COMUNICAÇÃO INTERDIALETAL: UM RETRATO DE DIVERSIDADES CULTURAIS MARCIA ELIZABETH BORTONE 1



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Transcrição:

COMUNICAÇÃO INTERDIALETAL: UM RETRATO DE DIVERSIDADES CULTURAIS MARCIA ELIZABETH BORTONE 1 A presente palestra recupera análises e considerações sobre a comunicação interdialetal no Brasil, pesquisa desenvolvida em minha tese de doutorado (cf. Bortone 1993) 2. O argumento central da referida pesquisa residiu no fato de a identidade sociocultural ser, em grande parte, estabelecida e mantida pela linguagem. Isso se deve não só às características históricas e ideológicas por meio das quais os grupos são estruturados, como também pelos símbolos de identidade criados que modelam e direcionam as formas discursivas que foram analisadas. A pesquisa aplicou uma metodología qualitativa, no sentido de encontrar exemplos típicos de situações chave dos eventos discursivos onde as divergências interpretativas que surgissem pudessem ser avaliadas com base em análises etnográficas e discursivas. O objetivo foi, portanto, ressaltar as inadequações interpretativas e os contextos situacionais em que ocorreram as entrevistas, além de analisar aspectos significativos desse processo interacional entre a comunidade letrada e a comunidade iletrada, para tanto, utilizou-se o embasamento da sociolingüística interacional, proposta por Gumperz (1988a e 1988b). Gumperz (1988), ao analisar os comportamentos comunicativos em interações face-a-face de caráter assimétrico, enfatiza as dificuldades de comunicação nos eventos intergrupais e suas conseqüências na determinação e manutenção das estruturas socioculturais, salientando o importante papel da flexibilidade comunicativa nesses contatos interculturais. Essa flexibilidade refere-se à capacidade de interação, no sentido de proporcionar uma compreensão satisfatória entre pessoas portadoras de padrões culturais diferentes. A flexibilidade é responsável pelo sucesso em qualquer processo comunicativo (seja verbal ou não), pois, para que ocorra, é necessário que falante e ouvinte compartilhem de certas informações sobre como o comportamento interacional deve ser produzido e interpretado, ou seja, diz respeito às estratégias discursivas usadas na interação. Esses índices operam de forma estratégica para facilitar a comunicação e foram 1-Doutora em lingüística pela UFRJ. Professora adjunta do Instituto de Letras - UnB. 2-BORTONE, Marcia.Elizabeth..Comunicação Interdialetal: um retrato de Diversidades culturais. Tese de Doutoramento apresentada à Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFRJ 1993. 250 f. (mimeo).

denominadas por Gumperz (1972) de pistas contextualizadoras. Segundo o autor, caracterizam-se como o principal objetivo da análise intercultural. A sociolingüística interacional tem encontrado nos estudos de tradição antropológica, como a etnografia da fala, critérios mais precisos para o estabelecimento de indicadores do perfil sociocultural de determinado grupo social. A etnografia, por sua vez, ocupa-se das normas que regem os comportamentos em sociedade, nas situações e eventos de fala (cf. Erickson, F. 1983.). Os obstáculos no acesso aos benefícios da língua padrão (leitura, escrita e compreensão oral adequada) das mensagens veiculadas pela norma culta pelos falantes das classes desprestigiadas no Brasil, seja em interações assimétricas ou através dos meios de comunicação de massa, contribuem para dificultar o acesso à informação e, conseqüentemente, à mobilidade social. Por outro lado, o papel das entidades educacionais e dos meios de comunicação que atuam no sentido de diminuir a distância entre os dialetos não-padrão e o dialeto do prestígio parecem não diminuir as diferenças lingüísticas que tendem a persistir mesmo em face dessa pressão para a padronização, o que força a uma reavaliação do seu significado social e comunicativo. A pesquisa desenvolveu-se na comunidade Olhos D Água, uma região rural localizada na periferia de Uberlândia MG. A comunidade pesquisada é composta, em sua maioria, de trabalhadores rurais iletrados, cujos costumes e valores caracterizam-se pela tradição e pela forte identidade grupal. São, basicamente, três fatores que atuam como força de manutenção dos costumes e tradições locais: a importância do casamento e da instituição familiar, a religião e o trabalho agrícola. Possuem pouco ou nenhum acesso à escolarização e, conseqüentemente, à mobilidade social e à língua padrão. Bott (1957) já demonstrava que ambientes muito fechados como o de Olhos D Água funcionam como mecanismo de reforço da norma local. Como conseqüência, a distinção interdialetal entre os falantes deste network e os outros grupos tende a se intensificar, de forma, ainda que inconscientemente, a preservar a cultura e os valores compartilhados pela comunidade. As divergências interpretativas que ocorreram durante as entrevistas com a comunidade referem-se a uma situação na qual a pergunta feita pelo entrevistador não se concretiza na resposta do informante. Estas divergências, tanto por parte do entrevistador quanto do informante, demonstraram que a dificuldade em manter a

