Polêmica como quase tudo o que diz, a frase do médico Flávio Gikovate

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1 As pessoas têm medo da felicidade Por Adriana Reis Polêmica como quase tudo o que diz, a frase do médico Flávio Gikovate tem levado um número cada vez maior de pessoas a refletir: afinal, será que estamos preparados para sermos felizes? Gikovate acredita que não. Existe uma superstição de que algo de ruim vai nos acontecer quando as coisas estão bem, diz. É justamente esse receio que faz com que as pessoas escolham mal seus parceiros, vivam relações superficiais e acabem optando pela vida solitária. Médico formado pela Universidade de São Paulo (USP) em 1966, Gikovate já escreveu 19 livros, que têm em comum temas relacionados aos conflitos íntimos de pessoas normais, em especial os da vida afetiva e sexual. Sua obra mais recente, O mal, o bem mais além, faz uma reflexão sobre o egoísmo e a generosidade nas relações. Ele declara o fim da idéia de que os opostos se atraem os opostos até se atraem, mas não combinam e define o principal objetivo da vida conjugal atualmente como a qualidade do convívio nas horas de lazer. De quebra ainda critica os livros de auto-ajuda são uns chatos, uma mentira e alerta sobre os perigos de os profissionais ficarem presos a conceitos do século passado, nessa entrevista concedida à Psicologia Brasil: PB O senhor já escreveu 19 livros que tratam, basicamente, de conflitos íntimos de pessoas normais, em especial sobre a vida afetiva e sexual. 1

2 Esse tema seria o grande dilema da sociedade pós-moderna? FG Os temas que costumo abordar em meus livros dizem respeito, acima de tudo, à alma humana. E esse, definitivamente, não é um assunto só para especialistas. Só para se ter uma idéia, meu último livro O mal, o bem mais além, que faz uma reflexão sobre o egoísmo e a generosidade em contraponto nas relações amorosas, já vendeu mais de 20 mil cópias. Ou seja, o público procura esse tipo de leitura. Tenho pensado inclusive em escrever meu próximo livro sobre Dicas para ser feliz. E tenho certeza que também venderá, porque não se trata de um livro de auto-ajuda vagabundo, que a pessoa lê e não se lembra mais no dia seguinte. Ou seja, não se aprende nada. Temos de aprender com esses autores de auto-ajuda a não sermos chatos. Eles vendem mentira. PB Mas esses livros de auto-ajuda também são muito procurados... Na sua opinião, isso seria o reflexo de uma sociedade carente? FG Vivemos em uma sociedade de pessoas perdidas. Passamos por rápidas mudanças nos últimos cem anos. Essas transformações todas num ritmo acelerado tiraram as referências das pessoas. Elas estão desprovidas de valores para se posicionar. Não sabem, por exemplo, se posicionar em relação às questões da vida amorosa e do casamento. Antes, havia a influência da família nas escolhas do casamento. Os critérios eram fixos: casamento entre opostos, tendo o parceiro como complemento. Era bom que o pretendente tivesse as virtudes que faltavam em si mesmo, para que o casal pudesse enfrentar as diversidades do mundo. Se um era mais generoso o outro devia ser mais egoísta. PB E a mentalidade das pessoas mudou muito nestes últimos cem anos... FG E como mudou! Mudou muito e em muitos aspectos. Por exemplo: a mulher ideal dos primeiros colonos italianos, que se instalaram na região sul do país, era maçuda, forte, para ajudar a cortar a lenha e fazer o fogo. Tinha de ser guerreira. Essa mentalidade mudou totalmente. E isso tem um caráter histórico. O grande problema é que os profissionais continuam parados no tempo, reproduzindo as idéias de pensadores do século passado e retrasado. 2

