MUDANÇA DE PARADIGMA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E A FORMAÇÃO DO EDUCADOR



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Transcrição:

MUDANÇA DE PARADIGMA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E A FORMAÇÃO DO EDUCADOR Maria Alice de Paula Santos O objetivo deste artigo é discutir a relação entre a formação do educador de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e a mudança de paradigma dessa modalidade, ou seja, a transformação dos conceitos: de suplência para educação ao longo da vida. Para tanto, foi analisado: a) as diferentes concepções de educação de adultos historicamente construídas que permeiam as Leis de Diretrizes e Bases: 5692/71 e 9394/96; b) as funções da EJA nas Diretrizes Curriculares Nacionais da EJA e o Parecer Nº 11 do Conselho Nacional de Educação sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais da EJA; c) os conceitos que permeiam as Conferências Internacionais de Educação de Adultos V e VI (Confintea): educação ao longo da vida e aprendizagens ao longo da vida; d) a concepção de educação popular na perspectiva freiriana; e) as discussões de um currículo específico para EJA; f) os sujeitos da EJA. À luz dessa análise é possível indicar quais saberes são necessários para que os educadores contribuam para a construção de um currículo de EJA que atenda às especificidades dos sujeitos dessa modalidade. Palavras-chave: formação de educadores; mudança de paradigma; currículo. O objetivo deste artigo é discutir as repercussões na formação inicial e na continuada do educador da Educação de Jovens e Adultos (EJA) que a mudança de paradigma nessa modalidade pode promover. Inicialmente acredita-se ser necessário esclarecer qual o conceito de paradigma adotado para este trabalho, que é o definido por Moraes (1997). Para ela, paradigma deve ser compreendido com base em um enfoque relacional, em que conceitos e teorias soberanos convivem com teorias rivais. (...) Acreditamos que a interpretação de Morin vai um pouco mais além do que a teoria de Kuhn e oferece uma idéia mais completa de evolução do conhecimento científico, que, além de crescer em extensão, também se modifica, transforma-se mediante rupturas que ocorrem na passagem de uma teoria à outra. (MORAES, 1997, p.32). À luz dessa definição é que serão analisadas as mudanças de concepções de educação de jovens e adultos que permeiam as leis 5692/71 e 9394/96; os documentos

1 das Confinteas V e VI, para entendermos quais são as implicações na formação dos educadores da EJA. A visão de suplência na Lei 5692/71 A ordem política e socioeconômica garantida pelos militares desde o golpe de 1964 exigiu, entre outras ações, ajustes na organização do ensino para a dinamização da própria economia. As leis 5540/68 e 5692/71 foram elaboradas para atender a esse objetivo. A primeira reformou o ensino superior para garantir a eficiência, modernização e flexibilidade administrativa da universidade brasileira, tendo em vista a formação de recursos humanos de alto nível para o desenvolvimento do país (SAVIANI, 2004, p. 21-22). Em consonância com esses princípios, a prática pedagógica dos estudantes formados nos cursos de Pedagogia tinha como orientação uma educação tecnicista, inspirada na neutralidade científica, nos princípios de racionalidade, de eficiência e de produtividade. Foi essa concepção de educação que conformou a organização escolar do ensino de jovens e adultos nas rígidas referências curriculares, metodológicas, de tempo e espaço da escola de crianças e adolescentes (DI PIERRO, 2005, p.1118), desprezando o saber que essas pessoas constroem ao longo de suas vidas e impossibilitando a escolha de seu percurso formativo. A segunda reformou o ensino primário e secundário com o objetivo de universalizar o ensino de primeiro grau. Para atingir a universalização desse ensino, o Plano Setorial de Educação e Cultura, parte do II Plano Nacional de Desenvolvimento (1975-1979), tinha como um dos objetivos a expansão da oferta de matrículas no ensino de 1º grau de modo a atingir no fim da presente década a escolarização de toda a população na faixa etária dos 7 aos 14 anos. (CUNHA, 1975, p. 254). Entretanto o próprio Estado reconhece os limites para cumprir esse objetivo, tais como: a) a baixa produtividade do sistema escolar; b) a baixa qualidade do magistério; c) a má utilização da capacidade física do sistema; e, finalmente, d) a elevada taxa de crescimento populacional que se verifica no Brasil. (idem, p.255). As soluções encontradas para atender à população acima de 15 anos não alfabetizada ou que não tinha concluído o ensino de primeiro grau foram a organização do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), o Projeto Minerva e o ensino supletivo.

