AVALIAÇÃO DA VIABILIDADE TÉCNICO E SOCIAL DA DESINFECÇÃO SOLAR (SODIS) EM ÁGUAS DE CISTERNAS DE PLACA ESTUDO DE CASO CAMURIM (ITAIÇABA)

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1 AVALIAÇÃO DA VIABILIDADE TÉCNICO E SOCIAL DA DESINFECÇÃO SOLAR (SODIS) EM ÁGUAS DE CISTERNAS DE PLACA ESTUDO DE CASO CAMURIM (ITAIÇABA) Márcio Pessoa Botto Engenheiro civil, mestre em saneamento ambiental pela Universidade Federal do Ceará. Endereço de contato: Rua Nunes Valente, 687, apt Meireles CEP: , Fortaleza, CE, Brasil. Tel.: (85) , (85) , marciobotto@yahoo.com RESUMO Ainda hoje, 40% dos domicílios cearenses são desprovidos de abastecimento de água por rede pública. Para evitar ou mitigar doenças de veiculação hídrica, métodos caseiros de tratamento de água devem ser recomendados. O SODIS, desinfecção de água a partir da energia solar, foi aplicado e investigado tecnicamente e socialmente em comunidades do Estado do Ceará, sendo uma delas abastecidas por água captada por cisternas de placa. O método é capaz de melhorar a qualidade microbiológica da água, conseguindo a inativação de coliformes termotolerantes na concentração de até 10³ NMP/100mL. O SODIS foi muito bem aceito, com 45% de aceitação das famílias. Após o projeto, foi possível observar a redução em 50% dos casos de diarréia em Camurim (Itaiçaba-CE). Palavras-chave: água, cisternas de placa, desinfecção solar, SODIS, saúde pública. INTRODUÇÃO A captação de água de chuva através de cisternas de placas é uma realidade presente no semi-árido cearense. Dos municípios beneficiados em todo o País pelo programa P1MC (Programa 1 Milhão de Cisternas de Placas) até o mês de abril de 2007, Itaiçaba, município na região nordeste do Ceará, possui uma comunidade chamada Camurim, em que 80% dos moradores são abastecidos pelas águas das cisternas de placa construídas pela Fundação Cáritas Arquidiocesana do Ceará, juntamente com a ASA. Vários estudos já comprovaram que a água captada nas cisternas de placa não está livre de contaminação microbiológica, ou seja, não atende aos padrões de potabilidade exigidos pela OMS. Segundo Blackburn et al (2005), as possíveis fontes de contaminação bacteriológica das cisternas são: a presença de animais sobre as estruturas de captação e 6 o. Simpósio Brasileiro de Captação e Manejo de Água de Chuva Belo Horizonte, MG, de julho de 2007

2 dentro das cisternas; o mau acondicionamento dos baldes usados para coletar água na cisterna; o uso da cisterna para receber água de outras fontes; o não descarte ou descarte inadequado das primeiras águas de chuva. Uma técnica de tratamento de água que vem sendo estudada e aplicada em países em desenvolvimento como uma tecnologia segura para o tratamento microbiológico é a desinfecção solar. Essa técnica, hoje denominada SODIS, foi primeiramente estudada por Aftim Acra em 1984 e posteriormente aprimorada pelo instituto EAWAG, na Suíça. O SODIS, método em batelada, extremamente simples e barato, dispensa o fornecimento de energia elétrica e utiliza apenas garrafas PET como insumo e o sol, universalmente disponível e gratuito. O método SODIS, sigla para desinfecção solar, utiliza duas componentes da radiação: UV-A, responsável pela modificação do DNA dos microrganismos e a radiação infravermelha responsável pela elevação da temperatura da água, tendo em vista que os microrganismos são sensíveis ao aquecimento (SODISa, 2003). Segundo EAWAG/SANDEC (2005), atualmente cerca de um milhão de pessoas utiliza regularmente o SODIS como método de desinfecção em 20 diferentes países. Apenas na América Latina, até o final de 2004, mais de usuários foram contabilizados. Existe uma grande aceitação do SODIS nas comunidades onde já houve sua disseminação. A porcentagem de usuários regulares está entre 40 e 80% do total de pessoas capacitadas. Os benefícios diretos do SODIS na saúde pública são evidentes, havendo uma redução de até 75% nos casos de diarréia entre os usuários regulares do SODIS. (EAWAG/SANDEC, 2005). METODOLOGIA De acordo com EAWAG/SANDEC, (2005), a metodologia SODIS consiste em encher completamente garrafas plásticas transparentes limpas do tipo PET (tereftalato de polietileno) com capacidade para até dois litros, com água de turbidez inferior a 30UT. Em dias ensolarados, as garrafas devem ser expostas ao sol, no sentido horizontal, durante seis horas ininterruptas, sempre no intervalo de maior pico de insolação (09h00min e 16h00min). Dados climatológicos foram coletados junto à estação agrometeorológica da Universidade Federal do Ceará em Fortaleza para avaliar as condições de insolação para o uso da desinfecção solar. Para a escolha das comunidades beneficiadas com o projeto foi considerado o perfil do saneamento ambiental das mesmas no contexto estadual. Mapeando-se os dados levantados

