QUALIFICAÇÃO DO DIRIGENTE ESCOLAR: CONSTRUINDO UMA PERSPECTIVA MULTIRREFERENCIAL Benno Sander (UFF) bennosander@terra.com.br Sem financiamento Resumo: O atual debate sobre a formação dos educadores dedicados ao estudo e ao exercício da administração da educação e da gestão escolar parte da premissa de que a gestão educacional se desenvolve no contexto econômico, político e cultural do país. Seu estudo, portanto, requer um enfoque multirreferencial, capaz de explicar as forças econômicas, políticas e culturais que afetam o cotidiano da educação e da gestão escolar. De acordo com essa lógica, as políticas de formação dos educadores e gestores escolares devem propiciar a aquisição e o desenvolvimento de quatro qualificações básicas: qualificação econômica, qualificação pedagógica, qualificação política e qualificação cultural. Palavras-chave: formação do educador e gestor escolar; ensino, pesquisa e prática pedagógica; multirreferencialidade e transdisciplinaridade. INTRODUÇÃO Minha fala parte da premissa de que a formulação de políticas públicas e sua execução e a concepção de teorias e práticas de gestão educacional são obra do ser humano, agindo e interagindo coletivamente em e sobre um conjunto de circunstâncias e oportunidades históricas. Minha hipótese, que enunciei no meu último livro sobre Administração da educação no Brasil: genealogia do conhecimento (Sander, 2007, p. 109-114), é que as perspectivas conceituais e analíticas e as políticas e práticas de administração da educação e gestão escolar não podem superar seus criadores, ou seja, os autores-cidadãos dedicados à sua construção e utilização. Este enunciado sugere um esforço prioritário de educação dos educadores chamados a estudar e administrar a educação brasileira e a pesquisar e coordenar o trabalho pedagógico no âmbito das instituições de ensino. Meu argumento é que, nesse contexto, se instala o debate sobre a educação dos educadores, em particular sobre a formação dos autores-cidadãos dedicados à administração da educação e à gestão escolar. Existe hoje consenso nos meios acadêmicos de vanguarda de que a administração da educação é um fenômeno
complexo e multirreferencial, cujo estudo e compreensão requerem um amplo enfoque transdisciplinar, capaz de abarcar compreensivamente e unitariamente a complexidade do universo dos atos e fatos administrativos. PERSPECTIVA MULTIRREFERENCIAL: DEFININDO QUATRO QUALIFICAÇÕES BÁSICAS Da mesma forma, a formação dos educadores dedicados ao estudo e ao exercício da administração do sistema educacional e à direção de suas escolas e universidades, como protagonistas do ensino, da pesquisa e da gestão do processo de ensino e aprendizagem, como dispõem a teoria educacional contemporânea dominante e as novas diretrizes curriculares, requer uma perspectiva multirreferencial e transdisciplinar. À luz da complexidade econômica, pedagógica, política e cultural da administração contemporânea no campo da educação, proponho que as políticas e estratégias de formação dos educadores e gestores escolares devem tomar em conta e viabilizar a aquisição e o desenvolvimento de quatro qualificações básicas, que desenvolvi no meu livro (2007) que hoje se lança nesta capital: qualificação econômica, qualificação pedagógica, qualificação política e qualificação cultural. Qualificação econômica A qualificação econômica do educador e do gestor escolar define-se em termos de sua eficiência para coordenar a captação e aplicação de recursos econômicos e financeiros e de elementos materiais e tecnológicos para o cumprimento de sua missão educacional. A importância da qualificação econômica do administrador educacional e do gestor escolar radica na sua contribuição à consecução dos objetivos pedagógicos, das demandas políticas e sociais e das aspirações culturais das instituições de ensino e da sociedade. Isto 2