3 PB Isso se aplica à Psicanálise? FG Sem dúvida. Os psicanalistas de hoje repetem o que Sigmund Freud dizia como se seu estudo fosse atemporal. Mesmo no Cristianismo se discute se deve ser aceito tudo o que está na Bíblia como algo atemporal. Tudo bem, até entendo que a religião tenha essa postura mais rígida, mas na área da Ciência acho importante atualizar as coisas. Valorizo o que Freud falou, mas não fico preso a isso como se fosse uma verdade absoluta e imutável. PB O senhor acha que essa postura demonstra certo comodismo dos psicanalistas? FG Eu acho que falta a consciência de que a formulação do pensamento pressupõe a transformação. A própria Ciência se faz dentro dessa idéia de transformação. Tudo o que faço hoje não será eterno, aliás, nem valerá mais daqui a 30 anos. Essas mudanças estão em todas as áreas, inclusive no casamento. Hoje, na questão conjugal, não vale mais aquela máxima de que os opostos se atraem. A idéia agora no relacionamento não é mais somar forças. Veja, a própria concepção de família mudou. Hoje, os casais podem ou não ter filhos. Eles decidem quando vão ter esses filhos. Ambos trabalham. PB Podemos dizer que os anseios das pessoas com o casamento também são outros? FG Acredito que sim. O principal objetivo da vida conjugal atualmente é a qualidade do convívio nas horas de lazer. E não mais o tempo que gastam para ganhar a vida. E por isso é tão importante que haja afinidade nas coisas mais simples: os gostos no cinema, nos esportes, na música, nas viagens... em resumo, aquilo que fazem juntos no tempo livre. Atualmente, isso é a base do que vai fazer a relação funcionar. PB O senhor acha que as pessoas já tomaram consciência dessa mudança? FG De certa forma, sim. É muito comum ouvir as pessoas falarem em alma 3

4 gêmea no lugar de os opostos se atraem e dois bicudos que se beijam. Isso é um reflexo. Os opostos até se atraem, mas não combinam. É uma armadilha e se a pessoa não percebe isso o casamento não funciona. E estamos cheios de exemplos deste tipo. Aquele filme que ganhou o Oscar desse ano, Brokeback Montain, por exemplo, é ruim, porque mostra mais uma história de amor que não dá certo. Estou cheio disso. Faz 30 anos que vejo histórias de amor que não dão certo. Eu quero ver as que dão. Como aquele outro filme que ganhou o Oscar de melhor atriz, Johnny e June. Aquele, sim, conta uma história de amor com final feliz. É uma história moderna. E veja que viveram mais de 30 anos juntos... Isso é o que interessa: um amor de qualidade, com afinidade. Essa é a verdadeira história de amor. PB Mas, se as pessoas já percebem que o relacionamento dá mais certo quando procuram um parceiro com afinidade, por que são tão comuns as histórias com final infeliz? FG Por uma razão muito simples: as pessoas têm medo do amor e da felicidade. E esse é um assunto do qual eu trato desde os anos 80. Esse medo deriva da seguinte hipótese: existe uma superstição de que algo de ruim vai nos acontecer quando as coisas estão bem. Nós nos sentimos ameaçados quando a felicidade parece real. É um aspecto muito curioso, que é forte e universal. Tenho uma teoria de que isso deriva da nossa vida uterina. No útero, estávamos aconchegados e em paz. Foi neste contexto que nosso cérebro foi formado, ou seja, é nosso primeiro registro cerebral. Então houve o nascimento, que representa uma ruptura dramática dessa harmonia, uma espécie de Big Bang. Esse é nosso segundo registro cerebral. Parece que as pessoas passam a vida tentando voltar para aquela situação de paz. Mas se conseguissem, achariam um saco. Não teria o que fazer no útero. É como o sonho de ir para uma ilha deserta ou para um sítio isolado. Qualquer um voltaria de lá em três semanas. Em resumo: sempre que começamos a viver uma situação de harmonia temos medo de passar por outro Big Bang. 4

