Ilegitimidade e compadrio: o estudo dos nascimentos de filhos de mães escravas, São Paulo do Muriaé, 1852-1888.



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Transcrição:

Ilegitimidade e compadrio: o estudo dos nascimentos de filhos de mães escravas, São Paulo do Muriaé, 1852-1888. Palavras-chave: escravidão; ilegitimidade; compadrio. Resumo Vitória Fernanda Schettini de Andrade Sabemos da riqueza encontrada nos registros de batismos para entendermos a organização familiar do escravo, suas relações de parentesco, bem como sua participação e inserção no mundo escravista. Desta forma, nossa comunicação se fundamenta no estudo das relações estabelecidas entre cativos e senhores, a partir do primeiro sacramento, celebrado em filhos de mães escravas, na freguesia São Paulo do Muriaé, entre os anos de 1852-1888, situada geograficamente a Leste da Zona da Mata Mineira, região caracterizada por uma produção essencialmente agrícola, fora da plantation, com escravarias moldadas em sua grande maioria a partir de um reduzido número de cativos. Fato que não impossibilitou a estes indivíduos manterem amplas relações de parentesco. Para esta comunicação, utilizaremos como fonte básica as atas de batismos, que serão cotejadas com alguns testamentos, inventários postmortem e o censo de 1872. A ilegitimidade local e sua relação com o nível de riqueza de alguns proprietários e o apadrinhamento, serão nossos grandes condutores, possibilitando-nos observar que esta região possuía uma identidade própria, moldadas a partir de estratégias sociais e econômicas, refletindo um jogo de vivências, apresentando escravos dotados de opções e escolhas próprias. Trabalho apresentado no XV Encontro de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambu MG Brasil, de 18 a 22 de Setembro de 2006. Mestre em História pela Universidade Severino Sombra. Profa. Faculdade Santa Marcelina Muriaé - MG 1

Ilegitimidade e compadrio: o estudo dos nascimentos de filhos de mães escravas, São Paulo do Muriaé, 1852-1888. Vitória Fernanda Schettini de Andrade Introdução Esta pesquisa faz parte de um projeto pessoal amplo de reconstituição e catalogação dos arquivos paroquiais da Matriz São Paulo, no qual compilamos 2.283 casamentos e 8.831 batismos referentes a livres, libertos, administrados e cativos, referentes aos anos de 1851 a 1898. Porém como a gama de informações é muito extensa para ser desenvolvida no curto período do mestrado, enfocamos os batismos de escravos e recortamos o período para 1852-1888, dissertação intitulada Batismo e apadrinhamento de filhos de mães escravas, São Paulo do Muriaé, 1852-1888 1 onde pudemos deparar com um emaranhado de redes sociais envolvendo cativos, libertos e senhores. Notamos a constante presença de famílias escravas, com um predomínio de crianças registradas apenas com o nome da mãe, o que corrobora estudos anteriores para diversas regiões do país, porém, longe de considerarmos esta maioridade para época analisada um ato ilícito ou anormal. Essas famílias seriam formadas não apenas por relações de consangüinidade, mas reforçada e ampliada nas relações estabelecidas por apadrinhamentos. Observamos o predomínio de homens e mulheres livres para assumir a posição de compadres e comadres, seguido depois pelos escravos e por último os santos e forros. Esses dois últimos variavam entre as madrinhas e padrinhos, ou seja, os apadrinhamentos feitos por santos predominavam na categoria das madrinhas e os forros na dos padrinhos. Os dados coletados reforçam a escolha de pessoas de nível social superior ao batizando, o que provavelmente poderia levá-lo a uma suposta ascensão social. Pelo estabelecimento do sacramento do batismo foi possível entender a organização familiar do escravo, conhecer suas relações de parentesco e sua inserção no mundo escravista, já que era possível pelo compadrio, extrapolar a relação espiritual firmada na pia batismal, alcançando convivências íntimas entre vários níveis sociais. O certo é que os relatos consultados permitiram constatar a existência de uniões entre os negros, indicando que estes tentaram estabelecer laços afetivos mais sólidos que os da simples promiscuidade sexual 2, podendo participar como agente e construtor da história. As atas batismais, além de outras deduções, nos fornecem excelentes análises sobre o nível de adoção da taxa de nupcialidade seguido por celebrações via sacramento matrimonial. Com base nesta afirmativa faremos um estudo das relações firmadas entre cativos e senhores e ainda uma análise da forma de nascimento desses filhos, via registros de batismos, na intenção de refinar e aprofundar nas análises sobre os laços de solidariedades firmadas entre este grupo e os demais segmentos sociais. Trabalho apresentado no XV Encontro de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Caxambu MG Brasil, de 18 a 22 de Setembro de 2006. Mestre em História pela Universidade Severino Sombr e prof. Fafism Santa Marcelina Muriaé - MG 1 ANDRADE, Vitória Fernanda Schettini de. Batismo e apadrinhamento de filhos de mães escravas. São Paulo do Muriaé, 1852-1888. Dissertação de Mestrado. USS, 2006. 2 QUEIROZ, Suely Robles Reis de. Escravidão negra em debate. In: FREITAS, Marcos Cezar de (org) Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. p. 117 2

1- O estudo da ilegitimidade dos filhos de mães escravas e sua relação com o nível de riqueza de alguns proprietários. Conforme documentado por trabalhos sobre a constituição da família em Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX, observa-se nessa Capitania, logo depois Província, um alto índice de ilegitimidade, ou seja, o casamento não era fator determinante para os diversos setores da sociedade, fator que não impedia uma relação duradoura entre os parceiros e uma intensa rede de sociabilidade entre cativos, senhores e libertos, consolidado pelo compadrio. A região focalizada caracterizava economicamente como a maioria das localidades da Zona da Mata Mineira para esta época recortada, despontando no início do terceiro quarto do século XIX como o primeiro em número de freguesias, num total de onze e com um total de 20,04% de escravos do total geral da população, no que equivalia a 47,2% do sexo feminino e 52,8% do masculino, com a maioria solteiros. 3 Percebemos assim, que apesar de existir certo equilíbrio entre os sexos, a freguesia caracterizaria como a maioria dos estudos para época e região, pela superioridade de nascimentos ilegítimos ou bastardos. Para a criança ser considerada legítima, os pais teriam de ser casados em uma união reconhecida pela Igreja e que, portanto, preenchia os requisitos exigidos pela legislação em vigor, no caso as Ordenações Filipinas. Em contrapartida, as crianças naturais ou ilegítimas seriam frutos de vários tipos de uniões não reconhecidas pela Igreja 4, esta porcentagem pode ser considerada uma taxa de legitimidade no sentido estrito da expressão. Em alguns casos os pais legítimos reconheceram e legitimaram esta filiação, concedendo a estes, todos os direitos legais. Não queremos afirmar, assim como José Roberto Góes, que uma criança batizada dita natural não possuía um pai, como é evidente, exceto aos olhos da Igreja. Mas é uma criança de cujo pai a fonte não fala. 5 Importante destacar que as Constituições Primeira do Arcebispado da Bahia, celebrada em 12 de junho de 1707, consolidou juridicamente as disposições do Concílio de Trento, no Brasil, que defendia a obrigatoriedade do culto à doutrina cristã, aos filhos, aos discípulos, aos criados e escravos, adoração a Deus, à Virgem Maria Nossa Senhora, aos Santos e o culto aos sacramentos, inclusive ao batismo. 6 É cabível ainda saber que as Constituições, no seu parágrafo 73, nos esclarece: E quando o baptizado não for havido de legítimo matrimônio, também se declarará no mesmo assento do livro o nome de seus pais, se for cousa notória, e sabida, e não houver escândalo, nem perigo de o haver....7 Desta forma, notamos por diversas vezes registros de batismos que aparece apenas o nome da mãe, o que também não quer dizer que o nome do pai não era reconhecido pelo pároco. 3 Censo do Brasil Império, 1872. 4 LIBBY, Douglas Cole; BOTELHO, Tarcísio R. Batismos de crianças legítimas e naturais na Paróquia de Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, 1712-1810. Revista Varia História. Belo Horizonte, nº 31p.1-286, Janeiro, 2004 p.72 5 GÓES, José Roberto. O cativeiro imperfeito. Um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX. Vitória: Lineart, 1993. p.118 6 Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1853), feytas e ordenadas pelo Illustrícimo, e Reverendíssimo Senhor Sebastião Monteyro da Vide, 5º Arcebispo do dito Arcebispado, e do Conselho de Sua Magestade. Propostas, e aceitas em Synodo Diocesano, que o dito senhor celebrou em 12 de junho de 1707. São Paulo: Typographia 2 de Dezembro. Título II e VII 7 CONSTITUIÇÕES (1707) op. cit. Título XX, & 73. 3