3 pelo Censo de 2000 realizado pelo IBGE, verificou-se que os municípios localizados no nordeste do Ceará apresentam uma maior carência quanto aos serviços básicos de saneamento. Além disso, buscou-se escolher comunidades onde houvesse atuação efetiva de Organizações Não Governamentais através de projetos sociais de desenvolvimento local. Sabe-se que antes de tentar sugerir tecnologias de saneamento, é preciso vencer preconceitos e esclarecer as comunidades da importância de inserir hábitos de higiene no cotidiano, importância dos hábitos de tratar (desinfetar) a água, e dos hábitos de destinar adequadamente os resíduos fecais. Portanto, trabalhos de sensibilização foram realizados a partir de oficinas participativas com a comunidade, distribuição de cartilhas educativas e parcerias com as escolas e postos de saúde. Após a realização da campanha e o estabelecimento de um contato com as comunidades, com suas lideranças e com os agentes de saúde, foram selecionados grupos de moradores a serem capacitados quanto ao uso da tecnologia proposta. Esses moradores, chamados de multiplicadores ou promotores, foram divididos por área, e cada um ficou responsável por visitar e acompanhar um grupo de no máximo 15 famílias. Durante os meses de maio a julho de 2005, os multiplicadores visitaram casa a casa repassando os conhecimentos adquiridos sobre educação sanitária à comunidade. Acredita-se que a ação dos multiplicadores, integrantes da comunidade local, seja bem mais valorizada pela comunidade. A fim de avaliar melhor os resultados do projeto, foram aplicados questionários antes, durante e após o projeto. O universo amostral de aplicação dos questionários abrangeu todas as famílias das comunidades e foram respondidos pelo chefe de família. Em caso de sua ausência, aplicavam-se as perguntas ao responsável pelo domicílio naquele momento. Durante os meses de junho e julho de 2005, nas comunidades selecionadas, foram coletadas água bruta (antes de aplicar SODIS) e água tratada pelo método, para a análise de coliformes termotolerantes. As garrafas SODIS foram preparadas e manuseadas pelos próprios moradores, e expostas ao sol no período da manhã, aproximadamente às 07h00min. Entre as 15h00min e 17h00min do mesmo dia, as garrafas eram retiradas do sol e encaminhadas para o laboratório em Fortaleza. Foi utilizada a metodologia de tubos múltiplos com meio A1 DIFCO para a quantificação de coliformes termotolerantes, indicador próprio para avaliar a contaminação fecal das amostras. RESULTADOS Avaliação técnica