2 O ensino supletivo, que teve tratamento especial no Capítulo IV da Lei 5692/71, atendeu ao apelo modernizador da educação a distância e aderiu aos preceitos tecnicistas da individualização da aprendizagem e instrução programada, que fundamentaram a difusão das modalidades de educação não-presencial em centros de estudos supletivos e telecursos, que se somaram aos cursos presenciais na configuração de um subsistema de ensino supletivo em expansão. (DI PIERRO, 2005, p. 1117). Essas reformas expressaram as diferentes concepções que estavam em disputa: por um lado, as idéias inspiradas nos princípios freirianos defendidas pelos grupos sociais e educadores populares, que foram perseguidos pela ditadura militar, e, por isso, alijados do processo de construção da proposta educacional; e, por outro, o projeto político da ditadura militar, que estava fundamentado em uma concepção tecnicista e compensatória e que marcou profundamente a educação escolar de jovens e adultos. O resultado dessa política é conhecido: a educação do 1º grau não foi universalizada, e o analfabetismo não foi superado. A EJA como modalidade da educação básica A democratização do país na década de 1980 iniciou com grandes desafios em diversas áreas, mas, na área educacional, dois continuavam presentes: a universalização da educação e a superação do analfabetismo. No âmbito nacional, podem ser destacadas várias ações para atingirem esses objetivos: mudanças na legislação, financiamento da educação, mudança de paradigma da EJA e, no âmbito internacional, as contribuições das conferências internacionais de educação de adultos. É o que trataremos a seguir. A Constituição de 1988, chamada de Constituição Cidadã, trouxe muitos avanços para o público da EJA: direito ao voto das pessoas não alfabetizadas; a garantia do acesso ao ensino fundamental público e gratuito como direito público subjetivo; o desafio da superação do analfabetismo e o financiamento da educação. Esse direito foi reafirmado com a Lei de Diretrizes e Bases Lei 9394/96 que, em seu capítulo II do Título V, trata da educação básica, dedica a Seção V à educação de jovens e adultos, caracterizada como modalidade de ensino diferenciada e flexível, destinada a avaliar e certificar conhecimentos adquiridos por meios extra-escolares ou prover escolaridade não realizada na idade própria.

3 O Plano Nacional de Educação (Lei 10.172 de 09/01/2001), garantido pela Constituição e pela LDB, propunha metas e orientações, que, se fossem atingidas, contribuiriam para a superação do analfabetismo no país. Essas mudanças concretizaram-se na Resolução CEB 1/2000, que estabeleceu as Diretrizes Nacionais da EJA, e no Parecer Nº 11 do Conselho Nacional de Educação sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais da EJA. De acordo com esse parecer, a EJA passou a ter as seguintes funções: a) a função reparadora, que significa o direito a uma escola de qualidade. Para isso, a EJA necessita ser pensada com um modelo pedagógico próprio. Essa função também deve possibilitar a construção de oportunidades concretas de garantia da presença dos jovens e adultos na escola; b) a função equalizadora, que tem o objetivo de reparar os efeitos da exclusão do sistema de ensino sofrido pelos trabalhadores ao longo desses anos. Uma das alternativas é garantir mais vagas para esses novos alunos e novas alunas, demandantes de uma nova oportunidade de equalização; c) a função que se refere à atualização de conhecimentos por toda a vida é denominada de permanente: d) e, finalmente, a função qualificadora, aquela que faz um apelo às instituições de ensino e pesquisa para que assumam a produção em EJA. Todas essas mudanças foram fundamentais para EJA, pois romperam com o modelo compensatório anterior da Lei 5692/71, entretanto vários limites foram impostos pelo modelo econômico neoliberal. Os limites da mudança Para compreender os limites dos avanços em relação à EJA, devem ser consideradas as diferentes forças políticas que participaram do processo de elaboração da legislação. Enquanto se vivia a retomada do processo democrático no Brasil, alguns países europeus, em destaque a Inglaterra, os Estados Unidos e o Chile iniciavam a implementação das políticas neoliberais. É, pois, importante considerar esse contexto para analisar as questões apresentadas a seguir. Para Beisiegel (1997, p. 26)) existem várias explicações para o não cumprimento da Constituição, dentre elas, os limites colocados por ela própria e sua legislação complementar, ou seja, os artigos referentes à responsabilidade de garantir o ensino fundamental deixam em aberto quem teria responsabilidade pelas deficiências da oferta de ensino fundamental aos jovens e adultos. Beisiegel pergunta: Quem seriam, então, os responsáveis? Os municípios ou os Estados? Ou a União? Ou seriam as três esferas?

