VALOR DE USO E VALOR DE TROCA NUM CONTEXTO DE CIDADE-MERCADORIA: O CASO DE FLORIANÓPOLIS SC
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- Ruy Flávio Cipriano Lagos
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1 182 VALOR DE USO E VALOR DE TROCA NUM CONTEXTO DE CIDADE-MERCADORIA: O CASO DE FLORIANÓPOLIS SC Introdução SILVA, Marcia Alves Soares da No contexto capitalista, há notadamente uma imposição de um novo modo de apropriação do espaço da cidade, com formas cada vez mais mutantes em tempos cada vez mais efêmeros (CARLOS, 2007). As cidades perderam seu valor de uso em detrimento do valor de troca, caracterizando-se como cidades-mercadoria, sendo o consumo do espaço a principal característica da produção do espaço urbano. A urbanização em nome do turismo e da expansão imobiliária nega as particularidades e reais necessidades dos moradores locais, sendo o marketing da cidade o contribuinte para a criação de cidades imaginárias, que nega a pobreza, as desigualdades, a segregação e os problemas ambientais. Florianópolis é um grande exemplo de cidade-mercadoria, onde a especulação imobiliária, juntamente com o capital turístico criou a Ilha da Magia, que não é tão mágica assim para todos os seus moradores. A capital catarinense, seguindo os moldes desenvolvimentistas da década de 1950, inicia um rápido e intenso processo de urbanização, possibilitado pelos grandes investimentos imobiliários e turísticos. Tal processo propiciou um projeto de venda da cidade e a criação do marketing da Ilha da Magia, onde, na contemporaneidade, percebe-se que os projetos de urbanização contemporânea são marcados pela banalização da forma-mercadoria, onde as cidades, vistas como mercadorias, são projetadas para atender os interesses dos atores hegemônicos, especialmente aqueles relacionados ao turismo e planejamento urbano. Nessa análise, as cidades tornam-se negócios, projetadas pelos planejadores urbanos e por promotores culturais para entrarem nos circuitos mundiais de consumo, desconsiderando muitas vezes as particularidades locais. Assim, na capital catarinense temos um incisivo projeto de cidade-mercadoria, onde as transformações devido à urbanização negligenciam o modo de vida, o cotidiano e anseios das populações locais, cuja projeto de venda da cidade claramente aconteceu pela participação do capital turístico e imobiliário, juntamente com Poder Público, no intuito de projetar a capital catarinense ao mercado internacional. Nesse viés, tal artigo tem por objetivo discutir sobre esse projeto de venda da cidade de Florianópolis, levando em consideração especialmente a atuação do turismo e do mercado imobiliário. Objetivos O presente trabalho tem por objetivo discutir a relação entre os atuais projetos urbanos e o processo de venda da cidade, culminando na construção de cidades-mercadorias, onde o espaço do valor de troca impõe-se sobre o espaço do valor de uso. A discussão tem como pano de fundo Florianópolis, SC, cujos projetos de venda da cidade são notáveis, numa visível jogada do marketing turístico e imobiliário. A pesquisa é resultado da dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF), em 2014, que teve como objetivo fazer uma relação entre o processo de urbanização da Florianópolis, levando em consideração os interesses turísticos e imobiliários, e a cultura açoriana, reinventada para entrar nos circuitos de consumo da cidade.
