UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE VETERINÁRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS VETERINÁRIAS LUCIANA DE ALMEIDA LACERDA
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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE VETERINÁRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS VETERINÁRIAS Tipagem sangüínea e titulação de aloanticorpos em felinos domésticos de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil LUCIANA DE ALMEIDA LACERDA PORTO ALEGRE 2006
2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE VETERINÁRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS VETERINÁRIAS Tipagem sangüínea e titulação de aloanticorpos em felinos domésticos de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil Autor: Luciana de Almeida Lacerda Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciências Veterinárias na área de Área de Morfologia, Cirurgia e Patologia Animal. Especialidade de Patologia Animal e Patologia Clínica. Orientador: Félix Hilario Diaz González PORTO ALEGRE 2006
3 L131t Lacerda, Luciana de Almeida Tipagem sangüínea e titulação de aloanticorpos em felinos domésticos de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil. / Luciana de Almeida Lacerda. Porto Alegre: UFRGS, f.; il. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Faculdade de Veterinária, Programa de Pósgraduação em Ciências Veterinárias, Porto Alegre, RS-BR, Félix Hilário Diaz González, Orient. 1. Imunologia: gatos 2. Aloanticorpos: felinos: sangue 3. Bioquímica I. Diaz González, Félix Hilário, Orient. II. Título. Catalogação na fonte: Biblioteca da Faculdade de Veterinária da UFRGS
4 FOLHA DE APROVAÇÃO Luciana de Almeida Lacerda Tipagem sangüínea e titulação de aloanticorpos em felinos domésticos de Porto Alegre Aprovada em JAN 2006 APROVADO POR: Prof. Dr. Félix Hilário Diáz González Orientador Prof a. Dr a. Ana Paula Ravazzolo Membro e Presidente da Comissão Prof a. Dr a. Claudete Schmidt Membro da Comissão Prof a. Dr a. Sonia Terezinha dos Anjos Lopes Membro da Comissão
5 AGRADECIMENTOS Agradeço aos meus pais, Margarida Aparecida de Almeida Lacerda e Moacir Lacerda, principalmente à minha mãe pelo apoio, amor e amizade durante todos os momentos de minha vida. Agradeço a toda a família LACVet (Laboratório de Análises Clínicas Veterinárias da UFRGS), especialmente ao Prof. Félix H. D. González por ser meu orientador e amigo, por acreditar em minhas idéias e apoiá-las, às minhas amigas e parceiras deste trabalho Simone Tostes de Oliveira, Gisele G. Stein e Tatiana A. Guerra e a todos os outros membros que fazem ou já fizeram parte desta família da qual me orgulho desde Obrigado por permitirem que este laboratório se transforme, cresça e melhore a cada dia que passa na pesquisa, no ensino e na extensão universitária. Agradeço aos professores e amigos que me ensinaram e me apoiaram em tantas decisões, especialmente à Dra. Anne Hale (the greatest specialist in veterinary transfusion medicine), ao Dr. Urs Giger (a legend in feline blood typing), às empresas BD Brasil e DMS Laboratories que me apoiaram muito neste trabalho e ao CNPq pelo apoio financeiro. Agradeço à Faculdade de Veterinária e à Universidade Federal do Rio Grande do Sul por terem se tornado minha segunda casa durante estes últimos anos. Agradeço muito aos 100 felinos e aos seus proprietários participantes deste trabalho. Enfim, agradeço aos animais e à patologia clínica veterinária pela oportunidade de poder analisar esse maravilhoso fluido chamado sangue, fluido da vida, fluido que nos permite auxiliar no diagnóstico de doenças, avaliar problemas nutricionais e ainda salvar outras vidas através da transfusão.
6 RESUMO O interesse pela medicina transfusional e a imunohematologia tem crescido nos últimos anos na medicina veterinária e muitos trabalhos sobre tipagem sangüínea de felinos domésticos e silvestres foram realizados no mundo, mas até agora pouco se sabe sobre felinos brasileiros. Os felinos apresentam um grupo sangüíneo composto de três tipos A, B e AB. A tipagem sangüínea e a titulação de aloanticorpos são importantes para evitar reações transfusionais e isoeritrólise neonatal. A probabilidade de ocorrência de uma reação transfusional em um felino depende da prevalência local dos tipos sangüíneos e dos títulos de aloanticorpos. A determinação dos títulos de aloanticorpos auxilia na estimativa do risco e da severidade de uma reação transfusional após uma transfusão não compatível em uma população de gatos. O objetivo deste trabalho foi determinar a prevalência dos tipos sangüíneos e titulação de aloanticorpos em felinos domésticos, sem raça definida, da cidade de Porto Alegre, Brasil. Para este estudo, foram selecionados aleatoriamente 100 gatos, sem raça definida e sem parentesco entre si (36 machos e 64 fêmeas), com peso maior que 2 kg, clinicamente saudáveis, sem histórico de transfusão prévia, de proprietários particulares da cidade de Porto Alegre. Amostras de sangue foram coletadas através de punção da veia jugular. A tipagem sangüínea foi realizada através de teste em cartão (RapidVet H Feline - DMS Laboratories, Flemington, USA) e um teste de hemaglutinação, em tubo de ensaio, foi realizado nos casos de autoaglutinação ou para confirmação de tipo B ou AB. A titulação de aloanticorpos foi determinada no soro de cada animal. No presente estudo encontrou-se uma prevalência de 97% de gatos tipo A e 3% de gatos tipo B. Não foram encontrados gatos tipo AB. Todos os gatos do tipo A e B apresentaram títulos de aloanticorpos variados com aglutinação macroscópica evidente ou microscópica. Nenhum gato apresentou anticorpos contra o próprio tipo e apenas um gato do tipo A não apresentou aglutinação das células do tipo B. Baseado nos títulos encontrados no presente estudo, conclui-se que a transfusão de sangue do tipo A ou AB em gatos do tipo B apresenta risco relativo de 33,3% de reação aguda severa e 66,6% reação aguda leve nos receptores felinos. A transfusão de sangue do tipo AB ou B em gatos do tipo A apresenta um risco potencial de reação aguda severa em 1,0%, reação aguda leve em 37,1% e destruição prematura dos eritrócitos em 60,8% dos receptores felinos. É essencial assegurar a compatibilidade entre doador e receptor antes de qualquer transfusão sangüínea em felinos, sendo os métodos recomendados a prova cruzada e a tipagem sangüínea. Palavras-chave: imunohematologia, bioquímica do eritrócito, tipos sangüíneos, aloanticorpos, gatos
