RELATÓRIO DE PROJETO DE PESQUISA
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- Stéphanie Ventura Silveira
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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO Departamento de Pesquisa RELATÓRIO DE PROJETO DE PESQUISA Rua Augusto Corrêa, 1 (Núcleo Universitário) Belém PA - Brasil (091) Fax:(091) ATUALIZADO EM AGOSTO /2006
2 UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS GRADUAÇÃO DEPARTAMENTO DE PESQUISA RELATÓRIO PADRÃO DE PESQUISA (Versão 1.0) Período do Relatório: 01 / 07 / 2009 à 10 / 06 / 2011 I - Identificação do Projeto Código do projeto: Portaria nº. 085/ ICED Título do projeto: Nomeações, (trans)formações e resistências: interfaces da vida transexual com o sistema educacional Nome do Coordenador: Maria Lúcia Chaves Lima Centro/Núcleo/Campus: ICED / UFPA / Belém Departamento/Colegiado: Faculdade de Educação Área/subárea do projeto: Psicologia / Psicologia da Educação Principais objetivos do projeto: 1 - Reflexão teórica acerca da invenção da travestilidade e da transexualidade. Neste sentido, utilizando referenciais teóricos advindos das ciências humanas, sociais, médicas e da educação, objetivou-se contribuir para uma despatologização dessas experiências identitárias e a conseqüente minimização do preconceito vivenciado por esta população no meio escolar. 2 - Conhecer as redes que propiciaram a Portaria Estadual que autoriza a matrícula de travestis e transexuais na rede pública de ensino do Estado do Pará com seus nomes sociais, assim como alguns efeitos preliminares de sua efetivação.
3 Equipe do Projeto: Nome Titulação máxima Unidade/Departamento Função no projeto * Carga horária no projeto Maria Lúcia Chaves Lima Mestre Instituto de Ciências da Educação CD 20 h. * CD: Coordenador CL: Colaborador CS: Consultor
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5 II - Principais etapas executadas no período visando ao alcance dos objetivos: 1 O objetivo Reflexão teórica acerca da invenção da travestilidade e da transexualidade foi respondido durante o período de um ano de vigência do projeto. 2 O objetivo Conhecer as redes que propiciaram a Portaria Estadual que autoriza a matrícula de travestis e transexuais na rede pública de ensino do Estado do Pará com seus nomes sociais, assim como alguns efeitos preliminares de sua efetivação foi respondido durante o segundo ano de vigência do projeto. 3 A meta de difusão das suas hipóteses e/ou resultados teóricos junto à comunidade acadêmica foi cumprida na medida em que os resultados parciais da presente pesquisa foram apresentados em inúmeros congressos de relevância na área de Psicologia Social e áreas afins. 4 A meta de atingir um público que exceda o âmbito acadêmico stricto senso, será efetivada com a realização de uma roda de conversa sobre o Projeto Escola sem Homofobia, que prevê, entre outras ações, a distribuição de um kit de materiais orientados para o combate à homofobia nas escolas. O público alvo da ação será pessoas ligadas aos movimentos sociais, professores/as atuantes nas escolas públicas, além de estudantes de diversas áreas interessados na discussão. O evento ocorrerá no dia 18 de junho de 2011, às 16 horas, no Ateliê do Porto. 5 A meta de publicar artigos em revistas indexadas pela CAPES está em fase de elaboração, pois a preparação de um artigo sobre o tema da pesquisa em questão é um efeito da conclusão do presente relatório. III - Apresentação e discussão sucinta dos principais resultados obtidos, deixando claro o avanço teórico, experimental ou prático obtido pela pesquisa (os resultados formais - publicações - são solicitados no item VIII) INTRODUÇÃO A presente pesquisa se insere em uma perspectiva de investigação que visa entender os efeitos da vida escolar para aqueles que sofrem discriminação social. Nesta pesquisa em particular, o foco de investigação são travestis e transexuais, tendo em vista a relevância social e política que a discriminação a estas populações tem adquirido. O panorama de violência e discriminação que os/as envolve tem exigido dos gestores a definição de políticas públicas específicas, embora pouco se conheça sobre suas demandas e necessidades.
6 Travestis e transexuais representam arquivos vivos de uma história da exclusão. E um espaço infelizmente privilegiado para materialização de violência, discriminações e exclusão é o ambiente escolar. Não traz surpresa a ninguém o fato de que eles/elas vivenciem inúmeras dificuldades no cotidiano da escola desde a resposta da chamada, o relacionamento com colegas e professores, até a escolha de qual banheiro utilizar, o feminino ou o masculino. A diferença não é bem recebida: gays, lésbicas, negros, portadores de HIV, e todos aqueles tidos como anormais, têm sua cidadania e direitos freqüentemente violados. Nas entrevistas realizadas por Bento (2006), os/as transexuais lembram a escola como um espaço de horror, onde eram vítimas de todo tipo de preconceito. A escola aparece como uma instituição saturada, produtora e reprodutora da homofobia. O baixo nível de escolaridade de grande parte de travestis e transexuais no Brasil talvez possa ser explicado por esse caminho. Isso porque não há lugar para eles/elas no ambiente escolar. Não há, por exemplo, um banheiro para uma Maria com pênis. O banheiro pode ser considerado um espaço emblemático na construção das diferenças de gênero. Porém, travestis e transexuais confundem a ordem naturalizada dos gêneros, embaralha a fronteira entre o normal e o artificial, entre o real e o fictício, e denunciam que as normas de gênero não conseguem um consenso absoluto na vida social. São os diferentes, os estranhos, os anormais. E o que a escola (e a sociedade) faz com pessoas que são consideradas diferentes? Louro (2004) nos traz pistas: Aqueles e aquelas que transgridem as fronteiras de gênero ou sexualidade, que as atravessam ou que, de algum modo, embaralham e confundem os sinais considerados próprios de cada um desses territórios são marcados como sujeitos diferentes ou desviantes. Tal como atravessadores ilegais de territórios, como migrantes clandestinos que escapam do lugar onde deveriam permanecer, esses sujeitos são tratados como infratores e devem sofrer penalidades. Acabam por ser punidos, de alguma forma, ou na melhor das hipóteses, tornam-se algo de correção. Possivelmente experimentarão o desprezo ou a subordinação. Provavelmente serão rotulados (e isolados) como minorias (LOURO, 2004, p.87). Um importante passo em direção à amenização do atroz mal-estar vivenciado no ambiente escolar foi a Portaria Estadual nº. 016/2008-GS, que possibilita a matrícula do/as transexuais na rede pública de ensino no estado do Pará com o seu nome social. Chamar a pessoa pelo nome no qual se identifica pretende produzir efeitos na vida escolar de travestis e transexuais. Esse aspecto aparece na pesquisa de Bento (2006), quando a autora relata os protocolos invisíveis pelos quais os/as transexuais acabam por se submeter no Programa de transgenitalização pesquisado. Um exemplo desses protocolos que produzem constrangimentos entre os/as transexuais é quando um/a profissional do hospital o/a chama por seu nome de batismo. Dizer, pronunciar, escutar esse nome significa recuperar sua
