Processos de Criação: Atividade de Fronteira Sonia Rangel UFBA



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Transcrição:

Processos de Criação: Atividade de Fronteira Sonia Rangel UFBA RESUMO: A autora analisa as complexidades nos processos de criação, tratando-os segundo a abordagem da sociologia compreensiva de Maffesoli. Nesse contexto, a imagem articularia ação, sensação e intuição agindo como um grande operator que faz livres conexões, extrapolando o simbólico para além do psicológico, aproximando-se do jogo como invenção, intermediação entre conhecido e desconhecido no devir da poética. A autora sintetiza três imagens (A CASA, O QUINTAL e O JARDIM) como operadoras de criação em sua prática didática na UFBA. Palavras chave: processo criativo - jogo - imagem. Pertenço de fazer imagens 1 Processos de Criação, objeto desta comunicação, são aqui tratados numa abordagem compreensiva. Essa abordagem não se apresenta como única, não exclui outras possibilidades e conexões, nem se contrapõe a elas, foi a minha opção, como reconhecimento e ordenação de um longo trajeto onde o pensamento da minha criação, como artista e professora, operou articulando ação-imagem-sensaçãointuição, não necessariamente nesta ordem. Do ponto de vista da abordagem filosófica, inspiro-me no que defende Maffesoli em sua sociologia compreensiva, isto significa colocar-se dentro, em processo, em contacto, sem um pré-modelo a ser comprovado, sem um pré-conceito, numa atitude de reconhecer o que emerge ou se configura como fluxos do pensamento encarnado nas ações, princípios da criação, ou seja, compreender, na medida do possível, a invenção e a recepção para o artista da sua própria obra; e, no campo das idéias, compreender como o próprio pensamento opera com suas recorrências e originalidades. Nesse contexto princípios/propostas, processos e produtos incluem a imagem como um grande operator que faz livres conexões, extrapola o simbólico, vai além do psicológico, para aproximar-se do jogo como invenção, intermediação entre conhecido e desconhecido no devir da poética. A inclusão de poemas como textos de referência instigam uma outra forma de pensamento como fonte para artistas e teóricos pesquisarem o seu próprio pensar. 1

No descomeço era o verbo Só depois é que veio o delírio do verbo Considero, então, o pensamento, visto por esta ótica, ser também criação, que se faz numa arquitetura complexa, onde deve habitar o olhar de competência única do seu autor, ou seja, o sujeito deste olhar precisa ser convocado em sua complexidade desde o início do percurso. Não apenas lidam com a criação as pesquisas que demandam práticas em laboratórios ou atelier, mas também os trabalhos teóricos. Sem desconsiderar todas as outras modalidades de pesquisa, criar-pensar para o âmbito deste estudo vai muito além da compreensão cognitiva, de re(de)senhar idéias de outros autores ou contextualizar de um ponto de vista histórico. Não gosto de palavra acostumada A experiência dos últimos anos em participar de bancas (mestrado e doutorado) e de ensinar em dois programas de pós-graduação me faz reforçar a constatação do quanto ainda estamos reféns de certos modelos, de como é difícil para um jovem pesquisador dar conta do seu objeto sem sucumbir a enorme oferta de modelos e de novas informações, o que o força a um rápido enquadramento, abrindo mão às vezes de um olhar particular mais original. Como evitar essa atitude de pura anexação, se a academia, na maior parte, exatamente para funcionar, opera, necessita da obediência a um tipo de lógica de guarda-chuva? Esse paradoxo permanece, as idéias aqui defendidas penso que podem funcionar melhor para artistas-pesquisadores e também para pesquisadores mais insatisfeitos, ou os que desejam fazer da sensação de deslocamento/desvio um operador aliado na aventura do criar-pensar. Palavra poética tem que chegar ao grau de brinquedo para ser séria. Neste breve texto sintetizo como três imagens (A CASA, O QUINTAL e O JARDIM) foram escolhidas e utilizadas como operadores de criação. Essa experiência integrou a disciplina Processos de Encenação, obrigatória para o Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, ministrada por mim entre 2003 e 2005, na Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia. (PPGAC-UFBA) Embora ligada a um programa de pós-graduação, desejo torna-la de fácil acesso e leitura, para que possa inspirar a estudantes, interessados em arte e educação, conectar-se com a 2