7 ABSTRACT In the last years the interest in transfusion medicine and immunohematology in Veterinary Medicine became more intense and a lot of studies about blood typing in domestic and wild felids were done around the world but until now there is a lack of information about brazilian cats. The cats present one blood group with three blood types A, B e AB. The blood typing and the determination of the alloantibodies titres are important to avoid transfusion reactions and neonatal isoerythrolysis. The probability of the occurrence of a transfusion reaction in a cat depends on the local prevalence of the feline blood types and the alloantibodies titres. Determination of the alloantibodies titres helps to access the risk and the severity of transfusion reactions following an unmatched transfusion in a cat population. The objective of this study was to determine the prevalence of the feline blood types and the alloantibodies titres in non-pedigree domestic cats of Porto Alegre, Brazil. To the present study a hundred of clinically healthy non-pedigree and non-related cats weighted more than 2 kg with no history of previous transfusion were randomly selected (36 males and 64 females) from private owners of Porto Alegre city. Blood samples were collected from the jugular vein. The blood typing was performed by card test (RapidVet H Feline - DMS Laboratories, Flemington, USA) and another hemagglutination tube test was performed in cases of autoagglutination, weak agglutination of blood type A cats or to confirm blood type B or AB cats. The alloantibodies titres were determined by tube serial dilution of the serum from each cat. In the present study the frequency of blood type A cats were 97% and 3% of blood type B. No AB cats were found. All types A and B cats presented varied alloantibodies titres with gross macroscopic or microscopic agglutination. None of the cats had antibodies against their own types and one A type cat was negative for both gross and microscopic agglutination of type B cells. Based on the titres found in the present study, the relative risk reaction of a transfusion of type A or AB blood in a type B cat is 33.3% with acute severe reaction and acute mild reactions in 66.6% of the feline recipients. The transfusion of type AB or B blood to type A cats presents a potential risk of acute severe reaction in 1.0%, acute mild reaction in 37.1% and premature red cell destruction in 60.8% of the feline recipients. It is essential to ensure the compatibility between donor and receptor before any blood transfusion in cats. The recommended methods are cross-matching and blood typing. Key-words: immunohematology, erythrocyte biochemistry, blood types, alloantibodies, cats
8 SUMÁRIO CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO... 1 CAPÍTULO 2. REVISÃO DE LITERATURA... 2 A IMPORTÂNCIA DOS TIPOS SANGÜÍNEOS EM MEDICINA VETERINÁRIA... 2 OS TIPOS SANGÜÍNEOS EM FELINOS... 2 A ESTRUTURA BIOQUÍMICA DOS TIPOS SANGÜÍNEOS EM FELINOS... 3 OS ALOANTICORPOS EM FELINOS... 4 A IMPORTÂNCIA CLÍNICA DOS TIPOS SANGÜÍNEOS E ALOANTICORPOS EM FELINOS... 5 Reações transfusionais em felinos... 6 Isoeritrólise neonatal felina... 8 PREVALÊNCIA DOS TIPOS SANGÜÍNEOS EM FELINOS NO MUNDO... 8 MÉTODOS DE TIPAGEM SANGÜÍNEA...10 CAPÍTULO 3. TIPAGEM SANGÜÍNEA DE FELINOS DOMÉSTICOS SEM RAÇA DEFINIDA DE PORTO ALEGRE, RIO GRANDE SUL, BRASIL...12 RESUMO...12 ABSTRACT...13 INTRODUÇÃO...13 MATERIAL E MÉTODOS...15 RESULTADOS E DISCUSSÃO...16 AGRADECIMENTOS...19 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...19 DECLARAÇÃO DE ARTIGO SUBMETIDO PARA PUBLICAÇÃO...21 CAPÍTULO 4. TITULAÇÃO DE ALOANTICORPOS ANTI-A E ANTI-B EM GATOS DOMÉSTICOS SEM RAÇA DEFINIDA EM PORTO ALEGRE, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL...22 RESUMO...22 ABSTRACT...23 INTRODUÇÃO...23 MATERIAL E MÉTODOS...25 RESULTADOS...26 DISCUSSÃO...27 AGRADECIMENTOS...29 REFERÊNCIAS...29 DECLARAÇÃO DE ARTIGO SUBMETIDO PARA PUBLICAÇÃO...32 CAPÍTULO 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...33 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...35
9 1 CAPÍTULO 1. INTRODUÇÃO O interesse pela medicina transfusional e pela imunohematologia tem crescido nestes últimos anos na medicina veterinária. No Brasil, existem serviços pouco especializados de hemoterapia veterinária e por isso a pesquisa nesta área é essencial para a medicina transfusional no país. Durante os últimos anos, muitos trabalhos sobre a tipagem sangüínea de felinos domésticos e silvestres foram realizados nos mais variados países, mas até agora pouco se sabe sobre os felinos brasileiros. A tipagem sangüínea é especialmente importante na área de hemoterapia de qualquer espécie animal com o objetivo de evitar reações transfusionais, mas em felinos, é também importante para evitar a isoeritrólise neonatal. Modificações na prática da hemoterapia atualmente realizada nos hospitais veterinários brasileiros são necessárias e por isso a pesquisa nesta área precisa ser continuamente motivada para possibilitar uma melhor capacitação de médicos veterinários e garantir a qualidade e a rapidez do atendimento dos animais que necessitam do serviço de hemoterapia. O conhecimento sobre os tipos sangüíneos e aloanticorpos de felinos domésticos de Porto Alegre é um passo essencial para a medicina veterinária de pequenos animais no Brasil e constitui uma informação prática com a qual podem ser feitos diversos estudos, iniciando uma nova linha de pesquisa na área da medicina transfusional veterinária brasileira.
