EFEITOS PATRIMONIAIS DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA

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Transcrição:

EFEITOS PATRIMONIAIS DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA Ana Luiza Rodrigues DE MORAES¹ Como citar este Artigo Científico: DE MORAES, Ana Luiza Rodrigues. Efeitos patrimoniais da filiação socioafetiva. In: Revista Aporia Jurídica (on-line). Revista Jurídica do Curso de Direito da Faculdade CESCAGE. 8ª Edição. Vol. 1 (jul/dez-2017). p. 187-201. Sumário: 1 Introdução - 2 A Família No Ordenamento Jurídico -2.1evolução Da Família - 2.2 Conceito De Filiação Socioafetiva - 3 Efeitos Patrimoniais Advindos Da Concretização Da Filiação Socioafetiva - 3.1 Direito Sucessório À Legítima - 3.2 Obrigação Alimentar - 4 A Filiação Socioafetiva Nos Tribunais - 4.1 O Reconhecimento Da Filiação Socioafetiva No Superior Tribunal De Justiça E No Supremo Tribunal Federal - 5 Considerações Finais - 6 Referências Resumo: Empregando-se o método histórico, pode-se observar que a família sofreu grandes mudanças com o passar dos anos, de uma concepção mais limitada para uma mais liberal, não existindo na atualidade uma forma exata para sua formação e composição. Não sendo diferente, a filiação também passou por mudanças, este instituto ligado ao Direito de Família era baseado na discriminação, em que os filhos eram classificados conforme sua origem, contudo, somente com o advento da Constituição Federal de 1988 que isso mudou. A Carta Magna, com abordagem à dignidade da pessoa humana, estabeleceu novos princípios, dando enfoque ao afeto, e foi com base nesses princípios que se estabeleceu a filiação socioafetiva; a mesma tem como principal elo de ligação entre os pais e os filhos, o afeto; e é este afeto que gera consequências jurídicas para ambas as partes. Desta maneira, fazendo uma análise extensiva da norma, pode-se concluir que os filhos afetivos são igualmente filhos como os biológicos, isto devido ao fato da Constituição Federal vedar qualquer tipo de discriminação. Além disso, os filhos afetivos se tornam merecedores de todos os direitos conquistados pelos filhos consanguíneos, como o direito sucessório e a obrigação alimentar, fazendo-se este o objetivo do presente artigo. Também, ao longo da pesquisa, pode-se observar que o presente tema não comporta generalização. Apresenta-se como tipo de pesquisa bibliográfica, possui como método científico e histórico. Palavras- chave: Constituição Federal. Filiação Socioafetiva. Família. Direito Sucessório. Obrigação Alimentar. Abstract: By using the historical method, one can observe that the family has undergone great changes over the years, from a more limited conception to a more liberal one, and there is no exact form for its formation and composition. Not being different, membership also changed, this institute linked to Family Law was based on discrimination, in which children were classified according to their origin, however, only with the advent of the Federal Constitution of 1988 that this changed. The Magna Carta, with an approach to the dignity of the human person, established new principles, focusing on affection, and it was on the basis of these principles that socio-affective affiliation was established; It has as its main link between parents and children, affection; And it is this affection that has legal consequences for both parties.thus, by making an extensive analysis of the norm, one can conclude that the affective children are also children as the biological, due to the fact that the Federal Constitution 187

prohibits any type of discrimination. In addition, the affective children become deserving of all the rights conquered by the consanguineous children, as the inheritance and the alimentary obligation, being this the objective of the present article. Also, throughout the research, it can be observed that the present theme does not entail generalization. It is presented as a type of bibliographical research, it has as scientific and historical method. Key words: Federal Constitution. Socio-affective affiliation. Family. Inheritance Law. Support obligations 1 INTRODUÇÃO Este trabalho tem por objetivo analisar a contemporânea maneira de se estabelecer uma filiação formada por vínculos afetivos e suas consequências para o direito sucessório e obrigação alimentar. O estudo e a pesquisa são justificados, pois este instituto ainda não se encontra positivado, construindo-se desta maneira, de criações doutrinárias e jurisprudenciais. O trabalho tem como ponto inicial uma tentativa em se identificar a evolução da família com o passar dos anos juntamente com o ordenamento jurídico, até o momento atual na construção da família pelos laços afetivos e quais as consequências no âmbito sucessório e alimentar. 2 A FAMÍLIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO O seio familiar, mais especificamente falando do Direito de Família, passou por inúmeras transformações a contar desde a primeira Constituição Federal até o presente momento. Em decorrência de tantas mudanças, primeiramente, será feita uma análise das famílias, para ser possível uma melhor ótica acerca da evolução da entidade familiar. Também neste mesmo capítulo, serão abordados conceitos de filiação e paternidade socioafetiva. 2.1 EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA Inicialmente, cabe enfatizar o ensinamento da doutrinadora Maria Berenice Dias, que traz um entendimento simples a respeito da origem das famílias: 188

