RELATÓRIO E VOTO. Gabinete do Desembargador Alan Sebastião de Sena Conceição

Transcrição

1 MANDADO DE SEGURANÇA Nº ( ) COMARCA DE GOIÂNIA IMPETRANTE : ANA JÚLIA TEIXEIRA MENDONÇA IMPETRADO : SECRETÁRIO DA FAZENDA DO ESTADO DE GOIÁS RELATOR : DES. ALAN SEBASTIÃO DE SENA CONCEIÇÃO RELATÓRIO E VOTO Ana Júlia Teixeira Mendonça, menor impúbere, devidamente representada por seu genitor, Luciano Alves de Mendonça, impetrou mandado de segurança preventivo, com pedido de concessão liminar da medida, contra ato a ser praticado pelo Secretário de Estado da Fazenda do Estado de Goiás, consubstanciado na negativa em conceder-lhe a isenção de ICMS e IPVA à aquisição de um veículo automotor, em razão de a impetrante ser portadora de deficiência visual. Narra que é portadora de MICROFTALMIA (anomalia em que o globo ocular é anormalmente pequeno ou ausente) (fls. 23/25), e, por morar no interior com seus pais e necessitar frequentemente de consultas médicas e acompanhamentos, inclusive no CEBRAV Centro Brasileiro de Reabilitação e Apoio ao Deficiente Visual, instituição do Governo do Estado de Goiás, bem como pela proximidade de ela completar três 3 MS /g 1

2 anos de idade e de intensificação das atividades naquele local, necessita se locomover constantemente, situação impossível mediante a utilização de transporte coletivo, uma vez depender de vários ônibus até chegar ao destino. Por esta razão necessita de um veículo automotor para se locomover. Alega que, embora seja menor e não possuir CNH, e que também nunca será condutora devido a sua deficiência visual, tem direito às isenções para que possa ter garantida sua locomoção e tratamento, pelo que apresenta o rol de pessoas para esse fim. Sustenta que o Fisco Estadual nunca concedeu tais isenções a deficientes visuais, sob a alegação de que aqueles não têm condições de dirigir os veículos pessoalmente, e, por isso, não fariam jus ao referido benefício fiscal, ou seja, na condição de passageiros, ainda que proprietários dos veículos, ou adquiridos por seus familiares para o seu transporte. A Fazenda Estadual é contundente em afirmar não serem aqueles dignos e/ou titulares do referido direito. Frisa que sua pretensão é amparada no princípio da dignidade da pessoa humana, da isonomia material, dentre outras garantias fundamentais, e nos direitos objetivos previstos na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que têm status constitucional, além de leis federais 3 MS /g 2

3 e estaduais que garantem aos portadores de deficiência o direito de serem contemplados por políticas públicas que permitam oportunidades iguais, no intuito de lhes garantir pleno desenvolvimento. Em seguida, discorre acerca da desnecessidade do esgotamento da via administrativa, tendo em vista, como comprovado nos autos, a negativa dos pleitos desta natureza pelo fisco estadual. Discorre sobre a ilegalidade da conduta do Administrador Público e da infringência do princípio da isonomia, em flagrante afronta aos direitos líquidos e certos, vez que a previsão é legal e ampla a jurisprudência, ressaltando a isenção de IPI já concedida pela Receita Federal (fl. 18). Demonstra a presença dos requisitos ensejadores do deferimento da medida liminar, para que seja determinado ao impetrado que lhe conceda a isenção fiscal quanto ao ICMS e IPVA e, ao final, requer seja concedida a segurança pleiteada em definitivo. fls. 13/45. A inicial veio instruída com os documentos de O preparo é visto em fl MS /g 3