fluência no diálogo é decorrente do próprio confronto intercultural a que se submete este mesmo informante em situações públicas e formais. Os problemas de comunicação concentraram-se em três grupos, a saber: divergências culturais incompreensão de itens lexicais; discurso contextualizado confronto com as normas e expectativas que regulam as práticas discursivas do falante letrado; e estratégias discursivas relações de inferências divergentes, critérios de relevância e diferenças de focalização. 1- Divergências culturais Tais conflitos resultaram, principalmente, das diferenças lexicais entre entrevistador / informante, mas os interlocutores mantiveram um comportamento de cooperação, fornecendo o esclarecimento através de um sinônimo ou de uma perífrase. Em outras situações, os informantes usaram alguns recursos, como, e.g., o silêncio e a modificação do semblante entre outros, para dissimular seus problemas de incompreensão. É importante salientar que os entrevistadores esforçavam-se para convergir sua linguagem com o intuito de atenuar as diferenças lingüísticas em suas falas, tal estratégia funcionou como um reforço positivo para manter o fluxo do diálogo. No entanto, em alguns casos, foi possível detectar nos informantes uma insegurança lingüística e/ou autodepreciação por meio da timidez e/ou do silêncio. Os casos de incompreensão aqui relatados foram selecionados obedecendo a uma seqüência básica que se constituiu de um enunciado ou pergunta, manifestação da incompreensão, clarificação e resposta, como em: Diálogo nº 1: E: Como é qu é o lazer...de vocês aqui? I: Como...? E: A diversão de vocês... I: Não tem... E: E meio de comunicação? I: (...). E: É... rádio... televisão... I: Ah... tem... Goffman (1981), argumenta que toda interação face-a-face sofre dois tipos de pressões: as comunicativas que preservam parte da transmissão das informações e as rituais que preservam mutuamente a face dos interlocutores. Estas últimas influenciam a estrutura do discurso, afinal, admitir dúvidas torna-se embaraçoso para o informante e constitui uma ameaça à preservação de sua face, daí o fato de que nem todos os informantes manifestaram suas dúvidas diante das