10 2 CAPÍTULO 2. REVISÃO DE LITERATURA A importância dos tipos sangüíneos em Medicina Veterinária Os grupos sangüíneos são definidos por antígenos espécie-específicos presentes na superfície dos eritrócitos. A maior parte dos antígenos é um componente integral de membrana composto por carboidratos complexos associados a proteínas ou lipídeos inseridos na membrana eritrocitária, sendo denominados de glicoproteínas ou glicolipídeos. Entretanto, estes antígenos também podem estar presentes nas plaquetas, nos leucócitos, nos tecidos e em fluidos (soro, saliva) do organismo. A especificidade sorológica é determinada pela estrutura do carboidrato (HARVEY, 1997). Os antígenos eritrocitários podem variar em imunogenicidade e significado clínico, a detecção e a descrição destes ainda é feita através de testes sorológicos (anticorpos policlonais ou monoclonais). Na medicina veterinária, o significado clínico dos grupos sangüíneos está associado às reações transfusionais e à isoeritrólise neonatal. Os antígenos determinantes dos grupos sangüíneos, por serem marcadores genéticos, podem também ser utilizados para resolver casos de disputa de paternidade, além disso, mesmo que ainda não comprovado, podem estar envolvidos na anemia hemolítica imunomediada e podem servir como marcadores de doenças (HOHENHAUS, 2004). Em humanos existe o sistema de grupos sangüíneos ABO, enquanto que os animais apresentam uma variedade de diferentes sistemas. O conhecimento sobre os tipos sangüíneos de diferentes espécies é de grande importância na medicina veterinária, visto que uma transfusão sangüínea incompatível pode resultar em reação transfusional hemolítica severa e até levar o animal à morte, em alguns casos. (HOHENHAUS, 2004). Os tipos sangüíneos em felinos Um grupo sangüíneo composto por 3 tipos sangüíneos acompanhado da ocorrência de aloanticorpos naturais foi descrito pela primeira vez em A nomenclatura que designa dois tipos, A e B, foi usada pela primeira vez em Um terceiro tipo AB foi descrito em 1980 e desde então não houve descrição de gatos que não possuíssem antígenos eritrocitários (tipo O ou nulo). Apesar do uso das mesmas
11 3 letras aplicadas aos tipos sangüíneos humanos, não existe relação sorológica alguma entre o sistema de grupo sangüíneo AB felino e o ABO humano (HOHENHAUS, 2004). Os tipos sangüíneos em felinos são determinados por pelo menos dois alelos (a, b) no mesmo locus. O alelo tipo a parece ser completamente dominante sobre o alelo tipo b. Portanto, gatos com fenótipo A podem ter genótipo a/a ou a/b, enquanto que somente gatos homozigotos para o alelo b expressam quantidades suficientes do antígeno eritrocitário B e não possuem antígeno A (KNOTTENBELT, 2002). Um terceiro alelo, AB, que é recessivo em relação ao alelo A, mas dominante sobre o alelo B, ainda é estudado, mas acredita-se que seja determinante para a herança do tipo sangüíneo AB. A presença dos antígenos eritrocitários do sistema AB (A, B e AB) nos fetos felinos podem ser detectadas aos 38 dias de gestação. Os gatos parecem não expressar um gene que determine a secreção destes antígenos, visto que os antígenos A e B não foram detectados na saliva destes animais (KNOTTENBELT, 2002; HOHENHAUS, 2004). A estrutura bioquímica dos tipos sangüíneos em felinos A natureza molecular dos grupos sangüíneos de felinos é determinada por antígenos de membrana, especificamente pela forma do ácido neuramínico presente em glicolipídeos (gangliosídeo G D3 ) e glicoproteínas de membrana. Sabe-se que o ácido N- Glicolilneuramínico (NeuAg) é o maior determinante antigênico para o grupo A. Os eritrócitos do tipo B apresentam outra forma do ácido, o N-Acetilneuramínico (NeuAc). Estes eritrócitos não apresentam o ácido N-Glicolilneuramínico. O tipo AB é único e apresenta os dois tipos do ácido (ANDREWS et al., 1992; HOHENHAUS, 2004). De acordo com a biosíntese do ácido N-Glicolilneuramínico, sabe-se que existe uma enzima (ácido CMP-N-acetilneuramínico hidroxilase) que converte o ácido N- Acetilneuramínico em ácido N-Glicolilneuramínico, portanto, uma explicação para a herança dos antígenos A e B seria a falta desta enzima em gatos tipo B. Estudos sobre gatos tipo AB indicam que estes possuem uma mutação desta enzima, que altera a especificidade do substrato, a ligação com o substrato, ou a cinética enzimática. Uma alternativa seria que estes gatos poderiam possuir um gene que altera a expressão desta enzima ou uma mutação da enzima sialiltransferase que altera a expressão do ácido N-
12 4 Glicolilneuramínico na superfície do eritrócito do tipo AB (ANDREWS et al., 1992; HOHENHAUS, 2004). Os Aloanticorpos em felinos Os felinos apresentam anticorpos naturais (também conhecidos como aloanticorpos) contra o antígeno do tipo sangüíneo que não possuem. O teste de compatibilidade e a tipagem sangüínea se tornam muito importantes na prevenção de reações transfusionais na prática da clínica veterinária. Apenas o felino do tipo AB não possui aloanticorpos naturais (SPARKES e GRYFFYDD-JONES, 2000; KNOTTENBELT, 2002; HOHENHAUS, 2004). Acredita-se que os aloanticorpos naturais são resultantes da exposição a epítopos que são comumente encontrados na natureza (geralmente como componentes estruturais de uma variedade de organismos incluindo plantas, bactérias e protozoários), e que possuem estrutura similar ou idêntica aos antígenos dos grupos sangüíneos (MALE, 1996; TIZARD, 1996). Em humanos, os epítopos responsáveis parecem ser antígenos presentes em bactérias intestinais (MALE, 1996, KUBY, 1997b). Em felinos, entretanto, a origem destes epítopos não foi estabelecida. A exposição a eles resulta em formação de anticorpos contra antígenos que o indivíduo não possui naturalmente. Os anticorpos produzidos irão reagir de forma cruzada contra antígenos similares (como os antígenos determinantes dos tipos sangüíneos) encontrados em eritrócitos não-próprios. A exposição a epítopos similares aos antígenos próprios não resulta em formação de anticorpos devido ao mecanismo de tolerância (KUBY, 1997a). Este mecanismo explica a relatada ausência de aloanticorpos em gatos do tipo AB (AUER E BELl, 1981), visto que os antígenos encontrados na natureza que são similares aos antígenos determinantes dos tipos A e B serão reconhecidos como próprios. A ausência de aloanticorpos de ocorrência natural em muitas espécies domésticas provavelmente se deve à ausência de exposição a um epítopo apropriado (KNOTTENBELT, 2002). A proporção de gatos do tipo A com baixos níveis de anticorpos naturais diretamente contra células do tipo B varia geograficamente (KNOTTENBELT, 2002). Entretanto, todos os gatos do tipo B parecem possuir altos níveis de anticorpos naturais contra células do tipo A (GRIOT-WENK et al., 1996).