7 condição feminina ou masculina que queria esquecer. O nome próprio funciona como uma interpelação que o/a recoloca, que ressuscita a posição de gênero da qual luta para sair. Serem identificados/as publicamente pelo nome que os/as posiciona no gênero rejeitado é uma forma ressignificada de atualizar os insultos de veado, sapatão que ao longo de suas vidas os/as haviam colocado á margem. Neste sentido, é pertinente problematizar o papel da escola na expulsão 1 velada de travestis e transexuais do sistema educacional. Assim como avaliar os resultados deste processo em suas vidas, seja em termo analfabetismo ou ainda em relação ao que poderão dizer de si mesmos/as. Com isso, este projeto, de natureza eminentemente teórica e documental, ocupou-se, em um primeiro momento, de entender a emergência das categorias travesti e transexual no meio científico e a incessante patologização de tais experiências. Para tanto, torna-se mister entender como a sexualidade passou a ser açambarcada pelo domínio médico. Posteriormente, o foco se direcionará para os dispositivos 2 que impulsionaram a formulação e entrada em vigor no dia 1º de janeiro de 2009 da Portaria 016/2008-GS, do Estado do Pará, que autoriza travestis e transexuais a utilizarem os nomes sociais no convívio escolar. 1. A PATOLOGIZAÇÃO DAS VIVÊNCIAS TRAVESTI E TRANSEXUAL Precisamos verdadeiramente de um verdadeiro sexo? Com uma constância que beira a teimosia, as sociedades do Ocidente moderno responderam afirmativamente a essa pergunta. Elas obstinadamente fizeram intervir essa questão do verdadeiro sexo em uma ordem de coisas na qual se podia imaginar que apenas contam a realidade dos corpos e a intensidade dos prazeres. Michel Foucault (2010a, p. 82). Ao tomarem conhecimento do tema de minha pesquisa, a primeira coisa que me perguntam é sobre a diferença entre travestis e transexuais. No começo tentava responder, mas ficava incomodada com as classificações, sempre tão definitivas, tão prontas e tão pouco problematizadas. Caracterizar o que é ser travesti ou transexual era, de certa forma, incoerente com a perspectiva que me nutre teoricamente. Se não há alguma coisa que diga o que é ser homem ou o que é ser mulher, por que haveria de ter uma definição clara e categórica do que é ser travesti ou transexual? 1 É limitador denominarmos de evasão os casos em que as pessoas abandonam a escola por não suportarem o ambiente hostil vivenciado. A natureza da violência que leva uma pessoa a abandonar os estudos porque tem que trabalhar para ajudar a família não é da mesma ordem daquela que não suporta a escola devido às humilhações sofridas por ser diferente (BENTO, 2008). 2 A noção de dispositivo adotada é a utilizada por Foucault: um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (2000c, p. 244).
8 As múltiplas diferenças e particularidades vivenciadas pelas pessoas consideradas travestis e transexuais não podem ser reduzidas a categorias unificadoras com intenção de universalização. A produção da subjetividade de travestis e transexuais obedece as mesmas regras que produzem as demais subjetividades. Não há uma lei, uma essência que orienta a identidade de gênero. Gênero só existe na prática. É a repetição de performances, consideradas de um determinado gênero, que produz o efeito homem ou mulher. Nossas práticas fazem os gêneros (BUTLER, 2003). Porém, há os que escapam da malha normativa, os que resistem a esse violento binarismo identitário (ser homem ou mulher), transitando-os, subvertendo-os. Como no caso, as vivências travesti e transexual. Em princípio, optei por utilizar o termo transgênero que aparentemente açambarcava, sem especificar e aprisionar, as experiências identitárias de trânsito de gênero. Entretanto, logo no início da pesquisa, esse termo mostrou seu aspecto problemático. Utilizar tal terminologia, amplamente empregada nos estudos norteamericanos (transgender) nada revela sobre as especificidades das reivindicações das pessoas transexuais (BENTO, 2008) ou da dimensão conflituosa de assumir-se travesti (BENEDETTI, 2005). Ou seja, transgênero não é um termo com o qual essa população, pelo menos no Brasil, se identifica e se (auto) define. Trata-se de um termo acadêmico e muitas vezes não reconhecido pelos movimentos LGBTTs. Regina Facchini (2005), em seu livro Sopa de letrinhas?, comenta que a adoção do termo transgênero teve uma reação bastante negativa no Brasil por parte de travestis e transexuais. A freqüente associação ao termo transgênico produtos modificados geneticamente e geralmente associados aos males à saúde também foi um forte elemento que inviabilizou a identificação de travestis e transexuais à nova terminologia. Atualmente, a maior rede de LGBT do Brasil, a ABGLT, assume o nome de Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, excluindo, portanto, o termo transgênero. Diversas pesquisas sobre travestis e transexuais trazem definições ou um eixo norteador para apresentar a população da qual está se falando. Benedetti (2005), seguindo a lógica do grupo estudado qual seja, travestis que se prostituem nas ruas de Porto Alegre (RS), define travestis como pessoas que promovem modificações nas formas de seu corpo visando deixá-lo o mais parecido possível com o das mulheres. Apesar de se vestirem e viverem cotidianamente embasadas pelo gênero feminino, não demonstram desejo de realizar a cirurgia de transexualização. Esta característica, aliás, é o principal elemento de diferenciação entre elas e as transexuais. Para estas últimas, a cirurgia é condição fundamental de sua transformação corporal. Benedetti (2005) relata ainda que durante alguns encontros científicos mais especificamente o Encontro Nacional de Travestis e Liberados que trabalham com Aids (ENTLAIDS) presenciou várias discussões sobre as reais diferenças entre esses dois grupos, os quais nunca chegavam a nenhuma conclusão. Essa questão não permeia apenas o universo acadêmico. As/os próprias/os integrantes do movimento de travestis e transexuais se vêem questionando esses limites identitários. Lohany Veras, presidente do Grupo de Resistência Travesti e Transexual da Amazônia (GRETTA), em entrevista para essa pesquisa, comenta sobre as
