A indeterminação da essência em O ente e a essência de São Tomás de Aquino
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1 Faculdade de São Bento Licenciatura em Filosofia Maria Isabel Gonçalves de Souza Nogueira da Silva A indeterminação da essência em O ente e a essência de São Tomás de Aquino São Paulo Junho/2018
2 2 Faculdade de São Bento Licenciatura em Filosofia Maria Isabel Gonçalves de Souza Nogueira da Silva A indeterminação da essência em O ente e a essência de São Tomás de Aquino Monografia apresentada no Curso de Filosofia da Faculdade de São Bento de São Paulo como exigência para obtenção do título de Licenciada em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Pedro Monticelli São Paulo Junho/2018
3 3 FACULDADE DE SÃO BENTO Maria Isabel Gonçalves de Souza Nogueira da Silva A indeterminação da essência em O ente e a essência de São Tomás de Aquino Monografia apresentada à Faculdade de São Bento, como parte dos requisitos para obtenção do título de licenciada em Filosofia. Aprovada com média: 10 São Paulo, 27 de junho de Banca examinadora: Prof. Dr. Pedro Monticelli Prof. Ms. D. João Evangelista Kovas Profa. Dra. Elaine Camunha
4 4 Aos meus pais, Fátima e Gilmar.
5 5 Agradecimentos Agradeço aos meus pais, familiares, amigos e colegas, que me acompanharam nessa jornada e que tantas coisas me ensinaram. Agradeço à Faculdade de São Bento, ao corpo diretivo, aos coordenadores e funcionários, que, sempre com grande diligência e competência, possibilitaram o máximo aproveitamento do curso. Agradeço ao corpo docente da Faculdade, e, particularmente, ao Prof. Pedro Monticelli, por sua grande dedicação e exemplo de mestre. Agradeço à editora Cultor de Livros, e de maneira especial, a Luiz Eduardo e Vanessa, pelo indispensável apoio. Agradeço também à amiga Landy, que gentilmente leu a primeira versão deste trabalho.
6 6 Resumo Na abstração das essências, o intelecto separa os princípios essenciais dos princípios individuais, e, segundo o que é comum a muitos, reúne indivíduos em uma mesma espécie e em um mesmo gênero. O indivíduo pode então ser predicado, essencialmente, segundo as intenções lógicas. Em O ente e a essência, São Tomás faz notar que, ainda que a predicação pelas intenções lógicas determine os princípios essenciais, os princípios individuais permanecem na essência, porém, indeterminadamente. Essa indeterminação pode ser maior ou menor, segundo a precisão da definição. Este trabalho procurará estudar como a predicação se dá por meio das intenções lógicas, tomando as diferentes acepções de essência, e destacando o elemento da indeterminação em cada um dos predicáveis. A seguir, tomando a essência a modo de todo, relativamente considerada, adentraremos o problema dos universais, para, enfim, vermos de que maneira essa indeterminação pode garantir a adequação da predicação universal. PALAVRAS-CHAVE: intenções lógicas; indeterminação; predicação; essência; individuação.
7 7 Abstract In the abstraction of the essence, the intellect separates the essential principles from the individual principles, and according to what is common to many, gather individuals into the same species and in the same genus. Then, through logical intentions, the individual can be predicated essentially. In On Being and Essence, St. Thomas Aquinas points out that, although predication through logical intentions determinates the essential principles, all individual principles remain in essence, but indeterminately. According to the precision of the definition, the indeterminacy can be more or less extensive. This paper aims to study how predication occurs through logical intentions, taking the different meanings of essence, distinguishing the element of indeterminacy in the logical intentions. Afterward, taking the essence signified as a whole, it will achieve the problem of universals, in order to understand how the indeterminacy is able to guarantee the adequacy of universal predication. KEYWORDS: logical intentions; indeterminacy; predication; essence; individuation.
8 8 Lista de abreviações e siglas CG De ente ST Suma contra os gentios O ente e a essência Suma Teológica
9 9 Sumário Folha de aprovação...3 Dedicatória...4 Agradecimentos...5 Resumo...6 Abstract...7 Lista de abreviações e siglas...8 Sumário Introdução: O opúsculo O ente e a essência Contexto histórico: o opúsculo em seu tempo O conteúdo de O ente e a essência A essência e a indeterminação Noções introdutórias As noções de ente, essência e ser As substâncias compostas e a matéria assinalada como princípio de individuação A essência e as intenções lógicas...21
10 10 3. A essência como todo e como parte A essência tomada como todo A essência tomada como parte A essência absoluta e relativamente considerada A essência absolutamente considerada A essência relativamente considerada e a predicação universal...33 Considerações finais...37 Bibliografia...39
11 11 1. Introdução O opúsculo O ente e a essência 1.1. Contexto histórico: o opúsculo em seu tempo O opúsculo O ente e a essência de São Tomás de Aquino foi escrito para seus irmãos e companheiros em sua juventude, quando não era ainda Mestre-regente em exercício, provavelmente entre 1252 e Nessa época, São Tomás de Aquino começava a exercer seu magistério no Studium Generale dos Dominicanos, na Universidade de Paris, e era discípulo de Alberto Magno. A obra foi concebida em um ambiente de redescoberta das obras de Aristóteles pelos ocidentais, as quais já vinham sendo estudadas e traduzidas pelos árabes desde o século XII. Aristóteles fora então recebido pelos cristãos com curiosidade e, até certo ponto, com desconfiança. Essa desconfiança deve-se, provavelmente, porque o corpus aristotelicum provinha de fontes não-cristãs: sua recepção nos ambientes cristãos fora mediada, em primeiro lugar, pelas traduções e comentários dos árabes e, o que é mais relevante, o próprio Aristóteles era pagão e não havia conhecido a Revelação. Até então, a filosofia no meio cristão procedia quase exclusivamente da ciência sagrada, arraigava-se na filosofia agostiniana e subordinava-se inteiramente à fé. Com a chegada do aristotelismo à Universidade de Paris, faz notar Forment 2, a relação de dependência mútua entre a filosofia e a teologia pareceu ficar ameaçada. Acrescenta-se a isso a tradução para o latim das obras de Averróis, que lucraram notável prestígio naquele ambiente, e que traziam consigo alguns elementos opostos à fé cristã. Em reação a essa mudança de direção da filosofia cristã, as obras do estagirita foram expressamente proibidas por autoridades eclesiásticas sucessivas vezes. 