Manter vínculos afetivos não é uma prerrogativa da espécie humana. O acasalamento sempre existiu entre os seres vivos, seja em decorrência de instinto de perpetuação da espécie, seja pela verdadeira aversão que todos tem à solidão. Parece que as pessoas só são felizes quando têm alguém para amar. (DIAS, 2015, p.29) Importante salientar que não é possível trabalhar com um conceito de família único e fechado, haja vista a grande mutação que esse instituto sofre. Atualmente, na visão da doutrina moderna, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pampolha Filho (2012), definem família como um conjunto de pessoas ligadas por laços de afeição, com a intenção de cumprir a sua função social, o que para ambos seria a busca pela realização pessoal e felicidade do indivíduo, independentemente dessa intenção ser puramente econômica. O artigo 226 da Constituição Federal de 1988 declara que a família tem proteção especial do Estado, demonstrando a importância que o ordenamento jurídico dá a esse instituto. Desde nossa primeira Constituição no ano de 1834, em que a família era patriarcal e com pequena participação no âmbito político, pois somente participavam da vida política aqueles com capacidade econômica alta, ou seja, somente homens com poder financeiro significativo eram capazes de interagir com o Estado. Dando um salto temporal para a atualidade, a mulher ganha cada vez mais espaço no mercado de trabalho, se equiparando aos homens em direitos e deveres, em que as famílias são constituídas de diferentes maneiras, sendo deixado totalmente de lado aquele paradigma patriarcal vivenciado no passado. Entendeu-se então, pela necessidade em criar uma nova Constituição que acompanhasse essas inovações, sendo assim, em 1988 foi promulgada a atual Constituição Federal, que passou a contemplar três diferentes maneiras de constituir família: por meio do casamento civil, do casamento religioso e da união estável, presentes no artigo 226 e seus parágrafos. Além disso, passou a abarcar e valorizar os interesses individuais, com a proteção do Estado à pessoa humana e no incremento de sua personalidade, de forma que fosse construído um seio familiar estruturado emocionalmente, com a busca pelo equilíbrio social. O atual Código Civil que é de 2002, possui um capítulo próprio que faz referência a filiação, trazendo importantes mudanças, como por exemplo, a extinção da distinção entre as espécies de filhos, eliminando a expressão legitimidade, até então usada pelo antigo Código Civil, que passa agora a ser repudiada. 2.2 FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA 189