4 Entretanto, essas brechas deixadas na Constituição já faziam parte da estratégia para se galgar a democratização da educação formal, [que] começou a ser incentivada de forma mais enfática ainda na década de 1980, por meio da política educacional expressa nos Planos Nacionais e Setoriais de Desenvolvimento na medida em que propunha a descentralização da educação, tanto para a ampliação das oportunidades educacionais, quanto para a melhoria da gestão. (SOUZA, 2002, p.132). Com o aprofundamento das mudanças de orientação da política econômica, em sintonia com os princípios neoliberais, ocorridas a partir de 1995, durante a primeira gestão do governo Fernando Henrique Cardoso, as prioridades passaram a ser a reforma do Estado e ajuste macroeconômico implementado sob orientação de organismos financeiros internacionais e inspiração do pensamento neoliberal. Nesse contexto, as reformas foram regidas por premissas econômicas e procuraram, sobretudo, dotar os sistemas educativos de maior eficácia com o menor impacto possível nos gastos do setor público, de modo a cooperar com as metas de estabilidade monetária, controle inflacionário e equilíbrio fiscal. (DI PIERRO, 2001, p.323). As consequências dessa nova orientação para a EJA concretizam-se, por um lado, com a decisão de priorizar o gasto público em favor do ensino fundamental obrigatório no processo de regulamentação da Lei 9424/96 - Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério (FUNDEF), e, por outro, pela decisão do presidente Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) em vetar a inclusão das matrículas registradas no ensino fundamental presencial para jovens e adultos para efeito dos cálculos desse Fundo. Com isso, desestimulou o investimento público e, consequentemente, a expansão do Ensino Fundamental para jovens e adultos. A eleição de Luís Inácio Lula da Silva para a presidência da República, em 2002, trouxe para o povo brasileiro a esperança da realização de grandes mudanças. Uma das mudanças mais importantes anunciadas era a ruptura com a política econômica que vinha sendo implementada. Com relação à educação brasileira, uma outra política econômica, fora da racionalidade neoliberal, poderia criar condições muito mais favoráveis para grandes avanços. Principalmente, para os educadores da EJA, vislumbrou-se a retomada pelo MEC do seu papel de coordenador das políticas públicas para essa modalidade, possibilitando, assim, o cumprimento dos acordos nacionais e internacionais em relação à superação do analfabetismo e a garantia a todos de uma educação pública de qualidade.