3 1 Cf. TORRELL, J.-P., OP. Iniciação a Santo Tomás de Aquino Sua pessoa e sua obra. Trad.: Luiz Paulo Rouanet. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004, p FORMENT, E., La síntesis Filosófico-Teológica de Santo Tomás em AQUINO, T. El ente y la esencia. Traducción, estudio preliminar y notas de Eudaldo Forment. 2. ed. Pamplona: EUNSA, 2006, p Em 1210, deu-se a primeira proibição das obras de Aristóteles, no Sínodo da Província Eclesiástica de Sens, nos seguintes termos: E não se leiam [ou seja, não haja lectio, não se expliquem aos alunos] os livros de Aristóteles de Filosofia natural, nem seus comentários [provavelmente árabes, de sabor neoplatônico], nem em público [nas aulas], nem em segredo [privadamente], sob pena de incorrer em
12 12 Tomou força então o movimento do agostinianismo, em frontal oposição ao aristotelismo, ao averroísmo e, mais tarde, ao avicenismo. As doutrinas erigidas por esse movimento, contudo, não são estrita e rigorosamente agostinianas tal como a interpretação da doutrina da iluminação atrelada à teoria do intelecto agente separado 4, mas o nome de Santo Agostinho fornecia um argumento de autoridade aos seus representantes. Cabe destacar, contudo, que o próprio São Tomás enfrentou a doutrina de Avicena no que diz respeito aos elementos opostos à fé cristã, mas não deixou de concordar com as teses filosóficas compatíveis com seu sistema. A influência de Avicena sobre Tomás pode ser notada pelo abundante número de citações no opúsculo, e abrangem teses como a doutrina dos universais, a distinção real entre essência e ser e o princípio de individuação. No entanto, apesar de seguir Avicena em muitos pontos, não deixa de divergir em outros, sobretudo no que se refere ao fundamento metafísico. Um exemplo disso é a acima mencionada distinção real entre essência e ser. Para Avicena, há distinção realmente, porque se pode pensar a essência independentemente do que a representamos como existente em um indivíduo. No entanto, o ser seria um acidente necessário, porque dependeria de outro. Para o Doutor Angélico, por outro lado, o esse (ser) não é algo acidental. 5 São Tomás dialoga com diferentes autores, não-cristãos e pagãos, porém, não por uma postura eclética, como destaca Forment 6, mas por seu compromisso com a verdade. Isso é o que se nota quando toma argumentos e teses de diferentes pensadores, muitos deles já citados, e examina-os à luz da razão. Não é outra sua intenção e método ao tomar as teses do Filósofo como chama Aristóteles, gerando um aristotelismo que, nas palavras de Fraile, excomunhão (CUP, I, 11 apud SARANYANA, 2006, p. 291). Em 1215, essa proibição foi renovada por Robert de Courçon no Legado Pontifício, na aprovação dos Estatutos da Universidade de Paris. Em 1231, o Papa Gregório IX reafirmou a proibição, com ressalvas: Não se empreguem em Paris [os livros de Aristóteles], antes de serem examinados e expurgados de toda suspeita de erro (CUP I, 79 apud ibidem, p. 292). Em 1245 e em 1263, os Papas Inocêncio IV e Urbano IV fizeram o mesmo. 4 Cf. FORMENT, 2006, p. 11. Para mais sobre as doutrinas de Avicena, Averróis e Avicebron, cf. GILSON, E. A filosofia da Idade Média. Trad.: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p Cf. SARANYANA, J-I. A filosofia medieval. Das origens patrísticas à escolástica barroca. Trad.: F. Salles. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio (Ramon Llull), 2006, p FORMENT, 2006, p. 11.
13 13 não é puro, mas depurado 7. São Tomás contribui para a exposição de um aristotelismo autêntico, e, ao mesmo tempo, sem conflitos com a Revelação, porque tem em vista o conhecimento verdadeiro. Nas palavras de Gilson: Aristóteles conhecia apenas uma teologia: a que faz parte da metafísica. São Tomás, por sua vez, conhecia duas: a que faz parte da metafísica e a que a transcende [...]. Portanto, era inevitável que, nesse ponto, como em tantos outros, a teologia de São Tomás exercesse sobre seu aristotelismo uma influência que alguns qualificariam de perturbadora, mas na qual devemos ver, antes, a fonte do pensamento filosófico o mais pessoal e o mais autenticamente criador. 8 Talvez por isso a recepção das obras tomistas viesse tão acompanhada de críticas e dissenso. Por um lado, conceituados mestres, como Alberto Magno, Siger de Brabante e Roger Bacon, dialogavam e indicavam a doutrina tomista. Por outro, o estranhamento dirigido à doutrina aristotélica arrastava consigo algumas teses (por vezes, mal compreendidas) do Aquinate. É conhecida, por exemplo, a condenação de 7 de março de 1277, erigida por Étienne Tempier. No entanto, os pontos criticados pouco se referiam diretamente a São Tomás, e deviam-se principalmente ao afastamento do agostinianismo-neoplatonismo. Parte da condenação foi anulada após a canonização de São Tomás, que se deu em Paulatinamente, os escritos do Doutor Angélico passaram a ser cada vez mais estudados, e tomados como referência de filosofia cristã. Ao final do século XIX, sobretudo após a encíclica Aeterni Patris de Leão XIII, em 1879, o prestígio pareceu atingir seu cume. E, ainda hoje, descobrem-se tesouros nos escritos de São Tomás de Aquino, que muito contribuem para o desenvolvimento da atividade filosófica. 7 FRAILE, G., OP. Historia de la Filosofia II, Madri: BAC, 1966, p. 642s, citado por MOURA, O., OSB. Introdução em AQUINO, O ente e a Essência texto latino e português. Introdução, tradução e notas de D. Odilão Moura, OSB. Rio de Janeiro: Presença, 1981, p. 20, nota GILSON, E. O ser e a essência. Vários tradutores. São Paulo: Paulus, 2016, p. 98.