potência da sua própria percepção/imaginação, compreender e organizar a sua sensibilidade, ter a coragem de olhar com os próprios olhos, exercitar o seu livre pensar em diálogo com a vida e com os textos, sem perder a curiosidade pelo novo nem sucumbir ao campo do não saber. Preciso do desperdício das palavras para conter-me. Na ementa, a referida disciplina em sua última versão (2005) 2, estabelece relações com os projetos de pesquisa individuais, propondo uma reflexão sobre os processos de encenação enquanto processos de criação, oferecendo subsídios teóricos para identificar e desenvolver os campos de conhecimento que cada projeto instaura, levantando questões emergentes e pertinentes a cada um. Nos objetivos se propõe a estimular o pensamento criador através da reflexão sobre experiências e métodos em processos de criação, estabelecendo relações com os projetos de pesquisa individuais, tanto de caráter teórico como de caráter prático-teórico, nas artes cênicas. Dois pontos principais marcam o modo de abordagem: o processo criativo como instaurador do pensamento, tanto para teorias como para práticas, e o objetoobjetivo individual como o topos de reconhecimento dos princípios e das operações que convocam os seus acompanhantes. Desaprender oito horas por dia ensina os princípios. Necessário se faz uma delimitação do que aqui se denomina PRINCÍPIO. De caráter molecular, unidade viva de obra e pensamento, permite em suas operações conectar tempos e espaços libertos de hierarquias e cronologias. PRINCÍPIO para esta metodologia é equivalente ao que Calvino descreve em seu Seis Propostas para o Próximo Milênio (leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade). É aquela unidade molecular que ao ser retirada da obra e do seu pensamento lhe esvazia sentido, configuração, vitalidade. Nesse modo de pensar Princípio e/ou Proposta conservam a natureza vital do jogo, diferem de um Conceito. Um conceito pré-existe, é modelante do objeto, geralmente aplicado como didática de anexação. Um princípio opera por uma didática estética, de reconhecimento, aproximação, pulsão, desejo, compreensão, invenção. O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito. Partindo dessa delimitação do próprio princípio como método sempre perguntar: que pensamentos governam minha prática? Neste curto ensaio cito alguns 3

princípios de pensamentos e práticas numa amostragem representativa, porque, a partir de PRINCÍPIOS, os mesmos poderão ser modificados e acrescentados conforme a demanda de distintas pessoas e ocasiões. Com pedaços de mim eu monto um ser atônito. A CASA, casa-corpo-mundo-cosmos, abrigo e self, ao engendrar sua secreta arquitetura de pensamento, organiza a experiência sensível de um modo único para cada um. É bem representativo deste modo de operar a relação casa-obra em muitos autores. Como a casa para Jung 3, ou a casa em Bachelard 4, só para citar dois autores não poetas, para os quais a imagem da casa foi tão produtiva de compreensões. Os processos de criação obra-pensamento demandam reconhecer e recuperar essa experiência em seu lugar mais profundo e original. Ao indagar que pensamentos governam minha prática recupero um pensamento complexo no topos indissociável entre princípio/proposta-processo-produto, coloco-me também no território das fronteiras, lugar de mobilidade, incerteza, conflito. Para lidar com a criação, necessário se faz provocar e suportar as incertezas, não se livrar delas, produzir experiências de múltiplas tentativas, chegar aos limites, lidar com a sobra e com a sombra, com o lixo e com as perdas. Como extensão da CASA, na função aventurosa do QUINTAL, a ludicidade em rizoma indispensável de criação, o poema Uma Didática da Invenção, de Manoel de Barros é um belíssimo exemplar a ser estudado. Como função operadora de JARDIM, os PRINCÍPIOS, o que se reconhece ou se escolhe para cultivar, a flor de Zeami, entre o sólido e o insólito no corpo do ator, ou o que Barba define em sua Antropologia Teatral, como Energia, ou seja, o Pensamento, são exemplos de princípios no campo da criação cênica. Adoecer de nós a Natureza: - Botar aflição nas pedras (Como fez Rodin). Espero que as idéias aqui apresentadas possam colaborar com artistaspesquisadores ou pesquisadores sobre arte em embates com modelos que se tornam rapidamente moldes, formas que se tornam fôrmas e encorajá-los na aventura de ampliar as fronteiras do seu próprio pensar, compreendendo, respeitando, tornando visível e comunicável a maneira única na qual a experiência sensível se organiza em cada um, sem fechar-se à ampliação de um repertório em diálogo com as idéias de outros autores. Quem acumula muita informação perde o condão de advinhar: divinare. 4