4 A partir da sistematização dos dados climatológicos, observa-se que durante o pico de insolação (09h30min às 15h00min), os valores de radiação solar global em Fortaleza são superiores aos recomendados pela literatura, de 500W/m² (LAWAND et al., 1988 apud WEGELIN et at., 1994) e 600W/m² (ZAPP et al., 1987 apud PROSAB, 2001) (Figura 01). Radiação global [W/m²] A Radiação global [W/m²] B 0 06:30 07:30 08:30 09:30 10:30 11:30 12:30 13:30 14:30 15:30 16:30 Hora 0 06:30 07:30 08:30 09:30 10:30 11:30 12:30 13:30 14:30 15:30 16:30 Hora Figura 01 Valores médios ( ), máximos ( ), mínimos ( ) de radiação solar global registrados em 2004 (A) e 2005 (B) das 06h30min as 17h00min, em Fortaleza, Ceará, e valores mínimos necessários para realizar o SODIS: 500W/m² - Lawand et al. (1988 apud Wegelin et at. 1994) ( ) e 600W/m² - Zapp et al. (1987 apud Prosab 2001) ( ). As análises microbiológicas das amostras manuseadas pelos próprios usuários apresentaram uma boa remoção do indicador fecal. O método mostrou-se capaz de inativar concentrações de coliformes termotolerantes acima de 10³ NMP.100mL -1, como apresentado na Tabela 01. Contudo, pode-se observar que em alguns casos não houve redução e em outros ocorreu aumento da colimetria (amostras Camurim 3, 6, 7, e 9). Como exemplo, na amostra Camurim 3, houve a duplicação na concentração do indicador fecal, e na amostra Camurim 6, esse aumento chegou a 6 vezes. As garrafas SODIS, quando não expostas diretamente à luz solar, funcionam como um reator biológico, apropriado para a multiplicação bacteriana sob temperatura ótima (SODIS, 2003b); em outros casos, a insuficiente higienização dos recipientes contribuiu para o aumento da contaminação. Estes dois fatores podem ter sido as causas principais do aumento ou permanência das altas quantidades de coliformes termotolerantes nas amostras de água tratada. Vale ressaltar que estes problemas ocorreram devido ao uso inadequado da tecnologia, considerando que as garrafas foram expostas em locais sombreados.

5 Tabela 1 - Resultado das análises de coliformes termotolerantes das amostras brutas e tratadas nas quatro comunidades pesquisadas. Amostra Data de coleta Origem/ classificação (cisterna de placa) Turbidez (ut) coliformes termotolerantes água bruta água SODIS Redução Camurim 1 6/6/2005 carro pipa ,00% Camurim 2 20/6/2005 chuva ,31% Camurim 3 20/6/2005 carro pipa ,62% Camurim 4 20/6/2005 chuva <2 100,00% Camurim 5 22/6/2005 carro pipa ,92% Camurim 6 22/6/2008 chuva ,00% Camurim 7 22/06/205 chuva ,00% Camurim 8 29/6/2005 chuva <2 100,00% Camurim 9 4/7/2005 carro pipa ,00% Camurim 10 4/7/2005 carro pipa ,33% Camurim 11 4/7/2006 chuva ,00% Camurim 12 6/7/2006 chuva 1 13 <2 100,00% Camurim 13 6/7/2006 chuva 1 <2 <2 0,00% Camurim 14 6/7/2006 chuva 2 11 <2 100,00% Destaca-se a elevada contaminação das águas das cisternas de placas e o baixo valor de turbidez das amostras. Mesmo as águas de chuva armazenadas nesses reservatórios não estão isentas da contaminação fecal, isto porque o manejo da água é feito de forma incorreta, onde moradores utilizam baldes para coleta da água, as calhas não são devidamente limpadas e, em alguns casos, as primeiras águas de chuva são armazenadas (amostras Camurim 2, 4, 6, 7 e 11, Tabela 01). No entanto, a maior contaminação encontra-se nas águas fornecidas através dos carros-pipa disponibilizados pela prefeitura municipal. A concentração média de coliformes termotolerantes das cisternas abastecidas pelo carro pipa foi de 2,3 x10³ NMP. 100mL-1 (amostras Camurim 1, 3, 5, 9 e 10, Tabela 01). Avaliação social