14 O conteúdo de O ente e a essência A obra O ente e a essência veio a lume como um esforço para sistematizar e explanar importantes teses metafísicas, muitas delas inspiradas no estagirita, mas elaboradas e transmitidas com tal autenticidade por São Tomás, que, além de inserir-se em discussões filosóficas então vigentes, entram definitivamente para a História da Filosofia como um tratado de Metafísica. 9 São Tomás abre o opúsculo com uma citação do livro I de De caelo et mundo, afirmando que um pequeno erro no princípio é grande no fim, servindo de alerta para a dimensão do estudo que será empreendido. O objeto desse estudo é anunciado logo a seguir, em palavras de Avicena: o ente e a essência são o que é concebido primeiro pelo intelecto. Manifesta que serão expostos o que é significado pelo nome de essência e de ente, como se encontra em diversos e como está para as intenções lógicas, passando à significação da essência, de modo que, começando pelo mais fácil [a significação de ente], o aprendizado se dê de maneira mais adequada 10. Dom Odilão Moura, na Introdução à sua tradução do opúsculo, compendia o conteúdo tratado da seguinte maneira: Dá-nos o Opúsculo a noção de ente e as suas diversas divisões: ente real e ente de razão; o ente real dividindo-se em substância e acidente; a substância dividindo-se em substância simples e composta; a substância simples dividindo-se em ato puro, inteligências separadas e alma humana. [...] Da substância e dos acidentes, explicita qual seja o princípio de individuação e a razão da multiplicação (ou não). 11 O Capítulo I de O ente e a essência dedica-se à noção de ente (n. 3), e, tomando a noção de ente real, afirma poder dividi-lo nas dez categorias, isto é, pode ser substância ou um 9 Caetano ( ), um de seus mais conhecidos intérpretes, considerou o opúsculo um resumo do pensamento filosófico de São Tomás, e, em razão disso, elaborou seu Comentário a fim de auxiliar seus alunos na Universidade de Pádua a compreenderem o sistema do Aquinate. Posteriormente, encontramos diversos autores que se dedicaram ao estudo da obra e que reafirmaram sua importância. Alguns dos mais conhecidos são Rafael Ripa, José Pecci, Boyer, Abelardo Lobato, Roland-Gosselin, Baur e Perrier. 10 De ente, nn Neste trabalho, as citações e a numeração de O ente e a essência serão tiradas da tradução de Carlos Arthur do Nascimento (Petrópolis: Vozes, 1995). 11 MOURA, 1981, p. 23.
15 15 dos nove acidentes. O ente como acidente será analisado ao final do opúsculo, mas não neste trabalho. É introduzida também nesse capítulo a noção de essência, que é relevante para esta pesquisa e que será retomada diversas vezes: é preciso que a essência signifique algo comum a todas as naturezas, pelas quais os diversos entes são colocados em diversos gêneros e espécies 12. As substâncias podem ser simples ou compostas. Há uma anterioridade das substâncias simples sobre as substâncias compostas, dado que a primeira substância simples, que é Deus, é causa das outras, e que nas outras substâncias simples há essência [...] de um modo mais verdadeiro e nobre 13. No entanto, na ordem do conhecimento, as substâncias compostas são-nos mais manifestas, fazendo com que, também na ordem de exposição da obra, estas tenham prioridade sobre aquelas. A substância pode ainda ser tomada de outro modo: como substância primeira ou substância segunda. Substância primeira é aquela cuja essência é encontrada nos singulares, individual e sem definição, e a substância segunda é aquela encontrada nas intenções lógicas, apta a ser predicada de muitos e expressa na definição dos entes da mesma espécie. A discussão a respeito das substâncias é para nós de grande interesse, porque traz consigo algumas precisões terminológicas 14, e abre campo para a abordagem do problema da indeterminação A essência e a indeterminação O ente pode ser predicado segundo as intenções lógicas. As intenções lógicas gênero, espécie e diferença específica significam a essência e expressam o todo do ente. Contudo, para que isso seja possível, é preciso determinar o que é comum a vários singulares: O que é comum a muitas coisas não é algo fora delas, a não ser por distinção de razão, como, por exemplo, animal não é algo extrínseco a Sócrates, a 12 De ente, n Ibid., n Algumas delas serão enumeradas no Capítulo 2, a fim de esclarecer seu uso neste trabalho.
16 16 Platão, ou aos demais tipos de animais, senão a apreensão intelectiva, a qual apreende a forma animal, destituída das notas individualizantes e especificantes. 15 O intelecto, distinguindo o que é comum a vários, abstrai uma noção uniforme a todos aqueles indivíduos, prescindindo daquilo que é próprio apenas daquele indivíduo. 16 Por isso, animal pode ser atribuído a Sócrates e a Platão, porque ambos possuem a essência de animal. É patente, contudo, que entes da mesma espécie possuem em comum os princípios essenciais, mas possuem muitas outras notas que não são expressas explicitamente na predicação essencial. Em outras palavras, os indivíduos distinguem-se uns dos outros não somente pelo número, mas também pelas características que lhe são próprias, às quais damos o nome de diferenças individuais ou notas individualizantes. A elas opõem-se as notas essenciais, que são aquelas comuns a todos os indivíduos da mesma espécie, e que possibilitam a definição. São, portanto, abstraídas as notas individualizantes para que se obtenha tão-somente a essência. Para que uma mesma noção universal possa ser atribuída a muitos particulares, tendo em conta que esses particulares diferem entre si por suas diferenças individuais, é preciso que essa noção, em primeiro lugar, prescinda das diferenças particulares para expressar determinadamente apenas o que é essencial, e que, em segundo lugar, possa conter, indeterminadamente, todas as diferenças individuais que possam existir realmente naqueles particulares. Não há indeterminação apenas na referência da noção universal ao particular, como também nas próprias intenções lógicas, que são usadas na predicação, porque contêm em si um maior ou menor grau de indeterminação. São Tomás refere-se a esse problema de diversas maneiras e em diferentes partes do opúsculo. 17 Diz, por exemplo, que se o animal [gênero] 15 CG I, XXVI, [...] conhecer consistirá, pois, em desprender das coisas o universal que nelas está contido. Será esse o papel da operação mais característica do intelecto humano, que designamos pelo nome de abstração. (GILSON, 1995, p. 668) 17 No Capítulo II, isso se dá sobretudo após a enunciação do princípio de individuação (n. 17), em que afirma que a designação do indivíduo a respeito da espécie é pela matéria determinada pelas dimensões (n. 18). A indeterminação da espécie com respeito ao gênero aparece a seguir: é pela diferença constitutiva, que é tomada da forma da coisa ; e ainda: tudo o que está na espécie, está também no gênero como não determinado (n. 19). Outras ocorrências do problema, conforme expostas pelo filósofo, serão apresentadas ao longo do trabalho.