5 Entretanto, após oito anos desse governo, é difícil não constatar que a política econômica do governo Lula foi antes de continuidade em relação à dos governos anteriores, e que não houve, portanto, uma ruptura com as orientações econômicas conservadoras. Naturalmente, essa continuidade na orientação econômica pesou sobre todo o governo, e restringiu, em particular, as possibilidades de avanços na área da educação. Os educadores da EJA sofreram, no primeiro ano do governo Lula, algumas derrotas: a não derrubada do veto em relação à inclusão da EJA no FUNDEF e o programa Brasil Alfabetizado (programa de alfabetização do MEC). Devido à pressão dos educadores da Rede MOVA-BRASIL, da Rede de Apoio à Ação Alfabetizadora do Brasil (RAAAB) e dos Fóruns Estaduais de EJA, conseguiu-se estabelecer diálogo com o secretário da Secretaria Extraordinária de Erradicação do Analfabetismo (SECAD), procurando mostrar os equívocos desse programa. Esse diálogo foi sendo construído por meio da Comissão Nacional de Alfabetização e Educação de Jovens e Adultos (CNAEJA), criada pelo decreto 4834 de 8 de setembro de 2003. A retomada do diálogo entre os grupos sociais com o MEC, por meio da comissão, foi importante, pois resgatou uma prática existente anteriormente, e que havia sido extinta por Fernando Henrique Cardoso em dezembro de 1996. Em 2004, com a troca de ministro (Cristóvam Buarque foi substituído por Tarso Genro), houve algumas alterações na estrutura do ministério, e isso possibilitou maior participação dos educadores nos assuntos relacionados à EJA. O MEC, ao longo desses anos, vem realizando várias mudanças. Uma que merece destaque foi a alteração do sistema de financiamento da educação, com a extinção do FUNDEF e a criação do FUNDEB. Esse novo sistema de financiamento engloba todos os segmentos e modalidades de ensino da Educação Básica. Pode-se avaliar como positiva essa inclusão; entretanto a EJA foi contemplada com um valor menor do que os outros segmentos e modalidades. O gestor receberá apenas 0.8 por aluno/ano em relação ao valor mínimo nacional estabelecido pela presidência da república. O impacto dessa mudança ainda não é possível ser medido, é necessário realizar pesquisas para compreender como a distribuição desses recursos está acontecendo. As Conferências Internacionais de Educação: educação e aprendizagem ao longo da vida

6 O processo de preparação para a V Confintea foi um marco importante para a EJA, tanto em relação à ampliação da participação dos educadores nas discussões internacionais quanto à redefinição da EJA. Segundo Ireland (2000, p. 12), o fato de os educadores da EJA terem participado dessas discussões internacionais deu início a rearticulação de atores sejam eles indivíduos ou entidades governamentais ou não governamentais para o desenvolvimento da educação de jovens e adultos no Brasil. Outra mudança importante, segundo Di Pierro (2005, p.1119-20), foi quando, em 1997, a V CONFINTEA proclamou o direito de todos à educação continuada ao longo da vida. Esse novo paradigma tem o respaldo da psicologia do desenvolvimento humano. Segundo essa pesquisadora, esse pensamento defende que já não se sustenta a idéia de que exista uma idade apropriada para aprender: as pesquisas demonstram que a aprendizagem ocorre em qualquer idade, ainda que a pertinência a determinados grupos socioculturais ou etários possa estar relacionada à variância nas funções, características e estilos cognitivos (OLIVEIRA, 1999). Também já não subsiste a suposta correspondência entre etapas do ciclo vital, processos de formação e engajamento na produção, pois diante das rápidas mudanças no mundo do trabalho, da ciência e da técnica, os conhecimentos adquiridos na escolarização realizada na infância e juventude não são suficientes para ancorar toda uma vida profissional e de participação sociocultural na idade adulta, impondo-se a educação permanente. A necessidade da aprendizagem ao longo da vida se amplia em virtude também da elevação da expectativa de vida das populações e da velocidade das mudanças culturais, que aprofundam as distâncias entre as gerações, as quais a educação de jovens e adultos pode ajudar a reduzir. Apesar desses avanços, a realização da VI Confintea foi precedida de avaliações e monitoramento realizados pelos organismos internacionais sobre os compromissos assumidos nas conferências anteriores, que apontam alguns limites. Como exemplo, podemos destacar a avaliação da década da Conferência Mundial de Educação para Todos (Dakar, Senegal, abril de 2000); o balanço intermediário da CONFINTEA+6 1 e o monitoramento paralelo realizado pelo Conselho Internacional de Educação de Pessoas Adultas 2 (ICAE), sendo que este último deu origem ao relatório de acompanhamento dos compromissos assumidos na 5ª Conferência Internacional de Adultos, publicado em inglês, com o título Agenda for the future, six years later: Icae report 3. O balanço intermediário CONFINTEA+6, sintetizado no Chamado à ação e à responsabilidade, realizado em setembro de 2003, pela UNESCO, não é otimista, pois

