Palavras-chave: Creche, assistencialista, cuidar educar, dificuldades



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Transcrição:

EDUCAÇÃO SE TRAZ DA CRECHE: DIFICULDADES DE EDUCAR-CUIDAR EM UMA CRECHE DA REDE MUNICIPAL DO RIO DE JANEIRO Aristeo Gonçalves Leite Filho Daise Silva dos Santos Resumo: O presente trabalho surgiu da experiência enquanto bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência de Pedagogia PIBID/UERJ, no subprojeto de educação infantil, dentro da Creche Municipal Odetinha Vidal de Oliveira. Como muitas outras creches, a Odetinha Vidal ao ser criada tinha um objetivo predominantemente assistencialista, organizando a rotina em torno de cuidados básicos com a criança. Isso deve-se ao fato dessas instituições terem sido, por muito tempo, responsabilidade dos órgãos da área de desenvolvimento social na cidade do Rio de Janeiro. A partir dos anos 80, no entanto, a concepção em relação à instituição de educação infantil, assim como as de criança e infância, sofreram significativas mudanças. Dessa maneira, nos anos 90, as creches passaram a integrar os sistemas municipais de educação, atendendo as exigências da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN/96), deixando seu caráter assistencialista e reconhecendo o papel pedagógico da instituição no desenvolvimento das crianças. Os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (1998), assim como as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (1999 e 2009), entendem o educar e o cuidar como indissociáveis, pois é no cuidado que se estabelecem os laços entre quem cuida e quem é cuidado. Posto isso, esse estudo visa analisar as dificuldades da creche em se desligar da visão assistencialista e realizar suas atividades de cuidado não dissociando do processo educativo. Para tal, utilizaremos como metodologia os registros etnográficos feitos durante nossas atividades de bolsistas e os documentos curriculares voltadas para a educação infantil, no âmbito federal e municipal, apoiado nos estudos de CAMPOS, GUIMARÃES e ROSEMBERG. Durante os estudos, constatou-se que a dificuldade da instituição em desvincular-se do caráter assistencial não só se encontra na tradição da instituição, mas em outras questões como as recentes políticas de educação infantil do município do Rio de Janeiro. Palavras-chave: Creche, assistencialista, cuidar educar, dificuldades Introdução Originalmente as creches eram instituições que se destinavam as crianças das famílias pobres visando à proteção e cuidado de forma que as mães pudessem trabalhar com tranquilidade. As pré-escolas, por sua vez, eram lugares privilegiados nos quais as famílias mais abastadas matriculavam seus filhos com propósito educacional. Essa distinção permaneceu durante muito tempo, no qual as creches ora foram entendidas como favores de filántropos às famílias desfavorecidas ora como direito do trabalhador a ser assegurado pelo Estado.

2 Mudanças, porém, nas concepções de criança e infância permitiram a compreensão da instituição enquanto direito da criança e dever do Estado. A criança passa, nesse momento a ser entendida como sujeito de direitos e a infância como etapa fundamental na formação. A partir daí, uma série de aparatos legais estabeleceram a educação infantil como direito de todas as crianças a educação, sem que houvesse mais qualquer distinção social entre as instituições, creches e pré-escolas. Com o objetivo de adequar-se a nova legislação, as creches e pré-escolas agora estariam diferenciadas apenas quanto à faixa etária de atendimento, as crianças de 0 a 3 anos são matriculadas nas creches e de 4 a 6 em pré-escolas. Além disso, enquanto instituições de educação, as creches passavam a ser responsabilidade da secretaria de educação e visavam o desenvolvimento integral das crianças. Para tal, as funções educar e cuidar, anteriormente separadas e privilegiadas de acordo com a instituição, passam a ser compreendidas enquanto complementares e indissociáveis. O que esse trabalho se propõe é apresentar as dificuldades da creche em se desligar da função assistencialista, que a caracterizava no passado, e realizar um trabalho no qual educação e cuidado estejam integrados. Buscamos realizar isso por meio de trabalho etnográfico desenvolvido ao longo do subprojeto de educação infantil do PIBID/UERJ dentro da creche Municipal Odetinha Vidal de Oliveira. Assim, pontuaremos cada uma das dificuldades que identificamos em nossas observações e as apresentaremos de forma que seja compreendido o que atualmente dificulta a creche em se desligar do caráter assistencial e atender as crianças sem priorizar o cuidar em detrimento do educar. Uma história de diferenciação Historicamente, no Brasil, existiu uma diferenciação entre as instituições de educação infantil, creches e pré-escolas, que ia além da atual divisão etária, na qual a creche destinam-se as crianças de 0 a 3 anos e a pré-escola as de 4 a 6 anos. Quando as creches surgiram, entre o final do século XIX e início do XX, tinham um caráter assistencialista-custodinal, sustentadas por influências médico-higienistas, jurídico-policiais e religiosas. O interesse não era atender as necessidades da criança, apenas visavam acolher os filhos de mulheres pobres para que essas pudessem trabalhar, e durante muito tempo permaneceram com as funções exclusivas de cuidado e guarda. Dessa forma, organizavam seu espaço e cotidiano para atender necessidades de