9 dificuldades de definir quem é travesti e transexual. Diverte-se ao lembrar uma tentativa de classificação do movimento na qual era estipulado que a transexual não podia falar alto ou ser escandalosa, pois tais características eram específicas das travestis. Lohany defendeu, então, que como há vários tipos de mulheres, de comportadas à barraqueiras, há vários modos de ser uma travesti ou mulher transexual. Viver no processo de transformação de gênero não significa compartilhar os mesmos valores, experimentar os mesmos sentimentos, conviver em ambientes semelhantes ou ter práticas sociais análogas. Pelo contrário, as diferentes formas de viver e construir o gênero são influenciadas por fatores variados, tais como classe social, nível educacional, fatores econômicos, sociais e familiares específicos (BENEDETTI, 2005). Entretanto, há os aficionados por definições, os viciados por identidade (ROLNIK, 1997). Aqueles que aprisionam os modos de ser, produzindo verdades e gerando estratégias de poder e controle. Porém, desde já é preciso deixar claro que em momento algum haverá neste trabalho uma definição clara e categórica do que seja travesti ou transexual. Tais perspectivas identitárias serão produzidas ao longo do texto, dialogadas com outros/as pesquisadores/as e atravessadas pelos discursos das pessoas entrevistadas na pesquisa. Este capítulo será dedicado, então, para a compreensão das vivências identitárias categorizadas como travesti e transexual. Tais vivências estão intrinsecamente imbricadas no discurso médico de patologização desses modos de vida. Portanto, primeiramente, como forma de apresentar a produção histórica desses conceitos, faz-se necessário entender como a sexualidade passou a ser assunto referente ao domínio das ciências médicas e psicológicas. Posteriormente, serão apresentadas algumas teorias que produzem a travestilidade e a transexualidade, assim como a problematização de tais aprisionamentos identitários A sexualidade no domínio da anomalia Travestis e transexuais são figuras que borram as fronteiras de gênero inteligível: ser homem ou mulher. São vistos, muitas vezes, como desviantes, fora da norma estabelecida, anormais. No curso ministrado no Collége de France intitulado Os anormais, Michel Foucault (2001) apresenta uma genealogia do conceito de anormal, edificado inicialmente em meio ao embate entre os saberes jurídico e penal até chegar a uma psiquiatrização do desejo e da sexualidade no fim do século XIX. O filósofo analisa o aparecimento da anomalia, ou mais propriamente, do anormal, objeto privilegiado da psiquiatria a partir do século XIX, por meio de três figuras: o monstro humano, o indivíduo incorrigível e a criança masturbadora. Só durante o século XIX é que esses três personagens vão coadunar na figura do anormal, uma vez que durante o século XVIII (e até mesmo no início do XIX) eles mantém suas trajetórias separadas, pois têm como referência sistemas de saber-poder distintos. O monstro humano é regido pelo saber biológico-judiciário; o incorrigível, pelo saber pedagógico; e o onanista, pelo saber médico-familiar.
10 A primeira figura relatada por Foucault (2001) é o monstro humano. É uma exceção na população que viola tanto as leis da sociedade quanto as leis naturais. O monstro humano combina o impossível com o proibido e, durante boa parte do medievo, serve como o grande modelo de todas as pequenas discrepâncias. É o misto de dois reinos: animal e humano. Foucault (2001) considera o hermafrodita como uma figura privilegiada para a análise do monstro humano durante a Idade Clássica. Por meio de vários exemplos históricos, o autor mostra a mudança na concepção e, principalmente, modos de punição do hermafrodita. Até o século XVI, o/a hermafrodita era condenado/a simplesmente por ser hermafrodita. Já a partir do século XVII, pediam-lhe que escolhesse um sexo, e se usasse o sexo anexo, por meio de roupas ou práticas sexuais, incorria nas leis penais e era condenado por sodomia. Ou seja, não se condena mais a monstruosidade da natureza, mas a de comportamento. A monstruosidade está no plano moral. Já a segunda figura, ou melhor, personagem importante para o aparecimento do anormal é o indivíduo incorrigível. Enquanto o monstro é sempre uma exceção e remonta ao domínio da teratologia, a existência do indivíduo a ser corrigido é um fenômeno normal. É um fenômeno corrente que nasce dentro da família e mantém relações com instituições vizinhas. Como diz ironicamente Foucault (2001, p. 72): é regular na sua irregularidade. Ele é espontaneamente incorrigível, o que demanda a criação de tecnologias para a reeducação que lhe permita a vida em sociedade. É válido ressaltar que a exposição dessa segunda figura acabou por ser pouco explorada por Foucault durante o curso de Por fim, o terceiro personagem é o responsável pela universalização do desvio sexual e da entrada da sexualidade no domínio da psiquiatria. Trata-se da criança e do adolescente masturbador. Data da passagem do século XVIII para o XIX e envolve exclusivamente a família burguesa. Esse é um personagem quase universal de tão corrente que é o seu aparecimento na sociedade. A prática do onanismo, segundo o ideário médico burguês vitoriano, surge como a causa de qualquer patologia corporal, nervosa, psíquica ou moral. Foucault salienta que no fim do século XVIII não há nenhuma doença que não esteja relacionada, de uma forma ou de outra, à masturbação. Sobre esse terceiro personagem, Foucault dedica algumas aulas do seu curso, pois o onanista é o responsável pela entrada da sexualidade no campo da anomalia. Ou seja, pelo domínio da psiquiatria na esfera do comportamento sexual. Para tanto, Foucault faz uma genealogia da confissão católica, pois esta se configura como um elemento fundamental na análise da emergência da preocupação com a masturbação infantil. Segundo Foucault (2001), a revelação do pecado não era um aspecto obrigatório da penitência. Porém, paulatinamente, a revelação do pecado tornou-se um aspecto sine qua non para que o padre possa aplicar a penitência adequada. Há todo um sistema de interrogação, na qual a revelação é policiada pelo padre. É a instauração no interior dos mecanismos religiosos desse imenso relato total da existência que constitui o pano de fundo do exame e medicalização (FOUCAULT, 2001, p. 233).