A filiação passou e ainda passa por grandes modificações; antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, os filhos havidos fora do casamento sofriam não somente com o preconceito da sociedade, mas também tinham seus direitos negados, como por exemplo o reconhecimento de paternidade. Essa antiga visão ficou para trás, como já dito, a Constituição Federal vedou qualquer tipo de discriminação vinculada à filiação. Por filiação, pode-se dizer que é: [...] a relação de parentesco que se estabelece entre duas pessoas, uma das quais nascida da outra, ou adotada, ou vinculada mediante posse de estado de filiação ou por concepção derivada de inseminação artificial heteróloga. [...] Sob o ponto de vista do Direito brasileiro, a filiação é biológica e não biológica. Por ser uma construção cultural, resultante da convivência familiar e da afetividade, o direito a considera como um fenômeno socioafetivo, incluindo de origem biológica, que antes detinha a exclusividade. (LÔBO, 2011, p. 216). Após a promulgação de nossa Carta Magna, passou a ser considerado filho não apenas aquele com parentesco consanguíneo, mas também o chamado socioafetivo, a primazia passou a ser o afeto e amor. Todavia, importa trazer à baila o que se entende por afeto. Nas palavras de Adriana Caldas do Rego Freitas Dabus Maluf (2012,p.18): A relação de carinho ou cuidado que se tem com alguém ínitimo ou querido. É um estado psicológico que permite ao ser humano demonstrar os seus sentimentos e emoções a outrem. Pode também ser considerado o laço criado entre os homens, que, mesmo sem características sexuais, continua a ter uma parte de amizade mais aprofundada. Como já dito, o afeto, a afetividade está cada vez mais presente nas famílias e por consequência, é tema amplamente abordado pelos estudiosos. Esclarece Paulo Lôbo sobre socioafetividade: [...] Tal como aconteceu com a entidade familiar, a filiação começou a ser identificada pela presença do vínculo afetivo paterno-filial. Ampliou-se o conceito de paternidade, que compreende o parentesco psicológico, que prevalece sobre a verdade biológica e a realidade legal. A paternidade deriva do estado de filiação, independentemente de sua origem, se biológica ou afetiva. A ideia da paternidade está fundada muito mais no amor do que submetida a determinismos biológicos (LÔBO, s/d apud DIAS, 2015, p.389) O artigo 1593 do Código Civil (BRASIL, 2002) traz que o parentesco pode ser natural, quando resultar de consanguinidade, ou civil, quando resultar de outra origem. 190

Foi o termo outra origem que permitiu o reconhecimento da filiação socioafetiva. Tanto isso é verdade, que no enunciado número 103 da III Jornada de Direito Civil foi estabelecido que essa filiação socioafetiva constituiria parentesco civil. (FEDERAL, 2012) O doutrinador Christiano Cassettari define filiação socioafetiva: [...] a parentalidade socioafetiva pode ser definida como o vínculo de parentesco civil entre pessoas que não possuem entre si um vínculo biológico, mas que vivem como se parentes fossem, em decorrência do forte vínculo afetivo existente entre elas. (CASSETTARI, 2014, p. 16) O mesmo doutrinador fala em posse de estado de filho, que seria composta pela união de três elementos, são eles: NOME (chamar de filho), TRATO (tratar como filho) e FAMA (apresentar como filho, o mesmo ser reconhecido pelo meio em que vive, pelas demais pessoas, como filho). Sendo que essa posse de estado de filho está diretamente vinculada ao reconhecimento da parentalidade socioafetiva. Desta forma, pode-se entender que filiação socioafetiva nada mais é que indivíduos ligados pelos laços de afeto, os quais são analisados conforme o convívio diário entre estes. 3 EFEITOS PATRIMONIAIS ADVINDOS DA CONCRETIZAÇÃO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA Cada vez mais se solidifica pela jurisprudência e pela evolução do ordenamento jurídico brasileiro as consequências jurídicas advindas da filiação socioafetiva. Hoje, estabelecida a igualdade entre os filhos, independente da origem, ficou cada vez mais necessária a adaptação da legislação infraconstitucional com o objetivo de solucionar os conflitos, principalmente na esfera patrimonial, conflitos estes gerados pela consolidação da filiação socioafetiva, modalidade parental já explicada anteriormente. Desta feita, passa-se ao estudo do direito sucessório à legítima e da obrigação alimentar. 3.1 DIREITO SUCESSÓRIO À LEGÍTIMA É de suma importância esclarecer que há diferença entre a sucessão legítima e a testamentária. Legítima é a sucessão que resulta da lei, testamentária é quando existe manifestação de vontade por parte do de cujus ainda em vida. 191