4 O pedido de liminar foi deferido em fls. 47/51. Apesar de haverem sido expedidos mandados de notificação e de intimação ao impetrado e à Procuradoria-Geral do Estado, somente o Estado de Goiás apresentou defesa (fls. 59/63), na qual relata os fatos e alega a inexistência de direito líquido e certo, argumentando que a negativa de isenção está em consonância com o Convênio ICMS 003/2007 e na legislação estadual aplicável à espécie. Ressalta que, no âmbito do Estado de Goiás, as regras do Convênio ICMS nº 003/2007, foram internalizadas pelo Decreto nº 4.852/97 Regulamento do Código Tributário Estadual RCTE -, em seu Anexo IX, que trata da isenção de ICMS. E, ainda, em relação ao IPVA, tem-se que sua isenção é concedida pelo Código Tributário do Estado de Goiás, em seu artigo 94, inciso IV, também para o deficiente físico que dirige o próprio veículo automotor. Acrescenta que, a exigência encartada no referido Convênio, no que foi seguido pela legislação estadual, tem razão de ser na medida em que tenta impedir seja desvirtuada a finalidade do instituto, evitando a utilização indevida do veículo não-adaptado por terceiros, em seu próprio e exclusivo proveito. 3 MS /g 4

5 Pede, ao final, seja denegada a segurança, diante da ausência de qualquer ato abusivo ou ilegal por parte do impetrado. A Procuradoria-Geral de Justiça, por intermédio de seu Procurador, Dr. Abraão Júnior Miranda Coelho, às fls. 66/78, opinou pela concessão da segurança, a fim de que seja reconhecido o direito da impetrante de adquirir o veículo automotor sem o pagamento do ICMS e do IPVA. É o sucinto relatório. Passo ao voto. do presente. Preenchidos os pressupostos legais, conheço Em suma, circunscreve-se o mandamus em averiguar se um deficiente físico, impossibilitado de dirigir veículos como é o caso da impetrante, portadora de MICROFTALMIA (fls. 23/25), pode adquirir automóvel com a isenção do ICMS e do IPVA para que um terceiro o conduza. Pois bem. A questão, a despeito de bastante delicada, já se encontra pacificada nesta egrégia Corte de Justiça. 3 MS /g 5

6 Vejamos. Toda matéria administrativo-tributária, por si só, merece um trato diferenciado pelo operador do Direito, exatamente porque naquela prevalece uma preeminência do interesse público em prejuízo ao particular. É tranquilo o juízo que concebe a Constituição Federal não somente como uma carta de intenções, mas como um documento formal que vincula os 3 (três) Poderes da República e, como corolário desta doutrina, não apenas os casos concretos, mas também todas as legislações hão de ser ponderadas sem perder de mira as suas proposições. Dessa forma, exatamente com amparo em tal raciocínio é que o art. 111, inciso II, do Código Tributário Nacional, além do Convênio ICMS nº 003/07, a Lei Estadual nº /1991 e o art. 7º, inciso XIV, do Anexo IX, do Decreto Estadual nº 4.852/97, devem ser filtrados pela Lei Maior e, ao mesmo tempo, sopesados com o art. 1º, inciso III, c/c o art. 3º, inciso I, e o art. 203, inciso IV, todos deste último diploma. Operado o referido juízo de valor, é pouco mais do que evidente que a dignidade da impetrante, portadora de microftalmia (anomalia em que o globo ocular é anormalmente pequeno ou ausente) há de ser prestigiada não obstante a colisão com o interesse público, princípio não menos importante, mas que 3 MS /g 6

7 merece ser afastado, ante a peculiaridade da hipótese em tela. Ora, como se não bastasse o compromisso do Estado de facilitar e não, tornar ainda mais difícil a integração à vida comunitária do portador de necessidades especiais que, só por si, é hipossuficiente para realizar tarefas singelas do cotidiano, é imprescindível que a legislação lide com a deficiência de uma forma abrangente, sob pena de supervalorizar a igualdade formal direito de todos, inclusive dos deficientes, perante a lei e sacrificar a isonomia substancial peculiaridade de cada deficiente diante das exigências legais. Em síntese: a portadora de MICROFTALMIA, em sendo deficiente física, não pode ter menos direito do que o deficiente que, por exibir um problema físico que lhe cause menor grau de incapacitação, ostenta condições de conduzir o veículo adaptado. A propósito: EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. ICMS E IPVA. PORTADOR DE DEFICIÊNCIA FÍ- SICA E MENTAL. AQUISIÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. EXIGÊNCIAS PARA RECONHE- CIMENTO DA ISENÇÃO. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ISONOMIA, DIGNI- DADE DA PESSOA HUMANA E INTEGRAÇÃO 3 MS /g 7