Defendendo os interditos, a indissolubilidade e a universalidade do matrimônio, 8 os conciliares outorgavam poderes superiores aos seus senhores de escravos: Conforme o Direito Divino, e humano os escravos, e escravas podem casar com outras pessoas captivas, ou livres, e seus senhores lhes não podem impedir o Matrimonio, nem o uso delle em tempo, e lugar conveniente, nem por esse respeito os podem tratar peior, nem vender para outros lugares remotos, para onde o outro por ser cativo, ou por ter outro justo impedimento o não possa seguir... 9 Sabemos por trabalhos anteriores que apesar da Lei definir determinados parâmetros, o cumprimento dela nem sempre era seguido à risca, o que também era comum para São Paulo do Muriaé. Em nenhum dos 952 assentos de batismos de escravos aparece casais casados de plantéis diferentes, o que faz surgir uma dúvida: realmente todos os casados legalmente eram escravos de um mesmo dono? Se levarmos em consideração que a localidade caracterizava por pequenos e médios plantéis, pois a grande maioria dos proprietários do livro de batismo, 58,4% aparece apenas uma vez, e em escravarias pequenas, o acesso ao matrimônio era muito mais difícil do que nas unidades maiores 10, fica as perguntas. Por que tivemos todos os matrimônios em uma mesma escravaria? A ilegitimidade para Muriaé seria uma opção, como afirmara Sílvia Brügger em estudos para São João Del Rei, ou na realidade faltava parceiro dentro da escravaria? Será que estes pais não podiam aparecer? Parece ser esta última pergunta é a mais provável, mais afirmar categoricamente aquela que mais se aproxima da realidade é impossível com esta fonte de pesquisa. Se houvesse uma maior preocupação do pároco em registrar pormenorizadamente o registro, estas dúvidas poderiam ser sanadas. Uma fonte que poderia suprir esta deficiência seria o registro de casamento, ou até mesmo recorrer às Listas Nominativas da mesma freguesia, o que nos foge da análise para o momento. 8 VENÂNCIO, Renato Pinto. Ilegitimidade e concubinato no Brasil Colonial: Rio de Janeiro e São Paulo, 1760-1800. Centro de Estudos de Demografia Histórica da América Latina, nº 1 CEDHAL- USP, 1986. p.7 9 CONSTITUIÇÕES (1707) Idem ibidem. Título LXXI 10 BRÜGGER, Sílvia Maria Jardim. Legitimidade e comportamentos conjugais. São João del Rei, século XVIII e primeira metade do XIX. X Seminário de Economia Mineira, 1998. p.23 4

Tabela 1 Número de batismos de filhos de cativas (coluna A) pertencentes a cada um dos proprietários arrolados na coluna B com indicação das porcentagens referentes a estes últimos na coluna C Muriaé(1852-1888 Número de batismos de filhos de cativas pertencentes a cada um dos proprietários indicados na coluna B (coluna A) Número de proprietários cujas cativas tiveram seus filhos batizados, filhos estes indicados na coluna A (coluna B) Porcentagens referentes aos proprietários indicados na coluna B (coluna C) 1 218 58,4 2 67 18,0 3 22 6,0 4 13 3,5 5 19 5,1 6 6 1,6 7 1 0,3 8 5 1,3 9 4 1,1 10 5 1,3 11 3 0,8 13 2 0,5 15 3 0,8 18 2 0,5 22 2 0,5 34 1 0,3 Total 373 100,0 Fonte: Livros de batismo da freguesia São Paulo do Muriaé, 1852-1888. O total geral desses casamentos de escravos apresentados no registro de batismo na freguesia São Paulo do Muriaé, foi de 202, ou seja, 21,2% dos casos e em 7 deles (0,8%) aparece apenas o nome do pai, lembrando que consideramos escravos casados aqueles em que tem filhos legitimados pelo vigário. Ainda que os dados apresentados na tabela 2 denotem pouca representatividade, cabenos observar as formas de relações estabelecidas entre os casais. Devemos aqui esclarecer que casamentos endogâmicos eram estabelecidos entre uma mesmo origem, crioula/crioulo, africana/africano, já casamentos exogâmicas eram efetuadas entre origens diferentes, africana/crioulo, crioula/africano. Advertimos que nenhuma mãe africana uniu a um crioulo, e em 3 casos (21,42%) aparece a união de africana com africano. Com relação à mãe crioula e pai crioulo, estes índices passam para 27 casos, ou seja, 13,57%, Mãe crioula e pai africano aparecem 5 casos (2,51%). Conforme os dados acima, vemos como nos afirma a historiografia sobre o tema, que apesar de não podermos generalizar tomando como referência Muriaé, os casais da localidade apresentam uma preferência à endogamia, prevalecendo uma preferência entre os casamentos do mesmo grupo étnico, pelo menos até o momento em que existia pessoal disponível para tal. Uma outra observação é que o fato de não termos nenhuma mãe africana casada com crioulo, leva-nos a deduzir que os homens crioulos quase sempre procuravam gente de categoria igual ou superior a sua para casar. 5

Origem do pai Tabela 2 Casamento de escravos segundo a origem, Muriaé, 1852-1888 Origem da mãe afric % crioula % mãe não % ilegível % não consta % prov % Total % identif bras crioulo 0 0 27 13,57 0 0 0 0 0 0 0 0 27 2,83 africano 3 21,42 5 2,51 3 0,41 0 0 0 0 0 0 11 1,15 pai não 0 0 0 0 170 23,25 2 100,00 1 16,67 0 0 173 18,18 identificado ilegível 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 não consta 11 78,58 165 82,92 558 76,34 0 0 5 83,33 0 0 739 77,63 Prov. bras 0 0 2 1 0 0 0 0 0 0 0 0 2 0,21 Total 14 100,00 199 100,00 731 100,00 2 100,00 6 100,00 0 0 952 100,00 Fonte: Livros de batismo da freguesia São Paulo do Muriaé, 1852-1888 Rômulo Garcia de Andrade aprofunda esta análise para as localidades de Muriaé e Juiz de Fora, e conclui que a exogamia era praticada em maior grau por homens africanos e mulheres crioulas, esclarecendo ainda, que isto não era uma preferência pelo outro, mas um desequilíbrio na Razão da Masculinidade, que agia de forma a desfavorecer os africanos do sexo masculino, mais numerosos e sem contrapartida no plantel africano feminino, recorrendo as sobras do sexo oposto. 11 Vale notar ainda, que em sete ocasiões aparece apenas a figura do pai, conforme tabela 3. Três casos deles por danificação ao registro, todos eles anotados no livro 1a, aberto a toda população, que faz a cobertura dos anos 1852-1863. Constança, Marcelino, Feliz e Jacintho são as quatro crianças em que aparece apenas o nome do pai, sem haver alguma danificação à fonte, todos registrados como escravos, portanto, filhos de mães escravas e pais escravos, já que a lei determinava que o ventre sendo de escrava, os filhos também seriam. Infelizmente, o vigário não especifica em nenhum dos casos acima a causa do desaparecimento da mãe, levando-nos a deduzir, que se relacionava ao falecimento da mesma. Um deles, de nome Feliz, tem durante o ato do batismo sua alforria garantida pelo proprietário: declaro que é nascido de ventre livre, 12 liberdade esta conseguida, talvez por uma compensação à falta da mãe biológica. Dando continuidade ao estudo dos registros de batismos, passaremos analisar os dados apresentados sobre legitimidade e ilegitimidade na Paróquia pesquisada. É bom frisar que para efetivar as tabelas a seguir, tivemos o cuidado de relatar a fonte tal como o vigário transcrevia, para não gerar dúvidas e até mesmo para fazer uma leitura mais minuciosa da documentação. Por isso, vemos os itens que por ora não são muito usados, discriminados como presumivelmente natural e presumivelmente legítimo. 13 Observa-se desta forma, que presumivelmente natural referia-se a todos os filhos nascidos de mães aparentemente solteiras. O vigário não anotava a designação natural, talvez por esquecimento, ou até pela variedade na transcrição dos assentos, devido ao nível social dos envolvidos na cerimônia, deixando os vigários influenciarem pelos jogos e vantagens da sociedade local. Desta forma, quanto maior o nível econômico, maior as especificações e minúcias do registro. 11 ANDRADE, Rômulo Garcia de. Limites impostos pela escravidão à comunidade escrava e seus vínculos de parentesco: Zona da Mata de Minas Gerais, século XIX. A subjetividade do escravo perante coisificação social própria do escravismo. Tese de Doutorado. São Paulo: USP, 1995. p.276 12 Livro de Batismo 1 a aberto a toda população. Batizado: Feliz, padrinhos: Francisco José de Carvalho e Perpétua Maria da Conceição, proprietário: João Gomes dos Santos, pai: Severino escravo. Batizado no dia 30/03/1856. 13 Agradeço as sugestões sempre precisas do professor Iraci del Nero da Costa. 6