13 5 Os anticorpos naturais anti-b dos gatos do tipo A caracterizam-se por algutininas fracas da classe IgM e hemolisinas fracas compreendendo proporções iguais de IgM e IgG (BUCHELER e GIGER, 1993). Os aloanticorpos anti-a parecem ser fortes hemolisinas anti-a e hemaglutininas predominantemente da classe IgM (WILKERSON et al., 1991; BUCHELER e GIGER, 1993), apesar de que parte da atividade hemaglutinante também tem sido associada a IgG (WILKERSON et al., 1991). A presença de NeuAc (antígeno determinante do tipo B) em variadas proporções em gatos do tipo A pode estar associada aos variados títulos de anticorpos anti-b relatados em gatos do tipo A, visto que o NeuAc pode ser reconhecido como um antígeno próprio. Ainda não foi determinado se gatos do tipo A com ausência de anticorpos anti-b circulantes possuem proporções maiores de NeuAc do que aqueles com altos títulos de aloanticorpos (KNOTTENBELT, 2002). A importância clínica dos tipos sangüíneos e aloanticorpos em felinos Nos Estados Unidos da América (EUA), em 2001, a Associação Americana de Médicos Veterinários estimou que a população de animais de companhia é constituída por mais de 68 milhões de gatos (HOHENHAUS, 2004). No Brasil, a Associação Nacional dos Fabricantes de Alimentos para Animais (ANFAL) estimou uma população de aproximadamente 13 milhões de gatos em 2005 (ANFAL, 2006). Devido ao fato de que muitos animais de estimação são considerados pelos seus proprietários membros de suas famílias, tratamento médico veterinário de alta qualidade é providenciado para estes animais e isto inclui transfusões de sangue (HOHENHAUS, 2004). A transfusão de sangue total ou de concentrado de eritrócitos é recomendada por diversas razões em gatos (hemorragias, anemia hemolítica e anemia por falha da medula óssea). Pesquisas sobre a prevalência dos tipos sangüíneos foram realizadas em diversos países e os resultados destes estudos possuem aplicação prática na clínica. O conhecimento dos grupos sangüíneos tornou possível identificar e prevenir reações transfusionais e a isoeritrólise neonatal, fenômeno muito importante responsável pela morte de ninhadas alguns dias após o parto (LUBAS e CONTINANZA, 1993; GRIOT- WENK e GIGER, 1995; KNOTTENBELT, 2002).
14 6 Reações transfusionais em felinos As reações transfusionais são comumente divididas em imunológicas e não imunológicas. As reações imunológicas se devem aos anticorpos pré-existentes (naturais) ou formados contra antígenos presentes em diferentes células sangüíneas e nas proteínas plasmáticas. A reação aos antígenos eritrocitários, ou incompatibilidade eritrocitária, é a reação mais estudada e continua sendo uma das mais importantes, desde que os primeiros antígenos eritrocitários foram descritos em humanos em 1900 (WESTHOFF e REID, 2003) e se caracteriza pela destruição por parte do sistema imune dos eritrócitos transfundidos, podendo ser divida em reações hemolíticas aguda e tardia (ABRAMS-OGG, 2000). Em felinos, os eritrócitos do sangue transfundido apresentam uma vida média de 4 a 5 semanas quando há compatibilidade sangüínea. Por outro lado, se não há compatibilidade, reações transfusionais podem ocorrer e as células podem durar apenas poucas horas até alguns dias. Em alguns casos, poucos mililitros de sangue são suficientes para causar uma reação que pode ser eventualmente fatal (LUBAS e CONTINANZA, 1993; GRIOT-WENK e GIGER, 1995; KNOTTENBELT, 2002). A probabilidade de que uma reação transfusional ocorra após uma transfusão depende da prevalência local dos tipos sangüíneos e da distribuição dos títulos de aloanticorpos (KNOTTENBELT, 2002). As reações transfusionais podem variar o grau de severidade e este está mais ligado ao título de aloanticorpos do que à quantidade de antígeno administrado (AUER e BELL, 1983). A proporção das classes de imunoglobulinas envolvidas na reação também pode influenciar no resultado de uma transfusão incompatível. Os aloanticorpos naturais em felinos são predominantemente da classe IgM (aloanticorpos anti-a) ou em iguais proporções de IgM e IgG (aloanticorpos anti-b). Os anticorpos da classe IgM são mais efetivos do que os IgG na ativação do complemento devido à sua estrutura pentamérica (KNOTTENBELT, 2002). As reações transfusionais em felinos foram descritas pela primeira vez em 1915 e, desde então, várias reações transfusionais agudas e tardias têm sido relatadas em gatos após uma transfusão terapêutica de sangue incompatível (KNOTTENBELT, 2002).