3 alimentação, higiene e segurança física das crianças. Não era valorizado, nem sequer cogitado, qualquer tipo de trabalho educativo que visasse o desenvolvimento das crianças em seus aspectos cognitivos e afetivos. Nessa perspectiva, as creches não eram entendidas enquanto direito, mas sim como favor ou caridade dos filántropos. As pré-escolas, ou jardins de infância, por sua vez, se desenvolveram no setor privado, e como forma de atrair famílias ricas e utilizavam o termo pedagógico para não serem confundidas com as creches para os pobres. Desenvolviam atividades educativas, voltadas para os aspectos cognitivos, emocionais e sociais das crianças. Mesmo diante do aumento das instituições mantidas pelo poder público, em meados dos anos 1970, conquistado por meio das reivindicações de direitos das mulheres, as instituições permaneceram com essa diferenciação. Isso porque as instituições públicas não tinham contratação de professores qualificados para a função pedagógica e nem mesmo uma remuneração digna, impossibilitando uma educação de qualidade às crianças das classes populares. (FARIA, 1997, p.30) Dessa maneira, as duas instituições continuaram distintas, dando as classes sociais contextos de desenvolvimento diferenciados. Enquanto as creches eram instituições públicas destinadas às crianças das camadas mais populares, prestando atendimento de baixa qualidade, devido à escassez de recursos, e com propostas de trabalho que partiam da ideia de carência e deficiência. As pré-escolas eram privadas, com uma proposta de cunho pedagógico, e atendiam as crianças das classes mais favorecidas que recebiam uma educação que privilegiava a criatividade e sociabilidade infantil. (KRAMER, 1995 apud PASCHOAL e MACHADO, 2009, p.84) A partir dos anos 1980, nos centros urbanos, amplas parcelas da população passaram a reivindicar a creche enquanto direito do trabalhador e dever do Estado. A luta dos movimentos sociais nesse sentido levou a uma nova postura por parte do Estado que passou a conceber a creche como direito político do trabalhador e, principalmente, da criança. Essa nova maneira de se conceber as creches agilizou o processo de se pensar as creches enquanto espaços de educação voltados para as crianças pequenas (AGUIAR, 2001, p.33) Essa compreensão das creches está relacionada aos estudos nas áreas de psicologia e sociologia que surgiram proporcionando discussões e novas concepções quanto à criança e infância. Dessa forma, o momento no qual as creches passaram a ser concebidas como um espaço educativo e um direito da criança, a concepção que estava