Natural consignado pelo vigário, era especificado no registro filho natural de e legítimo foi usado quando era especificado o nome do pai e/ou mãe, concebidos por casamento putativo. Presumivelmente legítimo (só consta o nome do pai) equivale aos assentos que, por erro do vigário, esquecimento, morte da mulher, ou mesmo desgaste da fonte pelo tempo, só consta o nome do pai. Por fim, indefinido refere-se aos casos em que os registros aparecem cortados ou depredados. Nota-se que a maior freqüência está relacionada aos filhos naturais consignados pelo vigário, perfazendo um total de 568 batizados (69,1%) acompanhado de 81 casos (8,5%) em que o vigário anotou apenas o nome da mãe, sem designá-la como natural. Ao adotar a idéia de somarmos as duas variáveis citadas, independente de aparecer anotado filho natural de, obtêm-se um total de 739 casos, ou seja, 77,6%. Em se tratando de filhos presumivelmente legítimos, aparecem 7 casos (0,8%) e os legítimos 202 (21,2%), ao usar o mesmo indicativo acima, temos 209 (21,9%) dos filhos nascidos legítimos. Tabela 3 Condição de legitimidade dos filhos de mães escravas, Muriaé (1852-1888). legitimidade Freqüência % presumivelmente natural 81 8,5 natural consignado pelo vigário 658 69,1 legítimo 202 21,2 presumivelmente legítimo, só consta o nome do pai 7 0,8 indefinido 4 0,4 total 952 100,0 Fonte: Livros de batismo da freguesia de São Paulo do Muriaé, 1852-1888. Detalhando mais, separamos na tabela 4 os valores e médias para cada uma dessas categorias por triênios, com exceção de 1885 a 1888, por ter apresentado neste último ano, apenas dois casos de batismo, ambos naturais. Ressaltamos serem raras às vezes em que o nascimento legítimo sobrepõe ao natural, apenas no período de 1855-1887. Se usarmos o critério de soma do presumivelmente natural e natural consignado pelo vigário, não aparecerá nenhum intervalo com tal denominação, subindo os nascimentos ilegítimos gradativamente a partir daí, atingindo seu ápice em 1879-1881. Um outro fator marcante nesta quarta tabela é que quanto mais próximo à abolição da escravatura, maior o distanciamento entre as duas variáveis. Este fator é justificável, pois logo após 1871, ano da Lei do Ventre Livre, existiu uma preocupação maior do vigário em anotar as atas pormenorizadas, lembrando que após a dita lei, todos os filhos de escravas, se tornariam livres e o batizado seria a única forma de fazer valer os direitos do proprietário, tanto de indenização como de exploração do trabalho até os 21 anos de idade. 14 Cumpre lembrar que Iraci del Nero da Costa, Slenes e Schwartz nos esclarecem que em plantéis mais numerosos havia um alto porcentual de filhos legítimos e neles concentravase a maioria desses filhos na localidade estudada, como também havia um ambiente propício para a constituição de famílias regulares. 15 14 C.f. Tarcísio R. Botelho, esta seria uma das formas de incentivar os proprietários a batizarem seus escravos e sem dúvida alguma, o nível de cobertura deste registro deve ter melhorado. BOTELHO, Tarcísio R. Famílias e escravarias: demografia e família escrava no norte de Minas Gerais, no século XIX. São Paulo: USP, 1994. (Dissertação de Mestrado) p.24. 15 COSTA, Iraci Del Nero da, SLENES, Robert W. e SCHWARTZ, Stuart B. A família escrava em Lorena (1801). Estudos Econômicos, 17:2 mai./ago. 1987 7

Baseado nesta quarta tabela pode-se deduzir que aparentemente, as famílias matrifocais, ou seja, constituída de mães solteiras e seus rebentos, bem como os parentes a ela adstritos 16, foi a forma predominante em São Paulo do Muriaé. Tal fato reforça estudos posteriores de Rômulo Garcia de Andrade, Sílvia Maria Jardim Bruggüer, Jonis Freire 17, além de outros, demonstrando que a ilegitimidade permeava esta sociedade escravista mineira. Tabela 4 Condição de legitimidade por ano, Muriaé (1852-1888). pres. nat. % Nat. Cons. % leg % Pres. leg % Ind. % total % ano 1852-1854 11 13,6 9 1,2 9 4,3 0 0 0 0 29 3 1855-1857 42 5,8 8 1,1 17 8,2 2 28,6 2 50 71 7,5 1858-1860 20 24,9 53 8,6 31 15,2 2 28,6 0 0 106 11,1 1861-1863 2 2,4 15 3,6 9 4,2 0 0 0 0 26 2,6 1864-1866 3 3,7 33 4,9 8 3,6 0 0 1 25 45 4,5 1867-1869 1 1,2 40 5,9 20 9,7 0 0 0 0 61 6,4 1870-1872 0 0 61 9,5 25 14,8 2 28,6 0 0 88 9,3 1873-1875 1 1,2 83 12,4 20 9,7 0 0 0 0 104 11 1876-1878 0 0 79 12 19 9,2 1 14,2 1 25 100 10,6 1879-1881 0 0 103 15,8 27 13,2 0 0 0 0 130 13,8 1882-1884 1 1,2 83 12,7 8 3,7 0 0 0 0 92 9,6 1885-1888 0 0 90 13,7 9 4,2 0 0 0 0 99 10,5 n/c data 0 0 1 0,1 0 0 0 0 0 0 1 0,1 Total 81 100,0 658 100,0 202 100,0 7 100,0 4 100,0 952 100,0 Fonte: Livros de batismo da freguesia São Paulo do Muriaé, 1852-1888. Sheila Faria de Castro acrescenta que estas altas de ilegitimidade, estavam intimamente pautadas nos tipos de produção, nas localizações das áreas, no tamanho das unidades produtivas e no período, que dependendo de determinadas combinações, influíram nas possibilidades de casamento 18. Os padrões familiares e as condições sócio-econômicas da região determinavam os costumes e as atitudes que sobressaíam na formação das famílias. Desta forma, percebe-se que quanto maior o plantel, maiores eram as possibilidades de uniões legítimas, e em conseqüência a formação de famílias mais estáveis. Sheila ainda conclui que ao longo do século XIX pode ser observada uma série de inovações dentro do sistema escravista, como a diminuição de taxa de ilegitimidade em várias freguesias. Uma das explicações encontradas para tal definição, estaria na maior presença da Igreja nos âmbitos rurais e urbanos. Outra explicação estava conectada a entrada de cativos africanos até 1850 no país, levando a sociedade a práticas africanas no cotidiano dos cativos. 19 Em Minas Gerais, por exemplo, a criação do Bispado de Mariana, em meados do século XVIII, foi um marco para o controle dos registros paroquiais, apesar de muitos padres fugirem à regra. Entretanto, o que se observa para o século XIX é que a ampliação das 16 FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. Comércio negreiro e estratégias de socialização parental entre escravos do Agro-fluminense, 1790-1830. Anais do IX Encontro Nacional de Estudos Populacionais. São Paulo, ABEP, vol 1, p 365-380, 1994. p.375 17 ANDRADE (1995) Op.cit. BRÜGGER, Sílvia Maria Jardim. Legitimidade, casamento e relações ditas ilícitas em São João Del Rei (1730-1850). In: IX Seminário sobre economia Mineira, p.37-64, 1998. FREIRE, Jonis. Compadrio em uma freguesia escravista: Senhor Bom Jesus do Rio Pardo (MG), 1838-1888. XIV Encontro de Estudos Populacionais, ABEP. Caxambu, 2004. 18 FARIA, Sheila S. de Castro. A Colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p.323-324. 19 FARIA (1998) Idem, ibidem. p. 57 8