A destinação do patrimônio de uma pessoa após sua morte é regulada pelo Direito Sucessório, podendo ser disposta pela via legal ou pela via testamentária, conforme o artigo 1786 do Código Civil. 2002) Art. 1.786. A sucessão dá-se por lei ou por disposição de última vontade. (BRASIL, Nos ensinamentos de Maria Helena Diniz (2012 apud DIAS, 2013, p.113): A sucessão legítima também é chamada de ab intestato, por não existir testamento. Na ausência de manifestação de vontade do falecido, seus bens são transmitidos a quem o legislador indica como herdeiro. Até se poderia chamar a sucessão legítima de testamento tácito, pois, ao deixar o de cujus de dispor sobre seus bens, isso significa que concorda que seu patrimônio passe às pessoas enumeradas pela lei. A mesma doutrinadora afirma que recebe o nome de legítima, os bens da herança que pertencem aos herdeiros necessários, conforme artigo 1846 do Código Civil, são eles: os descendentes, ascendentes e cônjuge. O cônjuge e o companheiro também herdam fração da herança, em concorrência com os descendentes e ascendentes, a lei determina que ambos são herdeiros necessários; e por fim, o autor da herança, que não tem a faculdade de dispor no testamento a respeito da legítima, conforme o artigo 1857, 1º do Código Civil, e muito menos de converter estes bens da legítima em outros de espécie diversa, como explana o artigo 1848, 1º, Código Civil. (DIAS, 2013) Para Paulo Nader (2009 apud CASSETTARI, 2014, p.127): O avanço que se constata com a desbiologização do parentesco em prol de vínculos socioafetivos não deve situar-se exclusivamente no plano teórico, afirmação de princípios, mas produzir efeitos práticos no ordenamento jurídico como um todo, repercutindo, inclusive, no âmbito das sucessões Nos ensinamentos de Euclides de Oliveira (2009 apud CASSETTARI, 2014, p.128): Como pano de fundo do estudo do direito sucessório aloca-se a principiologia constitucional de respeito à dignidade da pessoa humana (art.1º,iii, da Constituição Federal de 1988), de obrigatória observância pelo sistema normativo. Nesse contexto, a atribuição de bens da herança aos sucessores deve ser pautada de acordo com o critério de valorização do ser humano, de modo a que o patrimônio outorgado lhe transmita uma existência mais justa e digna dentro do contexto social. 192

Como ensina Francisco José Cahali (2012 apud CASSETTARI, 2014, p.128) Hoje o status filho é o que basta para a igualdade de tratamento, pouco importando se fruto ou não do casamento de seus pais, e independentemente do estado civil dos progenitores. Assim sendo, extraindo-se do entendimento de Cassettari (2014) com base nas posições doutrinárias atuais, conclui-se que todas as regras sucessórias deverão ser aplicadas na parentalidade socioafetiva, e que os parentes socioafetivos devem ser equiparados aos biológicos com relação ao direito á sucessão. Importa registrar que nos casos em que o direito sucessório é pleiteado post mortem, devem ser analisados com cautela, por exemplo, se o autor jamais conviveu com seu pai biológico devido ao fato de ter sido criado por outro registral, e deste já ter recebido a herança. Entende a doutrina majoritária de que assim como a socioafetividade cria direitos, pode gerar a perda, pois se é com base na convivência familiar que o pai afetivo pode gerar o direito sucessório com respaldo na posse do estado de filho, caso essa convivência não existisse, entende-se que não haveria direito à herança neste caso. A morte é o início para a abertura da sucessão, é com a morte que os bens do de cujus passam aos herdeiros. Importante salientar aqui, que essa transmissão ocorre de maneira automática, pelo chamado princípio da saisine, em que o patrimônio do falecido não fica sem proprietário. Como já dito anteriormente, existe uma distinção entre sucessão legítima e testamentária, já explicada, mas a pergunta é: quem pode herdar? A lei estabelece uma ordem contendo a preferência dos parentes ao herdar, começando com o grau mais próximo até o grau mais distante. Os herdeiros são divididos em classes, sendo convocados de acordo com dois critérios, primeiro os mais próximos e a preferência será sempre dos descendentes. (DIAS, 2013) Os herdeiros são divididos em quatro classes, são elas: descendentes, ascendentes, cônjuge e parentes colaterais, necessariamente nesta ordem. Os herdeiros são chamados à sucessão dentro da respectiva classe. Somente na hipótese de uma classe estar vazia é que são chamados os integrantes da classe subsequente. (DIAS, 2013, p.129-130) Importante frisar que esta ordem é de exclusão, ou seja, o grau mais próximo exclui o mais remoto. A ordem de vocação hereditária encontra-se no artigo 1829 do Código Civil que estabelece: 193