entrevistadoras no intuito de preservar suas imagens sociais, como se observa no diálogo seguinte: Diálogo nº 2 E-A senhora diz que sempre...está plantando...a senhora é defensora da ecologia? I-Nunca...precisa assim...respondê? E-Natureza...ecologia...qué dizê...ama a natureza...defende a natureza... I-Uai...eu amo... E-E as plantas...é para a preservação da natureza...pra conservação ou é...só por puro prazer? I- Não...eu acho assim...eu gosto...não...eu acho que a gente trata...é uma fartura...né... Assim, depreende-se que as divergências comunicativas estão intimamente relacionadas aos diversos contextos culturais dos falantes e que tal fator contribui para a manutenção do afastamento de iletrados dos meios letrados. 2-Discurso contextualizado Segundo Chafe (1985), Denny (1991), Olson (1991) e outros, apud Bortone (1993), o aspecto da contextualização é um dos fatores mais significativos para se contrapor o discurso de grupos letrados ao de grupos iletrados. Há inúmeras situações de confronto entre as práticas comunicativas do pesquisador/entrevistador letrado e as do grupo em estudo iletrado. Há, por um lado, um discurso influenciado pelos modelos de letramento, como os propostos pela escola e, que se caracteriza pela objetividade e, por conseguinte, pela descontextualização. Por outro lado, há um discurso marcado pela contextualização prática e imediata, influenciado pela tradição oral. Na pesquisa, três aspectos foram analisados referentes ao processo de contextualização nas interações, a saber: a) o uso da concretude e da subjetividade; b) a questão do envolvimento cognitivo e c) a referencialidade espaço temporal. É importante salientar que o discurso de iletrados tem como ponto central a concretude e a subjetividade, pois está relacionado a uma experiência imediata e observada e revela um uso restrito de modelos desenvolvidos pela escolarização formal, quais sejam os da generalização e abstração que caracterizam o discurso conceitual. As estratégias discursivas de reforço contextualizador dos iletrados acontecem no nível extratextual e no nível intratextual tais estratégias se assemelham às que Tannen (1988:134) apresenta, como o uso de orações coordenadas, o uso do discurso direto e o uso de dêiticos para referência demonstrativa e espacial. Suas argumentações são construídas pelo uso do

discurso descritivo e/ou narrativo, o uso da subjetividade e o envolvimento pessoal, além do uso da concretude e da demonstração no lugar da explicação. Quando se exige dos informantes dados mais objetivos, percebe-se que os mesmos constroem suas argumentações por meio de narrativas e experiências subjetivas embasadas em suas experiências de vida, revelando, deste modo, estratégias comunicativas que concretizam o assunto central através de narrações/descrições que caracterizam o modelo da oralidade, numa sucessão de acontecimentos que levam à concretude. Diálogo nº 3: E: A senhora era católica, passô para otra? I: Era católica... E: E por quê que a senhora... passô pra outra religião? I: Porque um dia... eu fui na igreja e... eu tava criando a Lícia, a Lícia tava assim... durinha já no braço... e... cê sabi... criança sempre resmunga... deu uma resmungadinha... E: É... I: Criança que não resmunga... num é sadia... num é criança... E: É... é... É verdade... I: Aí eu fui na... na igreja, cheguei lá, sentei... A menina tava: ih, ih, ih... aquele jeitim de criança. Tô sentada lá no banco... O padre viu... passô por mim... assim... ele veio falá com nós pra saí da igreja (...) eu vi qu ele vei passá por mim... ele saiu lá do artar, quando veio passá por mim... a menina num feiz mais não (...) quando ele chegô no artar, a menina tornô a fazê... Ele vortô ni mim... A senhora sai quessa menina aqui da igreja porque esses gritim da menina polu o povo... Eu saí sem graça... da igreja... tava assim de gente... Se ela tivesse chorando num esperava ele mandá, mais num tava chorando... E: E aí... E aí a senhora achô ruim ele tê falado... I: Eu achei ruim... eu falei... Eu vô passá pra crente... porque a gente vem pra igreja católica logo o padre distrata a gente... da igreja... por causa da criança... E: Mas a senhora acha que tem... Tem alguma diferença assim... Dona Maria... o qu a igreja católica pregava como... assim e a igreja crente... a senhora acha melhor agora esta outra religião? I: ((silêncio)) E: A senhora acha... Qu ela traz mais conforto pra pessoa? I: Traz mais saúde... alegria... traz... E: E a senhora tá sentindo melhó agora...? I: Tô sentindo melhó agora... graças a Deus E: Pois é... Qual que é a diferença que a senhora vê... assim... na maneira de tratá as pessoas? I: É... O pessoal crente é mais unido c a gente... ih! Num tem nem comparação pra te explicá... (Idem, p. 142-144).