Finalmente o campo da criação estética, onde os artistas se constituem como seus natos e originais pesquisadores em todos os tempos, dentro ou fora da academia, é gerador de um conhecimento singular e, como tal, precisa cada vez mais ser reconhecido, criando e afirmando no âmbito acadêmico as suas próprias referências. Certamente esse congresso é um avanço nessa direção. Que essa experiência, para mim tão aventurosa no fazer como um tentar, sempre parcial quando narrada, sirva aqui de inspiração a outros na aventura da arte e do seu estudo em muitas modalidades, trocas e dimensões. Notas: 1 Embora inclua outros poetas no âmbito da pesquisa, todas as citações que pontuam os parágrafos deste texto são do poeta Manoel de Barros, especificamente dos títulos: O Livro das Ignorãças, e Livro sobre Nada, ambos com reedições em 2004, pela Record. 2 Em resumo a proposta/programa desta versão. A metodologia opera a partir dos seguintes Princípios: 1-Considerando PRINCÍPIOS-PROCESSOS-PRODUTOS como instâncias indissociáveis e correlatas para o estudo da criação estética nas teorias, nos modos de operação e na leitura de obras; 2- Propondo o livre-pensar e o pensar por imagens como exercícios e laboratórios de construção de um pensamento criador; 3- Compreendendo e configurando o processo criativo como campo e método de pesquisa para o artista-pesquisador e para o pesquisador de arte; 4- Identificando os Princípios e os Procedimentos relacionados e instaurados nas práticas criativas realizadas anteriormente e/ou realizadas dentro dos laboratórios de criação propostos pela disciplina; 5- Considerando o processo criador uma atividade que opera na fronteira, tanto no âmbito individual como no âmbito coletivo; 6- Considerando três grandes IMAGENS: A CASA, O QUINTAL, e O JARDIM como instrumentos de operação metodológica; 7- Propõe-se uma prática e uma reflexão sobre processos de criação, buscando conectar ações a pensamentos e estabelecendo relações com os projetos de pesquisa individuais. Esses princípios se atualizam através dos seguintes Instrumentos: Leituras Dirigidas, Conversas em sala de aula, Exercícios de criação, Apresentações criativas, Conversas sobre a recepção, Produção de textos exercitando escrita e escritura. 3 Ler especialmente Memórias, Sonhos, Reflexões. Trad. Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978, livro autobiográfico produzido após os oitenta anos deste autor, onde casa, vida e obra magistralmente se entrelaçam. 4 Ler especialmente os valores no tema da casa descritos nas obras: A Poética do Espaço e A terra e os Devaneios do Repouso, ambos publicados pela Martins Fontes. Bibliografia BARBA, Eugênio. A Canoa de Papel. Trad. Patrícia Alves. Campinas: Hucitec, 1994. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o Próximo Milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cia. das Letras, 1999. 5

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs capitalismo e esquizofrenia, Vol. 1. Trad. Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34, 1995. DELEUZE, Gilles. Proust e os Signos. Trad. Antonio Carlos Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. GIROUX, Sakae M. Zeami: Cena e Pensamento Nô. São Paulo: Perspectiva, 1991. LYOTARD, Jean-François. Moralidades Pós-Modernas. Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1996. MAFFESOLI, Michel. A Contemplação do Mundo. Trad. Francisco Franke Settineri. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1995. PAREYSON, Luigi. Estética: Teoria da Formatividade. Trad. Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1993. SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado: Processo de Criação Artística. São Paulo: Annablume, 1998. Sonia Rangel é professora e pesquisadora no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia. Dúvidas sobre a TFC e como contribuir com artigos, entre em contato com o editor Rodrigo Garcez no email: kinokaos@usp.br. A revista eletrônica de Artes Cênicas, Cultura e Humanidades "TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS DA CENA" é uma produção do Grupo de Investigação do Desempenho Espetacular do PPG em Artes Cênicas da ECA-USP e do GT-ABRACE Territórios e Fronteiras. GIDE - Grupo de Investigação do Desempenho Espetacular. Departamento de Artes Cênicas - CAC-ECA-USP. Av. Profº Lúcio Martins Rodrigues,443 sala 08, Cidade Universitária, 05508-900, São Paulo-SP, Brasil, a/c Editor da TFC 6