15 7 A incompatibilidade sangüínea pode causar reações potencialmente fatais. Geralmente, a transfusão de sangue tipo A em um gato tipo B resulta em uma rápida destruição do sangue do doador (meia-vida de 1,3 horas) com severos sinais clínicos (hipotensão, defecação, vômitos, hemoglobinemia, depressão neurológica) e até a morte. A administração da mínima quantidade de 1 ml de uma suspensão de células pode induzir uma reação severa, mas desafios subseqüentes com sangue incompatível não tornam a reação transfusional mais preocupante. Isto pode ser devido ao fato de que a ligação antígeno-anticorpo faz com que os títulos de anticorpos diminuam após alguns minutos da administração das células incompatíveis (AUER e BELL, 1983; KNOTTENBELT, 2002). Por outro lado, a transfusão de sangue tipo B em um gato tipo A, geralmente, produz sinais clínicos leves, a meia-vida dos eritrócitos transfundidos é de aproximadamente dois dias, devido ao baixo título de anticorpos naturais anti-b que geralmente apresentam. Apesar desta reação muitas vezes não ser aparente, o hematócrito do receptor diminui até os níveis pré-transfusionais, após alguns dias, e então, a transfusão terá obtido apenas um benefício transitório. A administração de sangue do tipo B em gatos do tipo A pode resultar em indução de um aumento do título de anticorpos anti-b que no futuro irão causar uma reação transfusional aguda severa se um sangue incompatível for administrado. (GRIOT-WENK e GIGER, 1995; SPARKES e GRYFFYDD-JONES, 2000; KNOTTENBELT, 2002; HOHENHAUS, 2004). Visto que os títulos de anticorpos anti-b hemolíticos demonstram uma flutuação grande durante o ano em alguns gatos do tipo A, o status de anticorpos de um indivíduo não pode ser usado para predefinir a severidade das reações subseqüentes após uma transfusão. As variações nos títulos de anticorpos naturais em gatos podem explicar o fato de que alguns gatos do tipo A apresentam reações severas enquanto outros apresentam apenas uma diminuição do hematócrito após a transfusão. Apesar da aparente ausência de aloanticorpos naturais em alguns gatos do tipo A, sangue do tipo B não deve ser transfundido em gatos do tipo A devido à subseqüente sensibilização que irá encurtar ainda mais a meia-vida do eritrócito transfundido (KNOTTENBELT, 2002). Gatos do tipo sangüíneo AB não apresentam aloanticorpos naturais contra os outros tipos sangüíneos e por isso poderiam receber sangue de ambos os tipos. Entretanto, existe risco de algum tipo de reação hemolítica devido ao fato de que gatos do tipo A e, principalmente, do tipo B, podem possuir altos títulos de aloanticorpos que
16 8 reagiriam com os eritrócitos do receptor, por isso, a preferência é por sangue tipo AB (KNOTTENBELT, 2002; HOHENHAUS, 2004). Isoeritrólise neonatal felina A outra reação de incompatibilidade observada em felinos é a isoeritrólise neonatal. O processo ocorre quando os filhotes de sangue tipo A mamam o colostro de uma fêmea do tipo B. Os aloanticorpos anti-a, que estão concentrados no colostro, se ligam aos eritrócitos do filhote causando hemólise e morte em poucos dias. A isoeritrólise neonatal, juntamente com outros possíveis fatores, é uma causa importante e preocupante de mortalidade neonatal e pode ser prevenida com a tipagem sangüínea antes do cruzamento (GRIOT-WENK e GIGER, 1995; SPARKES e GRYFFYDD- JONES, 2000; KNOTTENBELT, 2002; HOHENHAUS, 2004). Prevalência dos tipos sangüíneos em felinos no Mundo Estudos realizados no mundo todo revelam que o tipo A é o tipo sangüíneo mais comum entre gatos domésticos, entretanto observou-se que a proporção dos gatos tipo B varia muito de acordo com a região geográfica (Tabela 1). A prevalência de gatos tipo B também varia muito entre raças, entretanto gatos tipo AB são raros. Os gatos tipo AB são encontrados somente quando existem gatos do tipo B (GRIOT-WENK et al., 1996) ou AB (GIGER et al., 1991a) na população. Os tipos sangüíneos não foram associados com a idade ou coloração da pelagem (SPARKES e GRYFFYDD-JONES, 2000; KNOTTENBELT, 2002). Estudos nos Estados Unidos e na Espanha demonstraram que os felinos selvagens possuem os mesmo tipos sangüíneos dos gatos domésticos e que o tipo A também é o mais prevalente (GRIOT-WENK e GIGER, 1999; SILVESTRE- FERREIRA, 2006).
17 9 Tabela 1. Prevalência dos tipos sangüíneos em gatos domésticos de diferentes países. País n Tipo A Tipo B Tipo AB Autores (%) (%) (%) Austrália Auer e Bell (1981) Áustria Giger et al. (1992 Inglaterra Holmes (1950) Finlândia Giger et al. (1992) França Eyquem et al (1962) Alemanha Giger et al (1992) Holanda Giger et al (1992) Itália Giger et al (1992) Japão Ejima et al. (1986) Escócia Giger et al (1992) Knottenbelt et al. (1999a) Suíça Giger et al (1992) Estados Unidos Giger et al (1989) Giger et al (1991b) Nota: n = número de gatos testados; % = porcentagem de gatos. Fonte: KNOTTENBELT, O tipo A é de longe o tipo mais prevalente em felinos, mas entre certas raças puras, a prevalência do tipo B é bem mais alta (Devon Rex, British Shorthair, Exotic Shorthair, Turkish Van and Turkish Angora), apesar das percentagens variarem de zero a 60% dependendo da raça. Entre os sem raça definida (SRD) a porcentagem alta do tipo B foi vista em algumas regiões geográficas dos EUA (SPARKES e GRYFFYDD- JONES, 2000; KNOTTENBELT, 2002). O conhecimento da distribuição dos grupos sangüíneos na população local de felinos pode auxiliar na determinação do risco da ocorrência de reações transfusionais, enquanto o conhecimento dos títulos de aloanticorpos pode auxiliar na determinação da severidade destas reações. Entretanto, parece que a incidência de reações transfusionais de significado clínico é baixa, e isto provavelmente reflete uma falha no reconhecimento das complicações resultantes de uma transfusão (SPARKES e GRYFFYDD-JONES, 2000; KNOTTENBELT, 2002). É essencial que se faça um teste de compatibilidade entre doador e receptor antes da primeira transfusão em felinos. Os métodos mais indicados para se assegurar da compatibilidade entre doador e receptor são ambos: prova cruzada (teste de compatibilidade sangüínea) e a tipagem sangüínea (SPARKES e GRYFFYDD-JONES, 2000; KNOTTENBELT, 2002).