2 183 Metodologia Para esta discussão, a metodologia principal foi análise bibliográfica, especialmente a partir das contribuições de Carlos (2005, 2007, 2009), Lefebvre (2001), Vainer et al (2000) e Sanchéz (2003), embora na dissertação de mestrado também tenha sido utilizada entrevistas semiestruturadas com moradores de dois distritos de Florianópolis, Pântano do Sul e Ribeirão da Ilha. Resultados e discussões Os atuais projetos urbanos são construídos numa lógica hegemônica de consumo do lugar, por se realizarem em função da reprodução econômica, onde a mercantilização da cultura já é uma realidade e o espaço urbano, transformado em local de consumo, legitima a ideia de cidade-mercadoria. Tais projetos não seriam possíveis sem que houvessem estratégias de consenso impostas aos indivíduos, sendo necessário a identificação do cidadão com a cidade, criando assim o consenso-cidadão-consumidor. Para que tal consenso se realize, os atores hegemônicos constroem determinados modelos e procuram impor leituras e representações do urbano, influenciando outros atores na definição de estratégias espaciais para a construção da cidade-mercadoria. Essa estratégia global acontece no território da sociedade do consumo dirigido, cidades renovadas para serem centros de consumo, com imposição de uma ideologia que prega a felicidade a partir do consumo exacerbado. Alguns investimentos, públicos e privados, são apresentados como bom para todos a longo prazo, no qual o cidadão se identifica com a imagem propagada. Contudo, os benefícios da modernização para muitos, acontecem apenas no plano do imaginário (SANCHÉZ, 2001; 2003). A forjada identificação dos indivíduos com os projetos urbanos da cidade-mercadoria acontece principalmente no plano cultural. Sobre isso, Sanchéz (2001, p. 35) acredita que Há um complexo intercâmbio entre a transformação material e o simbolismo cultural, entre a reestruturação de lugares e a construção de identidades. Desse modo, a cultura é o meio que relaciona a textura da paisagem ao texto social. Sanchéz (2001) afirma que a globalização afeta a (re)produção do espaço urbano, atingindo portanto as políticas públicas de reestruturação deste espaço, no qual os atuais projetos urbanos possuem a pretensão de se inserirem no mercado mundial. Atua como legitimação dos processos hegemônicos globais e imposição de um pensamento único. O que acontece é a formação de um mercado mundial de cidades, com a ideia de cidades-modelo, criada pelos governos locais, atores hegemônicos, agências multilaterais e redes mundiais de cidades. Essas cidades possuem alcance global, já que há a construção de imagens baseada na racionalidade dos processos de reprodução da economia global, para se tornarem dominantes, consumíveis, legitimadas através de formas modernas de dominação e técnicas de manipulação cultural divulga da cidade. Assim, o espaço ganha a forma adequada e desejada pelos atores hegemônicos, o que revela a importância do city marketing nas políticas urbanas Consideramos o urbano além das suas formas 1, ou seja, como prática social, onde as 1 Entendemos a urbanização enquanto forma como aquela sublinhada por Carlos (2007) evidenciada na paisagem, equipamentos, traçado e desenhos urbanos. Comumente está associada à infraestrutura urbana, como saneamento básico, asfalto, luz elétrica, por exemplo. Sobre isto, Sposito (2001) afirma que a urbanização é um processo e a cidade é a forma espacial, sendo que Carlos (2007) critica a forma de imposição de um novo modo de apropriação do espaço da cidade, com formas cada vez mais mutantes em tempos cada vez mais efêmeros. É assim também que a metrópole se realiza realizando uma transformação constante em um tempo cada vez mais
3 184 transformações do espaço urbano também repercutem nos modos de vida, no cotidiano, na apropriação do espaço pelos sujeitos. Neste sentido, as culturas, identidades, sentimentos de pertencimento a todo momento necessitam se reinventar de forma muito mais rápida e intensa, já que as contradições na produção do espaço dizem respeito a integração e desintegração da vida cotidiana pelo empobrecimento das relações sociais (como as de vizinhança), enfraquecimento do comércio local, esvaziamento das ruas pelos moradores, substituídos pelo fluxo de automóveis. A contradição maior está no espaço enquanto valor de troca (cidade como negócio) e enquanto valor de uso (vida cotidiana, espaço improdutivo) (CARLOS, 2005). Dentro desta lógica, a cultura vai além da construção para o ser, mas vêm sendo apropriada e vendida pelo turismo e pelo capital imobiliário, onde muitas vezes são forjados elementos culturais, no intuito de projetar as cidades para o mercado turístico. Florianópolis é um grande exemplo, já que o turismo tem se mostrado como um dos setores de maior arrecadação, havendo uma apropriação e por vezes