alforriais e o aumento da pressão da Igreja em levar adiante o projeto de sacralização e moralização das uniões, tivessem efeito contrário, pois seriam vividas por uma pequena parcela da população. 20 À distância, a precariedade das estradas de Mariana a São Paulo do Muriaé, e até mesmo a falta de preparo dos representantes do bispado, levou um acentuado número de nascimentos ilegítimos. Separando um a um esses registros em números de proprietários que tinham seus escravos batizados por categorias, observa-se que independente da quantidade de crianças batizadas, a variável ilegitimidade era uma constante nos diversos seguimentos. Em apenas dois grupos se dá uma reversão, ou seja, filhos legítimos ultrapassando o número de batismos de ilegítimos. Os proprietários que tiveram seus escravos batizados 11 e 22 vezes, 3 proprietários no primeiro caso e 2 para o segundo, aparecem uma superioridade de 57,6% (19) de legitimidade e 39,4% (13) de ilegitimidade e 50,1% (22) e 45,5% (20), respectivamente. Como na tabela 5 foi feito uma junção desses números a outros, 11 e 13, 22 e 34 vezes, esta variação sofre uma pequena alteração, 28 (4,3%) casos de batismos natural consignado pelo vigário e 29 (14,4%) de legítimos. Se usarmos o mesmo critério de soma dos batismos entre as duas categorias, o número dos naturais ultrapassa aos legítimos. Não sendo as fontes paroquiais as mais adequadas para aferir a posse dos escravos e riqueza do proprietário, apesar de nos dar uma boa representação 21, recorremos, então, aos inventários para cruzar alguns dados com esta dedução. Desses 5 (cinco) proprietários que tiveram seus escravos batizados e apareciam como maioria legítimos foi encontrado o inventário da esposa de Antônio Tibúrcio Rodrigues, D. Maria Ferreira Rodrigues. Seus bens foram avaliados em 71:129$101 (setenta e um contos, cento e vinte e nove mil, cento e um réis). 22 Na data de abertura do documento acima, 07/06/1890, pelo menos em tese, a escravidão já havia sido extinta, fato que isenta o aparecimento de escravos. Destarte, mesmo não sendo possível saber com precisão sobre sua escravaria, sabemos que o índice de legitimidade era de 81,8%, um número surpreendente se comparado com outras escravarias, mesmo não sendo possuidor de grandes fortunas. No dia 04/06/1864 foi feita a abertura do inventário de Lino Teixeira de Siqueira, casado com D. Anna Eufrásia da Annunciação, que da mesma forma do inventário acima, destacou-se entre uns poucos proprietários de alta legitimidade, porém com um total de bens menor que o primeiro, 18:828$440 (dezoito contos, oitocentos e vinte e oito mil, quatrocentos e quarenta réis). Este senhor levou 18 escravos na pia batismal, destes, 16 (88,8%) eram legítimos. 23 Um outro documento analisado é o de João Francisco de Cerqueira, aberto no dia 22/08/1870. O proprietário possui no inventário um total de 31 escravos, 10 foram levados para batizar, 9 (90%) são filhos legítimos, assim como os dois acima. O volume de bens arrolados é o maior deles, 87:627$315 (oitenta e sete contos, seiscentos e vinte e sete mil, trezentos e quinze réis). É bom deixar claro que o dito proprietário apresentava no item dívidas ativas, o valor quase total de seus bens: 86:847$480 (oitenta e sete contos, 20 FARIA(1998) Op. cit. p.54 21 É óbvio que o número de batismos constitui um indício tosco do tamanho da posse de cativos propriamente dita, mas parece-nos que a amostra resultante seja bastante representativa da realidade de Vila Rica durante o século XVIII e início do XIX. LIBBY; BOTELHO (2004) Op.cit. p.84 22 Para saber a soma da riqueza do proprietário, incorporei a soma de todos os bens: móveis, semoventes, raiz, jóias, dinheiros, dívidas ativas e descontei das dívidas passivas à custa do enterro/processo. Inventário de Maria Ferreira Rodrigues, Cartório do 1º Ofício Cível, Muriaé, maço nº 75. 23 Inventário de Lino Teixeira de Siqueira, Cartório do 1º Ofício Cível, Muriaé, maço nº 15. 9

oitocentos e quarenta e sete mil, quatrocentos e oitenta réis), o que parece ter sido um grande negociante da localidade. 24 É interessante ainda detalhar alguns casos específicos de proprietários que tinham como característica marcante a grande contribuição para a ilegitimidade local. Desembargador Antônio Augusto da Silva Canêdo, um dos maiores proprietários de escravos da localidade, perfazendo um total de 103 escravos, possuía uma soma avultante de bens para a região, num total de 480:064$692 (quatrocentos e oitenta contos, sessenta e quatro mil, seiscentos e noventa e dois réis), somando com alguns poucos bens deixados em Barbacena. É o proprietário que mais batizou seus escravos, um total de 34 escravos. 25 Deste total, 30 escravos (88,2%) foram batizados como naturais, 3 (8,9%) como legítimos e 1 (2,9%) como presumivelmente legítimos. Fica claro que, apesar de ser um grande produtor, com plantações de 86 mil pés de café, arroz, mandioca, cana-de-açúcar, feijão, milho e ser possuidor de 632 alqueires de terra e ainda instrumentos com todo o aparato, inclusive integrantes escravos, para uma banda de música, prevaleciam às uniões tidas como ilegítimas. Outro proprietário, João Carlos de Souza, tem seu nome transcrito no registro de batismo por 18 vezes. E todos seus escravos foram registrados como naturais. Conferindo a fonte propícia, soma-se um total de 52:886$010 (cinqüenta e dois contos, oitocentos e oitenta e seis mil e dez réis), de todo o bem deixado em herança. 26 E por fim, Antônio José de Oliveira Lomeu, com um montante de 343:329$200 (trezentos e quarenta e três contos, trezentos e vinte e nove mil e duzentos réis), com 62 escravos, levou apenas 5 para batizar, 4 (80%) naturais consignados pelo vigário e 1 (20%) presumivelmente natural. Percebe-se que sua escravaria era velha, pois o número de escravos em relação ao número de batizados perfaz um total de apenas 8,3%, levando a deduzir que era uma escravaria de baixa reprodução natural. Tabela 5 Distribuição de proprietários por escravos levados ao batismo, Muriaé (1852-1888). nº de pres. nat. pres vezes nat. % consig % legit. %.leg. % ind. % total % 1 e 2 42 51,9 253 38,4 52 25,9 3 42,9 2 50 352 37 3 e 4 12 14,9 87 13,2 18 8,9 0 0 1 25 118 12,4 5 e 6 16 19,8 91 13,9 23 11,4 1 14,3 0 0 131 13,8 7 e 8 6 7,4 31 4,7 10 4,9 0 0 0 0 47 5 9 e 10 2 2,4 62 9,4 20 9,9 1 14,2 1 25 86 9,1 11 e 13 2 2,4 28 4,3 29 14,4 0 0 0 0 59 6,1 15 e 18 0 0 56 8,5 25 12,3 0 0 0 0 81 8,5 22 e 34 1 1,2 50 7,6 25 12,3 2 28,6 0 0 78 8,1 total 81 100,0 658 100,0 202 100,0 7 100,0 4 100,0 952 100,0 Fonte: Livros de batismo da freguesia São Paulo do Muriaé, 1852-1888. Após esta breve exposição para o primeiro tópico, podemos não concluir, mas aferir indícios de que independente da existência de uns poucos casos em que a riqueza do proprietário não interferia de forma sistemática na legitimidade e ilegitimidade dos filhos de escravas, ainda é cedo para tomarmos São Paulo do Muriaé como expressão do tema para 24 Inventário de João Francisco de Cerqueira. Cartório do 1º Ofício Cível, Muriaé, maço nº 25. 25 Inventário do Desembargador Antônio Augusto da Silva Canêdo. Cartório do 1º Ofício Cível, Muriaé, maço 55. 26 Inventário de João Carlos de Souza e sua mulher D. Rosa Maria de Jesus. Cartório do 1º Ofício Cível, Muriaé, maço 98. 10