4 em voga é a de criança como sujeito de direitos e de infância enquanto etapa fundamental na formação da personalidade dos indivíduos. A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 208, inciso IV, inseriu as creche no sistema educativo, passando a ser de responsabilidade da educação, o que até então eram encargo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (atual Secretaria Municipal de Assistência Social). Nesse momento, deixa o caráter assistencial e de espaço de guarda, que historicamente adquiriu, para caracterizar-se como instituição de educação e seguir uma concepção pedagógica. Enquanto tal, a creche, deveria ir muito além de oferecer o cuidado com a alimentação, higiene e guarda. Adquiriu a função pedagógica de proporcionar condições para que as crianças se desenvolvam. Além disso, ficou expressa na Constituição a educação como dever do Estado, o que até então era um concebido como favor, e direito da criança. Sem dúvida esse foi um marco dos direitos das crianças no Brasil, pois a partir dela a criança passou a ser concebida como sujeito de direitos. (LEITE FILHO, 2001, p. 31) Em consonância com a Constituição, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBen/1996) a Educação Infantil passou a constituir-se enquanto primeira etapa da educação básica e definiu como finalidade o desenvolvimento integral das crianças de 0 a 6 anos. Além disso, nesse momento fica expresso em lei que a educação infantil deve ser oferecida em creches e pré-escolas, e o critério etário para a divisão, sendo de 0 a 3 anos o atendimento em creches e 4 a 6 anos em pré-escolas (BRASIL, 1996). O objetivo dessa nova meta política era de equiparar as creche e pré-escolas de forma que, no âmbito da Educação infantil, não coexistissem modalidades paralelas de melhor ou pior qualidade que acolhessem segmentos infantis diferenciados por origem econômica ou racial. (PASCHOAL e MACHADO, 2009, p.84) Educação e Cuidado integrados Para adequar-se a lei e sob uma nova perspectiva de creche, agora entendida como instituição educativa que visa proporcionar o desenvolvimento integral da criança de 0 a 3 anos nos seus aspectos físicos, intelectual, afetivo e social, a função de educar e cuidar foram integradas. Dessa maneira, o Ministério da Educação e do Desporto (MEC), entre 1994 e 1998, publicou uma série de documentos visando formular as Políticas Educacionais

5 para a Educação Infantil. Entre esses, o documento Política Nacional de Educação Infantil (1994), em suas Diretrizes Pedagógicas, se refere às funções de educar e cuidar como funções indissociáveis. Outros documentos subsequentes a esses também fizeram menção dessas funções como complementares e indissociáveis, com os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (RCNEI), publicado pelo MEC em 1998, e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (1999 e 2009). Segundos os RCNEI, que visam propor sugestões aos professores das creches e pré-escolas, cuidar e educar devem estar integrados, sem priorizar um aspecto em detrimento de outro, de forma que não haja mais hierarquização dos profissionais e instituições por serem as que trabalham com crianças pequenas ou maiores. Essa nova função das instituições de educação infantil estariam ligadas a padrões de qualidade advindos de concepções de desenvolvimento infantil no decorrer das interações que as crianças estabelecem com os seres a sua volta. (BRASIL, 1998, p. 23). Nas definições de educação e cuidado presente nos referenciais nacionais fica clara a necessidade de incorporação das funções de educar e cuidar de maneira integrada. Educar é apresentado como forma de proporcionar situações de cuidado objetivando o desenvolvimento de capacidades de relacionamento interpessoal. E o cuidado é posto como algo além dos aspectos biológicos do corpo, esse deve compreender também cuidados relacionais, que envolvem a dimensão afetiva entendida como uma das bases para o desenvolvimento infantil. (BRASIL, 1998, p. 23-24). Sendo assim, pensar aspectos como higiene, segurança, afeto e a alimentação, bem como interação, estimulação e brincadeira demanda constituir as ações de cuidar e educar de forma dinâmica, pois a educação das crianças pequenas não acontece de maneira compartimentada, educação e cuidado tem um caráter de unicidade e não de dupla tarefa. Dificuldades de integrar educação e cuidado na creche Apesar de hoje ser uma instituição educativa, as creches ainda permanecem com dificuldades de se desvincular do seu caráter assistencial de origem. A permanência dessa visão de creche faz com que a função de cuidado seja priorizada e a instituição entendida ora como direito do trabalhador ora como favor as famílias. Identificamos ao