17 17 não fosse tudo o que é homem [espécie], mas uma parte dele, não seria predicado dele, visto que nenhuma parte integral se predica do seu todo 18. Assim, a definição se dá, em primeiro lugar, e menos determinadamente, no gênero; acrescentada a diferença específica, tem-se a espécie como definição mais determinada. [...] nas coisas cujas definições conhecemos, primeiramente as colocamos em um gênero, e isso nos leva a saber o que cada uma tem de comum com as outras; depois, acrescentamos as diferenças pelas quais se distinguem das demais. 19 A indeterminação, portanto, consiste precisamente na abstração das diferenças. Há uma maior determinação quanto mais diferenças são designadas na predicação, ao passo que, no indivíduo, há tão-somente a determinação. Este trabalho procurará estudar, em primeiro lugar, como a predicação se dá por meio das intenções lógicas, como exposto no Capítulo II de O ente e a essência, tendo em vista as diferentes acepções de essência e destacando o elemento da indeterminação em cada um dos predicáveis. A seguir, tomando a essência a modo de todo e relativamente considerada, adentraremos o problema dos universais, para, enfim, ao analisar o Capítulo III do opúsculo, vermos de que maneira essa indeterminação pode garantir a adequação da predicação universal. 20 Para isso, usaremos principalmente os comentários ao opúsculo de Eudaldo Forment, Dom Odilão Moura e Dom João Evangelista Kovas. 21 Para as citações, usaremos a tradução e numeração usadas por Carlos Arthur do Nascimento. 18 De ente, n CG I, I, Cf. KOVAS, D. J. E. Comentário parágrafo por parágrafo de O ente e a essência de São Tomás de Aquino, capítulos 1-3. São Paulo: Faculdade de São Bento, p Todas as obras estão citadas nas notas anteriores, bem como nas referências bibliográficas. Cabe ressaltar que as citações da obra de Eudaldo Forment são traduções livres de nossa autoria, e que o texto original está publicado em espanhol. O mesmo é válido para as outras obras citadas, publicadas originalmente em inglês ou em espanhol.
18 18 2. Noções introdutórias empregados. Para dar início ao trabalho, cabe distinguir e explicitar alguns termos, como são aqui 2.1. As noções de ente, essência e ser O ente (ens), objeto da Metafísica, é aquilo que é (id quod est). No Capítulo I, ao referir-se ao ente, São Tomás faz notar duas acepções. A primeira é a do ente real, segundo os dez gêneros 22, no qual não pode ser dito ente senão aquilo que põe algo na coisa 23. A segunda acepção é a do ente de razão, que diz respeito à verdade das proposições, modo em que as privações e negações são ditas entes. Esse ente não tem modo de ser real, e, por isso, não será abordado com mais detalhes neste trabalho. A essência (essentia) é o que faz com que uma coisa seja o que é: por ela e nela o ente tem ser. Ela tem, portanto, uma dupla função: a de diferenciar o ser ( por ela ) e a de sustentar o ser ( nela ). Na primeira, a essência determina o ser. É preciso que a essência signifique algo comum a todas as naturezas, pelas quais os diversos entes são colocados em diversos gêneros e espécies 24 e, ainda, a coisa não é inteligível senão pela sua definição e sua essência 25. Na segunda, a essência é o sujeito ou recipiente do ato de ser. A essência pode ser tomada como forma, mas no sentido de forma totius, como o abstrato do concreto ou individual. Assim, expressa os princípios essenciais, sem incluir o que não pertence à essência. Por outro lado, a forma partis, forma enquanto parte da essência das substâncias compostas, determina a matéria, dando-lhe atualidade; é parte das essências, tanto abstratas quanto concretas. A essência abstrata inclui os mesmos elementos essenciais que a essência concreta, comum e singular, mas não são o mesmo. A essência abstrata é aquilo segundo o qual algo é, aquilo pelo qual algo é de determinada espécie, com exclusão dos princípios individuantes. A 22 O conceito de ente não é ele mesmo um gênero, como são as categorias. Aponta Forment (2006, p. 69) que o ente se divide em dez gêneros, não como um gênero em outros subgêneros, mas como um conceito análogo se divide em seus analogados. 23 De ente, n Ibid., n Ibid., n. 5.
19 19 essência concreta, por sua vez, inclui os princípios individuantes, não apenas os essenciais. A essência abstrata é um todo que se significa como parte. 26 O ser (esse) é o ato do ente. É o ato constitutivo e mais radical; aquilo pelo qual as coisas são. O ato de ser atualiza a essência. É perfeição comum a todos os entes, e, neles, está limitado pela essência. A essência, que enquanto tal é ato, ato essencial, comporta-se com respeito ao ser como potência ou capacidade sustentante. O ser, ato do ente, é a atualidade de todos os atos essenciais. É o ato dos atos. [...] É a primeira atualidade, o ato primeiro ou fundamental. 27 Potência (potentia) é a capacidade de ter uma perfeição. Ato (actus) é a perfeição que um sujeito possui. O ser é a atualidade de todos os atos essenciais, e é o que atualiza o ente. A essência, com respeito ao ser, possui a capacidade de ser atualizada, constituindo assim o ente As substâncias compostas e a matéria assinalada como princípio de individuação A substância (substantia) é o substrato permanente e estável. Substância é aquela cuja essência ou natureza compete ser em si, não em outro sujeito. Por outro lado, o acidente (accidens) é aquele a cuja essência convém ser em outro. A substância é substrato do acidente, não apenas enquanto suporte, mas também porque lhe confere o ser. É também causa dos acidentes que derivam dela mesma. Ela pode ainda ser aperfeiçoada por seus acidentes. Segundo Dom Odilão Moura, a razão formal da substância é a subsistência. Portanto, o constitutivo formal da substância não é negação de ser em outro, nem sustentar os acidentes, mas subsistir em si mesma. 28 As substâncias compostas são constituídas por forma e matéria, e por essência e ato de ser. A forma substancial é princípio determinante da essência, é a que limita ou restringe o ato de ser. A matéria é princípio passivo, pois é potência com relação à forma, que é ato. A forma é princípio do ser do ente e tem prioridade sobre a matéria (é principium essendi). A 26 FORMENT, 2003, p Ibid., p CG I, 25 apud MOURA, 1981, p. 121.