Observa-se que a formação discursiva centra-se na narração de fatos concretos, nas experiências de vida do informante, ele não faz referência ao aspecto conceptual relacionado com a opção religiosa, pois constrói sua argumentação alicerçada em valores e expressões subjetivas em relação à igreja católica e a dos crentes. Além disso, o uso de orações coordenadas neste discurso é fator importante para a contextualização, (cf. Ong: 1982 e Chafe: 1988). O uso dos dêiticos é outro recurso utilizado que proporciona maior contextualização a essas práticas discursivas. Cada fato narrado corresponde a uma oração coordenada com um significado completo. Além disso, a presença do discurso direto parece ser utilizada com o intuito de convencer o ouvinte da legitimidade de seu discurso. A análise da comunicação interdialetal nos permitiu depreender o quão profunda é a diversidade cultural brasileira, refletida em suas diversas formações discursivas, enquanto caracterizadoras de um grupo/comunidade de fala, por meio das divergências comunicativas estabelecidas entre falantes de dialetos distintos no processo interacional. Com base nessas análises, fica evidenciado que os determinantes das diferenças entre falantes letrados e não-letrados estão nas condições de produção da língua e não nas características formais da mesma. Portanto, se o falante tem acesso ao letramento, ele terá maior flexibilidade lingüística, principalmente em interações com pessoas com as quais não há nenhum conhecimento prévio, uma vez que seu código lingüístico terá um grau maior de autonomia contextual, e estará pautado nas regras prescritas da norma de prestígio, que é supra-regional. Este fato tem repercussões profundas nas nações modernas, pois, se de um lado, é necessário preservar as diversas culturas aliadas à tradição oral (provérbios, rezas, repentes, danças folclóricas, etc...), por outro, torna-se também necessário reduzir a distância entre os grupos sociais para estender as oportunidades a todos. Cremos que somente por meio de análises mais aprofundadas das interações discursivas, avaliando os eventos de fala que variam de cultura para cultura e de contexto para contexto, que o pesquisador poderá dar os primeiros passos na tentativa de captar a complexidade do processo comunicativo humano. Torna-se urgente, portanto, retomar as discussões e reflexões em torno dessa diversidade lingüística no Brasil, bem como de suas influências no ensino de língua vernácula, uma vez que o educador, na maioria das vezes, tem dificuldade em lidar com os vários dialetos de seus alunos, levando-os a se sentirem humilhados por

falarem errado, quando, na verdade, suas formações discursivas refletem o meio sociocultural em que vivem. Sugere-se, pois, a implementação de um currículo bidialetal de língua vernácula em comunidades iletradas de tradição oral, embasadas em análises etnográficas e sociolingüísticas, antropológicas e interculturais, como propõe Erickson (1988) apud Bortone (1993), cujo objetivo seja o desenvolvimento de uma prática pedagógica eficaz com vistas a levar o discente a ampliar sua competência comunicativa, adquirindo uma flexibilidade lingüística que propicie sua real inserção na sociedade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1-BORTONE, M.E., (1996): Comunicação interdialetal: um retrato de diversidades culturais. In: MAGALHÃES, Maria Izabel (org.) As múltiplas faces da linguagem. UnB, Brasília. 2- BORTONI-RICARDO, S. M.(1984): Problemas de comunicação interdialetal. IN: LEMLE, Mirian (org.) Sociolingüística e ensino do vernáculo. 78/79: 9,31. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro. 3-CHAFE, W. L.(1988): Linguistic differences produced by differences between speaking and writing. Cambridge University Press. Cambridge. 105-123. 4-ERICKSON, F.(1983): Ethnographic description. In: U. Ammon, N. Dittmar and K. Matthier (eds.). An international handbook of the science of language and society 2 Berlin/New York: Walter de Gruyter.. P.1081-1085. 5-GOODY, J.(1968): Literacy in traditional societies Cambridge. Cambridge University Press.New York. 6-GUMPERZ, J. J.(1988-A): Discourse strategies. Cambridge University Press, Cambridge. 7-.(1988-B): Language and social identity: Studies in interational sociolinguistic. 2. Cambridge. University Press. New York. 8- HYMES, D.(1974): On communicative competence. In: J.B. Pride e J. Holmes (eds.) Sociolinguistics, Harmondsworth, Penguin. New York. 9-OLSON, D.R. & TORRANCE, N.(eds.)(1991): Literacy and orality. Cambridge, Cambridge University Press, New York.