexões em torno da temática. Com relação à Guerra do Paraguai em livros didáticos de História, destacamos: CENTENO e ALVES (2009); FERTIG e SACCOL (2010) e SQUINELO (2011).

301 Página301 A Guerra do Parguai nas edições do livro didático História do Brasil..., p As capas das edições mencionadas (1980 e 1989) se configuram em uma arte que apresenta rabiscos de diversos rostos formando uma multidão. Ao nosso entender, a capa de um livro, assim como sua materialidade de uma maneira mais ampla, nos fornece, via de regra, certa dimensão da concepção do autor ou editor acerca da obra. Neste caso, especificamente, percebemos a preocupação em mostrar, já na capa do livro, uma concepção de História que tenta romper com a visão dos grandes feitos e grandes personagens. A capa apresenta uma multidão, composta por vários rostos rabiscados, intencionando, assim pensamos, apresentar a História como uma construção coletiva, em que o próprio anônimo, e não somente as grandes personalidades, têm o seu espaço. Este é um relevante fator, tendo em vista que foi criada num período em que vários livros ainda traziam, em suas capas, fotos ou desenhos de presidentes, imperadores, faraós, em que o conhecimento se apresenta como distante da realidade do aluno, construída por agentes que, supostamente, possuíam a prerrogativa da mudança histórica. Precisamos destacar, contudo, que o fato da capa de um livro trazer implicitamente a visão ou concepção anteriormente exposta, não significa, necessariamente, que ela se concretize ao decorrer do livro, ou mesmo em todo o livro, apesar de já ser um importante/interessante indício. Ao analisar a edição de 1997, em comparação com as outras duas edições em destaque, percebemos modificações no formado do livro, que antes era de 19x27 cm e passa a ser de 17x24 cm. Há mudanças também de todos os envolvidos no processo editorial. A capa do mesmo também é diferente e é selecionada/produzida por uma empresa especializada, a Angra Comunicação Visual. A mudança para uma empresa especializada talvez indique a exigência de dinamismo do mercado editorial. A capa da edição de 1997, por sua vez, é composta pela Figura 2 - Capa do livro: NEVES, Joana & NADAI, Elza. História do Brasil: da Colônia à República. São Paulo: Saraiva, Foto: autor. Figura 3 - Capa do livro: NEVES, Joana & NADAI, Elza. História do Brasil. São Paulo: Saraiva, Foto: autor. famosa pintura de Tarsila do Amaral, Operários, produzida em Nela, podemos

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