18 10 Métodos de tipagem sangüínea O teste de compatibilidade e a tipagem sangüínea são ferramentas essenciais e o princípio de uma reação positiva de tipagem sangüínea sorológica é a visualização macroscópica da aglutinação de eritrócitos dentro de poucos segundos até minutos, utilizando anticorpo conhecido ou um reagente especial com capacidade aglutinante. Se a aglutinação não é observada, o teste é considerado negativo. Os reagentes para tipagem podem ser anticorpos policlonais ou monoclonais, ou ainda lectinas (STIEGER et al, 2005). O anti-soro de gatos tipo A e B tem sido utilizado por décadas para a tipagem em gatos, particularmente o soro anti-a, que possui alta capacidade de aglutinação eritrocitária. A lectina do Triticum vulgaris substituiu o soro felino anti-b por sua maior capacidade aglutinante. Existem diversos laboratórios no mundo que oferecem diferentes tipos de testes, cada vez mais modernos, para a tipagem sangüínea de felinos para atender a demanda veterinária. Os métodos incluem teste em tubo de ensaio, em lâmina de microscopia, em forma de cartão (DMS Laboratories, Flemington, NJ, USA) com anticorpo policlonal ou monoclonal, gel e em microtubos. Todos os testes se baseiam nos princípios básicos de hemaglutinação, mas alteram reagentes e suas concentrações, forma de leitura, preparação da amostra e tempo de realização do teste (STIEGER et al., 2005). Em 2005, pesquisadores compararam os diferentes testes existentes no mercado e concluíram que o teste em cartão ainda é o único teste disponível e rápido para ser utilizado na prática clínica, mas aconselha-se que resultados positivos para autoaglutinação, gatos B e AB no cartão devam ser confirmados com teste em tubo de ensaio (teste padrão). Neste estudo, os autores ainda ressaltavam que os testes em gel e em microtubos (ou tubo simplificado) apresentavam potencial, mas que ainda precisavam de mais estudos com uma amostragem maior para serem utilizados (STIEGER et al., 2005). Em um estudo ainda mais recente, o teste em gel foi padronizado, com um número maior de amostras, para tipagem e teste de compatibilidade sangüínea, e comparando-se os resultados com o teste em tubo de ensaio, os resultados foram compatíveis e não foram afetados pela presença de anemia, policitemia, leucocitose,
19 11 hiperglobulinemia, hiperlipidemia, hiperbilirrubinemia, ou hemólise nas amostras testadas. Os autores concluíram que o teste em gel é um método laboratorial útil na identificação de incompatibilidades sangüíneas em felinos, como já é considerado em cães e humanos, e é menos subjetivo do que o teste em tubo de ensaio (GIGER, 2005).
20 12 CAPÍTULO 3. Tipagem sangüínea de felinos domésticos sem raça definida de Porto Alegre, Rio Grande Sul, Brasil Blood typing in non-pedigree domestic cats of Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brazil Luciana A. Lacerda 1*, Simone T. de Oliveira 1, Tatiana A. Guerra 1, Gisele G. Stein 1, Félix H. D. González 1 1 Laboratório de Análises Clínicas Veterinárias, Faculdade de Veterinária, Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Av. Bento Gonçalves, Porto Alegre, RS. * luciana.lacerda@ufrgs.br Resumo Muitos trabalhos sobre tipagem sangüínea de felinos domésticos e silvestres foram realizados no mundo, mas até agora pouco se sabe sobre felinos brasileiros. A tipagem sangüínea é importante para evitar reações transfusionais e isoeritrólise neonatal. Os felinos apresentam um grupo sangüíneo composto de três tipos: A, B e AB. O objetivo deste trabalho foi determinar a prevalência dos tipos sangüíneos em felinos domésticos, sem raça definida, da cidade de Porto Alegre. Foram selecionados aleatoriamente 100 gatos, clinicamente saudáveis, sem raça definida e sem parentesco entre si. Amostras de sangue foram coletadas da veia jugular e a tipagem sangüínea foi realizada através do teste RapidVet H Feline (DMS Laboratories, Flemington, USA) e do teste hemaglutinação em tubo de ensaio. A tipagem reversa foi realizada para confirmar o tipo e a presença de aloanticorpos. No presente estudo encontrou-se uma prevalência de 97% de gatos tipo A e 3% de gatos tipo B. Não foram encontrados gatos tipo AB. Para diminuir o risco de reações transfusionais, é essencial assegurar a compatibilidade entre doador e receptor antes de qualquer transfusão sangüínea em felinos. Os métodos recomendados para este procedimento são: o teste de compatibilidade sangüínea e a tipagem sangüínea. Palavras-chave: imunohematologia, bioquímica do eritrócito, tipos sangüíneos, gatos
21 13 Abstract Many studies about blood typing in domestic and wild felids were done around the world but until now there is a lack of information about brazilian cats. The blood typing of any animal is important to avoid transfusion reactions and neonatal isoerythrolysis. The cats present one blood group with three blood types A, B e AB. The objective of this study was to determine the prevalence of the blood types in non-pedigree domestic cats of Porto Alegre. A hundred of clinically healthy non-pedigree and non-related cats were selected. Blood samples were collected from the jugular vein and the blood typing was performed by RapidVet H Feline test (DMS Laboratories, Flemington, USA) and by hemagglutination tube test. Reverse blood typing was done to confirm the blood types and the presence of alloantibodies. In the present study the frequency of blood type A cats were 97% and 3% of blood type B. No AB cats were found. It s essential to ensure the compatibility between donor and receptor before any blood transfusion in cats. The recommended methods are cross-matching and blood typing. Key-words: immunohematology, erythrocyte biochemistry, blood types, cats Introdução Os grupos sangüíneos são definidos por antígenos espécie-específicos presentes na superfície dos eritrócitos. A maior parte dos antígenos é um componente integral de membrana composto por carboidratos complexos associados a proteínas ou lipídeos inseridos na membrana eritrocitária (Harvey, 1997). Os antígenos eritrocitários podem variar em imunogenicidade e significado clínico e a detecção e descrição destes é realizada através de testes sorológicos. Na medicina veterinária, o significado clínico dos grupos sangüíneos está associado às reações transfusionais e à isoeritrólise neonatal (Hohenhaus, 2004). Em felinos, a nomenclatura que designa os tipos A e B foi usada pela primeira vez em Um terceiro tipo AB foi descrito em 1980 e desde então não houve descrição de gatos que não possuíssem antígenos eritrocitários (tipo O ou nulo). Apesar do uso das mesmas letras aplicadas aos tipos sangüíneos humanos, não existe relação sorológica alguma entre o sistema de grupo sangüíneo AB felino e o ABO humano (Hohenhaus, 2004).