20 20 matéria é pela forma, e não o contrário. 29 A forma determina a matéria; o ser não determina a forma, mas é determinado por ela. A forma determina o ser, limitando sua atualidade e, de outra maneira, determina também a matéria, conferindo-lhe atualidade. A matéria é princípio de individuação das substâncias compostas. 30 A essência dos entes existe apenas individualizada. A multiplicação do ato se deve (...) à potência, e por isso cabe adiantar que, dentro da essência das realidades corpóreas, a matéria é o princípio multiplicador das formas. 31 A matéria é o que faz possível que, num mesmo grau de ser, haja pluralidade de indivíduos. Os indivíduos de uma mesma espécie não apenas são muitos, como também são distintos entre si. Essa multiplicação se mantém dentro dos limites postos pela espécie. Por isso, é possível que um homem tenha cabelo loiro ou castanho, por exemplo, mas não é possível que tenha a pele verde ou azul. A matéria, além de multiplicar a forma, também a individualiza. É princípio passivo, o que permite a multiplicidade dos indivíduos em uma mesma espécie. É também por ela que há a individuação da essência. [...] individuação não significa somente diversidade individual no modo de possuir uma perfeição comum, mas o fato de que alguma propriedade participável por muitos se encontre em situação de singularidade, sendo esta e não aquela. [...] É preciso notar que o que se individualiza não é propriamente o ente (este é já individual), mas a forma comum, a propriedade participável por muitos. 32 A matéria é princípio de individuação; não tomada de qualquer maneira, mas apenas a matéria assinalada 33. A matéria individua a essência, enquanto ela mesma é singular, afetada pelo acidente quantidade. Cabe ressaltar que a individuação requer que intervenham também a forma substancial e a quantidade. A matéria, uma vez atualizada pela forma, passa a ter o acidente quantidade; esse acidente dá dimensões à matéria, fazendo-a esta matéria, distinta das outras; a matéria, singularizada pela quantidade, individualiza a forma 29 Cf. ALVIRA, T.; CLAVELL, L; MELENDO, T. Metafisica. 5. ed. Pamplona: EUNSA, 1993, p Cf. FAITANIN, P. Identificación del Principio de Individuación en Tomás de Aquino, Aquinate, n. 14, 2011, p Segundo este autor, ainda que São Tomás tenha formulado o princípio de individuação de diferentes maneiras, é sempre o mesmo o que expressa. 31 ALVIRA et al, 1993, p Ibid., p De ente, n. 17. São Tomás usa materia signata e materia designata. Aqui, usaremos matéria assinalada para ambas as ocorrências.
21 21 específica. 34 O individual contrapõe-se ao universal ou abstrato. Os acidentes também se individuam, porém, não pela matéria, mas pelo próprio sujeito, que já é em ato. O que se coloca na definição é a matéria não-assinalada, presente na formulação das intenções lógicas, que expressam o ente universal e essencialmente A essência e as intenções lógicas A essência pode ser expressa segundo as intenções lógicas: gênero, espécie e diferença específica. A diferença é princípio determinante em cada intenção lógica. A diferença genérica determina o gênero. Por exemplo, sensitivo é diferença genérica que determina animal em vivente. A diferença específica é a que determina a espécie dentro do gênero, como racional é a diferença específica de homem. A diferença individual é a que determina este ou aquele indivíduo, dentro de uma mesma espécie: é o que faz com que Pedro seja Pedro, e João seja João. Intenção (intentio) é utilizada aqui como o ato do entendimento a que se refere a realidade entendida 35. São chamadas intenções lógicas por serem resultado de uma reflexão intelectual pela qual o entendimento conhece seus próprios atos e as relações que adquirem os conteúdos. 36 As intenções lógicas são chamadas também predicáveis, porque são as diversas maneiras de predicar ou atribuir o inteligido à realidade. Tudo o que se predica univocamente de muitos não pode ser mais que gênero, diferença, acidente ou próprio. 37 Aqui, interessam-nos os três primeiros, pois são os que expressam o ente por sua essência. A diferença cumpre a função de determinação, ou, ainda, de assinalação. 38 Implica referência a outro, e se dá entre coisas que têm algo em comum. Duas espécies podem ter em 34 Cf. ALVIRA et al, 1993, p FORMENT, 2006, p Cf. idem. As intenções podem ser de primeira ou de segunda intenção. A primeira é resultado de um ato intelectual direto, e a segunda, de uma reflexão intelectual. As segundas intenções são as chamadas intenções lógicas. 37 CG, I, XXXII, Nas substâncias compostas, a diferença existente entre essência genérica e essência específica provém da assinalação (ou determinação) feita pela diferença específica; a diferença existente entre a essência específica e a essência no indivíduo é feita pela assinalação da matéria pela quantidade. (MOURA, 1981, p. 129)
22 22 comum o gênero, e distinguirem-se pela diferença. Cabe notar que há uma maior determinação na espécie, pois lhe é assinalada a diferença. A essência genérica, considerada como um todo, contém de modo indeterminado todas as perfeições das essências específicas a elas subordinadas, e delas se pode predicar. 39 O universal pode ser expresso pelos predicáveis 40, ao passo que o indivíduo é o sujeito último da predicação. O indivíduo não é, portanto, um predicável. Não conhecemos a natureza do indivíduo enquanto indivíduo, mas por suas notas, que não se repetem em nenhum outro indivíduo. 39 MOURA, 1981, p [...] se o predicado significa a própria essência, pode significá-la totalmente, e temos a espécie (in quid complete); se a significa parcialmente, temos o gênero (in quid incomplete); ou pode significá-la qualitativamente e temos a diferença (in quale quid). (MOURA, 1981, p. 132)
23 23 3. A essência como todo e como parte O Capítulo II do opúsculo trata da essência das substâncias compostas, entendida como parte e como todo. Neste capítulo, afirma Moura, considera-se a essência das substâncias compostas, não mais na sua realidade física concreta, mas enquanto pensada em conceitos abstraídos desta realidade, que são os predicáveis 41. Os predicáveis, como foi dito acima, são as intenções lógicas. Distinguem-se em cinco modos na mente; para este estudo, interessam apenas três, que expressam o ente essencialmente: gênero, espécie e diferença. Para compreender a predicação pelas intenções lógicas, é preciso, em primeiro lugar, compreender o que abarca a essência das substâncias compostas A essência tomada como todo As substâncias compostas são constituídas de matéria e forma. O primeiro problema tratado nesse capítulo de O ente e a essência (nn ), portanto, é se a essência das substâncias compostas se dá apenas pela forma ou apenas pela matéria, pela relação entre matéria e forma, ou pela matéria e forma. É patente que a matéria por si só não seja a essência, pois ela mesma não é princípio de conhecimento, e não é devido a ela que algo pode ser fixado em um gênero ou espécie. Contudo, a forma sozinha também não é a essência da substância composta, pois a definição das substâncias naturais contém, não apenas a forma, mas também a matéria 42. Também não se pode dizer que a essência signifique a relação entre matéria e forma, pois, assim, seria um acidente. Resta apenas que o nome de essência nas substâncias compostas significa aquilo que é composto de matéria e forma 43. Nas substâncias compostas, portanto, são princípios constitutivos, essenciais, a matéria e a forma: não apenas uma, nem apenas outra, nem sua 41 MOURA, 1981, p De ente, n De ente, n. 15.