invenção das tradições locais, onde claramente a cultura local é fonte de marketing e venda da cidade. Em tal perspectiva, o espaço urbano também é fruto de uma dimensão cultural, seja por sua monumentalidade, mas também pelo seu modo de vida. Porém, o que temos são homens e relações coisificadas, onde suas obras e produtos lhes são subtraídos. O espaço urbano produzido tende a ser percebido apenas em suas formas, não exaltando que a produção e reprodução no espaço urbano também diz respeito as relações interpessoais, logo, relações que envolvem cultura e identidade. Neste contexto, o valor de troca tende a se sobrepor ao uso, em um espaço onde os lugares de apropriação diminuem, até quase desaparecerem, como nos espaços públicos. Tal processo contraditório, ao realizar o solo urbano como mercadoria indispensável à reprodução do capital financeiro, o faz em detrimento da realização do uso, onde o tal espaço improdutivo (da realização da vida que não mediada pelo mercado) se choca com as necessidades da construção dos espaços produtivos, ou seja, da realização do valor (CARLOS, 2007). Vivenciamos o lugar de consumo e o consumo do lugar, onde os promotores imobiliários criam espaços de consumo, de felicidade, propagadas pela publicidade e propiciando ainda mais a venda do espaço, especialmente devido as qualidades estéticas, um importante fator na manutenção da ideia de venda da cidade. Tais promotores vendem uma parcela do espaço codificado pelo urbanismo, onde o espaço torna-se valor de troca e sua venda se assemelha à venda de estilos de vida, ou seja, toda a cidade (renovada) é incorporada nas estratégias de agentes imobiliários. A cidade e a realidade urbana dependem do valor de uso, contudo o valor de troca e a generalização da mercadoria pela industrialização tendem a destruir, ao subordiná-las a si, a cidade e a realidade urbana, refúgios do valor de uso, embriões de uma virtual predominância e de uma revalorização do uso (SÁNCHES, 2003 apud. LEFEBVRE, 2001). Nesse viés, a cidade tem sido idealizada como uma empresa, perdendo seu caráter de polis: De um lado a city, impondo-se à cidade como espaço e objeto e sujeito de negócios; de outro lado, a polis, afirmando a possibilidade de uma cidade como espaço do encontro e confronto entre cidadãos. Ali onde a mercantilização do espaço público está sendo contestada, ali onde os citadinos investidos de cidadania politizam o quotidiano e quotidianizam a política, através de um permanente processo de reconstrução e reapropriação dos espaços públicos, estão despontando os primeiros rápido imposto através da fluidez das formas urbanas que se impõem como renovação constante. As transformações nas formas da cidade impõem transformações nos tempos de vida e nos modos de apropriação dos lugares através de mudanças de usos (CARLOS, 2007, p. 45).
4 185 elementos de uma alternativa que, por não estar ainda modelada e consolidada, nem por isso é menos promissora (VAINER, 2000, p. 101). De acordo com Sanchéz (2003) percebe-se que o espaço urbano não é apenas um mero cenário das relações sociais, mas também uma instância para a dominação econômica ou ideológica, no qual o espaço do valor de troca impõe-se sobre o espaço do valor de uso, ou seja, os modos de apropriação são cada vez mais determinados pelos mercados. O acesso ao espaço acontece pela mediação do mercado, que impõe mudanças profundas nos modos de uso e consumo, ao legitimar processos hegemônicos globais e a imposição de um pensamento único, sendo as singularidades políticas, culturais, urbanísticas da cidade vendidas de modo semelhante. Os meios de comunicação e informação estão articulados aos interesses dominantes e são instrumentos-chave na produção da subjetividade coletiva, a partir da criação de símbolos e signos. A vida cotidiana implode através do conflito entre a imposição de novos modelos culturais e comportamentais, invadidos pelo mundo mercadoria, estabelecida no plano do mundial, e as especificidades da vida no lugar apoiada em antigas relações de sociabilidade. O empobrecimento da vida acontece à medida que as relações entre as pessoas passam a ser substituídas por relações profissionais ou institucionais. Quando o espaço é transformado em valor de troca (cidade-mercadoria), ignora-se o conteúdo da prática socioespacial da cidade, sendo que este processo, que se realiza como norma, invade o espaço privado, sem, no entanto, recriar identidades ou pertencimentos (CARLOS, 2005; 2007) O uso produtivo da cidade se impondo ao uso improdutivo revela a construção da cidade dos negócios, criando a cidade enquanto exterioridade onde os usos entram em confronto. Desse modo, os termos em que a reprodução se realiza revela o conflito entre espaços produtivos e improdutivos na metrópole bem como as condições em que se constroem os termos da cidadania (CARLOS, 2005, p. 