Art. 1829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime de comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1640, parágrafo único); ou se, no regime de comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III ao cônjuge sobrevivente; IV aos colaterais. (BRASIL, 2002) 3.2 OBRIGAÇÃO ALIMENTAR O dever de prestar alimentos entre parentes, cônjuges ou companheiros está assegurado pelo artigo 1694 do Código Civil, sempre analisado juntamente com os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, observando as necessidades de quem pleiteia e as possibilidades daquele que deve provê-lo. Art.1694. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação. (BRASIL, 2002) De suma importância lembrar, que os alimentos são irrenunciáveis, impenhoráveis e indisponíveis, além de serem imprescritíveis e intransmissíveis. Quando se tem por reconhecida a paternidade socioafetiva, não se deve falar em uma concessão, e sim em uma relação jurídica que tem como base o vínculo do afeto, este vínculo é único e é capaz de fornecer a criança ou ao adolescente a realização de seus direitos fundamentais, tais como: direito à vida, saúde, alimentação, educação, esporte, lazer, profissionalização, cultura, dignidade, respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária, o que por consequência lhes assegura também o total desenvolvimento físico e mental. (BARBOZA 1990 apud CASSETTARI 2014) Dessa maneira, tem-se a obrigação alimentar decorrente do vínculo de parentesco socioafetivo, tese já aceita pelo Conselho da Justiça Federal (CJF) CASSETTARI (2014), como se verifica abaixo: Enunciado 341 do CJF Art. 1696. Para fins do art. 1696, a relação socioafetiva pode ser elemento gerador de obrigação alimentar. O dever de prestar alimentos decorre da relação de parentesco entre o alimentado e o alimentante, baseado em uma obrigação moral e ética existente. Apesar de o encargo alimentar algumas vezes passar a ideia de incentivo a ociosidade, é importante frisar que este benefício somente é concedido quando os indícios ou as comprovações apresentadas sejam hábeis e concretas ao demonstrar a necessidade de quem os pleiteia. Como exceção, tem-se o 194

menor de idade, em que a necessidade dos alimentos é presumida devido ao fato da impossibilidade fisiológica do mesmo gerar os recursos próprios e necessários para sua subsistência. Ministra Maria Berenice Dias (2015, p.385): Como o parentesco em linha reta é infinito, também é a obrigação alimentar. Pais, filhos, avós, netos etc. tem obrigação alimentar de um para com o outro. O parentesco na linha colateral vai até o quarto grau, e a obrigação alimentar se estende além dos irmãos, alcançando tios, sobrinhos, tios-avós, sobrinhos-netos e primos. Há resistência da doutrina em face da explicitação feita pela lei, com relação ao dever de alimentos dos irmãos germanos e unilaterais (CC 1697). Porém, como o direito hereditário alcança todos os graus de parentesco (CC 1829), difícil é não atribuir obrigação alimentar em favor de quem é herdeiro. É atribuir direito a quem não é imposta obrigação. Quem é herdeiro de alguém deve ter obrigação, ao menos, de garantir-lhe a subsistência. O artigo 227 da Constituição Federal estabeleceu o direito de igualdade entre os filhos, proibindo qualquer tipo de distinção. Portanto, sendo o filho menor, independente de socioafetivo ou biológico, o artigo 1634 do Código Civil impõe aos pais o dever de dirigir a criação e educação, o que fundamenta a obrigação alimentar. CASSETTARI (2014) O Poder Familiar nada mais é que deveres e direitos que estão ligados aos pais para com seus filhos, seja na forma da pessoa dos filhos menores ou com relação aos bens. GONÇALVES (2010) Desta forma, pode-se concluir que o dever de prestar alimentos, sempre com respeito ao binômio necessidade e possibilidade, é mútuo entre pais e filhos socioafetivos, da mesma maneira que acontece com a filiação biológica, devido ao fato desta regra derivar do art. 229 da Constituição Federal. CASSETTARI (2014) Art. 229. Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. (BRASIL, 1989) É importante ressaltar neste ponto, que a filiação socioafetiva gera uma parentalidade entre os pais e filhos, sendo assim, vincula os filhos aos demais parentes dos pais, como avós, bisavós, irmãos, tios, etc. Dessa forma, como já ocorre com a parentalidade biológica e com comunhão ao art. 1694 do Código Civil, o filho socioafetivo tem a possibilidade de pleitear alimentos de seus avós, bisavós, irmãos, tios, e assim por diante, como também poderá ser demandado por isso. CASSETTARI (2014) 195