6 logo do trabalho realizado na creche Municipal Odetinha Vidal de Oliveira algumas dessas dificuldades e as apontaremos aqui. É possível perceber na creche que uma das principais dificuldades enfrentadas nesse sentido está na forma como as famílias, a comunidade e até funcionários da creche concebem a instituição. A creche ainda é pensada como uma instituição assistencial e de cuidado das crianças para que os pais trabalhem. Isso pode ser notado, por exemplo, pela reclamação em relação ao excesso de crianças cujas mães não trabalham, uma queixa comum entre funcionárias na creche. Como se apenas as mães que trabalham fora do ambiente doméstico pudessem matricular seus filhos, não reconhecendo, portanto, o direito da criança a educação desde a creche. Além do mais, não é comum por parte das famílias se dirigirem a creche para questionar a ausência de professor ou não realização de atividades pedagógicas, como em outros níveis de ensino. No entanto, quando se tratam de atividades ligadas aos cuidados com o corpo, como o banho, as exigências são frequentes. Fica evidente, desse modo, que as famílias veem a creche ainda como um estabelecimento no qual os filhos devem apenas receber cuidados, não dando tanta importância assim à questão educativa. Outro problema que não permite a conciliação entre educar e cuidar é uma visão de criança que em nossa sociedade, ainda hoje, oculta elas no presente, compreendendoas como projeto de adulto e/ou a infância como estágio preparatório, um tempo de passagem. Essa concepção de infância oculta elas enquanto sujeitos ativos e faz com que sejam pensadas sempre em relação à falta de algo, baseadas em padrões adultos. O desconhecimento por parte das próprias profissionais de educação infantil de que os bebês, apesar de pequenos, não são sujeito passivos, como estudos recentes tem comprovado, leva essas a pensarem que as crianças da creche, por terem entre 6 meses e 3 anos, demandam apenas cuidado, como troca de fraudas, banho e alimentação. Essa visão acaba entendendo as atividades de cunho pedagógico como dispensáveis ou menos importantes para essa faixa etária. É evidente que quanto menor, mais dependentes de cuidados por parte dos adultos serão. No entanto, educar não significa negligenciar o cuidado, muito pelo contrário, no cuidado está se educando a criança e vice-versa. Além disso, quando a legislação nacional se refere ao direito da criança a educação, as crianças pequenas também estão incluídas. Portanto, ao dispensarem as

7 situações de ensino-aprendizagem a essas pelo fato de serem muito pequenas estão negando um direito a elas. Uma terceira dificuldade identificada é quanto aos profissionais que trabalham na creche, a hierarquização de funções, a falta de professores de educação infantil e ausência de qualificação pedagógica dos agentes auxiliares. Quando as creches eram de responsabilidade dos órgãos de desenvolvimento social do município, não existiam professores, os diretores eram indicados e o trabalho era terceirizado. As funcionárias, pejorativamente eram denominadas crecheiras, tinham péssimas condições de trabalho, baixos salários, atrasos no pagamento e exerciam dupla função. A transferência das creches para a responsabilidade da Secretaria Municipal de Educação, no entanto, não garantiu uma mudança quanto à formação e valorização dos profissionais de creche. Após muita luta dessa categoria, em 2008, foi garantido o concurso público e a criação do cargo de Agente Auxiliar de Creche (AAC) e, em 2010, o cargo de Professor de Educação Infantil (Pei). O concurso para AAC no município do Rio de Janeiro não exigiu formação pedagógica, apenas nível médio. Isso atraiu muitas pessoas de diversas que desejavam a estabilidade de um concurso público e desqualificou o conhecimento específico para tal atividade, como se qualquer pessoa pudesse desempenhar a atividade sem que fosse preciso qualificação. Isso explica o porquê de muitos auxiliares da creche não possuírem formação e conhecimento prévio em educação. As experiências anteriores de muitos deles são em ramos sem qualquer relação com a atividade que desempenham na creche, entre eles existem ex-funcionários de empresas rodoviária, técnicos em informática e bacharéis em direito, por exemplo. Dessa maneira, na maioria das vezes, o trabalho que realizam é exercido com base em uma experiência materna. Além disso, há uma espécie de hierarquização de funções na creche, sendo comum ver uma separação entre os cuidados sendo exercidos pelos auxiliares e atividades pedagógicas pelos professores, como se fosse possível fosse possível realizar essa divisão. Portanto, criou-se a ideia de que apenas as AAC são encarregas dos cuidados e as Peis são as responsáveis pela educação da criança. Essa noção fica mais evidente devido a constante ausência de professores que levam as auxiliares a permanecerem mais tempo com as crianças. Na falta de Peis não são realizadas atividades de cunho