11 Entre os séculos XII e XVI, o penitente tinha que revelar suas faltas contra as regras sexuais. Porém, se inicialmente os pecados sexuais eram referente aos aspectos relacionais da sexualidade, ao vínculo jurídico entre as pessoas (adultério, incesto, rapto), a partir do século XVI é o corpo do penitente que passa a ser o aspecto mais importante da confissão. Inicia-se uma anatomia da volúpia, uma anatomia pecaminosa do corpo na qual a luxúria tinha início com o contato consigo mesmo. Portanto, a masturbação na revelação penitencial do século XVII vai ser tornar o problema médico e pedagógico que vai trazer a sexualidade para o campo da anomalia. No século XVIII, inicia-se o que Foucault (2001) chama de campanha antimasturbatória mobilizada pela crença de que a masturbação era a causa de uma série de enfermidades, tanto físicas quanto mentais. Apareceram textos, panfletos, livros e até manuais dirigidos aos pais sobre a masturbação infantil. Ainda não se trata de uma psicopatologia sexual, pois a sexualidade está praticamente ausente. É a própria masturbação, sem nenhum vínculo com a sexualidade, que é o problema a ser combatido. Ou seja, trata-se mais de uma patologização do que uma moralização da prática masturbatória. O foco está na criança e no adolescente burguês e a origem desse vício está no desejo dos adultos pelas crianças. Nesse contexto, a culpa vem do exterior, do adulto, mais exatamente, da criadagem. Inicia-se uma empreitada contra a criadagem doméstica e a responsabilização dos pais pela masturbação dos filhos. É a ausência de cuidados, a preguiça e desatenção dos pais que estão envolvidos na prática onanista. Esse discurso exige uma nova configuração do espaço familiar e, de acordo com o argumento defendido por Foucault (2001), foi esse controle da masturbação da criança que possibilitou o surgimento da família nuclear, sólida e afetiva. Porém, esse controle parental interno à família passa a ser subordinado à intervenção médica. É por meio da família que há o encontro entre a medicina e a sexualidade. Em suma, um movimento de intercâmbio que faz a medicina funcionar como meio de controle ético, corporal, sexual, na moral familiar e que faz surgir, por outro lado, como necessidade médica, os distúrbios internos do corpo familiar, centrado no corpo da criança (FOUCAULT, 2001, p. 321). Foi pela infância que a psiquiatria veio a se apropriar do adulto. Aumentou seu campo de ingerência ao mostrar que o instinto sexual está no cerne de todas as doenças mentais. Ainda de acordo com Foucault, a partir de meados do século XIX, a psiquiatria abandona aquilo que havia se constituído o essencial na justificação da medicina mental: a doença. O que ela assume agora é o comportamento, seus desvios, suas anomalias a partir de um desenvolvimento normativo já instituído. É o poder médico sobre o não patológico. É a psiquiatria abrangendo em seu campo de ação uma população que não apresenta nenhum sintoma de doença, mas síndromes consolidadas enquanto anomalias. Assiste-se assim, nessa segunda metade ou nesse último terço do século XIX, ao que poderíamos chamar de consolidação das excentricidades em síndromes bem especificadas, autônomas e reconhecíveis (FOUCAULT, 2001, p. 395).
12 Esse período, portanto, é marcado pelo aparecimento de vários tratados médicos sobre os desvios sexuais. Em 1870, Westphal descreve sobre os invertidos no Arquive de Neurologie. Segundo Foucault (2001), é a primeira vez que a homossexualidade aparece como síndrome no interior do campo psiquiátrico, dando início, assim, ao que podemos chamar de psiquiatrização da homossexualidade. Nesta intensa procura da identidade na ordem sexual, Foucault (2001) dá ênfase à análise da obra Psychopathia sexualis de Heinrich Kaan, publicada em 1844 e a sua formulação da noção de instinto sexual. Porém, outra obra também intitulada Psycopathia sexualis é particularmente interessante para a discussão da emergência das noções de travestilidade e transexualidade. Trata-se do livro do psiquiatra alemão Richard Von Krafft-Ebing escrito em Esta obra é destinada à categorização das patologias das funções sexuais, tais como lesbianismo, delírio erótico, necrofilia, bestialidade, entre outros desvios sexuais. Há a apresentação de 238 casos coletados pelo próprio autor que apresentam o diagnóstico, assim como comentários e observações finais sobre a patologia. De acordo com Leite-Júnior (2008), este livro se tornou a bíblia sobre as perversões. Na classificação de Krafft-Ebing, dentre as neuroses sexuais há a parestesia, que consiste na perversão do instinto sexual, isto é, excitabilidade das funções sexuais por estímulos inadequados (KAFFT-EBING, 2001, p. 7). Uma das subdivisões da parestesia é a antipatia sexual: a luta pela diferenciação psíquica entre homens e mulheres, seus limites sadios e aproximações patológicas. O autor define a antipatia sexual da seguinte forma: É a total ausência de sentimento sexual em relação ao sexo oposto (...) é uma anomalia puramente psíquica, pois o instinto sexual não corresponde de forma alguma às características sexuais físicas primárias e secundárias. Apesar do tipo sexual plenamente diferenciado e das glândulas sexuais apresentarem atividade e desenvolvimento normais, o homem é atraído sexualmente outro homem porque tem, consciente ou não, um instinto feminino em relação a ele, ou o inverso (KAFFT- EBING, 2001, p. 9). Segundo a classificação de Krafft-Ebing (2001), a antipatia sexual vai desde a atração sexual por pessoas do mesmo sexo até considerar-se um homem em um corpo de mulher ou vice-versa. O autor propõe uma classificação das misturas entre os sexos, com combinações e graduações entre o que é ser homem ou mulher. No caso 133 do livro de Kafft-Ebing (2001) e destacado por Leite-Júnior (2008), o paciente, após um período de internação psiquiátrica, passa a se comportar de forma feminina. Além dos fatores psíquicos envolvidos, Krafft-Ebing atribui tal efeminação à constante masturbação do paciente. Voltamos assim à análise de Foucault (2001) de que a masturbação enfraquece o corpo e, ao perder sua força, efeminiza-se. Mais uma vez a antiga associação do feminino à fragilidade! Porém, há outro caso analisado por Krafft-Ebing que merece maior atenção. Trata-se do caso 129, que apresenta o estágio de transição para ilusão de mudança de sexo. Krafft-Ebing apresenta a história de húngaro que, a partir da adolescência, passa a se sentir como uma mulher. Compreende a si mesmo como mulher,