22 14 Pesquisas sobre a prevalência de cada tipo sangüíneo foram realizadas em diversos países e os resultados destes estudos possuem aplicação prática na clínica. Se a compatibilidade sangüínea é completa, os eritrócitos do sangue transfundido têm uma vida média de 4 a 5 semanas. Por outro lado, se não há compatibilidade, as células podem durar apenas poucas horas até alguns dias. Além disso, transfusões realizadas sem compatibilidade sangüínea podem levar a uma reação transfusional aguda, particularmente severa quando sangue de tipo A é transfundido em um gato tipo B, pois geralmente estes possuem altos níveis de aloanticorpos naturais. Nestes casos poucos mililitros de sangue são suficientes para causar uma reação que pode ser eventualmente fatal (Knottenbelt, 2002). O tipo AB não apresenta aloanticorpos contra A e B, podendo receber sangue de ambos os tipos. Entretanto, devido ao fato de que gatos do tipo A e, principalmente, B podem apresentar altos títulos de aloanticorpos, pode ocorrer hemólise em gatos tipo AB quando recebem outro tipo de sangue (Hohenhaus, 2004). O teste de compatibilidade e a tipagem sangüínea são ferramentas essenciais e o princípio de uma reação positiva de tipagem sangüínea sorológica é a visualização macroscópica da aglutinação de eritrócitos em pouco tempo, utilizando anticorpo conhecido ou um reagente especial com capacidade aglutinante. Se a aglutinação não é observada, o teste é considerado negativo. Os reagentes para tipagem podem ser anticorpos policlonais ou monoclonais, ou ainda lectinas (Stieger et al., 2005). Existem diversos laboratórios no mundo que oferecem diferentes tipos de testes, cada vez mais modernos, para a tipagem sangüínea de felinos para atender a demanda veterinária. Os métodos incluem teste em tubo de ensaio, lâmina de microscopia, cartão (DMS Laboratories, Flemington, NJ, USA) com anticorpo policlonal ou monoclonal, gel e microtubos. Todos os testes se baseiam nos princípios básicos de hemaglutinação, mas alteram reagentes e concentrações, forma de leitura, preparação da amostra e tempo de realização do teste (Stieger et al., 2005). Estudos realizados em vários países revelam que o tipo A é o tipo sangüíneo felino mais comum. Entretanto, observou-se que a proporção dos gatos tipo B varia significativamente conforme a região geográfica. A prevalência de gatos tipo B também varia muito entre raças, enquanto que gatos tipo AB são raros. Os gatos tipo AB têm sido encontrados somente quando existem gatos tipo B na população. Os tipos sangüíneos não foram associados com a idade ou coloração da pelagem (Griot-Wenk & Giger, 1999; Sparkes & Gryffydd-Jones, 2000; Knottenbelt, 2002).
23 15 Embora o tipo A seja o tipo mais prevalente em felinos, entre certas raças puras (Devon Rex, British Shorthair, Exotic Shorthair, Turkish Van, Turkish Angora) a prevalência do tipo B é bem mais alta, com percentagens que variam de zero a 60%, dependendo da raça. Entre os gatos sem raça definida (SRD) uma alta porcentagem do tipo B foi relatada em algumas regiões geográficas dos EUA (Sparkes & Gryffydd- Jones, 2000; Knottenbelt, 2002; Arikan et al., 2003). O conhecimento sobre os tipos sangüíneos de diferentes espécies é de grande importância na medicina veterinária, visto que uma transfusão sangüínea incompatível pode resultar em uma reação transfusional hemolítica severa e até levar o animal à morte, em alguns casos (Hohenhaus, 2004). O objetivo do presente trabalho foi determinar a prevalência dos tipos sangüíneos de felinos domésticos sem raça definida da cidade de Porto Alegre, RS, Brasil. Material e Métodos Foram utilizados 100 gatos domésticos (36 machos e 64 fêmeas), sem raça definida (SRD), com peso corporal maior que 2 kg, com idade variadas (1 a 13 anos) e clinicamente saudáveis, de proprietários particulares de Porto Alegre/ RS. De cada animal foram coletadas, após assepsia adequada, duas amostras de sangue (máximo de 8 ml no total) por punção venosa jugular em tubos de 3 ml com ácido etilenodiaminotetracético dipotássico (EDTA K 2 ) para a tipagem sangüínea e tubos de 5 ml sem aditivo para obtenção do soro para a tipagem reversa. Nenhum dos animais estava sob algum tipo de tratamento, histórico recente de doença grave ou havia recebido transfusão sangüínea prévia e, no caso das fêmeas, nenhuma estava prenhe. As amostras de sangue para tipagem sangüínea foram mantidas sob refrigeração (4ºC) no máximo até 8 horas após a coleta. A tipagem foi realizada através de kits comerciais (RapidVet H Feline; DMS Laboratories, Flemington, NJ, USA). Um teste de hemaglutinação em tubo de ensaio (Penn Animal Blood Bank, University of Pennsylvania, Philadelphia, USA) foi realizado nos casos de autoaglutinação, resultados suspeitos ou para confirmação de tipo B ou AB. A tipagem sangüínea em cartão foi realizada de acordo com o fabricante e um cartão individual foi utilizado para cada animal. A apresentação do produto consiste em um cartão apresentando três poços pré-determinados como: controle com solução salina (C), teste paciente tipo A contendo soro felino anti-a (A) e teste paciente tipo B
24 16 contendo Triticum vulgaris, uma lectina de germe de trigo, que induz aglutinação de células tipo B (B). A técnica consistiu em colocar uma gota (40 µl) de solução PBS (solução tampão fosfato) em C, adicionar 50 µl de sangue com EDTA e misturar com movimentos circulares. O mesmo procedimento é realizado para os espaços A e B e o cartão é completamente homogeneizado com movimentos circulares por 2 minutos, sendo que antes, mais uma gota (40 µl) de solução PBS é adicionada ao espaço A. Ao final do tempo, a leitura do resultado é realizada observando a presença de aglutinação ou não em cada espaço. O cartão é colocado em ângulo de 45º, o excesso da solução de cada espaço é retirado com uma bolsa dessecante e o cartão é deixado para secar ao ar como registro permanente do animal. A tipagem em tubo de ensaio foi realizada de acordo com trabalhos prévios (Giger et al., 1991a, Bucheler & Giger, 1993, Griot-Wenk & Giger, 1995). As amostras de sangue com EDTA foram centrifugadas para separação do plasma. O plasma e a capa leucocitária foram retirados e o concentrado de eritrócitos foi submetido a três lavagens consecutivas com PBS através de centrifugação a 3500 rpm (rotações por minuto), durante 5 minutos. Após foi preparada uma suspensão de hemácias a 2-5% (50 µl do concentrado de eritrócitos diluídos em 1000 µl de PBS). Em seguida, 50 µl de PBS, do soro anti-a e da solução anti-b preparada com Triticum vulgaris foram colocados em tubos diferentes e 25 µl da suspensão de eritrócitos adicionados a cada tubo e homogeneizados suavemente. Após 15 minutos de incubação à temperatura ambiente, os tubos foram centrifugados por 15 segundos a 3500 rpm. Finalmente, a leitura do resultado foi realizada ressuspendendo as células e observando-se a presença de aglutinação. A tipagem reversa foi realizada em todas as amostras, o que consiste em um procedimento similar ao da tipagem, porém o soro de cada animal foi incubado com a suspensão de células de gatos de tipo A e B conhecidos para confirmação da presença de aloanticorpos (Giger et al., 1991a) Resultados e Discussão No presente estudo, 97% dos gatos SRD de Porto Alegre foram do tipo A e 3% do tipo B (2 machos e 1 fêmea). Não foram encontrados gatos do tipo AB (Fig. 1). Ilustração dos resultados de aglutinação pelo método do cartão nos gatos estudados é mostrada para o tipo A (Fig. 2) e o tipo B (Fig. 3). A tipagem mediante tubo para confirmação de gatos tipo B é mostrada na Fig. 4.
