Entrevista com Bernard Charlot

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3 Entrevista com Bernard Charlot A crise da educação pública brasileira é um dos temas dessa entrevista concedida pelo professor Bernard Charlot, 65 anos, em Juiz de Fora. Doutor em Educação pela Universidade de Paris, onde é professor emérito, o pesquisador francês conhece como poucos a realidade da educação no Brasil. Professor visitante da Universidade Federal de Sergipe, ele admite que sua cabeça e seu coração são brasileiros e tenta, com os seus estudos, provocar uma reflexão sobre o ensino, sobre as políticas educativas, sobre a escola e a relação com o saber. Palestrante convidado para a Aula Inaugural comemorativa dos 15 anos do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFJF, Charlot fala sem reservas das várias formas de fracasso escolar, da contradição na qual o professor está mergulhado e do processo de individualização que condena a sociedade ao abandono. Questiona os rumos da educação para a cidadania, prescrita apenas para os alunos pobres, discute a tensão social e a explosão de violência no cenário escolar e discorre sobre a necessidade de se redescobrir o prazer de ensinar e de aprender. Ressalta que, apesar de todas as dificuldades, é preciso ter espírito de resistência. Nos bairros onde a escola é a única instituição pública, ela simboliza o público, o político, o poder do estado, a república. É por isso que as escolas deveriam obter um apoio forte. Para muitos, ela é a última esperança. Daniela Arbex -A escola pública está em crise? Bernard Charlot - A escola pública brasileira foi abandonada. Está em crise. Era muito boa há 20, 30 anos. A política pública foi de deixar por fora a escola pública, desenvolver escola e universidade particulares. Mas a escola pública, de certa forma, é muito boa, 1 Entrevista com Bernard Charlot à jornalista Daniela Arbex *, e publicada pelo jornal Tribuna de Minas no dia 04 de Abril de 2010 **. * Daniela Arbex é repórter especial do Jornal Tribuna de Minas. Graduada em Comunicação Social pela UFJF e especializada em Comunicação e Cultura, é detentora dos maiores prêmios de jornalismo no Brasil, entre eles o Esso e o Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos, e importantes prêmios no mundo como o Natali Prize, da Comissão Europeia de Jornalismo, e o IPYS de Melhor Investigação Jornalística da América Latina. ** Divulgação gentilmente autorizada pelo Jornal Tribuna de Minas.

4 Bernard Charlot porque ela consegue com poucos recursos fazer muitas coisas. Se tivesse mais recursos, seria ainda melhor. É claro que tem uma desigualdade social entre a escola pública e a escola privada. Mas deve-se resistir. Daniela Arbex - O senhor acha que o fracasso escolar é consequência do abandono da escola pública? Bernard Charlot - A própria noção de fracasso escolar não é clara. Fracasso escolar pode ser o fato de um aluno não passar de ano. Geralmente é assim que se entende. Mas fracasso escolar, muitas vezes, é o fato de o aluno não saber nada e passar de ano. Se deveria falar também do fracasso escolar dos bons alunos que passam, que tiram boas notas, mas não têm uma formação que permita refletir sobre a vida e sobre o mundo. Esse é um problema a se refletir. A questão fundamental é que, nas escolas particulares, se trabalha para o aluno ser aprovado no vestibular e isso leva a formação de memorização, da decoreba. Na escola pública tenta-se mais trabalhar sobre o sentido da vida, mas tem o problema de formação dos professores, de recursos. Não existe uma solução simples. Fracasso escolar remete a coisas muito diferentes. Daniela Arbex - Como um pesquisador da educação, quais os meios para combater o fracasso escolar? 214 Bernard Charlot - Sabia que iria me perguntar isso. Disse à minha colega: ela vai me pedir como resolver o problema do fracasso escolar, porque todos estão pedindo a mesma coisa. Não vou responder sobre isso, mas vou responder de outra forma. O que é necessário fazer para tentar fazer com que os alunos aprendam? A equação pedagógica que vou explicar é: sucesso igual atividade, sentido e prazer. O aluno não aprende se ele não tem atividade intelectual. Ele não tem atividade intelectual se a situação não faz sentido para aprender. Uma vez um adolescente francês me disse: na escola, gosto de tudo fora os professores e as aulas. Claro que ele não vai aprender. Atividade, sentido e prazer. Prazer não exclui o esforço. O que devemos tentar construir é uma escola com atividade intelectual do aluno, com sentido e com prazer.