uma análise mais ampla. Ou seja, quando se tomam casos particulares, não há dúvidas quanto ao fato de terem existido pequenas escravarias nas quais se observava a presença exclusiva de filhos legítimos, assim como de grandes nas quais predominavam os filhos naturais. Preferimos então finalizar esta etapa com os dizeres do professor Iraci del Nero da Costa, acreditamos que futuramente sejam dedicados estudos a um conjunto de casos específicos com vistas a tipificar os distintos perfis de plantéis 27, e aí, quem sabe, em menos tempo do que o imaginado, poderemos atribuir conclusões mais sólidas, não apenas para Muriaé, mas também para a Capitania e Província como um todo. 1.1 - Condição social dos compadres e comadres 28 Ao passar para a análise da condição social dos padrinhos notamos que nos casos de batismo presumivelmente natural, os padrinhos escravos aparecem em 43 ocasiões (53,09%), assumindo a maioria dos batismos nesta categoria, e os padrinhos que possuíam a condição livre, em 38 registros (46,91%). Se usarmos o critério de soma das duas variáveis, presumivelmente natural e natural consignado pelo vigário, esta posição inverte, ou seja, as crianças ilegítimas terão padrinhos escravos em 281 (38,02%) dos casos; e os livres 441 (59,67%). No caso das crianças legítimas a situação tem uma pequena alteração para os padrinhos escravos e livres, 91 (45,04%) e 107 (52,98) respectivamente, permanecendo, mesmo não somando as duas variáveis, a superioridade de padrinhos livres. Em apenas 14 batismos de padrinhos escravos, o vigário especifica como pertencente à outra escravaria, um número pequeno para fazermos maiores análises. Na condição presumivelmente legítima, só consta o nome do pai, há uma estabilidade entre os números, ou seja, 3 casos, (42,86%) de padrinhos escravos e 3 casos, (42,86%) de padrinhos livres. Somando as duas categorias, obtemos 94 (44,97%) para os padrinhos escravos e 110 (52,63%) de padrinhos livres, tendo novamente a superioridade de padrinhos livres. O que nos leva a concordar com Stuart B. Schwartz, (...) para os cativos, possuir um padrinho ou compadre livre nas imediações, significava vantagens que podiam sobrepujar as associações íntimas ou o desejo por laços familiares mais amplos que levariam à escolha de outros escravos. 29 Como a grande maioria dos padrinhos da localidade pesquisada era livre, podemos então deduzir que ter a proteção de alguém de classe tida como superior a do batizando, era um meio de garantir uma ascensão social via apadrinhamento como também uma forma de garantir a priori uma vantagem para o futuro dos filhos, ou mesmo uma forma de liberdade na pia batismal. Ao contrário dos dados apresentados para São Paulo do Muriaé, Ana Lugão Rios constatou para Paraíba do Sul, 48,6% dos casais de padrinhos eram cativos, em finais do século XIX. Cerca de 18% dos batismos, pelos menos um dos padrinhos eram escravos e apenas 0,32% os senhores foram padrinhos de seus cativos. A mesma autora ainda ressalta que há diferenças entre estes vínculos de compadrio, variando de acordo com o tamanho das unidades produtivas. Nas maiores propriedades rurais, os vínculos de apadrinhamento formavam entre as comunidades escravas. Nas escravarias urbanas, a predominância de 27 Extraído de diálogo efetuado por via internet, no dia 24 de maio de 2005, às 17h04min. 28 Mesmo sabendo que possuir sobrenome não era próprio somente das pessoas originárias da camada dos livres, utilizamos o critério de considerar livre quem apresentava esta característica no registro, em alguns casos os vigários anotam a categoria social. 29 SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 332 11

padrinhos livres, se deu, segundo a autora, em atividades desenvolvidas pelos escravos nestas áreas, possibilitando-lhe maior mobilidade, facilitando o maior convívio entre os indivíduos de camada social superior. 30 Em São Paulo do Muriaé, a tendência foi escolher padrinhos livres, sendo uma forma facilitada pelo estreito convívio entre livres e escravos. A partir de pesquisas em arquivos paroquiais de várias localidades e época, podemos concluir que os apadrinhamentos de escravos nos levam a diversas evidências e opções. Stephen Gudeman e Stuart Schawrtz demonstram que no Recôncavo baiano, no século XVIII, o vínculo senhor-escravo representa um marcante contraste baseado na espiritualidade, seguindo as proporções: os padrinhos eram livres, forros e escravos em 70%, 20% e 10% dos casos, respectivamente. Nas várias culturas predominavam os padrinhos de status social igual ou mais elevado que seus afilhados, não aparecendo o proprietário do escravo batizado, em nenhuma ocasião como padrinho do cativo. 31. Os autores alegam que a pequena presença dos proprietários batizando seus cativos poderia ser uma opção dos próprios escravos em não ter como padrinho seus senhores. 32. Sílvia Maria Jardim Brügger, ao fazer uma análise de apadrinhamento de cativos em São João Del Rei, 1730-1850, constata que existia um amplo predomínio de homens livres a apadrinharem filhos de cativas, variando entre 62%. Conclui ainda, que em apenas 150 casos, ou seja, 1,1% das crianças cativas, batizadas entre 1736 e 1850, foram apadrinhadas por seus senhores. 33 Márcia Cristina de Vasconcellos, em estudos feitos nos batistérios de Angra dos Reis, no século XIX, uma região não agro-exportadora do Rio de Janeiro, chegou à conclusão que os escravos apadrinhavam a maioria dos cativos, 473 (91,6%) e apenas 37 deles (7,2%) tinham como padrinhos livres. 34 Maria de Fátima Rodrigues das Neves, ao analisar o compadrio de escravos de São Paulo, no século XIX, apresenta a maioria dos escravos sendo batizados por livres e na grande maioria os homens serviam de padrinhos de crianças escravas, estendendo laços familiares a pessoas mais qualificadas socialmente, que os proprietários em raras oportunidades servia como padrinhos de seus escravos. 35 Na região de Inhaúma, Rio de Janeiro, na primeira metade do século XIX, José Roberto Góes também concluiu que os senhores nunca apadrinhavam seus cativos. Dos batizandos escravos, 66,6% tinham como padrinhos outros escravos, os escravos reunidos em plantéis menores buscavam padrinhos, via de regra, em cativos de outros senhores, e o inverso se dava nos maiores. 36 Na Paróquia analisada em 22 casos (2,31%) aparece o proprietário como padrinho, um número superior ao encontrado pelos autores citados acima, e ainda uma forte presença de parentes dos senhores apadrinhando, pois é visível o número de sobrenomes idênticos dos 30 RIOS, Ana Lugão. Família e transição. Dissertação de Mestrado. UFF: Niterói, 1990. p.47-63. 31 GUDEMAN, Stephen; SCHWARTZ, Stuart. Purgando o pecado original: compadrio de escravos na Bahia no éculo XVIII. (org) REIS, João José. Escravidão e invenção da liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. p.33-59. 32 GUDEMAN; SCHWARTZ (1988) Idem, ibidem. 33 BRÜGGER, Sílvia Maria Jardim. Compadrio e escravidão: uma análise do apadrinhamento de cativos em São João Del Rei, 1730-1850. XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP. Caxambu-MG, 20-24 de setembro de 2004. p.3, 4,5 e 6. 34 VASCONCELLOS. Márcia Cristina. Que Deus os abençoe.batismo de escravos em Angra dos Reis (RJ), no século XIX. p.7-27.história e perspectivas. Revista dos cursos de História. Universidade Federal de Uberlândia, 1997. 35 NEVES, Maria de Fátima Rodrigues das. Ampliando a família escrava: compadrio de escravos em São Paulo do século XIX. História e População. Estudos sobre a América Latina-ABEP/IUSSP/CELADE.São Paulo, 1990, p.241 e 243 36 GÓES (1993) Op. Cit. p. 78 12