24 24 relação. A forma é ato na matéria, e a matéria, que é princípio potencial, é tornada ente, e o ente, algo. A forma confere à matéria uma determinação conforme a espécie. Já que a matéria é princípio de individuação, poder-se-ia pensar que, se a essência abarca tanto a matéria quanto a forma, diria respeito apenas ao particular, e não ao universal, de maneira que os universais não teriam definição. São Tomás enuncia então a famigerada fórmula do princípio de individuação: a matéria é princípio de individuação, não tomada de qualquer maneira, mas apenas a matéria assinalada 44. A matéria que é posta na definição do universal, portanto, não é a matéria assinalada (determinada), mas a matéria não-assinalada, considerada de maneira absoluta. Portanto, a essência da espécie (homem) e a essência do indivíduo (Sócrates) diferem tão-somente pelo assinalado e pelo não-assinalado. Vemos aparecer, pela primeira vez, o elemento da indeterminação. A essência da espécie pode ser predicada do indivíduo, porque expressa tudo o que há de essencial nele, e contém, indeterminadamente, tudo o que no indivíduo está determinado, mas que não diz respeito aos princípios essenciais. A essência da espécie e do gênero também diferem pelo assinalado (mais determinado) e pelo não-assinalado (menos determinado), mas de outro modo. A designação do indivíduo a respeito da espécie é pela matéria determinada pelas dimensões; a designação, porém, da espécie a respeito do gênero é pela diferença constitutiva [differentiam constitutiuam], que é tomada da forma da coisa. 45 A essência da espécie contém o gênero e a diferença constitutiva (também chamada diferença específica). O gênero inclui, indeterminadamente, todas as espécies, e implicitamente, todas as diferenças específicas. Tudo o que a espécie expressa é expresso também pelo gênero, porém não determinadamente. Esta determinação ou designação, porém, que está na espécie a respeito do gênero, não é através de algo existente na essência da espécie, que não esteja de modo nenhum na essência do gênero; até mesmo, tudo o que está na espécie, está também no gênero como não determinado. 46 Para explicitá-lo, São Tomás toma o exemplo do termo corpo. O nome corpo pode ser tomado em duas acepções: pode significar o gênero da substância, no qual são 44 Ibid., n Ibid., n Ibid., n. 19.
25 25 designadas as três dimensões, ou enquanto o gênero da quantidade, significando as próprias três dimensões. A primeira acepção do nome corpo pode significar algo que tem alguma forma da qual três dimensões podem ser designadas. Corpo é aqui entendido como a parte material, como matéria corpórea; a parte formal fica a cargo de perfeições ulteriores. Por isso, pode-se dizer que o animal é constituído por alma (princípio formal) e corpo (princípio material). A segunda acepção de corpo é a do predicamento como quantidade. Corpo, nesse sentido, é aquilo que tem uma forma substancial, da qual provêm três dimensões. É, então, tomado como gênero, sendo animal uma de suas espécies (bem como vegetal, por exemplo). Assim, estão implicitamente contidas na forma de corpo as formas de animal, vegetal, pedra, e todas as que têm corpo como gênero. O exemplo trata de elucidar que o todo que está na espécie está também no gênero como não determinado. É preciso que o gênero contenha tudo o que há na espécie para que possa ser predicado dela. Foi dito acima que a indeterminação da essência da espécie com respeito ao gênero difere da indeterminação do indivíduo com respeito à espécie, ainda que ambos se deem como o assinalado e o não-assinalado. O gênero inclui, implicitamente, todas as espécies. 47 Implicitamente, esclarece Forment 48, quer dizer estar contido em algo de modo extrínseco, não como parte. Assim, a espécie não implica a diferença, pois esta é uma de suas partes. 49 O gênero, por sua vez, não é a diferença, mas tem a diferença. Portanto, a diferença está implicada no gênero, e contida na espécie a modo de parte. O gênero, portanto, significa indeterminadamente não apenas os princípios individuantes, como também a diferença específica. A espécie, por sua vez, significa determinadamente a diferença específica, mas indeterminadamente os princípios individuantes. Pode ser predicada, portanto, dos particulares. 47 A forma do animal está contida implicitamente na forma do corpo, na medida em que corpo é seu gênero. (De ente, n. 21) 48 FORMENT, 2006, p , comentando CAPREOLO, J. Defensiones Theologiae Divi Thomae Aquinatis, Ceslai Paban; Thomas Pègues, Turonibus, Alfred Cattier, Bibliopolaea Editoris, , vol. I, p. 238b. 49 A espécie é a diferença, ainda que não totalmente, mas parcialmente. (FORMENT, 2006, p. 99)
26 26 O segundo exemplo disso é o do gênero animal com respeito à espécie homem. Se animal designasse apenas uma coisa que possa sentir e mover-se, isto é, que possui a perfeição da vida sensitiva, então qualquer perfeição ulterior seria para ele uma parte, e não como algo implicitamente contido nessa noção. Animal, recebendo essa perfeição, será a parte que é matéria ou sujeito dessa perfeição. Numa segunda acepção, animal pode ser tomado como gênero, se seu sentido é o que tem vida sensitiva, mas que contém implícita e indeterminadamente outras perfeições ulteriores. Em ambos os exemplos, a essência é expressa, em primeiro lugar, a modo de parte, e, em segundo, a modo de todo. A predicação a modo de todo é a que expressa o todo da espécie, significando indeterminadamente o que, nela, está determinado. Ao passo que o primeiro exemplo lança luz sobre o gênero, o segundo se volta para a diferença específica. De animal a homem, designa-se a diferença racional, que não é determinada no gênero animal, mas nele implicada. A espécie homem é um composto de animal e racional, e tanto o primeiro quanto o segundo podem ser predicados do todo. 50 Assim, portanto, o gênero significa indeterminadamente o todo que está na espécie, pois não significa apenas a matéria. Semelhantemente, também a diferença significa o todo e não significa apenas a forma; e também a definição significa o todo ou ainda a espécie. 51 Portanto, as três intenções lógicas expressam o todo, e contêm em si alguma indeterminação. O gênero significa o todo, determinando o que é material na coisa, e contendo em si, indeterminadamente, a forma. Ora, o gênero é caracterizado justamente por conter uma comunidade de formas, possibilitada por sua indeterminação conceitual a respeito do princípio formal em questão. Por isso, a predicação da diferença com relação ao gênero só pode ser acidental [...]. 52 A diferença específica, por sua vez, determina a forma da coisa, sem determinar a matéria. A definição ou espécie compreende ambos, isto é, tanto a matéria determinada pelo gênero, quanto a forma determinada pela diferença. 50 Esse composto é diferente do significado por O homem é corpo e alma, como faz notar São Tomás em De ente, n. 24. Corpo e alma são constitutivos intrínsecos do composto real homem, e, portanto, partes reais que não podem ser predicadas do todo. 51 De ente, n KOVAS, 2006, p. 35.