4 A FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA NOS TRIBUNAIS 4.1 O RECONHECIMENTO DA FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA NO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Neste ponto, faz-se necessário tecer alguns comentários sobre a maneira como o STJ enxerga a existência da filiação socioafetiva. Existem requisitos que para o Superior Tribunal de Justiça são indispensáveis para sua constituição. Em um julgado do ano de 2012, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a filiação socioafetiva, assim segue a ementa da decisão: DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNANEGATIVO. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. IMPROCEDÊNCIADO PEDIDO. 1. Em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e daconstituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória depaternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistênciade origem biológica e também de que não tenha sido constituído oestado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivase edificado na convivência familiar. Vale dizer que a pretensãovoltada à impugnação da paternidade não pode prosperar, quandofundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com apaternidade socioafetiva. 2. No caso, as instâncias ordinárias reconheceram a paternidadesocioafetiva (ou a posse do estado de filiação), desde sempreexistente entre o autor e as requeridas. Assim, se a declaraçãorealizada pelo autor por ocasião do registro foi uma inverdade noque concerne à origem genética, certamente não o foi no que toca aodesígnio de estabelecer com as então infantes vínculos afetivospróprios do estado de filho, verdade em si bastante à manutenção doregistro de nascimento e ao afastamento da alegação de falsidade ouerro. 3. Recurso especial não provido. (STJ, 4ª Turma, Recurso Especial nº 1059214, Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, Data do Julgamento: 16 fev. 2012) O caso em tela trata de ação de anulação de registro civil, proposta por PPSVG em face de suas então duas filhas, JSG (Jacinta) e JSG (Janaina), ambas denominadas no julgado. O Requerente afirma que foi induzido por sua ex- companheira a registrar as Requeridas como se suas filhas fossem; a união do Requerente com a mãe das meninas durou aproximadamente 12 anos. Acontece que a socioafetividade foi reconhecida de pronto na primeira instância, porém, inconformado com a decisão, o Requerente recorreu por meio de Recurso Especial ao STJ, o qual teve relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, que negou provimento ao recurso. O Ministro Luis Felipe Salomão (BRASIL, 2012) ao julgar o recurso acima mencionado, explana que nos dias atuais o magistrado deve prestar mais atenção na verdade socioafetiva, não obstante a vasta tecnologia existente para solucionar os casos de paternidade. Conclui dizendo que não se pode impugnar uma paternidade com base simplesmente na origem genética quando a mesma estiver em embate com a socioafetividade. 196