padrinhos e senhor, remetendo-nos a um amplo relacionamento entre cativos senhores e parentes dos senhores. Ana Maria Lugão Rios, ao estudar Paraíba do Sul, no Rio de Janeiro, para os anos de 1871 a 1888 apresentou resultados diferentes de Gudeman e Schwartz, percebendo uma maior participação dos escravos apadrinhando escravos; este fator estava ligado ao tamanho dos plantéis. 37 Sidney Pereira da Silva conclui, assim como Ana Lugão, que em Valença, região de alta concentração de escravos, houve uma alta predominância de padrinhos serem escravos, num total de 51,73% para os padrinhos e 53,56 % para as madrinhas, sendo nula a presença dos senhores apadrinhando. 38 Com um trabalho pioneiro para a região, Miridam Britto Knox Falci faz uma análise na Província do Piauí nos séculos XVII e XIX em cinco (5) freguesias, levantando um total de 5.273 escravos, concluiu que cerca de 70% dos padrinhos eram homens livres, sendo livres também em sua maioria as madrinhas, com raras exceções entre padrinhos e madrinhas de grupo social distinto. Para a localidade de Picos, percebe-se um pequeno decréscimo, chegando a 60%. 39 Tarcísio Rodrigues Botelho, estudando os arquivos paroquiais de Montes Claros, durante o século XIX, constatou que os padrinhos livres de ambos os sexos sempre ultrapassaram a metade do total, chegando a 80% em determinados momentos. E assim, como alguns autores acima referiram, os escravos não outorgavam aos senhores batizarem seus filhos, contudo os parentes dos senhores apareciam apadrinhando de 8% a 16% conforme o período. 40 As pesquisas de Sheila de Castro Faria nas freguesias de São Gonçalo, São Gonçalo de Campos dos Goitacazes e São Salvador dos Campos dos Goitacazes, entre os séculos XVII a XIX, uma região caracterizada por grandes unidades produtivas, indicam um predomínio de padrinhos legítimos serem escravos, cerca de 85,6%, tanto do mesmo dono, quanto de donos diferentes, na primeira freguesia mencionada. Na segunda, no século XVIII, os filhos legítimos tiveram 63,3% de padrinhos escravos. 41 Em São José do Rio de Janeiro, no início do século XIX, Roberto Guedes Ferreira concluiu que os filhos naturais, 51,2% tiveram padrinhos livres, 38,4% escravos e 10,4% forros. Entre as mães que tiveram mais de três filhos, retorna como escolhido, um padrinho anterior. 42 A freguesia do Senhor Bom Jesus do Rio Pardo, localizada na Zona da Mata Central, foi analisada por Jonis Freire, que constatou dados muito próximos aos apresentados na freguesia São Paulo do Muriaé. No decorrer de 1838 a 1888, livres, escravos e forros apadrinharam os inocentes em 69,2%; 30,6% e 0,2% dos casos respectivamente. 43 Poderíamos enumerar vários outros trabalhos que tem como foco de pesquisa as relações sócio-parentais desenvolvidas na pia batismal, entre todas as camadas sociais, e que 37 RIOS (1990) Op. cit. p.113 e 116. 38 SILVA, Sidney Pereira da. As relações sócio-parentais entre escravos: o batismo de escravos em Valença, província do Rio de Jeneiro (1823-1885). Dissertação de Mestrado. USS: Vassouras, 2005. 39 FALCI, Miridan Britto Knox. Escravos do sertão: demografia, trabalho e relações sociais. Piauí 1826-1888. Teresina: Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 1995. 40 BOTELHO, Tarcísio R. Famílias e escravarias; demografia e família escrava no Norte de Minas Gerais no século XIX. Dissertação de Mestrado. FFLCH, USP, São Paulo, 1994. 41 FARIA (1998) Op. cit. 42 FERREIRA, Roberto Guedes. Na pia batismal. Família e compadrio entre escravos na freguesia de São José do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX). Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 2000. 43 FREIRE (2004) Op. cit. p.16 13

versam conclusões distintas. 44 Todas elas contemplam uma ampla participação comunitária permeada entre alternativas de sociabilidades e por alguns momentos ultrapassava a organização terrena e passava para o campo espiritual. Em Muriaé estas estratégias também existiram e foi possível percebê-las. Os forros apadrinham apenas as crianças naturais, num total de 6 casos, o que nos leva a deduzir que os pais escolhiam nesta categoria pessoas de uma condição social superior. Na categoria não pertinente, insere os padrinhos não carnais, por serem santos, em apenas um caso aparece como padrinho São Paulo, inclusive padroeiro da freguesia, e uma criança que além de um casal de padrinhos, os pais adotam como protetor o Mártir São Sebastião, número que será maior com relação à condição social das madrinhas, que analisaremos abaixo. Por duas vezes aparece apenas o nome do padrinho e nenhuma madrinha: Crispim, batizado em 09/11/1855, filho de Francisca escrava, tem como padrinho Isidoro escravo; Constâncio, batizado no dia 11/12/1864, é apadrinhado por Justiniano escravo, proprietário de José Correa; e por fim um caso em que aparecem dois padrinhos, Romão, nascido em 18/05/1882 e batizado no dia 19/06/1882, foi apadrinhado por Francisco Ciliberti e Nicolão Antônio Lomeu, ambos livres. Demonstrando assim, como Stuart B. Schwartz, que a figura do padrinho era muito mais importante do que a madrinha, possibilitando aos afilhados uma maior promoção social. Tabela 6 Condição social dos padrinhos segundo a legitimidade dos batizandos, freguesia São Paulo do Muriaé, 1852-1888. Condição social do padrinho Legitimidade esc. % forro % livre % não % Ilegi- % n/c % total % pertinente vel pres.natural 43 53,09 0 0 38 46,91 0 0 0 0 0 0 81 100,00 nat.cons. 238 36,17 6 0,91 403 61,26 1 0,15 1 0,15 9 1,36 658 100,00 vigário legítimo 91 45,04 0 0 107 52,98 0 0 0 0 4 1,98 202 100,00 pres.legít, só 3 42,86 0 0 3 42,86 0 0 0 0 1 14,28 7 100,00 consta o pai indefinido 3 75,00 0 0 0 0 0 0 0 0 1 25,00 4 100,00 Fonte: Livros de batismo da freguesia São Paulo do Muriaé, 1852-1888 Para a variável madrinha, encontramos praticamente os mesmos padrões dos padrinhos, com mínimas diferenças, ou seja, os de condição presumivelmente natural têm como madrinha 43 escravas (53,09%), enquanto as madrinhas livres aparecem 33 vezes (39,20%), diminuindo um pouco os números relacionados às variáveis para os batismos presumivelmente natural, consignado pelo vigário, que tem como madrinhas escravas 243 (38,50%) aumentando as madrinhas livres para 366 (55,69%) dos casos. Somando novamente as duas variações, presumivelmente natural e natural consignado pelo vigário, teremos uma 44 Iraci Del Nero da, SLENES, Robert W. e SCHWARTZ, Stuart B. A família escrava em Lorena (1801). Estudos Econômicos, 17:2 mai./ago. 1987.. BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Viver e sobreviver em uma Vila Colonial: Sorocaba, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Amablume/Fapesp, 2001. HAMEISTER, Martha Daisson. Na pia batismal: estratégias de interações; inserção e exclusão social entre os imigrantes e açorianos e a população estabelecida na Vila de Rio Grande, através do estudo das relações e compadrio e parentesco fictício. In: As famílias, os amigos e os negócios: a utilização de fontes seriadas no estudo de relações pessoais de comerciantes de animais no continente do Rio Grande de São Pedro nos três primeiros quartéis no século XVIII. II Seminário de História Quantitativa e Serial. Belo Horizonte, 2001. MACHADO, Cacilda. Casamento e compadrio. Estudo sobre a relações sociais entre livres, libertos e escravos na passagem do século XVIII para o XIX (São José dos Pinhais PR). XIV Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP. Caxambu, 2004. 14

superioridade de madrinhas livres, qual seja, 399 dos casos (53,99%) e 287 (38,83%) para madrinhas escravas. Os filhos legítimos tiveram por 93 vezes (46,05%) madrinhas escravas, madrinhas livres aparecem por 100 vezes, ou 49,50% dos batismos, os presumivelmente legítimos, só consta o nome do pai aparecem por 4 ocasiões (57,14%) madrinhas escravas, e em 3 vezes (42,85%) madrinhas livres. Ao usarmos novamente a soma das variáveis continuaremos tendo uma superioridade de madrinhas livres, 103 (49,28%) dos casos, para 97 (46,41%) de madrinhas escravas. Comparando os dados dos padrinhos e madrinhas, percebemos que existe uma superioridade entre padrinhos livres em batizados de crianças filhas de mães naturais (59,67%), seguido de padrinhos livres para filhos legítimos, 399 (53,99). O que nos afirma a ligação entre o poder espiritual e social, principalmente na figura do padrinho livre. As madrinhas forras ultrapassam aos padrinhos forros e amadrinham em sua maioria os filhos naturais consignados pelo vigário, num total de 12 (1,85%), nos remetendo, novamente, a escolha preferencial por padrinhos de categoria superior ao do batizado. Para confirmar esta hipótese, levantamos a presença ou ausência dos apadrinhamentos, e independente de ser madrinhas carnais ou protetoras espirituais, elas estavam ausente em 18 batizados (1,89%), e o padrinho ausente em apenas 8 deles (0,84%) Embora não seja convencional e legal, aparecia esporadicamente santos e padres fazendo esta função, como uma forma de introduzir o sagrado dentro da família. Na tabela número 7, observamos a superioridade das santas servindo de madrinha em uma proporção muito superior ao padrinho, o que nos faz crer que a idéia de sagrado é, introduzido através de madrinhas e não através dos padrinhos, pois estes tinham um papel muito importante na sociedade, talvez tão relevante que o cargo não poderia ser preenchido por um santo. 45 Em 26 batismos, 2,73% do total, trazia uma como santa, em 23 casos, 88,46% tem como madrinha Nossa Senhora, 2 (7,69%) Nossa Senhora do Rosário, e 1 (3,84%) Nossa Senhora da Conceição. Para Renato Pinto Venâncio, esta seletividade, madrinha no céu e padrinho na terra, correspondia a uma singular desvalorização da mulher. Ou seja, o compadrio era utilizado como um meio de acesso aos bens materiais e simbólicos. 46 Para Muriaé notamos que poderia além dessa desvalorização ao sexo, ser um agradecimento a uma graça alcançada, ou mesmo falta de padrinhos e madrinhas durante o ato. Desta forma, assim como Mônica Ribeiro de Oliveira, notamos que a lógica do compadrio assentava-se tanto no poder econômico das partes envolvidas, como principalmente, no prestígio e status que podiam ser auferidos da relação. 47 Elucida ainda, uma relação de dependência entre os membros envolvidos, como dívidas, dependência de favores, etc. 45 RAMOS, Donald. Teias sagradas e profanas. O lugar do batismo na sociedade de Vila Rica durante o século do ouro. Revista Varia História. Belo Horizonte, nº 31 p.1-286, janeiro, 2004. p.66 46 VENÂNCIO, Renato Pinto. A madrinha ausente: condição feminina no Rio de Janeiro,1795-1811. In: COSTA, Iraci Del Nero da. Brasil: história econômica e demográfica. São Paulo: IPE/USP, 1986.p. 95-102. 47 OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Negócios de famílias. Mercado, terra e poder na formação da cafeicultura mineira 1780-1870. Bauru, São Paulo: Edusc; Juiz de Fora, Minas Gerais: Funalfa, 2005. p.l75. 15