25 17 Figura 1. Prevalência (%) dos tipos sangüíneos em felinos SRD de Porto alegre Figura 2. Tipagem em cartão de gato de tipo sangüíneo A. Figura 3. Tipagem em cartão de gato de tipo sangüíneo B. Figura 4. Tipagem em tubo de ensaio para confirmação de gato de tipo sangüíneo B.
26 18 A distribuição dos tipos sangüíneos varia de acordo com a região geográfica e entre as diferentes raças de felinos, mas pouco se sabe sobre os felinos do Brasil. De acordo com os resultados obtidos neste estudo, foi observado que na cidade de Porto Alegre/ RS, coincidindo com estudos em outros países, o grupo sangüíneo A é o de maior prevalência na população de gatos sem raça definida. Neste estudo, não foram encontrados gatos tipo AB na população felina estudada, fato que pode estar relacionado com o cruzamento de raças presentes no Brasil com baixa prevalência do alelo AB (Knottenbelt et al., 1999). A prevalência do tipo AB parece ser muito baixa no mundo todo, variando de 0,4% na Austrália a 0,1% nos Estados Unidos e 0% na Dinamarca, Hungria e Suíça (Silvestre-Ferreira et al., 2004). Entretanto, pesquisadores no Reino Unido encontraram uma prevalência do tipo AB de 5,0% em gatos sem raça definida e de 5,3% em gatos de raça. Estudos recentes, na Turquia, revelaram que certas raças de gatos possuem alta prevalência do tipo B (60% em gatos Van Turcos e 46,4% em Turcos Angorá). Tem sido sugerido que o tipo sangüíneo AB pode ser causado por um terceiro alelo que permite a expressão codominante dos antígenos A e B (Giger et al., 1991a; Silvestre- Ferreira et al., 2004; Arikan et al. 2006). Na Europa, a prevalência de gatos tipo B varia de 0,4% na Suíça a 14,9% na França (Giger et al., 1992). Na América Latina, um estudo realizado na Argentina, revelou uma prevalência de 2,6% de gatos do tipo B e 1,3% de gatos do tipo AB (Jacomet et al., 1997). Nos Estados Unidos, a prevalência de gatos de tipo B é de 1,7%, embora o número de gatos avaliados tenha sido muito maior que o presente trabalho e a amostragem tenha sido realizada em diferentes regiões do país. Uma alta prevalência (36%) de gatos tipo B foi encontrada na Austrália (Malik et al., 2005). A prevalência do tipo sangüíneo B encontrada no presente estudo (3%), está de acordo com a maior parte dos estudos realizados até hoje no mundo. Diferenças na prevalência dos tipos sangüíneos têm sido observadas em raças puras. Gatos Abissínios, Birmaneses, Persas, Devon Rex, Cornish Rex, Van Turco e Turco Angorá têm apresentado prevalência de tipo B acima de 10%. Por outro lado, a raça Siamês e outras relacionadas com o Oriental de pêlo curto, assim como o Tonquinês, possuem exclusivamente tipo sangüíneo A (Giger et al., 1991a). No Brasil, poucos animais de raças puras foram estudados. Souza (1998) estudou 27 gatos de raça e encontrou 100% e aproximadamente 93% de gatos do tipo A nas raças Siamês e
27 19 Persa, respectivamente. Neste mesmo estudo, 58 gatos SRD foram avaliados e aproximadamente 93% eram do tipo A. O presente estudo indica que no sul do Brasil há uma maior prevalência de gatos SRD do tipo A, mesmo assim a prevalência de gatos do tipo B encontrada no trabalho é mais alta do que aquelas relatadas em alguns países. O conhecimento da prevalência dos tipos sangüíneos da população de gatos de uma região pode auxiliar na determinação dos riscos de reações transfusionais e de ocorrência de isoeritrólise neonatal, tais riscos podem ser prevenidos com a tipagem sangüínea, ou com o teste de compatibilidade sangüínea em casos de transfusão. Este é o primeiro artigo publicado sobre tipagem sangüínea em gatos domésticos sem raça definida no Brasil. Agradecimentos Os autores agradecem à Empresa DMS Laboratories pelo fornecimento dos kits Feline RapidVet-H para tipagem sangüínea, à Universidade da Pensilvânia (EUA) por fornecer os anti-soros para teste de confirmação de tipagem sangüínea e à Empresa BD Vacutainer Brasil por fornecer os tubos e material para coleta das amostras de sangue. Referências Bibliográficas ARIKAN S, DURU SY, GURKAN M, AGAOGLU ZT, GIGER U. Blood type A and B frequencies in Turkish Van and Angora cats in Turkey. J. Vet. Med. Sci., v.50, n.6, p.303-6, ARIKAN, S.; GURKAN, M.; OZAYTEKIN, E.; DODURKA, T.; GIGER, U. Frequencies of blood type A, B and AB in non-pedigree domestic cats in Turkey. J. Small Anim. Pract., n.47, p.10 13, GIGER U, BÜCHELER J, PATTERSON DF. Frequency and inheritance of A and B blood types in feline breeds of the United States. J. Hered., v.82, p.15 20, 1991a. GIGER U, GORMAN NT, HUBLER M, et al. Frequencies of feline A and B blood types in Europe. Anim. Genet., v.23 p.17-18, GRIOT-WENK ME, GIGER U. Feline transfusion medicine. Blood types and their clinical importance. Vet. Clin. N. Am.-Small., novembro, v.25, n.6, p , GRIOT-WENK ME, GIGER U. The AB blood group system in wild felids. Anim. Genet., abril, v.30, n.2, p.144-7, 1999.
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