significa dizer que a dimensão econômica da educação é importante, particularmente em circunstâncias de escassez de recursos, mas não é suficiente nem deve ser hegemônica. Da mesma forma, a qualificação econômica do administrador da educação é importante sim, mas sua importância precisa ser avaliada no contexto do universo das qualificações requeridas do dirigente educacional no cumprimento de sua missão educacional. Ou seja, trata-se de uma qualificação subordinada a outras qualificações substantivas, de natureza educacional, política e cultural. Qualificação pedagógica A qualificação pedagógica do educador e do gestor escolar mede-se em termos de sua eficácia para coordenar a formulação de objetivos educacionais e para desenhar cenários e meios pedagógicos para a sua consecução. A importância da qualificação pedagógica, que tem na experiência docente sua base e sua identidade, está enraizada na própria natureza do ato educativo, do próprio processo de ensino e aprendizagem, processo que materializa, consciente ou inconscientemente, os valores culturais e significados sociais nas instituições de ensino e de formação cidadã. Isto significa dizer que a dimensão pedagógica da gestão da educação cobra importância à medida em que ela reflete os significados sociais e as aspirações políticas dos participantes das instituições de ensino. Da mesma forma, a qualificação pedagógica do administrador da educação, como coordenador do trabalho pedagógico da instituição escolar é essencial, mas sua importância precisa ser analisada no contexto do universo das qualificações requeridas do dirigente educacional no cumprimento de sua missão política e cultural. 3
Qualificação política A qualificação política do educador e do gestor escolar define o seu talento para perceber e interpretar o ambiente externo e sua influência sobre o que ocorre no interior das instituições educativas. A qualificação política revela a capacidade do educador e do gestor escolar para adotar estratégias efetivas de ação organizada, involucrando o coletivo da comunidade em que a escola está inserida, visando a satisfação de suas necessidades e demandas políticas em matéria de educação e formação cidadã. A importância da qualificação política está enraizada na convição de que a educação cumpre uma função política e que a gestão da educação se transforma, assim, em ato político. Isto significa dizer que a dimensão política da administração educacional é fundamental na medida em que reflete e interpreta os valores e significados da educação no âmbito da sociedade como um todo. Da mesma forma, a qualificação política do administrador da educação, como protagonista social da comunidade interna e externa, é importante sim, mas sua importância precisa ser equacionada no contexto da pertinência e relevância cultural da ação do dirigente educacional na sociedade. Qualificação cultural Finalmente, a qualificação cultural do educador e do gestor escolar revelase na sua capacidade e sensibilidade para conceber soluções educacionais e administrativas e na liderança para implantá-las, sob a ótica de sua significância, sua pertinência, sua relevância para a promoção de uma forma qualitativa de vida humana coletiva na escola e na sociedade. A importância definidora da qualificação cultural reside na convição de que a educação cumpre uma função cultural e uma missão civilizatória e que a gestão da educação é, por isso mesmo, 4
um ato cultural, multicultural, civilizatório. Sua missão é a busca da qualidade de vida humana, uma qualidade de vida socialmente referenciada, vale dizer, baseada na liberdae individual e na justiça social. O caminho para o cumprimento dessa missão socialmente referenciada de qualidade de vida e de educação é o caminho da gestão democrática, disposta na nossa Carta Constitucional e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. Isto significa dizer que a dimensão cultural da educação assume importância definidora no estudo e no exercício da administração da educação. É assim que a qualificação cultural do administrador da educação deve nortear o universo das qualificações do dirignte da educação brasileira e de suas instituições de ensino. À luz dessa lógica, a qualificação cultural deve presidir todo o programa de formação do educador e do gestor escolar, seguida pela sua qualificação pedagógica, política e econômica. FORMAÇÃO PARA A GESTÃO DA EDUCAÇÃO: DESAFIO TRANSDISCIPLINAR Diante da complexidade e diversidade desse quadro de qualificações básicas, é fácil deduzir que a preparação de pesquisadores e administradores educacionais representa um grande desafio. O enfrentamento desse desafio começa pela concepção de programas de formação dos profissionais da educação, apoiados em distintos campos do conhecimento científico e tecnológico, que vão desde a filosofia e a antropologia, passando pela sociologia e a psicologia, até a didática e a tecnologia da informação e da comunicação. Se bem que o estudo de cada uma das quatro qualificações seja objeto de disciplinas específicas, a primeira precaução é não perder a visão de totalidade e simultaneidade dos fenômenos educacionais, desvinculando níveis ou dimensões da realidade global como se fossem passíveis de existência autônoma. O caminho 5