8 DO DEFICIENTE FÍSICO À SOCIEDADE. DIREITO LÍQUIDO E CERTO A SER AMPARADO. I - É incontroverso conforme acervo probatório coligido aos autos, que o impetrante é deficiente físico e mental, e, portanto, tem necessidades especiais, vez que é portador de Retardo Mental Profundo (CID F73) e de Paralisia Cerebral Infantil (CID 680-8), o que o torna inapto para a condução de qualquer tipo de veículo automotor. II De outra feita, é público e notório que nosso País, inobstante comando constitucional nesse sentido e apesar dos esforços reiterados, com o fim almejado de minimizar as diferenças, os portadores de deficiência sofrem restrições na sua locomoção. III Deste modo, o indeferimento do benefício tributário (isenção de ICMS e IPVA) pela autoridade coatora fere o mais basilar dos princípios da hermenêutica, assim como os fins sociais da lei, como as exigências do bem 3 MS /g 8

9 comum, ao propugnar de que a pessoa que possui maiores limitações físicas é privado de benefícios legais concedidos a outras pessoas de um mesmo grupo com limitações menos severas (motoristas com deficiência física). IV Com efeito, conferir o benefício da isenção ao impetrante, portador de deficiência física e mental, absolutamente inapto, além de ser menor impúbere, para conduzir um veículo automotor, por depender de auxílio alheio, não se trata de aplicar interpretação extensiva ao preceito legal, mas, ao revés, atender ao fim essencial de garantir aos portadores de deficiência a integração social que lhes permita o pleno desenvolvimento de suas aptidões e personalidades, sob pena de ferir aos mais singulares princípios da isonomia, isto é, tratar desigualmente os iguais. V Assim, a segurança é medida que se impõe na espécie para conceder ao 3 MS /g 9

10 impetrante o benefício da isenção de tributos (ICMS e IPVA) para aquisição de veículo a ser dirigido, em seu prol, por outrem. SEGURANÇA CONCEDIDA. (TJGO, 6ª CC, MS nº /101, Des. Fausto Moreira Diniz, DJ nº 565 de 27/04/2010) (original sem grifos). MANDADO DE SEGURANÇA. TRIBUTÁRIO. AQUISIÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR PARA TRANSPORTE DE DEFICIENTE FÍSICO NÃO HABILITADO A DIRIGIR. ISENÇÃO DE IPVA E ICMS. POSSIBILIDADE. I - Em que pese a legislação tributária deva ser interpretada de forma literal, conforme o disposto no art. 111 do Código Tributário Nacional, de outra senda, calha convir que esta forma de interpretação preconizada pela lei, objetiva evitar interpretações ampliativas ou analógicas, todavia, não retira do intérprete a possibilidade de aferir o alcance e o sentido da norma geral e abstrata que instituiu o benefício fiscal. II - Não tem sentido admitir 3 MS /g 10

11 isenção tributária para portadores de deficiência física aptos à condução de veículos automotores e negá-la àqueles que pelo grau de deficiência são incapacitados de fazê-lo, porquanto ambos integram uma mesma categoria modernamente denominada de 'pessoas portadoras de necessidades especiais' (PNE). III - Neste desiderato, preterir deficientes físicos com maiores limitações, privando-os da isenção fiscal que é concedida aos deficientes físicos, cujas limitações são menos severas, é desrespeitar os princípios basilares da dignidade da pessoa humana e da igualdade ou isonomia, albergados pela Constituição Federal. IV - Sopesando os princípios da ordem tributária e os consagrados constitucionalmente, incontestável o direito líquido e certo do impetrante para aquisição de veículo, com isenção dos impostos ICMS e IPVA. SEGURANÇA CONCEDIDA. (TJGO, 1ª CC, MS nº MS /g 11