6 Os resultados do pré-diagnóstico, ou seja, os questionários aplicados antes de iniciar o projeto (abril a junho de 2004) foram: Sócio-econômicos: - Escolaridade: 35% dos chefes de família são analfabetos - Renda: 40% das famílias possuem renda inferior a 1 (um) salário mínimo. Saneamento - Abastecimento de água (cisternas de placa): 20% das famílias responderam que não limpam as calhas do sistema de captação de água e apenas 80% descartavam a primeira água da chuva. 80% utilizam cordas e baldes para coleta da água e 20%, bombas manuais e elétricas. - Tratamento de água: 20% não realizam nenhum tipo de tratamento doméstico de água. - Esgotamento: 80% possuem fossa rudimentar e 20% lançam seus dejetos no terreno. Logo após a etapa de sensibilização e oficinas na comunidade, houve um incremento de 3% nas famílias que tratavam água para consumo humano e após o trabalho dos multiplicadores, hoje, 100% das famílias na comunidade Camurim tratam a água antes de consumi-la. 40% 30% 30% 20% 22% 20% 13% 10% 4% 7% 4% 0% Cloro + Filtro Cloro SODIS + Cloro Filtro SODIS + Filtro SODIS + Cloro SODIS Filtro doméstico Figura 02 Tipos de tratamento de água na comunidade Camurim após o projeto. Itaiçaba, junho de 2005.

7 Foi possível observar a aceitação do SODIS em mais de 40% das famílias na comunidade Camurim. O despertar para o problema foi tão proeminente, que alguns moradores que nada faziam para tratar a água começaram a fazer uso de dois ou mais métodos de tratamento (Figura 02). O relato dado pelos moradores era de que o SODIS não alterava o gosto nem odor da água. 13% 6% 4% 77% Com certeza Acho que não Talvez De jeito nenhum Figura 03 - Sustentabilidade do SODIS. Porcentagem de famílias que vão continuar a usar o método. Itaiçaba, junho de Para avaliar a sustentabilidade da tecnologia, foi perguntado aos usuários do SODIS se eles iriam continuar a usar este método. Apenas 6%, na comunidade Camurim, responderam que não iriam continuar a usar o SODIS de forma alguma (Figura 03). Naturalmente, deve-se ressaltar a possível ocorrência de elementos omitidos e/ou alterados por parte dos entrevistados, considerando sempre a possibilidade de que em um levantamento de dados via entrevista, o entrevistado pode responder de forma a agradar o pesquisador ou então apresentar uma versão positiva dos fatos. Comparando-se os dados de doenças diarréicas levantados pelo Posto de Saúde (PSF), observou-se uma redução em 50% dos casos, ou seja, em 2004 foram relatados 14 casos, e 2005 apenas 7. CONCLUSÕES As cisternas de placa em Camurim não estão livres de contaminação microbiológica. A desinfecção solar é um método eficiente para as condições climáticas do Estado do Ceará, alcançando a total inativação de coliformes termotolerantes quando se faz uso correto desta tecnologia. Este projeto, ainda que tenha sido planejado e executado com enfoque educativo baseado em treinamentos, capacitações e oficinas, alguns usuários cometeram certos

8 equívocos, como por exemplo, expor as garrafas em locais sombreados, não sendo obtida a esperada desinfecção. Isto ratifica o fato de que o uso de uma tecnologia por mais simples que seja, requer treinamento e acompanhamento adequados para corrigir possíveis problemas encontrados. O método de desinfecção SODIS, por sua simplicidade e baixo custo, pode ser considerado sustentável e torna-se habitualmente praticável em áreas carentes de saneamento adequado, podendo ser replicado nas famílias que são abastecidas por água de chuva, uma vez que a turbidez dessas águas sempre está abaixo de 30uT. Bibliografia BLACKBURN, D., RETAMAL, Y., LIMA, M., JALFIM, F., VIANA, A., JÚNIOR, M., Avaliação da contaminação microbiológica de água para consumo doméstico na região de atuação da Diaconia no semi-árido nordestino, 5 º Simpósio Brasileiro de Captação de Água de Chuva, Disponível em: CD-ROM. EAWAG/SANDEC. Desinfección Solar del Agua - Guia de Aplicación, Cochabamba, Bolívia. p PROSAB 2, Processos de Desinfecção Alternativos na Produção de Água Potável. ABES. Rio de Janeiro, p139. SODISa. Climatic Conditions: Solar Radiation, Technical Note #5, Disponível em: Acesso em 13 maio SODISb. SODIS Efficiency: Covered Sky Conditions, Techical Note #11, Disponível em: < Acesso em 13 maio WEGELIN, M., CANONICA, S., MECHSNER, K., FLEISHMANN, T., PESARO, F., METZLER, A,. Solar water disinfection: scope of the process and analysis of radiation experiments, Journal of Water Supply: Reaserch and Technology Aqua, v. 43, n3, p , 1994.