36) Em Florianópolis, a vida cotidiana por muito tempo foi marcada pelo ar tranquilo, bucólico e pacato. A capital catarinense praticamente desde a sua ocupação açoriana no século XVIII até meados do século XX era rural e baseada na pesca, cuja vida nos bairros possuía profundos laços com o mar, com os engenhos, com o bater dos bilros, com as cantigas de ratoeiras, com as relações de compadrio. Atualmente, até mesmo nesses locais mais distantes do centro como Pântano do Sul e Ribeirão da Ilha as ruas, principalmente durante a semana ficam vazias, exceto na hora do rush, quando os moradores voltam para suas casas ao final do trabalho. Claramente representa, entre outras questões, que tais lugares hoje podem ser chamados de bairros-dormitório, onde as relações de vizinhança se restringem aos antigos moradores, especialmente os idosos. Nesta perspectiva, a cidade torna-se palco do espetáculo, o que dificulta um olhar mais sensível sobre a realidade, ao obscurecer e eliminar o cotidiano e sua construção, as práticas culturais, a apropriação dos espaços públicos. Isso porque nessa lógica, o espaço é produzido de forma homogênea, sendo que é na vida cotidiana que se criam as formas, a dinâmica da vida e o seu conteúdo (CARLOS, 2009). A valorização do que é tradicional, como as festas, a culinária, religiosidades, crenças e mitos, o artesanato - é uma forma de garantir a identidade do povo e da cidade. A manutenção da tradição, oferece na prática, um sentido de continuidade. Por isso a necessidade de estudos que visibilizem os atores sociais como no caso dos descendentes açorianos em Florianópolis, incorporados nesse processo, buscando a preservação de suas raízes culturais, a defesa do lugar, bem como sua memória e identidade coletiva na tentativa de resguardar suas singularidades.
5 186 O espaço ganha uma importância ainda maior para o capital, já que o espaço da cidade se realiza enquanto mercadoria: as cidades começam a serem vendidas, independente de suas particularidades e singularidades. Para que se realize como mercadoria, pronta para o consumo, são necessárias estratégias que promovam o consumo da cidade, ou seja, a partir de representações manipuladas, que obedeçam uma determinada visão. Essas estratégias não seriam possíveis se não houvesse a utilização da mídia como meio de comunicação/informação na difusão e afirmação desse consumo exacerbado. Considerações finais Tal debate mostra a pertinência da compreensão da dimensão cultural no espaço urbano, suas múltiplas manifestações e sentidos para as pessoas, já que é necessária para a construção da identidade. Compreende-se identidade não só como identificação, mas como pertencimento e enraizamento por um determinado lugar, que se modificado, também modificará a construção identitária. Neste sentido, é emergente traduzir a vida urbana em sua realidade prático-sensível, já que a cidade também é espaço do simbólico, que desperta sentimentos, emoções e a sensibilidade das pessoas A construção da identidade acontece no cotidiano. Contudo, com a negação do cotidiano, as relações coisificadas, a ausência de comunicação, as relações fragmentadas e diluição dos contatos e perda das referências, fica mais complexa a construção identitária e o sentimento de pertencimento. A vida, cada vez mais normatizada, coisifica os sentimentos e a relação com o outro, por isso torna-se importante o resgate das emoções, sentimentos, vivências, pensando a cidade para além das formas, já que o modo de vida urbano também é diz respeito à questão cultural. Percebe-se que os projetos de urbanização contemporânea são marcados pela banalização da forma-mercadoria, onde as cidades, vistas como mercadorias são projetadas para atender os interesses dos atores hegemônicos. Nessa análise, as cidades tornam-se negócios, projetada pelos planejadores urbanos e por promotores culturais para entrarem nos circuitos mundiais de consumo, desconsiderando muitas vezes as particularidades locais. Assim, na capital catarinense temos um incisivo projeto de cidade-mercadoria, onde as transformações devido à urbanização negligenciam o modo de vida, o cotidiano e anseios das populações locais. Referências bibliográficas VAINER, Carlos. Pátria, empresa e mercadora. Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A cidade do pensamento único. Desmanchando consensos. 3.ed. Rio de Janeiro: Vozes, CARLOS, Ana Fani Alessandri. A reprodução da cidade como negócio. In: CARLOS, Ana Fani; CARRERAS, C. Urbanização e mundialização. Estudos sobre a metrópole. São Paulo: Contexto, O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade, São Paulo: FFLCH, 2007ª. LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Centauro, SANCHÉZ, Fernanda. A reinvenção das cidades para um mercado mundial. Chapecó: Argos, 2003.
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