Outro julgado do Superior Tribunal de Justiça, do ano de 2017, com relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, com base no princípio constitucional de igualdade entre os filhos, foi reconhecida a coexistência entre a filiação socioafetiva e o vínculo biológico. Segue a ementa: RECURSO ESPECIAL. DIREITO DE FAMÍLIA. FILIAÇÃO. IGUALDADE ENTRE FILHOS. ART. 227, 6º, DA CF/1988. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. VÍNCULO BIOLÓGICO. COEXISTÊNCIA. DESCOBERTA POSTERIOR. EXAME DE DNA. ANCESTRALIDADE. DIREITOS SUCESSÓRIOS. GARANTIA. REPERCUSSÃO GERAL. STF. 1. No que se refere ao Direito de Família, a Carta Constitucional de 1988 inovou ao permitir a igualdade de filiação, afastando a odiosa distinção até então existente entre filhos legítimos, legitimados e ilegítimos (art. 227, 6º, da Constituição Federal). 2. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060, com repercussão geral reconhecida, admitiu a coexistência entre as paternidades biológica e a socioafetiva, afastando qualquer interpretação apta a ensejar a hierarquização dos vínculos. 3. A existência de vínculo com o pai registral não é obstáculo ao exercício do direito de busca da origem genética ou de reconhecimento de paternidade biológica. Os direitos à ancestralidade, à origem genética e ao afeto são, portanto, compatíveis. 4. O reconhecimento do estado de filiação configura direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem nenhuma restrição, contra os pais ou seus herdeiros. 5. Diversas responsabilidades, de ordem moral ou patrimonial, são inerentes à paternidade, devendo ser assegurados os direitos hereditários decorrentes da comprovação do estado de filiação. 6. Recurso especial provido O caso acima trata-se de um recurso especial interposto por V.L contra acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Na origem, cuida-se de uma ação ordinária proposta por V.L (61 anos) contra D.L (faleceu em 2012 com 90 anos), supostamente seu pai e irmão de sua mãe biológica, M.B.L de L. O Recorrente foi criado por seu pai registral e biológico R.L, que também já faleceu; tendo inclusive recebido a herança do mesmo. V.L entra com pedido de exame de DNA para comprovação da paternidade de V.L, sendo o pedido recebido, o reconhecimento da paternidade é efetivado pelo exame e a declaração de sua paternidade é medida que se impõe. O Recorrente confirma em seu depoimento que foi criado pelo pai registral e foi com ele que manteve elos afetivos até a sua morte (inclusive tendo recebido herança deixada pelo de cujus). Sendo assim, comprovada a existência de filiação socioafetiva, a qual inclusive gerou efeitos patrimoniais, foi afastada a possibilidade de alteração no registro civil do autor e qualquer repercussão patrimonial decorrente da presente investigatória. No recurso especial, o recorrente alega violação do art. 1.604 do Código Civil ao argumento de que, comprovada a falsidade do seu registro, devem ser reconhecidos os efeitos e as consequências advindas do reconhecimento da paternidade biológica, destacando-se que 197

os propósitos de "procurar o seu pai biológico não podem ser investigados nesta ação, porque a eles, quaisquer que sejam, opõe-se um direito de maior envergadura, alicerçado na dignidade da pessoa humana, que é o de obter sua identidade genética, com todos os seus consectários legais " (e-stj fls. 420-426). Afirma que por quase cinquenta anos teve negado o conhecimento acerca de sua ancestralidade. O Ministro Ricardo Villas Bôas Cuevas deu provimento ao recurso, em suas palavras: ao determinar se tendo alguém usufruído de uma relação filial socioafetiva, por imposição de terceiros que consagraram tal situação em seu registro de nascimento, ao conhecer sua verdade biológica, tem direito ao reconhecimento da sua ancestralidade, bem como a todos os efeitos patrimoniais inerentes ao vínculo genético. Inclusive, o Ministro acaba por citar decisão recente do Supremo Tribunal Federal, em que não afirma nenhuma prevalência entre as modalidades de paternidade, e sim a coexistência entre ambas. Por fim, que a existência da relação e convivência com o pai registral não pode ser obstáculo à busca de sua origem genética; e que o ordenamento pátrio lhe assegura essa busca pela verdade real, sem se limitar ao mero reconhecimento, sem maiores consequências no plano fático. Com base nos julgados acima colacionados, de anos distintos, pode-se ter uma base de como o Superior Tribunal de Justiça vem se portando ao decorrer dos anos diante de questões relacionas a filiação socioafetiva. O Supremo Tribunal Federal recentemente também já se manifestou a respeito da filiação socioafetiva; em sessão do dia 21 de setembro de 2016, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que a existência de paternidade socioafetiva não exime de responsabilidade o pai biológico. Por maioria de votos, os ministros negaram provimento ao Recurso Extraordinário (RE) 898060, com repercussão geral reconhecida, em que um pai biológico recorria contra acórdão que estabeleceu sua paternidade, com efeitos patrimoniais, independentemente do vínculo com o pai socioafetivo. O relator do RE 898060, ministro Luiz Fux, considerou que o princípio da paternidade responsável impõe que, tanto vínculos de filiação construídos pela relação afetiva entre os envolvidos, quanto aqueles originados da ascendência biológica, devem ser acolhidos pela legislação. Segundo ele, não há impedimento do reconhecimento simultâneo de ambas as formas de paternidade socioafetiva ou biológica, desde que este seja o interesse do filho. Para o ministro, o reconhecimento pelo ordenamento jurídico de modelos familiares diversos 198