7 pode-se constatar que, em quase todos os países, houve redução de financiamento público para a EJA. As conclusões apontadas pelo relatório do ICAE reforçam as outras avaliações, ou seja, apesar de o Brasil ter aumentado o orçamento para essa modalidade, desde 1997, em 400%, o acesso e a alocação de recursos ainda são pequenos diante dos problemas a serem enfrentados. O processo preparatório da VI Conferência, no Brasil, teve início no final de 2007 quando pesquisadores da área foram convidados a realizarem um diagnóstico sobre a EJA no Brasil. Em 2008, esse diagnóstico foi complementado com as informações coletadas pelos Fóruns Estaduais, Distrital e Regionais de EJA. Ele foi discutido e aprimorado durante as plenárias estaduais, regionais e nacional que ocorreram durante o primeiro semestre de 2008. O documento final produzido contém um diagnóstico da realidade da EJA no Brasil (com muitos limites). A partir desse diagnóstico, foram apontados os desafios da EJA no Brasil e as recomendações dirigidas ao MEC, aos governos estaduais e municipais, ao congresso, às empresas e às instituições do ensino superior. No segundo semestre de 2008, representantes dos diferentes movimentos que participam da CNAEJA e representantes da SECAD, do Ministério da Educação (MEC) defenderam as propostas do documento base elaborado coletivamente pelos educadores e educandos de EJA na Conferência Regional da América Latina e do Caribe sobre Alfabetização, realizada na cidade do México. O documento final dessa Conferência Regional apontou o principal desafio dos educadores e gestores de EJA para toda a América Latina: passar de uma alfabetização inicial a uma visão e uma oferta educativa ampla que inclua o ensino e as aprendizagens realizadas ao longo da vida. Para superar esse desafio, os participantes da Conferência recomendaram que a EJA seja considerada um direito humano e cidadão; que os governos promovam a integração da EJA no sistema de educação pública; que promovam um trabalho intersetorial e interinstitucional, que articule as ações do Estado com a sociedade civil (movimentos sociais organizados, igrejas, sindicatos, empresários, entre outros) e possibilite uma abordagem holística, assim como o acompanhamento e o controle social; que priorizem a formação dos educadores de jovens e adultos em parceria com as universidades, movimentos sociais, sistema de ensino; que o orçamento da educação atinja pelo menos 6% do PIB.

8 Esse processo de construção da VI Conferência foi concluído em dezembro de 2009 em Belém, Estado do Pará, Brasil. Participaram dessa Conferência 144 Estados- Membros da Unesco, representantes de organizações da sociedade civil, parceiros sociais, agências das Nações Unidas, organismos intergovernamentais e do setor privado. O objetivo do encontro foi fazer um balanço dos avanços alcançados na aprendizagem e educação de adultos desde a Confintea V. O documento final aprovado Marco de Ação de Belém reitera o papel fundamental da aprendizagem e educação de adultos; apoia a definição de educação de adultos como todo o processo de aprendizagem, formal ou informal, em que pessoas consideradas adultas pela sociedade desenvolvem suas capacidades, enriquecem seu conhecimento e aperfeiçoam suas qualificações técnicas e profissionais, ou redirecionam-nas, para atender às suas necessidades e às de sua sociedade; reconhecem a importância da alfabetização e, por isso, a necessidade de garantir que os seus objetivos sejam concretizados; reconhecem as conquistas e avanços desde a Confintea V, mas o desafio ainda é alfabetização, por isso a alfabetização de adultos deve ser a prioridade dos governos. Qual o impacto de todas essas ações na qualidade da educação no Brasil, principalmente para a EJA? Os resultados das últimas pesquisas realizadas pelo Instituto de Pesquisa Brasileiro (IBGE), PNAD/2010, apontam que a educação brasileira conquistou avanços em relação ao aumento de frequência nos três níveis de ensino e melhorou o índice de qualidade do conhecimento nos Ensinos Fundamental e Médio. Entretanto, em relação ao analfabetismo, houve um pequeno decréscimo de 1,0%, e o Brasil ainda tem 14,1 milhões de analfabetos. As maiores taxas de analfabetismo estão entre as pessoas mais idosas. Considerações finais Qual a lição que podemos tirar de todas essas ações realizadas pelos governos, pelos grupos sociais, pelas pesquisas realizadas nessa área, pela mudança de paradigma, compreendendo a educação de jovens e adultos como um processo ao longo da vida? Em relação aos novos paradigmas, os desafios são muitos. Várias experiências foram realizadas tendo como proposta uma nova orientação curricular, com o objetivo de construir uma identidade própria da EJA, que rompa com a visão compensatória e assistencialista, ou seja, experiências das administrações de São Paulo (2001-2004), Goiânia (1992-2004), Porto Alegre (1989-2004), Rio Grande do Sul (1999-2002), Belo