5 Daniela Arbex - A falta de prazer do aluno se reflete na falta de interesse em ir para a escola? Entrevista com Bernard Charlot Bernard Charlot - Claro. Não apenas a falta de prazer dos alunos, mas também falta de prazer dos professores e dos pais. A nossa escola se tornou um lugar de sofrimento dos alunos, mas também dos professores e de certa forma dos pais. A própria palavra interesse é muito complicada. Já pesquisei isso com os alunos na França. Eles me disseram: essa professora é interessante. Por que é interessante? Porque gosto muito das aulas dela. E por que gosta das aulas dela? Porque é muito interessante. A própria palavra interessante tem um problema teórico fundamental. Porque interessante significa o encontro entre um desejo profundo da pessoa e um conteúdo intelectual. Como é possível que a química, a biologia, a matemática e a gramática sejam interessantes? É por isso que falo de sentido, porque a questão do sentido é mais fácil de resolver do que a questão do interesse. O que tento falar aos professores é que parem de dizer que são úteis as coisas que ensinamos. Gramática não serve para nada, matemática, depois do quinto ano, não serve mais. Devemos ensinar porque é importante. Mas por que é importante? Se o professor não souber o porquê, o aluno não vai se interessar. Temos que parar de mentir para os alunos, dizendo isso é útil. Uma grande parte do que ensinamos não é útil, é importante. Futebol não é útil, música não é útil, muitas coisas das quais os jovens gostam não são úteis. Temos que salientar o que é importante, o que vale a pena na vida. Daniela Arbex- Como despertar nos alunos os valores sociais que estão perdidos? Bernard Charlot - Você não me disse, quando me pediu essa entrevista, que eu teria que fazer milagre (risos). Mas podemos tentar. Existe um problema de valores. O professor tem que falar de valor, só que quando se fala de valor na sociedade, quanto foi vendido o quadro de Picasso, quanto foi vendido o Ronaldinho, fala-se no valor do dinheiro. Estamos vivendo numa sociedade que prioriza a questão do dinheiro, a concorrência, a eficácia, que esqueceu bastante da questão dos valores. Estamos vivendo numa sociedade 215

6 Bernard Charlot que visa o desenvolvimento, mas o desenvolvimento precisa do consumo, que precisa do dinheiro. As lógicas fundamentais são lógicas de abandono da questão dos valores. É claro que o professor tem que resistir, isso significa também cuidado com o discurso sobre inovação, cuidado com essa condenação automática do professor tradicional. Temos que refletir sobre o que significa tradicional. A resistência numa sociedade é de certa forma um dos últimos soldados contra uma forma de barbárie contemporânea. O professor deve trabalhar os valores, mas como? Não é fácil. Por exemplo, a questão da educação para a cidadania de que se fala muito. Geralmente, se fala de educação para a cidadania para as escolas públicas ensinarem cidadania aos pobres. É problema, porque a questão da cidadania vale para as escolas particulares. Onde estão os filhos dos corruptos, onde estão os filhos de quem rouba o dinheiro público? Não estão na escola pública. Estão na escola particular. Educação para a cidadania, educação de valores fundamentais, claro que é essencial. Mas cuidado. Não deve ser uma indicação para os pobres deixarem tranquila a classe média. Temos que refletir sobre a cidadania. Cidadania é um conceito político, fundamental, de interesse geral, de valor de cada ser humano, de dignidade de cada ser humano. Claro que devemos dar essa educação para a cidadania, mas temos que ter consciência que isso leva a movimentos sociais na escola com tamanha desigualdade quanto à escola brasileira. Claro que devemos ensinar aos jovens mais pobres que assaltar o outro não é uma solução, que historicamente a solução sempre foi a organização do povo para lutar pela equivalência. Essa é a educação para a cidadania. A sociedade brasileira quer mesmo uma educação a cidadania séria? Seria uma coisa muito importante, muito interessante. Mas temos que bem entender qual é o processo. Trabalhar sobre valores mesmo. Quais? Dignidade e solidariedade em uma sociedade que prioriza a concorrência. O que você vai dizer aos seus filhos? Estude para ser o melhor no vestibular, para ser melhor que os outros, para esmagar os outros? Porque queremos que nossos filhos sejam aprovados no vestibular. Ou vamos dizer: filho, estude como os outros, ajude os outros a entender, tenha solidariedade. Esse é o problema fundamental. Além do discurso um pouco vazio sobre os valores. 216 Daniela Arbex - O individualismo seria um problema fundamental na sociedade contemporânea?