5 PB E o senhor acha que esse medo leva as pessoas a escolherem mal seus parceiros? FG Sim, justamente por isso. As pessoas acabam não apostando nas relações que parecem boas demais para ser verdade e ficam com os parceiros mais ou menos. Quando tudo está muito bem elas desconfiam e fazem de tudo para estragar esse processo antes que o tal Big Bang aconteça e acabe com tudo. Isso não acontece apenas no amor. Veja o caso dos jovens que começam a fazer sucesso, seja na música ou na profissão, e se metem com drogas. Acho que o medo da felicidade é um dos assuntos mais importantes da Psicologia. PB O senhor acredita que os psicólogos têm trabalhado bem esse tema? FG Vemos um pouco de tudo. Há muitos profissionais extremamente apegados a uma determinada escola, linha ou corrente. Acho isso um erro. A Ciência não é um partido político nem um time de futebol que devemos escolher e passar a defender. Nosso propósito é ajudar nosso cliente de todas as formas possíveis. Os psicólogos brasileiros ficam parasitas do ponto de vista internacional. É uma espécie de subdesenvolvimento cultural, que enxerga os franceses melhores do que nós brasileiros. Nossos profissionais ficam seguindo indivíduos falecidos que desenvolveram bons trabalhos há 30 ou 40 anos. Eles foram brilhantes, mas é preciso evoluir. Claro que também há os psicólogos de mente aberta, que pensam em várias direções. PB Essas divergências de correntes são um fenômeno também no exterior? FG São, sim. Na França, temos acompanhado discussões entre os psicanalistas e os terapeutas cognitivos. É uma briga boba, porque deixa os clientes em segundo plano. As pessoas que procuram o psicólogo querem resolver seus problemas da ordem da sexualidade, do bem-estar, da solidão, da obesidade... Psicologia normal é isso. Eu tenho uma visão eclética, já trabalhei com os comportamentalistas, indico o uso de remédios quando acho necessário... e, se ficar provado que macumba ajuda, também vou fazer. Defendo os pacientes, não as correntes e teorias. E não tenho problema de mudar de idéia. 5

6 PB Há quem critique também os profissionais que usam uma linguagem técnica, fora do alcance de seus clientes. FG É preciso utilizar uma linguagem que seja decodificada por todo o mundo. Não dá para usar uma linguagem que ninguém entende. Quem tem esse tipo de postura é esnobe e elitista. Lamento quando não consigo falar para mais pessoas. Quanto maior o público beneficiado, melhor. Tenho um amigo que admiro profundamente, o Silvio de Abreu. Ele é autor de novelas e tem o dom de falar com 60 milhões de brasileiros. Outra pessoa admirável é o Chico Buarque, que escreve letras de música que agradam a todos. Ambos são sofisticados e acessíveis ao mesmo tempo. Eu procuro assimilar isso e escrever textos sérios, mas que as pessoas entendam. PB Outro assunto que já foi tema de livro seu é a obesidade. Por que escreveu sobre isso? FG Porque se trata de um dos sofrimentos das pessoas na atualidade, cujas causam passam pelo psicológico. A obsessão pela magreza é o que faz as pessoas engordarem. Quanto mais elas se preocupam com isso, mais o organismo reage negativamente. É como aquele que sofre de insônia e se preocupa em ter de dormir. Simplesmente não pega no sono. Ou o homem que, na hora da relação sexual, fica preocupado se vai conseguir e daí falha mesmo. A obesidade é igual: cabe fazer uma dieta adequada, mas é importante estar em paz consigo. Uma prova disso é que há pessoas magras com cabeça de gordo. Esse livro eu escrevi para alertar sobre isso. Da mesma forma quando escrevi para os fumantes. PB Além da idéia de escrever um livro com dicas para ser feliz, o que está em seus planos? FG Sonho em escrever um livro sobre a mulher, o que é muito complicado. Freud morreu se perguntando quem eram as mulheres. É preciso um pouco de cara-de-pau para abordar esse tema. Pode ser que eu escreva uma grande bobagem. Mas mesmo a Ciência já produziu algumas pesquisas que foram jogadas no lixo. Se as mulheres que lerem esse livro me contestarem, ainda assim será bom. Pelo menos já iniciamos uma conversa. 6