9 Horizonte (desde de 1994), Rio de Janeiro (desde 1985). Experiências fora do governo: Projeto Sesc Ler; Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (MOVA); AlfaInclusão; MEB; entre outros. Mas ainda são poucas, e permanece o desafio de superar o conceito de suplência que, ainda, predomina nas discussões sobre a EJA, dificultando, assim, pensar novos espaços e tempos pedagógicos para essa modalidade. Algumas ações podem ser realizadas para a superação dos conceitos tradicionais em relação à EJA, e, uma delas, é o investimento na formação inicial e continuada dos educadores de EJA. A Universidade, que tem responsabilidade em relação à formação inicial, pode ser uma das parceiras nessa superação. Outra contribuição que a academia poderia oferecer para a constituição do campo pedagógico da EJA e para a formação teórica dos seus educadores seria concentrar mais na produção e na sistematização desses conhecimentos. Notas 1 Esse encontro, realizado em Bangcoc, Tailândia, que teve como objetivos avaliar o desenvolvimento da educação de adultos após a V CONFINTEA, identificar novas tendências e preparar a próxima Conferência, que será em 2009. (DI PIERRO, 2005, p.18), reuniu cerca de trezentas pessoas, entre representantes de quarenta organizações não-governamentais e delegações oficias de cinqüenta países. O Brasil não enviou delegação oficial, embora o governo tenha remetido um documento de balanço. Um pequeno grupo de especialistas brasileiros, provenientes de universidades, institutos, fundações e organizações não-governamentais participou da Reunião de Balanço Intermediário, a convite da UNESCO. (Ibidem). 2 O ICAE é uma organização não-governamental que representa mais de 700 associações que atuam no campo da alfabetização, da educação de pessoas adultas e do aprendizado ao longo da vida. O trabalho de monitoramente contou com a participação de 16 países e, no Brasil, foi coordenado pela Ação Educativa. (DI PIERRO, 2003, pg. 6). 3 ICAE. Agenda for the future, six years later: Icae report Icae/Sida/Unesco, 2003.. Para maiores informações consultar o site www.icae.org.uy.

10 Referências BEISIEGEL, Celso de Rui. Considerações sobre a política da União para a educação de jovens e adultos analfabetos. Revista Brasileira de Educação. São Paulo, n. 4, janabr. 1997. CUNHA, Luiz Antonio. Educação e desenvolvimento social no Brasil. Rio de Janeiro : F. Alves, 1975. DI PIERRO, Maria Clara. Descentralização, focalização e parceria: uma análise das tendências nas políticas públicas de educação de jovens e adultos. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.27, n.2, p.321-337, jul./dez. 2001.. Notas sobre a redefinição da identidade e das políticas públicas de educação de jovens e adultos no Brasil. Educação e Sociedade. Campinas, vol. 26, n. 92, p. 1115-1139, Especial - Out. 2005. IRELAND, Thimothy D. O atual estado da arte da educação de jovens e adultos no Brasil: uma leitura a partir da V CONFITEA e do processo de globalização. In: SCOCUGLIA, Afonso C. e MELO, José F. de Neto. Educação Popular: outros caminhos. João Pessoa : Editora Universitária, UFPB, 1999. MEC. LDB. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília : Diário Oficial, 23 de dezembro de 1996 MEC. Confintea VI. Marco de Ação de Belém. Brasília : UNESCO, 2010. MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente. Campinas,SP : Papirus, 1997. (Coleção Práxis). SAVIANNI, Demerval. A nova lei da educação: trajetória e perspectivas. Campinas, SP : Autores Associados, 2004. (Coleção educação contemporânea). SENADO. Plano Nacional de Educação. Brasília, 2010. SOUZA, Antônio Lisboa Leitão de. Estado e educação pública popular. São Paulo, 2002. Tese de doutorado em Educação, na Área de Concentração Estado, Sociedade e Educação, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.