Tabela 7 Condição social das madrinhas segundo a legitimidade dos batizandos, freguesia São Paulo do Muriaé, 1852-1888 Legitimidade esc % forro % livre % Condição social da madrinha não pertinente % ilegível % n/c % total % pres.natural 44 53,10 1 1,00 33 39,20 2 2,00 0 0 5 4,70 81 100,00 nat. consig.vigário 243 38,50 12 1,85 366 55,69 21 3,20 0 0 5 0,76 658 100,00 legítimo 93 46,05 4 1,98 100 49,50 2 0,99 0 0 3 1,48 202 100,00 pres.legít, só consta o pai 4 57,14 0 0 3 42,85 0 0 0 0 0 0 7 100,00 indefinido 1 25 0 0 2 50,00 1 25,00 0 0 0 0 4 100,00 Fonte: Livros de batismo da freguesia São Paulo do Muriaé, 1852-1888. Embora as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia trouxesse algumas normas a seguir, nem sempre foi cumprida. Mandamos que no Baptimo não haja mais que um só padrinho, e uma só, madrinha, e que não se admittão juntamente dous padrinhos, e duas madrinhas;os quaes, padrinhos serão nomeados pelo pai, ou mãi, ou pessoa, a cujo cargo estiver a criança(...) E não poderão ser padrinhos o pai, ou mãi do baptizado, nem também os infiéis, hereges, ou públicos excommungados, os interdictos, os surdos, os mudos, e os que ignorão os princípios de nossa Santa Fé; nem Frade, Freira, Cônego Retrante(...). 48 Constatamos que durante cinco vezes, o padre José Delfino César, aparece como padrinho de batismo, sendo todos os cinco filhos legítimos de casais livres. Inclusive em um registro, o dito padre apresenta como padrinho e celebrante. Surgiu então a pergunta: como ele aparecia burlando a lei canônica e o porquê de não se apresentar também como padrinho de escravos? Podemos alegar que apadrinhava crianças da elite local e nunca de escravas, o que leva-nos a crer que, até mesmo por parte do vigário havia uma desvalorização ao escravo. Seguindo a trajetória de tal padre, tivemos uma outra pista, pois ele mesmo apareceu alforriando na pia batismal cinco crianças de sua escrava. Surgiu aí outra pergunta: qual a ligação entre este padre e essas crianças? E por que alforriá-las se não apadrinhava este grupo em nenhum batismo? Seria uma forma de compensar algum ato ilícito? É o que veremos a seguir. 1.2 Celibato e bastardia: um estudo de caso Aos vinte e sete de março de mil oitocentos e setenta e oito, o Reverendo Vigário José Dias Henrique,de licença parochial batizou solenemente e pôs os Santos Óleos ao inocente Olavo, nascido à 13 do corrente, filho natural de Constança, preta, escrava do vigário José Delfino César, ficou plenamente livre, como nascido de mulher livre. Foram padrinhos Eleutério Dias Duarte e Rita. José Dias Henrique 49 Este é um dos cinco casos em que o padre José Delfino César, o vigário que mais batizava na freguesia, proprietário da escrava Constança, aparece alforriando os filhos de sua cativa na pia batismal. Apesar de o inocente ter sido batizado após a Lei do Ventre Livre em 1871, e segundo a mesma, os ditos filhos menores (ficariam) em poder e sob a autoridade 48 CONSTITUIÇÕES (1707) Op. cit. Título XVIII, & 64. 49 Livro de Batismo de escravos. pág. 13 16

do senhor de suas mães, os quais (teriam) obrigação de criá-los e trata-los até a idade de oito anos completos e ao atingir esta idade, o senhor da mãe (teria) a opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos 50, foi instituído imediatamente a liberdade do recém-nascido na celebração do batismo. Durante nossas pesquisas, essas alforrias nos instigaram a procurar novas pistas sobre a trajetória do padre com o objetivo de encontrar algum dado sobre uma suposta paternidade do mesmo. Assim descobrimos no livro 1a de batismo, que além das alforrias concedidas pelo sacerdote, o mesmo aparecia apadrinhando quatro inocentes livres. Achamos então ser necessárias novas garimpagens para averiguar a possibilidade de existir uma maior afinidade entre eles. Recorremos, ao 1º Cartório Cível do Fórum de Muriaé, e após vários dias de pesquisa, num final de tarde de intenso calor, encontramos o que tanto procurávamos: o inventário do Padre José Delfino César e o seu testamento em anexo. Apresentavam na borda do documento rastros de queimada, felizmente nada que comprometesse a leitura do mesmo. À medida que íamos folheando, descobríamos sua riqueza e assim, verificamos que em seu testamento, na página 9, o escrivão do 2º ofício da Comarca de Muriahé, José Theodoro Pires, fazia saber que o padre reconhecia em cartório a paternidade de quatro filhos legítimos, não aqueles que haviam alforriado na pia batismal, mas os filhos de uma exescrava, de nome Theresa, entretanto batizados como livres, no qual transcrevemos abaixo: Certifico que revendo os livros de notas em cartório a meu cargo, em um delles a do numero des em as folhas tres e verso deparei com a escriptura de perfilhação que faz o vigário José Delfino Césár aos menores Vicente, Maria, Victorina e Sophia, apareceu como outorgante o Vigário desta freguesia Padre José Delfino César, e por elle foi dito a mim e os testemunhas abaixo assinados, que sendo já clérigo de ordem sacra, houvera quatro filhos por nome Vicente, Maria, Victorina e Sophia, em Thereza, mulher solteira e a quem elle outorgante deo liberdade antes do nascimento dos nomeados acima; os quaes ditos seus filhos a saber, Vicente, nascido a dezoito de julho de mil oito centos e sessenta e sete, batizado a quinze do mesmo anno, sendo padrinhos Alferes João Honório de Magalhães e Dona Maria José Ferreira, sendo o sacramento ministrado nesta Freguesia de São Paulo, Maria nascida a vinte e um de Agosto de mil oito centos e sessenta e oito e batizada a oito de setembro do mesmo anno, nesta mesma Freguesia, sendo padrinhos Manoel José Ferreira e Dona Maria Albina Dias, Victorina, nascida a onze de Outubro de mil oitocentos sesenta e nove e batizada a trinta de Outubro do mesmo anno, nesta mesma freguesia, sendo padrinhos Anacleto Rodrigues Cordeiro e D. Maria Luíza de Jesus e Sophia nascida a vinte e sete de Janeiro de mil oito centos e setenta e um e batizada a dois de Fevereiro do mesmo anno, neta freguesia, sendo padrinho Vicente José Pereira e D. Anna Maria de Jesus e é vontade delle outra parte perfilhalos como com effeito por esta perfilha-os plena que elles passão ser herdeiros e a gozar de todas as honras e prerrogativas, como se legítimos fosem, perfilhação que faz por não lhe ser proibido e não ter herdeiros forçados presentemente. 51 (grifo nosso) Notamos que no documento é especificado o nome, a data de nascimento, a data de batismo e nome dos padrinhos dos quatro filhos. Dois deles batizados como mandava o regulamento, sendo levados a pia batismal, antes do oitavo dia de vida. 52 Cruzando os dados da certidão de perfilhação e as atas de batismos, constatamos que somente o batizado de Sophia, sua última filha, é que aparece registrado no livro adequado, 50 ANDRADE, Rômulo Garcia de. Ampliando os estudos sobre a família escrava... Revista Universidade Rural, Série Ciências Humanas.Vol, 24 (1-2):101-113, jan/jun, 2002. 51 Testamento do Vigário José Delfino César. Maço 131. p.9. Fórum de Muriaé. 52 CONSTITUIÇÂO (1707) Op. cit. Título XI. & 36 17