13 identifica-se com as roupas, brincadeiras e ideias consideradas femininas 3, atração sexual por homens, desejo de auto-castração, etc. Apresentam-se, portanto, várias características das futuras narrativas das pessoas consideradas transexuais. O diagnóstico dado por Krafft-Ebing foi o de paranóia e que o delírio de ser uma mulher em corpo masculino era apenas um problema em sua sexualidade, não sendo, portanto, diagnosticado como incapaz de atuar racionalmente. Ou seja, era doente e não louco. A obra de Krafft-Ebing, de 1886, é um relato médico das anomalias sexuais. Em relação ao trânsito de gênero, traz dados significativos das futuras nomeações e classificações do que é ser travesti ou transexual. O que se percebe é que o meio médico-científico cada vez mais se dedicava à categorização das anomalias sexuais. O campo para a criação da travestilidade e transexualidade estava se formando As vestimentas e seu potencial erótico: a emergência científica da travestilidade Em 1910, há a primeira publicação destinada a analisar a relação entre vestimenta e sexualidade. Trata-se do livro Die Transvestiten, traduzido para o inglês como Transvestites: the erotic drive to cross-dress, do médico e psicólogo alemão Magnus Hirschfeld. Neste estudo, os termos travesti e travestismo são usados para se referir ao uso de roupas consideradas do sexo oposto mobilizado por motivações eróticas. É interessante notar que Hirschfeld (1991) dissocia o que atualmente é chamado de orientação sexual do desejo de usar roupas do sexo oposto. Sentir atração por um determinado sexo e sentir prazer usando uma vestimenta específica são coisas diferentes. Vale ressaltar que a maioria dos casos citados no livro é de homens que sentem prazer em usar roupas femininas e sentem atração sexual apenas por mulheres. Nesses casos, as narrativas são de vidas tranqüilas e casamentos estáveis, um cenário bastante distinto do relatado em muitos livros da época, nos quais tais pessoas eram apresentadas em situação de desespero e infelicidade (LEITE- JÚNIOR, 2008). Outro ponto a ser destacado no livro de Hirschfeld (1991) é a afirmação de que nem todos os homens afeminados são homossexuais, assim como nem todos os homens considerados masculinos são heterossexuais, a mesma consideração valendo para as mulheres. O texto provoca uma separação analítica e conceitual entre sexo, gênero, desejo, aparência e comportamento. O autor destaca as misturas, interações, aproximações e distanciamentos entre o masculino e o feminino. Não há quem seja 100% homem ou mulher. Dessa forma, Hirschfeld pretende justificar a legitimidade da variedade sexual, sendo ele próprio um militante dos direitos homossexuais (LEITE-JÚNIOR, 2008). 3 Com Leite-Júnior (2008), destaca-se o conceito de mulher deste relato: meiga, frágil, fraca em raciocínios lógicos, intensa em imaginação e portadora de um desejo instintivo de maternidade. Este era a concepção vigente do que é ser mulher do período e que ainda hoje paira o diagnóstico médico e psicológico para definição se a pessoa é uma transexual verdadeira.
14 Dentre essas possibilidades de identidades, ele cria o conceito de travestismo, definindo como um forte impulso para usar as roupas do sexo que não pertence à estrutura relativa a seu corpo como um fim em si mesmo (HIRSCHFELD, 1991). Porém, Hirschfeld avalia esse impulso como uma forma de expressão da personalidade íntima e assim, credita o uso de roupas socialmente destinada ao outro sexo a uma disposição psíquica. De acordo com Leite-Júnior (20018), Hirschfeld gera, mesmo que sem intenção, uma psicologização da experiência troca de vestuário e, conseqüentemente, provoca o surgimento do moderno conceito de travesti relacionado à sexualidade. Mas vale ressaltar ainda que tal comportamento não é sinônimo de loucura ou delírio. Hirschfeld (1991) analisa o travestismo como uma variante da sexualidade normal, uma vez que os/as travestis, mesmo vestindo esporadicamente ou cotidianamente vestimentas do outro sexo, tem consciência que não pertencem ao sexo do qual pertencem as roupas utilizadas. O psicólogo Havelock Ellis, considerado atualmente um dos fundadores da sexologia moderna, também se preocupa com a questão da mistura entre os sexos. Em 1933, publica um resumo de sua coleção, lançada décadas anteriores, intitulada Psicologia do sexo. Um dos temas tratados nesse resumo é justamente a mixagem entre tendências masculinas e femininas e, coadunando com Hirschfeld, afirma que há variações e gradações entre os sexos. Pode parecer fácil dizer que há dois sexos perfeitamente separados, distintos e imutáveis, o macho que é portador do espermatozóide, e a fêmea que é portadora do óvulo, ou do ovo. Essa afirmação, não obstante, há muito deixou de ser estritamente correta sob o ponto de vista biológico. Podemos não saber exatamente o que é o sexo; mas sabemos efetivamente que ele é mutável, com possibilidade de um sexo ser transformado em outro sexo, que suas fronteiras são muitas vezes incertas, e que há muitos estágios entre um macho completo e uma fêmea completa (ELLIS, 1933 apud LEITE-JÚNIOR, 2008, p. 107). O autor considera tanto o homossexualismo quanto o travestismo 4 como uma anomalia. Porém, para designar este último, prefere o uso do termo oenismo. Apesar de ser o mesmo quadro clínico apresentado por Hirschfeld, a opção de usar oenismo se justifica pelo equívoco que o termo travestismo pode causar ao se associar exclusivamente à questão do vestuário considerada do sexo oposto (LEITE-JÚNIOR, 2008). Portanto, se em Krafft-Ebing o uso de vestimenta do sexo oposto não era um fato com autonomia analítica, agora, com a criação das categorias travestismo, de Hirschfeld, e oenismo, de Ellis, presencia-se o nascimento de uma nova categoria clínica-patológica com características e definições que as diferenciam de outros diagnósticos tais como homossexualismo, hermafroditismo ou mesmo paranóia Travestilidade no contexto brasileiro 4 Tradição, iniciada no século XIX, de se utilizar o sufixo ismo para nomear os considerados transtornos sexuais.