da concepção tradicional, não autoriza decidir entre a filiação afetiva e a biológica quando o melhor interesse do descendente for o reconhecimento jurídico de ambos os vínculos. No caso concreto, o relator negou provimento ao recurso e propôs a fixação da seguinte tese de repercussão geral: A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, salvo nos casos de aferição judicial do abandono afetivo voluntário e inescusável dos filhos em relação aos pais. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Antes da promulgação da Constituição Federal de 1988 e depois dela, a família sofreu e sofre constantes mudanças. No passado, as famílias tinham como características serem patriarcais e preconceituosas, pois eram fundadas exclusivamente no matrimônio. Se surgissem pessoas que destoassem desses tipos de características, as mesmas eram excluídas e colocadas à margem da sociedade. Com a entrada em vigor da Carta Magna em 1988, foi possível sentir de forma paulatina uma evolução, pois a família passou a ser formada principalmente pelo afeto e foi defeso qualquer tipo de discriminação em relação à origem da filiação. Antes disso, a própria lei fazia distinção em relação à origem dos filhos. Conforme ficou demonstrado neste trabalho, a filiação socioafetiva não está positivada no ordenamento jurídico pátrio, trata-se de uma criação doutrinária e jurisprudencial. Os requisitos para a existência de filiação socioafetiva são o laço de afeto e a convivência familiar harmoniosa e voluntária, e depois de formada, se torna irrevogável, irretratável e indisponível voluntariamente. Esta tese pode ser comprovada gradativamente nos Tribunais de Justiça do país, assim como no Superior Tribunal de Justiça; a qual vem ganhando força aos poucos e atualmente, após decisão do Supremo, vem também dando provimento a coexistência da filiação socioafetiva com a biológica. O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, reconheceu recentemente que a existência da paternidade socioafetiva não pode eximir de responsabilidade o pai biológico. A partir do reconhecimento da filiação socioafetiva, os filhos afetivos passam a ter os mesmos direitos conquistados pelos filhos biológicos, respeitando a Constituição Federal de 199

1988 que proíbe qualquer tipo de discriminação relativa à origem da filiação. Sendo assim, os filhos afetivos equiparam-se aos filhos biológicos em direitos e deveres, como o direito sucessório à legítima e a obrigação alimentar, explanados no presente trabalho. Desta forma, tem-se que aos filhos socioafetivos deve-se garantir uma quota parte da herança de seus pais afetivos, assim como ocorre com os consanguíneos, além disso, os filhos socioafetivos têm o direito de pleitear alimentos aos pais afetivos, ou o contrário, os pais pleitearem alimentos aos filhos. Além dos efeitos jurídicos da filiação socioafetiva relatados neste trabalho, não se pode esquecer que existem outros, como o direito à guarda e visita dos filhos menores, de modificar o nome e receber novos avós no registro civil, de exercer o poder familiar, de receber benefícios previdenciários, de ser inelegível, etc. Por fim, é necessário esclarecer que o tema não comporta generalizações, devendo o magistrado ao julgar a demanda analisar cada caso concreto e suas particularidades para que o filho seja totalmente protegido, com base, inclusive, nos princípios norteadores do tema, como o princípio da Igualdade entre os filhos. REFERÊNCIAS BRASIL, Lei nº 5.869, 11 de janeiro de 1973. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 17 jan. 1973 BRASIL. Constituição (1988). Constituição: República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 05 out. 1988 BRASIL. Lei nº 10.406, 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 10 jan. 2002. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.618.230. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DF, 28 de março de 2017. Diário de Justiça Eletrônico. https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ita&sequencial=1 586336&num_registro=201602041244&data=20170510&formato=PDF BRASIL. Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1059214. Brasília, DF, 16 de fevereiro de 2012. Diário de Justiça Eletrônico. https://stj.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/21399240/recurso-especial-resp-1059214-rs-2008-0111832-2-stj/inteiro-teor-21399241 CARVALHO, Carmela Salsamendi de. Filiação Socioafetiva e conflitos de paternidade ou maternidade. Curitiba: Juruá, 2012. CASSETTARI, Christiano. Multiparentalidade e Parentalidade Socioafetiva: Efeitos Jurídicos. São Paulo: Atlas, 2014. 200

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