7 Bernard Charlot - Não é apenas o individualismo, é o que eu chamo de individualização. Cada um tem uma vida mais diferente que a dos pais por exemplo. Trinta, quarenta anos atrás, uma criança podia ver o seu futuro na vida do seu pai, da sua mãe, dos seus avós. Agora o futuro é uma consequência da escolarização, mas também da urbanização. Agora, muitas vezes, os filhos têm uma vida completamente diferente da vida dos pais. Também os grandes símbolos sociais desmoronaram: comunismo, socialismo, terceiro-mundismo. Quem ainda acredita nisso? O que podemos dizer para os nossos filhos em relação ao que vale a pena viver? É essa a dificuldade que temos. Aprendemos a escutar os jovens, muito mais que os nossos pais que eram mais autoritários. Escutamos os jovens, mas o que temos que dizer aos jovens? A nossa própria palavra de adulto se tornou difícil. Nunca um indivíduo foi tão livre como agora, inclusive na sua sexualidade. Mas nunca o sujeito foi tão abandonado. Entrevista com Bernard Charlot Daniela Arbex - Qual o papel do professor na sociedade contemporânea e por que ele tem tanta dificuldade para lidar com a diversidade que se manifesta na escola? Bernard Charlot - Escrevi um texto sobre isso, cujo título é O professor na sociedade contemporânea. Um trabalhador da contradição. Ele vive coisas completamente contraditórias. Quando digo contradição, não é negativo. Não gostaria que o meu discurso fosse entendido como um discurso negativo. Acho que o trabalho do pesquisador é evidenciar as contradições e as contradições são desafios. Mas também temos que parar de culpar o professor que tenta como pode sobreviver nessas contradições. Por exemplo: se diz ao professor que ele deve usar a internet. Já vi no interior, não no de Minas Gerais, outros interiores, mas talvez exista em Minas Gerais, escolas onde os fios não permitem conectar o computador. Se diz que ele deve usar a internet. Depois da aula de 50 minutos vai ter que parar o uso da internet. Não faz sentido. O tempo é completamente fragmentado na escola. Se diz que ele deve valorizar trabalho em grupo, coletivo. Só que depois de o professor organizar uma pesquisa e usar a internet, ele tem que dar uma nota individual a cada aluno. O que significa? É porque a diretora reclama, porque a secretária de educação reclama, porque os pais reclamam, porque todo mundo quer uma 217

8 Bernard Charlot nota individual. Não se pode ensinar dando uma nota individual com métodos coletivos. É uma contradição. A nossa sociedade pede ao professor coisas contraditórias. Ao mesmo tempo ela quer que um filho seja aprovado no vestibular, que ele seja inteligente, criativo e solidário. E a própria escola está impondo estruturas que foram criadas no século XVI e XVII, o que os sociólogos chamam de forma escolar, que são contraditórias, como o uso das novas tecnologias, com um trabalho mais coletivo. O que faz o professor? O que faz o professor brasileiro. Edita métodos basicamente tradicionais, abrindo alguns parênteses construtivistas. Ele sabe que para não ter problema deve dizer que não é tradicional, mas construtivista. Temos professores com métodos tradicionais e discurso construtivista. Temos que parar com isto para enfrentar os problemas reais. Daniela Arbex - O senhor acha que para a escola atrair o interesse do aluno precisa se reinventar? Bernard Charlot - (pausa). Não sei. Não sei se reinventar. Ela precisa reencontrar uma lógica do saber que não seja apenas uma lógica do passar-de-ano. Precisa reencontrar a aventura intelectual. Não temos aventura intelectual na escola. Os alunos reclamam. Chegamos na segunda e já sabemos o tudo o que vai acontecer até o final da semana. É triste. Ela precisa reencontrar, liberar o prazer de aprender, mas também o prazer de ensinar. Acho que uma escola na qual os professores fossem mais felizes seria melhor para os alunos. Daniela Arbex - Por que a violência explode no cenário escolar? 218 Bernard Charlot - Estamos vivendo numa sociedade violenta. Uma sociedade de cada um por si, uma sociedade de concorrência selvagem, do abandono dos mais fracos. É um problema. Outro problema é que estamos vivendo numa sociedade que não sabe bem como estruturar o sujeito. Quando existia a pedagogia tradicional, era uma pedagogia da regra, da norma. Num mundo que era mais rural do que urbano. Na nossa sociedade urbana, em desenvolvimento, como já disse, necessita do consumo e legitima o desejo. Hoje em dia existe uma coisa extraordinária. Consideramos que temos o direito a felicidade. É uma coisa completamente nova.