12 , Rel. Des. Luiz Eduardo de Souza, DJ nº 696 de 11/11/2010) (original sem grifos). Destarte, presentes os pressupostos ensejadores da segurança, deve a mesma ser concedida, nos termos da lei e dos inúmeros julgados desta Corte a respeito da questão. Ao teor do exposto, confirmo a decisão liminar de fls. 47/51, para conceder a segurança em definitivo, a fim de determinar que a autoridade coatora, com observância da legislação pertinente, a saber, anexo IX, artigo 7º, inciso XIV, do Regulamento do Código Tributário Estadual (Decreto nº /97) e Convênio ICMS 03/2007, isente a impetrante do recolhimento do ICMS e do IPVA na aquisição de veículo automotor, observadas as disposições normativas existentes quanto ao seu valor máximo. É como voto. Goiânia, 26 de abril de ALAN SEBASTIÃO DE SENA CONCEIÇÃO RELATOR 3 MS /g 12

13 MANDADO DE SEGURANÇA Nº ( ) COMARCA DE GOIÂNIA IMPETRANTE IMPETRADO RELATOR : ANA JÚLIA TEIXEIRA MENDONÇA : SECRETÁRIO DA FAZENDA DO ESTADO DE GOIÁS : DES. ALAN SEBASTIÃO DE SENA CONCEIÇÃO EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. DIREITO ADMINISTRATIVO E TRIBUTÁRIO. ICMS E IPVA. ISENÇÃO. AQUISIÇÃO DE VEÍCULO POR PORTADOR DE NECESSIDADES ESPECIAIS. CONDUÇÃO POR TERCEIRA PESSOA. POSSIBILIDADE. ISONOMIA MATERIAL. INTEGRAÇÃO À VIDA EM SOCIEDADE. COMPROMISSO ESTATAL. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E INTERESSE PÚBLICO. PONDERAÇÃO. 1 O ato coator que não isenta os deficientes físicos, impossibilitados de dirigir, do recolhimento do ICMS e do IPVA, na aquisição de veículo automotor, incorre em flagrante violação à isonomia material. 2 A ponderação principiológica operada entre a dignidade do portador de necessidades especiais e o interesse público na arrecadação tributária, a par do compromisso estatal de reintegrá-lo à 3 MS /g 1

14 vida em sociedade, resulta no prestígio daquela e, à evidência, na possibilidade de portador de necessidades especiais adquirir o veículo com a referida isenção prevista no anexo IX, artigo 7º, inciso XIV, do Regulamento do Código Tributário Estadual (Decreto nº /97) e Convênio ICMS 03/2007, ainda que um terceiro venha a conduzi-lo. SEGURANÇA CONCEDIDA. ACÓRDÃO que são partes as retro indicadas. VISTOS, relatados e discutidos estes autos, em ACORDA o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, em sessão pelos integrantes da Primeira Turma Julgadora da Quinta Câmara Cível, à unanimidade de votos, em conceder a segurança, nos termos do voto do relator. VOTARAM com o relator, que também presidiu a sessão, os Juízes de Direito Dr. Carlos Roberto Fávaro (em substituição ao Des. Geraldo Gonçalves da Costa) e o Dr. Delintro Belo de Almeida Filho (substituto do Des. Hélio Maurício de Amorim). REPRESENTOU a Procuradoria Geral de 3 MS /g 2

15 Justiça o Dr. José Carlos Mendonça. Goiânia, 26 de abril de ALAN SEBASTIÃO DE SENA CONCEIÇÃO RELATOR 3 MS /g 3