8 pedagógico, acabam priorizando o cuidado, por ser a atividade que o cargo exige que elas realizem. Diante de tais problemas, a creche não consegue se desassociar da velha visão assistencial que possuía e atuar como instituição de educação. Dessa maneira, não garante as crianças por ela atendidas uma educação de qualidade na qual educar e cuidar estejam integrados. Conclusão A história da educação infantil é marcada pela desigualdade no atendimento as crianças na educação infantil. Desde o século XIX, as creches são instituições voltadas para as crianças das camadas populares e visão os cuidados essenciais para que essas fiquem protegidas de forma a garantir a tranquilidade dos pais enquanto trabalham. Por sua vez, as pré-escolas nasceram como instituições educativas voltadas para as crianças da elite e com funções educativas. Conquistas sociais asseguraram, por via de lei, o direito de todas as crianças a terem acesso à educação de qualidade. As creches deveriam desse modo agora garantir não apenas a proteção e o cuidado, mas também os estímulos ao desenvolvimento integral das crianças. Não mais poderia haver a distinção de cuidado na creche para os filhos dos pobres e educação na pré-escola para os filhos dos ricos. No entanto, mesmo diante de todo aparato legal, ainda hoje as instituições de educação infantil permanecem atreladas a essa divisão. Assim, as creches não conseguem se desvincular de sua imagem assistencialista e adotar a educação e o cuidado de forma indissociável. Ao longo das pesquisas realizadas na creche Municipal Odetinha Vidal de Oliveira, por meio do PIBID de educação infantil, observamos uma série de dificuldades que demonstram que a creche não realiza as funções de educar e cuidar de forma integrada. Uma delas é a compreensão por parte da comunidade, família e funcionários que não se adequou a nova configuração da instituição, desse modo, permanecem entendendo a creche como um lugar que os pais podem deixar seus filhos em segurança para realizarem sua rotina. Outra dificuldade se refere ao entendimento que se tem de que os bebês da creche não são capazes de aprender e que a maior necessidade, portanto, é de cuidado com a alimentação, higiene e vigilância. A terceira e última dificuldade apontada foi em relação aos profissionais que atuam na creche, a

9 ausência de formação, a hierarquização de funções e a falta de professores ainda é um dos maiores problemas da instituição que acaba priorizando o cuidado e deixando a educação em segundo plano. As dificuldades que foram identificadas em nosso projeto na creche Odetinha podem ser encontradas em muitas outras creches que também tiveram uma origem assistencial e mesmo nas que surgem hoje, pois essa ideia em relação a instituições está implantada na sociedade. No entanto, isso não quer dizer que não se há nada a ser feito, se faz necessário uma mudança de forma a garantir que o direito a educação de qualidade as crianças atendidas nas creches seja respeitado. Muitos desses problemas estão por vezes relacionados uns com os outros e são consequências em grande parte da maneira como foram aplicadas as políticas públicas no município do Rio de Janeiro. A questão da formação e ausência dos profissionais que atuam nessa etapa, por exemplo, foi uma das falhas da Secretaria Municipal de Educação da cidade. Além disso, a própria formação dos profissionais que atuam na creche, ou ausência dessa, é o que tem alimentado os outros problemas, como a visão de que as crianças da creche necessitam mais de cuidado e da creche como instituição assistencial voltada para esse fim. Sendo assim, adequação das políticas públicas a legislação poderia ter evitado que muitos desses problemas. Diante de tamanhas dificuldades aqui apresentadas, notamos que as creches ainda não garantem uma educação de qualidade na qual educar e cuidar sejam funções complementares e indissociáveis. Essas instituições ainda hoje priorizam a guarda e o cuidado as necessidades biológicas em detrimento de atividades pedagógicas. Demonstra assim, que apesar da legislação, ainda há uma divisão na qual as creches cuidam e pré-escolas ensinam. Referências Bibliográficas AGUIAR, Beatriz Carmo Lima. A instituição creche: apontamentos sobre sua história e papel. Revista Nuances: estudos sobre a educação, vol. 7, 2001. Disponível em: <http://revista.fct.unesp.br/index.php/nuances/article/view/133/181> BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996). Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm> BRASIL/Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular nacional para a Educação Infantil. Vol. 1, Brasília: MEC/ SEF, 1998. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/rcnei_vol1.pdf>

10 FARIA, Sonimar C. de. História e política da educação infantil. In: FAZOLO, Eliane; CARVALHO, C. M. P. de; LEITE, M. I. F. P. ; KRAMER, Sônia (org.) Educação infantil em curso. Rio de Janeiro: Ravil, 1997. LEITE FILHO, A. G.. Proposições para uma Educação Infantil Cidadã. In: LEITE FILHO, A.G., GARCIA, R.L.. (Org.). Em Defesa da Educação Infantil. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. PASCHOAL, Jaqueline Delgdo; MACHADO, Maria Cristina Gomes. A História da Educação Infantil no Brasil: avanços, retrocessos e desafios dessa modalidade educacional. Revista Histedbr On-line, Campinas, n. 33, p.78-95, março de 2009. Disponível em: <http://www.ceap.br/material/mat14092013163751.pdf>