15 Na língua portuguesa, de acordo com o dicionário Houaiss (2001), a palavra travesti tem sua primeira aparição em 1543 significando o substantivo disfarçado. Ainda segundo este dicionário, é somente em 1831 é que travesti aparece como termo para designar um homem vestido de mulher ou vice-versa. No Brasil, o termo travesti logo passou a integrar os meios artísticos e das festividades populares, sem associação, pelo menos inicialmente, com a orientação ou identidade sexual. A relação entre travestimento e o meio artístico, mais especificamente as artes cênicas, provocou outra associação: travestir-se virou quase sinônimo de prostituição. No início do século XX era muito forte a relação entre o teatro, mais exatamente, da atriz, com a prostituição. Como relata Leite-Júnior (2008, p. 202): Também as pessoas que, ao assumirem o gênero oposto, principalmente como modo de vida, eram impedidas de conseguir empregos mais tradicionais ou formais e rejeitadas do convívio social muitas vezes por suas próprias famílias restava apenas espetacularizar sua condição e/ou negociar o fascínio sexual de sua ambigüidade. Desta forma, o termo travesti gradativamente uniu-se intimamente à noção de prostituição (...). As pesquisas de Luiz Mott e Aroldo Assunção (1987), Hélio Silva (1993), Don Kulick (2008) 5, Marcos Benedetti (2005), Larissa Pelúcio (2009) etc. são exemplos do quanto ainda é difícil separar o estudo das travestis do campo da prostituição. Como analisa Leite-Júnior (2008), apesar de serem campos distintos, há no Brasil uma forte ligação entre travestilidade e prostituição. Tal associação entre travestis e prostituição é tão intensa que até em 2008, como atesta a tese de Leite- Júnior (2008), na Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho e Emprego havia, dentro da categoria Profissionais do sexo, os seguintes títulos: Garota de programa, Garoto de Programa, Meretriz, Messalina, Michê, Mulher da vida, Prostituta, Puta, Quenga, Rapariga, Trabalhador do sexo, Transexual (profissional do sexo), Travesti (profissional do sexo) (grifos nossos). Atualmente, retiraram os termos Puta, Quenga, Rapariga, Transexual e Travesti 6. A pesquisa de Kulick (2008) mostra um panorama interessante da concepção do que é ser travesti no Brasil. O antropólogo norte-americano realizou um intenso trabalho de campo com travestis que se prostituem da cidade de Salvador (Bahia) entre 1996 e Kulick (2008) descreve as travestis como homens que efeminam seus corpos através de aplicações de silicone, vestimentas, maquiagens e outros produtos estéticos para produzir a imagem de mulher. O que difere esta categoria da transexualidade é a não reivindicação da cirurgia de transgenitalização. Com efeito, não se reconhecem como mulheres. Tampouco como homens. Elas se afirmam como homossexuais, ou melhor, como homens afeminados que se sentem atraídos sexualmente por homens. 5 Publicado nos Estados Unidos em Disponível em: Acesso em 16/05/2011.
16 O autor ainda sugere que as travestis têm concepções tanto essencialistas como construtivistas sobre a díade sexo e gênero. Essencialistas porque diferenciam homens e mulheres a partir das genitálias. Ou se é homem ou se é mulher. Em contraposição, a questão de gênero é determinada pela sexualidade, mais exatamente, pela prática de penetração. Se a pessoa só penetra, é homem; se é penetrado/a, é diferente de homem e podendo ser um homossexual ou uma mulher. A pesquisa de Kulick apresenta a concepção hegemônica do que é ser travesti no contexto brasileiro: uma ambigüidade de gênero atrelada à prostituição e à marginalidade. A discussão sobre o trânsito de gênero desvinculado deste cenário marginal começa a ser empreendida no Brasil a partir dos anos de 1980 com a aparição midiática e espetacularizada de Roberta Close. Roberta Close transmitia os valores morais e estéticos de feminilidade de uma mulher burguesa. Em nada se assemelhava com o estereótipo de travesti que dominava na época: um homem grosseiramente vestido de mulher. Não havia nenhuma associação da sua imagem com a prostituição ou criminalidade. Muito pelo contrário: foi considerada uma das mulheres mais bonitas do Brasil, sendo matéria de reportagens e de programas de televisão voltados para a classe média (LEITE-JÚNIOR, 2008). Dessa forma, não havia rótulo para enquadrar Roberta Close. Não era mulher, nem homem, nem homossexual ou mesmo travesti por não se caracterizar com o padrão de travesti construído no Brasil. Atualmente a consideram uma mulher transexual. Porém, como veremos a seguir, seu quadro histórico de vida não se encaixa com as definições patologizantes do que é ser transexual. O que se percebe é que o campo estava propício para a inserção da noção de transexualidade. Mais uma categoria para emoldurar as experiências subjetivas de vivenciar gênero, sexualidade e desejo Condições de possibilidade para a invenção da transexualidade Em 1949, o médico D. O. Cauldwell cria o termo psychopathia transexualis, em um artigo publicado na revista Sexology, para se referir ao caso de uma mulher que apresenta o desejo de se masculinizar (Cf. LEITE- JÚNIOR, 2008). Nesse trabalho são produzidas algumas características que viriam a ser consideradas exclusivas dos/as transexuais, pois até o momento não havia uma distinção conceitual entre as definições transexual, travesti e, até mesmo, homossexual (BENTO, 2006). Porém, de acordo com a pesquisa de Leite-Júnior (2008), a atenção à transexualidade passa a ganhar notoriedade mundial em 1952, quando o jornal The New York Daily News traz a reportagem de uma jovem americana de 26 anos que havia passado por um tratamento hormonal e realizado cirurgias para remoção do