27 27 Há uma proporcionalidade entre gênero, diferença e espécie com matéria, forma e composto. Na definição, o gênero é o elemento indeterminado, e a diferença específica é o elemento determinante; nas substâncias, há uma proporcionalidade da matéria para com o primeiro, e da forma para com a segunda, mas não identidade. 53 [...] nas substâncias materiais, gênero e diferença, como elementos da definição, pode-se dizer que correspondem à matéria e forma da substância concreta somente indiretamente, ou melhor, proporcionalmente : isto é, o gênero, que é o elemento indeterminado da definição, corresponde à matéria, que é princípio puramente potencial, e a diferença, que é elemento especificante, corresponde à forma, que é princípio causal. 54 O gênero não é matéria, mas é tomado dela como significando o todo; a diferença específica não é a forma, mas é tomada dela como significando o todo; a espécie expressa o todo mais determinadamente do que as outras intenções lógicas, e contém em si as diferenças individuais, indeterminadamente. A unidade do gênero, afirma São Tomás no parágrafo 25, procede da própria indeterminação ou indiferença, porque o gênero significa alguma forma, não porém determinadamente esta ou aquela, que a diferença exprime determinadamente, a qual não é outra senão aquela que era significada indeterminadamente pelo gênero. O gênero não é, portanto, como a matéria-prima, que é denominada una pela remoção de todas as formas, e à qual se acrescenta a forma, determinando-a. O gênero não é desprovido de forma, mas contém em si todas as formas das espécies, indeterminadamente. 55 Pela adição da diferença específica, é removida a indeterminação. O fato de que o gênero contenha indeterminadamente a forma e determinadamente a matéria, e que a diferença específica determine a forma, significando implicitamente a matéria, porém indeterminadamente, é o que permite que sejam predicáveis. [...] é preciso que aquilo que é espécie, na medida em que se predica do indivíduo, signifique o todo que está essencialmente no indivíduo, embora 53 Sobretudo se pensamos nas substâncias puramente espirituais, nas quais o gênero não poderia corresponder à matéria. 54 Cf. FABRO, Cornelio. Introduccion al tomismo. Trad.: María Francisca de Castro Gil. Madri: Rialp, 1967, p. 61. Tradução livre do espanhol para o português de nossa autoria. 55 A unidade do gênero não é como a unidade da matéria-prima. A unidade da matéria-prima se dá pela exclusão de toda e qualquer forma. Por isso se diz que a matéria-prima é pura potência. A unidade do gênero, como foi dito, não se dá pela exclusão das formas, mas por sua indeterminação.
28 28 indistintamente; é deste modo que a essência da espécie é significada pelo nome de homem; donde, homem predicar-se de Sócrates. 56 A espécie, portanto, significa o todo que está no indivíduo, e contém em si as diferenças individuais, como foi dito. É possível predicar homem de Sócrates porque tudo o que está determinado no indivíduo, e que não é princípio essencial, encontra-se indeterminado na espécie. No entanto, não é possível definir Sócrates, porque o indivíduo não pode ser essencialmente conhecido em sua individualidade. Não é possível definir essencialmente o indivíduo, porque obrigaria o intelecto a abstrair uma diferença formal entre indivíduos da mesma espécie, o que é impossível, visto que formalmente os indivíduos da mesma espécie são idênticos, ou seja, partilham do mesmo princípio formal. 57 Não se diz que Sócrates tenha definição, porque a essência do indivíduo só pode ser inteligida como espécie, ainda que se possa reconhecer sua individualidade. O indivíduo pode ser, porém, universalmente conhecido por sua espécie. A matéria, portanto, é o suporte a partir do qual o intelecto humano apreende o princípio formal, por um processo ativo sobre as notas sensoriais apreendidas do ente em sua materialidade A essência tomada como parte Até agora tratamos da essência a modo de todo. Passaremos à essência a modo de parte, que se dá com exclusão da matéria assinalada. Em homem, ao excluir-se a matéria assinalada, tem-se a humanidade, que é a essência de homem a modo de parte, ou, ainda, a quididade: de fato, humanidade significa aquilo donde procede que o homem seja homem 59. A matéria assinalada não é aquilo donde procede que o homem seja homem, e assim, não está contida de modo nenhum naquilo a partir do que o homem tem o ser homem. Isto é, a matéria assinalada apenas individualiza a essência, mas não pertence a ela. Excluindo-se a matéria assinalada, resta a essência abstrata ou quididade, aquilo pelo qual algo é o que é. 56 De ente, n KOVAS, 2006, p Idem. 59 Humanitas enim significat id unde homo est homo (n. 26).