ou seja, de livres, porém com algumas diferenças nos dados. No livro de batismo a celebração do sacramento foi no dia 08/04/1871, no livro cartorial 02/02/1871. Seus padrinhos no livro de batismo foram Vicente Rodrigues Vasconcelos e Ana Rodrigues Vasconcelos, na certidão de perfilhação Vicente José Pereira e D. Anna Maria de Jesus. Deixando-nos claro que não existia uma preocupação em nomear datas e nomes com maior precisão, o que consequentemente, dificulta nossas análises. Uma outra resposta ao fato de aparecer apenas Sophia registrada no livro de batismo, pode estar ligada ao fato de que todos os intervalos genésicos entre os três primeiros filhos serem de um ano. O nascimento de Sophia é o único que há um intervalo de dois anos. A filha anterior a ela, Victorina, nasceu no dia 11/10/1869 e Sophia 27/01/1871, o que nos instiga a pensar que pode ter existido algum natimorto neste intervalo, ou mesmo a mãe ter passado um tempo maior amamentando, o que poderia levar a não fertilização. Registrar Sophia como manda seria uma forma de livrá-la de algum castigo divino? Ou na realidade o padre era displicente a ponto de anotar apenas um batismo no livro? As pistas colhidas nos fazem acreditar que o fato de não aparecer registrado no livro de batismo os filhos Vicente, Maria e Victorina, seus três primeiros filhos, pode estar ligado não apenas à idéia de esquecimento, mas em não os exporem por demais. Anotá-los no livro seria uma forma de torná-los público, e a existência de um padre que não cumpria o celibato, ou seja, o adultério e/ou qualquer relação sexual ilícita e prolongada, 53 poderia lhe custar algumas sanções, mesmo sabendo que a castidade não era uma preocupação séria do clero colonial, nem da população em geral naquele momento histórico 54 e consequentemente no Brasil Império. Sabemos que muitos eram os religiosos que acabavam se envolvendo em concubinato, porém tais casos poderiam ser julgados pelos bispos. As penas para estes casos poderiam passar por admoestação ou advertência, com pagamento de multa ou até degredo na África. O castigo poderia variar conforme a freqüência e forma dos casos. A mulher envolvida com o clérigo, teria uma maior penalidade do que aquela que envolvia com uma pessoa leiga, que teria uma punição mais conveniente, considerando a qualidade da pessoa, e circunstância do crime. 55 Para Maria de Fátima R. das Neves, um padre que não tinha bens a legar não se preocuparia em reconhecer legalmente seus filhos, pois já eram consequentemente aceitos pela sociedade. 56 Recorrendo ao inventário do padre, falecido em 26/02/1990, aberto em 03/03/1890, para averiguar tais dados, notamos que era ínfimo materialmente o que possuía a não ser duas casas de vivenda, uma com terraço na frente, coberta de telhas tendo como apêndice uma hermida; outra assoalhada, coberta de telhas, com fundos para a Armação, hoje Avenida Constantino Pinto, localização central da cidade, no valor de 4:000$000 e 2:000$000, respectivamente; e os móveis, uma mesa redonda em mal estado, um catre tosco, uma mesa quadrada; num valor total de 15$000, ainda 180$000 em dinheiro, e uma dívida passiva de 2:120$000. Dívida esta maior que o preço de uma casa que possuía. Enfim, o padre José Delfino César reconheceu a paternidade de seus filhos, mesmo não tendo muito que deixar como herança, o que encaminha nosso raciocínio para confirmar uma intensa relação amorosa entre esta família. 53 SILVA. Maria Beatriz Nizza da. Sistemas de casamento no Brasil colonial. São Paulo: T.A.Queiroz: Ed. USP, 1984. p.43 e 44 54 NEVES, Maria de Fátima R. das. O sacrilégio permitido: filhos de padres em São Paulo Colonial. In: MARCÍLIO, Maria Luíza (org) Família, mulher, sexualidade e Igreja na história do Brasil. São Paul: Edições Loyola, 1993. p.135. 55 CONSTITUIÇÔES (1707) Op. cit. Título XXIV. 56 NEVES (1993) Op. Cit. p.139 18

Concluímos assim, que apesar de haver uma preocupação do vigário José Delfino César em esconder sua concubina que vivia portas a dentro, este apresenta-nos uma relação estável, pois viveram no mínimo seis anos numa relação de intimidade em que houve procriação. O fato de apadrinhar inocentes livres mostra que havia um reconhecimento social do vigário, mas ao mesmo tempo era acobertado pelos fiéis em sua situação de ser clérigo e possuir mulher e filhos. Quadro 1 Variação de vigários que celebram o sacramento do batismo de filhos de mães escravas, São Paulo do Muriaé, 1852-1888. José Delfino César 593 Honório Fulgino de Magalhães 146 Antônio Caetano Fonseca 94 Antônio Bento 56 José Felício Mertoon 11 Maximiano José da Silva Castro 9 Manoel José Ferreira 8 Francisco Sabino Philo 7 José Justino Paes Manoel 6 João José de Souza 6 Caetano Maria Romanelli 4 Ambrósio Amancio de Sousa Coutinho 3 Mariano Germanaro 2 Clarimundo Alves dos Santos Fortes 2 Pedro Maurício Aynes 1 Luiz Lopes Teixeira 1 José Dias Henrique 1 Francisco Soares Azevedo 1 Joaquim Maximo da Roxa Pinto 1 Fonte: Livros de Batismos da freguesia São Paulo do Muriaé, 1852-1888. 1.3 Conclusão Apesar de existirem vários trabalhos focalizando as relações parentais e a legitimidade dos cativos via registros de batismos, estamos ainda longe de uma padronização geral para todas as escravarias das diversas regiões e épocas do país. Porém, este fato não impede de afirmarmos que vários avanços foram feitos desde as primeiras pesquisas, e nosso estudo veio fortalecer este movimento, principalmente por possuir aportes teóricos e metodológicos distintos e por ser mesclado de outras fontes cartorárias e censitárias. Extensas redes de solidariedades foram expressas nas relações de compadrio, seja por mães de filhos naturais ou legítimos, com homens e mulheres livres, escravos, libertos e até mesmo santos, constatadas via registros de batismos, mas também pelo cruzamento de inventários e testamentos, o que nos possibilitou rastrear algumas vivências cotidianas desses cativos. Assim, apesar do Sacramento Católico não ser sacramentado na grande maioria das uniões, havia um fortalecimento e convivência intensa entre pai e mãe. Os casais casados, no qual o vigário anotou sua origem, apresenta uma forte tendência à endogamia, pelo menos até o momento de ser possível fazer uma escolha, havendo uma dificuldade maior entre casamentos de crioulo com africana, do que em relação crioula e africano, atribuindo valores e ações voltados para uma superioridade masculina, o que também é evidenciado pela maioria de padrinhos em relação às madrinhas. 19

Conseqüentemente, os pais ou mesmo as mães, tinham a liberdade da escolha dos padrinhos de seus filhos, e estes, utilizaram de estratégias para serem beneficiados na escolha de seus compadres e comadres, seja pela alforria, seja por uma maior aceitação e reconhecimento na sociedade. Os senhores pouco apadrinhavam os filhos de seus cativos, mas em uma proporção superior aos encontrados em outras localidades, aumentando ainda mais a participação de parentes desses, criando uma ligação de valores mútuos, o que pode ser explicado por uma convivência mais próxima, seja no trabalho ou com suas famílias. Apesar de, em nível geral, predominar a ilegitimidade na localidade, o estudo de alguns casos específicos nos mostrou que independente do nível econômico de alguns proprietários, houve uma variação da legitimidade e ilegitimidade dos escravos, o que torna evidente a necessidade de uma maior análise em diversas localidades com características diversas para chegarmos a uma maior especificação do caso. 20