9 Os nossos pais e avós não falavam de direito a felicidade. Então o problema é de estruturação do sujeito, porque não tem sujeito sem normas, a psicanálise mostra. Não tem existência humana sem o mínimo de frustração. Por ter filhos brasileiros e franceses, sei que um dos problemas fundamentais da educação brasileira é que não sabemos educar os nossos filhos para a frustração. E não tem vida humana que possa satisfazer todos os desejos, porque o outro também tem desejos contraditórios. No próprio ato cotidiano da aprendizagem, o professor ensina, o aluno não entende. O professor repete, o aluno não entende. Repete de novo, o aluno não entende. Chega um momento que é difícil não levantar a questão de que o aluno é idiota. Muitas vezes, o aluno acha que ele mesmo é idiota. Mas ele pensa que, se o professor explicasse melhor, iria entender. O que está em jogo nessa história cotidiana é a dignidade de cada um. A dignidade humana, o valor humano, a autoestima do aluno e a dignidade profissional do professor. Já se constróem através do ato pedagógico cotidiano muitas tensões dentro da escola. E se acontecer um incidente, o fogo ganha tudo porque já tem palha. A violência acontece em lugares onde há tensões. Tensões sociais, ligadas à pobreza, tensões institucionais, ligadas ao funcionamento da escola, tensões pedagógicas ligadas à vida cotidiana dentro da sala de aula. A questão da violência é também a questão da forma quase técnica como se ensina na escola. Não é apenas isso. Mas também. Não tem uma solução para o fracasso, não tem uma solução para a violência porque são fenômenos diversos. Há um conjunto de soluções que temos que tentar utilizar, algumas são mais políticas, outras mais ligadas às práticas cotidianas dos professores e dos alunos. Entrevista com Bernard Charlot Daniela Arbex - O senhor disse que os nossos símbolos ruíram. A escola também pode ser considerada uma instituição que está desmoronando? Bernard Charlot - Não. Na França e em muitos bairros populares onde pesquisei, a escola é a única instituição pública que ainda existe. Não tem Correios, Bombeiros, Delegacia, todo mundo foi embora. A única instituição, no Brasil também, que existe em todos os bairros, por mais difícil que seja, é a escola pública, que resiste. Isso ao mesmo tempo é uma honra para essa instituição que resiste em condições difíceis no Rio, às vezes, eles têm que 219

10 Bernard Charlot fechar as portas por causa de ameaças, e ainda assim resistem. Ao mesmo tempo isso dá uma responsabilidade enorme para a escola. Porque nesses bairros onde a escola é a única instituição pública, ela simboliza o público, o político, o poder do estado, a república. É por isso que as escolas deveriam obter um apoio forte. A escola pública num bairro popular é a república que está presente, o Brasil, a federação, o interesse público. É a última esperança para muitos alunos. A última. Porque para mudar a vida o caminho é a droga ou a escola. Não há muitas formas de mudar a vida. Podese ser um Ronaldinho ou um grande cantor, mas poucas são as possibilidades. É a escola que permite mudar a vida. Isso significa que quando a própria escola está sendo considerada podre, como dizem os franceses, quando a própria escola falha, é muito grave, porque a única esperança está ruindo, desmoronando. Por isso, a importância de apoiar a escola pública. 220