17 pênis e testículos e criado os lábios vaginais. Christine Jorgensen 7 foi o primeiro caso tratado pelo médico Christian Hamburger, na Dinamarca, com a cirurgia chamada de transgenitalização. Ao voltar aos Estados Unidos, Christine se torna uma celebridade, pois passa a ser manchete de jornais e tema de revistas que divulgavam a incrível história do militar que se transforma em mulher. Inclusive, em 1954, é eleita a mulher do ano. Essa espetacularização do caso Christine é um importante marco na história da transexualidade, pois milhares de pessoas, em várias partes do mundo, tinham o conhecimento de que era possível, cientificamente, passar de um sexo para outro. O caso Christine Jorgensen torna o tema da transexualidade algo popular. Isso provocou um aumento significativo nas demandas por tratamento e assim contribuiu para a reflexão sobre a identidade sexual e a construção da categoria de gênero. Somando-se a isso, há todo um campo de possibilidades formado para a emergência da discussão sobre o trânsito de gênero. Márcia Arán (2006) argumenta que a transexualidade está baseada em dois dispositivos distintos. O primeiro se refere ao avanço da biomedicina, principalmente no que se refere ao aprimoramento das técnicas cirúrgicas e ao progresso da terapia hormonal. O segundo concerne à forte influência da sexologia e do movimento feminista na construção da noção de identidade de gênero como sendo uma produção sociocultural independente do sexo biológico. Como forma de apresentar as diversas visões que constituíram (e continuam o fazendo) a transexualidade, dividiremos nossos esforços em duas bases conceituais: uma sob o prisma biológico e a outra, orientada por uma perspectiva social. Ainda que ambos os eixos interpretativos aceitem a influência de múltiplos fatores, a perspectiva biológica enfatiza os fatores genéticos, enquanto que a perspectiva social centraliza a importância nos fatores sociais (especialmente familiares, em se tratando da Psicanálise) como base explicativa para o surgimento da transexualidade Diz-me que hormônios tens e te direi quem és 8 : a transexualidade a partir do enfoque biologicista Harry Benjamin, um endocrinologista alemão radicado nos Estados Unidos, em 1953, após vários anos de experiência no tratamento de pessoas transexuais, inclusive Christine Jorgensen, publica o artigo Travestismo e transexualismo (BENTO, 2006). Benjamim retoma o termo em latim formulado por Cauldewell em 1949 (transexualis) e cria os termos transexual e transexualismo, iniciando a popularização, científica e cotidiana, das terminologias recém formuladas. 7 A jovem adota o nome de Christine em homenagem a seu médico-cirurgião (LEITE-JÚNOR, 2008). 8 Variação, utilizada por Bento (2004, p. 160), da expressão popular diga-me com quem andas que te direi quem és.
18 Em 1966, Harry Benjamin publica O fenômeno transexual, um dos livros mais importantes já publicados sobre o assunto. Nele, além de teorização sobre o chamado transexualismo, lança as bases para a padronização de seu tratamento utilizada até a atualidade (BENTO, 2006; LEITE-JÚNIOR, 2008). Harry Benjamin (1966) afirma que a diferença entre travestis e transexuais é que no segundo caso existe um desejo intenso de mudar completamente de estado sexual, inclusive, na estrutura orgânica. Enquanto o travesti representa o papel de mulher, o transexual deseja ser e funcionar como mulher. Para Benjamin, tanto o travestismo quanto o transexualismo são sintomas de distúrbio da orientação sexual e de gênero normal. Isso pode ser observado na utilização, iniciada no século XIX, do sufixo ismo para nomear os considerados transtornos sexuais. Porém, ao reforçar o caráter patológico de tais manifestações sexuais, provoca um afastamento de tais condutas da criminalização. Segundo Benjamim (1966, p. 78), Criminalidade perante a lei não é necessariamente criminalidade perante a ciência e o senso comum. Travestismo, transexualismo, o comportamento homossexual, a toxicodependência, alcoolismo e prostituição são exemplos. São problemas de saúde, comportamento e caráter. Eles precisam de tratamento e educação em vez de punição (tradução nossa). Em O fenômeno transexual, o endocrinologista defende a ideia de que o sexo é tanto genético (XX ou XY), anatômico (pênis ou vagina) e gonodal (testículos ou ovários), endócrino (ou hormonal), psicológico, social e jurídico. O sexo genético (cromossomático) é o responsável pela determinação do sexo e do gênero. Tanto que o primeiro procedimento para aqueles/as que reivindicam a cirurgia de redesignação sexual é o exame cariótipo. Se for identificada uma má-formação cromossômica e o diagnóstico for de hermafroditismo, há um encaminhamento automático para a cirurgia. Isso demonstra uma determinação biológica na identificação da transexualidade. A verdade última do ser humano encontra-se, então, na biologia. Apesar da crença de que o gênero é determinado pela biologia, Harry Benjamin defendia que a única alternativa para esses casos é a cirurgia de redesignação sexual. Isso porque, de acordo com Bento (2006), Benjamin acreditava que o avanço da ciência iria descobrir as causas biológicas desse fenômeno que ainda não eram possíveis de se detectar com o aparato tecnológico da época. Considerando a cirurgia como a única possibilidade terapêutica para a transexualidade, Benjamin produzia severas críticas à escuta psicológica ou psicanalítica para esses casos. Isso porque, como visto, a transexualidade é atribuída mais a algum fator orgânico ainda não esclarecido do que ao fator psicológico. Para ele, as psicoterapias não passam de estratégias paliativas que apenas podem ajudar a pessoa a se adaptar a sua nova condição. Jamais, portanto, podem curar a transexualidade. Outro elemento importante desta obra de Benjamin é a escala que elabora para classificar o fenômeno transexual em tipos que vão desde o pseudo-travesti até o transexual de intensidade alta. Esse último é considerado o/a transexual exemplar: vive como o outro gênero, deseja alterar o corpo, especialmente com