para preservar a visão de totalidade e simultaneidade nos programas de formação dos educadores é o da transdisciplinaridade. Sua operacionalização programática constitui o primeiro desafio de universidades e centros de formação dos profissionais da educação. De nossa capacidade para enfrentar este desafio depende, em grande parte, a qualidade da formação dos profissionais dedicados à concepção de políticas e práticas eficientes, eficazes, efetivas e relevantes de administração educacional e gestão escolar. O papel do educador, como protagonista do ensino, da pesquisa e da gestão escolar, é insubstituível para enfrentar esses desafios. É por essa razão que a formação do educador em termos de sua preparação multirreferencial para a pesquisa, o ensino e a gestão da educação se impõe como requisito fundamental. Aqui não é o caso de apresentar receitas acabadas de formação do administrador da educação, nem é essa a orientação da ANPAE. Mais do que receitas, proponho uma estratégia de ação para as faculdades e centros de educação de nossas universidades. Proponho uma estratégia capaz de associar ensino, pesquisa e prática profissional na formação do educador e, nesse contexto, do gestor da educação no curso de pedagogia e na complementação em administração educacional, oferecida a egressos do curso de pedagogia e dos cursos de licenciatura interessados em ampliar sua qualificação profissional nas áreas de planejamento, organização, adminsistração e avaliação educacional. De acordo com essa estratégia, trata-se de ensinar pesquisando e pesquisar ensinando, na feliz expressão de Terezinha Maria Silva (2000, p. 19) em seu texto sobre o professor-pesquisador. Trata-se, igualmente, de ensinar praticando e praticar ensinando, pela utilização eficaz e efetiva da prática pedagógica como instância formativa. Em outras palavras, essa estratégia propõe utilizar a pesquisa e a prática pedagógica como recursos didáticos de formação do administrador 6
educacional e do gestor escolar. Isto significa formar o educador a partir da sua própria construção teórica, aliada à sua vivência prática nos espaços educativos. Como método para associar teoria e prática, proponho fazer um levantamento das condições reais de funcionamento das escolas e das práticas de ensino e aprendizagem adotadas nos espaços educativos e, a partir desse levantamento, desenvolver uma reflexão consciente sobre a própria prática educativa. A importância da pesquisa e da prática pedagógica na formação dos educadores está hoje estabelecida nos meios intelectuais, na literatura especializada e na recente legislação educacional brasileira. O problema é como aplicar a proposta na vida real. Como transformar a pesquisa e a prática pedagógica em recursos didáticos para a formação do educador e em instrumentos de aprendizagem para não incorrermos no conhecido formalismo educacional, definido como a discrepância entre saber e fazer, entre lei e realidade, entre teoria e prática, entre políticas públicas e sua implantação efetiva? Para evitar o penetrante formalismo educacional que afeta a qualidade do ensino e o desempenho escolar, é preciso desenvolver novos olhares sobre a formação do educador, na qual se destacam os dois elementos objeto desta análise: primeiro, a pesquisa como recurso didático e fonte de informações para a formulação de políticas de formação e, segundo, a prática pedagógica no processo de formação, na convicção de esses dois elementos desempenham papel fundamental na educação dos educadores. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SANDER, Benno. Administração da educação no Brasil: genealogia do conhecimento. Brasília: Liber Livro Editora, 2007. SILVA, Terezinha Maria Nelli. A construção do currículo em sala de aula: o professor como pesquisador. São Paulo: EPU, 2000. 7