29 29 A quididade é uma forma que é um todo. Abarca matéria e forma, mas exclui aquilo que na matéria seria assinalado. Quididade e matéria assinalada são dois constitutivos de um composto, e, portanto, partes do todo. Ela mesma expressa um todo, isto é, contém por completo os princípios essenciais, mas, por não abarcar os princípios individuantes (a matéria assinalada), significa a essência a modo de parte. A exclusão da matéria assinalada difere da indeterminação da espécie em relação ao indivíduo, e do gênero em relação à espécie. No primeiro caso, a matéria assinalada é parte constitutiva do composto; ao ser suprimida, resta a outra parte: a essência abstrata, isto é, apenas os princípios essenciais. Não se obtém a espécie esta inclui os princípios individuantes, mas indeterminadamente, e sim a essência a modo de parte. No segundo caso, a determinação está contida implicitamente no gênero, e por isso significa a essência a modo de todo e é predicável. Não há exclusão da diferença, e sim indeterminação. Para usar o mesmo exemplo de São Tomás: o nome homem e o nome humanidade expressam a essência de homem, mas diversamente. O nome homem a significa como um todo, sem prescindir da assinalação da matéria, mas a contendo indeterminadamente. O nome humanidade a significa a modo de parte, pois contém apenas o que pertence ao homem enquanto homem, e prescinde de toda matéria assinalada. No primeiro, poder-se-ia afirmar que Sócrates é uma certa essência ; no segundo, que a essência de Sócrates não é Sócrates 60. Humanidade não se predica nem de homem nem de Sócrates, uma vez que as partes não se predicam do todo. *** Ficam assim expostos os modos de expressar a essência, a modo de todo e de parte, considerando que a essência a modo de todo pode ser predicada do concreto comum ( homem ) e do indivíduo ( Sócrates ). A essência como todo não prescinde da designação da matéria, mas a contém implícita e indistintamente. Está determinado nela o que há de essencial, e indeterminado o que não é essencial; no caso do gênero, também está indeterminada a diferença específica. Por isso, é impossível que a noção de universal, isto é, de gênero ou de espécie, caiba à essência na medida em que é significada a modo de parte De ente, n Ibid., n. 31.
30 30 O capítulo III de O ente e a essência tratará da essência como todo, considerada absoluta e relativamente. A indeterminação presente na essência, como foi abordada até agora, cumprirá importante papel na compreensão dos universais, uma vez que a essência, expressa pelas intenções lógicas, não é algo que exista fora nos singulares, mas significa algo que é comum a muitos.
31 31 4. A essência absoluta e relativamente considerada 4.1. A essência absolutamente considerada No Capítulo III, São Tomás fica com a essência a modo de todo, porque é impossível que a noção de universal, isto é, de gênero ou de espécie, caiba à essência na medida em que é significada a modo de parte 62. A essência abstrata, considerada como parte, não pode ser predicada do indivíduo, nem pode ser expressa como gênero ou espécie, ou ser determinada por uma diferença específica. Logo, é posta de lado na discussão que se segue. São Tomás rejeita a visão platônica, segundo a qual a noção de espécie cabe à essência como algo existente fora dos singulares. Na concepção platônica, a ideia, ou eidos é constituinte do ente e causa de seu ser. É como se as coisas do mundo sob o mesmo predicado universal gozassem todas de uma semelhança comum com um ente existente por si e exterior a elas, uma espécie de modelo comum. 63 Assim, gênero e espécie não poderiam ser predicados do indivíduo, porque sua essência seria algo separado. A essência, porém, não pode existir como algo extrínseco aos concretos singulares. Uma essência que existisse fora dos indivíduos existiria por si só, e de modo determinado. Ora, foi dito que a predicação pelos predicáveis se utiliza da indeterminação, que permite que muitos sejam predicados pelo mesmo nome, ainda que possuam diferenças individuais. É o que afirma Kovas: Trata-se de uma forma de predicação, fundamentada na noção de indeterminação, a qual escapa a todas as tentativas de substancialização, uma vez que a indeterminação é, por definição, algo que não pode ter uma existência por si, pois o que existe por si só existe de modo determinado. 64 Os predicáveis só podem convir à essência significada como todo, porque ela contém implícita e indeterminadamente tudo o que há no indivíduo, e expressa, determinadamente, o que constituem as notas essenciais. 62 De ente, n KOVAS, 2006, p Ibid., p. 44.
32 32 [...] resta que a noção de gênero ou de espécie caiba à essência, na medida em que é significada a modo de todo, como pelo nome de homem ou de animal, na medida em que contém implícita e indistintamente este todo que está no indivíduo. 65 Essa totalidade a que nos referimos pode ser tomada de dois modos. O primeiro é o modo absoluto, segundo sua noção própria ou em si mesma. O segundo modo é o relativo, segundo o ser que tem nos indivíduos. O primeiro modo é dito de acordo com a noção própria da essência; consideração em que nada é verdadeiro dela, senão o que lhe cabe enquanto tal 66. Por exemplo, ao homem, enquanto homem, cabe-lhe o racional, o animal e o que entra em sua definição. No entanto, o branco, o preto, etc., não cabem ao homem enquanto homem. Além disso, nesse modo, não cabe perguntar-se se a essência nesse modo é una ou múltipla, porque nem a unidade nem a multiplicidade são intrínsecas à essência enquanto tal. Se fosse una, a natureza de dois indivíduos seria a mesma, e não poderia plurificar-se em vários. Se fosse múltipla, não poderia individualizar-se em um indivíduo. Elas é em muitos, mas não é una nem múltipla. Não se diz que a essência do homem, enquanto tal, isto é, absolutamente considerada, tenha o ser neste singular, pois, se assim fosse, a essência de homem enquanto homem seria restrita a este singular. Se a essência absolutamente considerada incluísse o ser deste indivíduo, necessariamente só poderia estar nele, e não em outros. 67 A essência absolutamente considerada também não guarda relação com o ser, porque este não está incluído na essência. Portanto, é claro que a natureza do homem, absolutamente considerada, abstrai de qualquer ser, de tal modo, porém, que não haja exclusão de nenhum deles. E é esta natureza, assim considerada, que se predica de todos os indivíduos De ente, n Ibid., n Pois, aquilo em razão do que Sócrates é homem pode ser comunicado a muitos; mas aquilo em razão do que ele é este homem não pode ser comunicado a não ser a um. Logo, se Sócrates fosse homem em razão daquilo que faz dele este homem, assim como não pode haver vários Sócrates, não poderia haver vários homens. (ST 1, q. 11, a. 3) 68 De ente, n. 36.
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