19 cirurgia, considera-se uma mulher em corpo de homem (ou vice-versa), não possui libido e é extremamente infeliz (LEITE-JÚNIOR, P. 147). Benjamin selecionou algumas características que considerou relevantes nos relatos de seus/suas pacientes para definir o que é um/a transexual verdadeiro/a. Logo, essa definição se tornou referência para avaliar os discursos dos/das candidatos/as à cirurgia 9. Ocorreu o processo denominado por Bento (2004, p. 162) de construção da universalização do transexual. O/a verdadeiro/a transexual, para Benjamin, é fundamentalmente assexuado e sonha em ter um corpo de homem/mulher que será obtido pela intervenção cirúrgica. Essa cirurgia lhe possibilitaria desfrutar do status social do gênero com o qual se identifica, ao mesmo tempo em que lhe permitiria exercer a sexualidade apropriada, com o órgão apropriado. Nesse sentido, a heterossexualidade é definida como a norma a partir da qual se julga o que é um homem e uma mulher de verdade (BENTO, 2004, p. 163). As pesquisas de Benjamin se transformaram em referência para o diagnóstico daquilo que se considera transexual verdadeiro e, logo, para avaliar a necessidade de cirurgia. Em 1969, cria-se a Harry Benjamin Association, criadora de Normas e Tratamento (Standards of Care S.O.C) para o acompanhamento médico de transexuais utilizado até os dias atuais em grande parte do Ocidente. Porém, Bento (2004; 2006) problematiza e critica essa categorização inflexível e universal pretendida por Benjamin. Através de sua pesquisa de campo com várias/os transexuais demandantes à cirurgia, verificou características diferentes daquelas postuladas por Benjamin. As críticas da autora se concentram, principalmente, em dois aspectos: 1) o suposto caráter assexuado dos/as transexuais; 2) a heterossexualidade como matriz de inteligibilidade dessa população. Bento (2004; 2006) apresenta alguns relatos de transexuais que mantinham uma vida sexual ativa com seus/as companheiros/as antes da cirurgia. Ou seja, como fica o caráter assexuado diante dessa constatação? A autora também relativiza a rejeição do órgão sexual que, para a definição benjaminiano, é uma característica essencial. Outra crítica é em relação à heterossexualidade que obrigatoriamente o/a transexual possui. Nesta concepção, se uma pessoa reivindica a cirurgia de readaptação sexual, é porque deseja exercer o que Benjamin chamaria de sexualidade normal, ou seja, heterossexual. Está fora do horizonte de inteligibilidade conceber que alguém se considere uma transexual lésbica, por exemplo. Porém, Bento (2006) apresenta relatos de transexuais auto-definidos como gays ou lésbicas. O que se percebe aí é uma separação entre identidade de gênero e sexualidade. Uma coisa é desejar ter a identidade de gênero feminina e outra coisa é desejar se relacionar sexualmente com homens. 9 Os critérios para o consentimento em realizar a cirurgia de re-adequação sexual será apresentada com detalhes em seguida.
20 Fazer a cirurgia e definir-se como lésbica é embaralhar as categorias binárias que elaboram o olhar sobre os corpos, pondo em dúvida a relação de causalidade entre cirurgia, sexualidade e o/a verdadeiro/a transexual (BENTO, 2004, p. 166). O que se entende por transexual verdadeiro/a está pautado no que se concebe socialmente por homem e mulher de verdade. Se a heterossexualidade é a forma de relacionamento afetivo normal, logo, o/a transexual verdadeiro/a será heterossexual. A cirurgia surge como uma forma de exercer a sexualidade normal. Porém, a tese defendida por Berenice Bento (2006) é que mais do que o exercício da sexualidade adequado à identidade de gênero, o que se pretende por meio da cirurgia é inteligibilidade social. Ou seja, a aquisição da identidade socialmente legitimada, inclusive mediante a mudança de nome e sexo nos documentos pessoais A transexualidade pela ótica social: John Money e Robert Stoller Paralelo ao trabalho de Benjamin, psicólogo John Money também se dedica ao estudo sobre a sexualidade e os limites e aproximações entre o feminino e o masculino. É Money que utiliza pela primeira vez o termo gênero para se referir às diferenças sexuais entre as pessoas (BENTO, 2006). Radicado nos Estados Unidos, Money atendia principalmente crianças diagnosticadas como possuindo sexo ambíguo, os/as chamados/as intersexuais, no famoso hospital John Hopkins. Após lidar com vários casos de crianças com sexualidade ambígua, conclui que o gênero e a identidade sexual são moldados até os 18 meses de vida. Entretanto, o aparente teor revolucionário de afirmar que o gênero não é algo inato ao organismo, logo se mostra contestável. Isso porque Money mantinha e reafirmava a tradicional dicotomia de gênero e defendia a tese de que a educação era responsável pela instauração das diferenças sexuais. Bento (2006, p. 41) critica essa concepção de Money ao dizer que não se trata de uma determinação do social sobre o natural, mas como o social, mediante o uso da ciência e das instituições, poderia assegurar a diferença entre os sexos. Além disso, as intervenções nos corpos de crianças intersexuais tinham como matriz de inteligibilidade a heterossexualidade como norma. Ou seja, pessoas com pênis deveriam ser masculinas, desejar e manter relações sexuais com mulheres. A cirurgia dessas crianças geralmente fabricava meninas, devido à maior facilidade técnica de criar genitais femininos do que masculinos. Portanto, era criada a vagina e posteriormente, na adolescência, o canal vaginal, tendo como pressuposto a futura penetração de um pênis. Portanto, está-se produzindo cirurgicamente uma mulher, que será educada enquanto tal e deverá sentir atração sexual por homens. À cirurgia, segue-se por uma persistente e vigilante educação dos papéis sociais adequados ao sexo atribuído (LEITE-JÚNIOR, 2008).
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