Reconstrução do ligamento cruzado anterior utilizando tendão do semitendinoso dobrado: relato de técnica artroscópica JOÃO MAURÍCIO BARRETTO 1 RESUMO O autor relata modificações em técnica artroscópica de reconstrução do ligamento cruzado anterior utilizando o tendão do semitendinoso dobrado. Tais modificações facilitaram a realização do procedimento cirúrgico, assim como permitiram reabilitação agressiva no pósoperatório. SUMMARY Reconstruction of the anterior cruciate ligament using double-looping semitendinous tendon: report of an arthroscopic technique The author presents modifications in arthroscopic technique for the reconstruction of the anterior cruciate ligament using a double-looping semitendinous tendon. Such modifications have allowed for an easier surgical procedure and for an aggressive rehabilitation in the postoperative period. INTRODUÇÃO A reconstrução do ligamento cruzado anterior utilizando o tendão do semitendinoso é método de tratamento descrito na literatura (1-3,6-9,13,16). Tivemos contato com essa técnica em visita ao serviço do Prof. Marczyk, em 1987. Naquela ocasião, apreciamos a possibilidade de reconstrução intra-articular preservando o mecanismo extensor, assim como o sistema de fixação do enxerto no osso utilizando tarugos ósseos em túneis pré-formados na tíbia e fêmur, através de sistema de trefinas (2,12). 1. Respons. pelo Setor de Cirurg. do Joelho do Serv. de Ortop. e Traumatol. da Santa Casa de Miseric. do Rio de Janeiro (Serv. do Prof. Lúcio Glauco Pinto). 532 O objetivo deste trabalho é relatar modificações na técnica descrita por Marczyk, que na nossa experiência tem facilitado o tempo artroscópico da reconstrução, assim como permitido mobilização imediata do joelho no pós-operatório. CASUÍSTICA De janeiro de 1991 a outubro de 1992, foram operados trinta pacientes com insuficiência crônica do ligamento cruzado anterior, nos quais utilizou-se a técnica descrita a seguir, com o mesmo protocolo de reabilitação. Vinte e sete pacientes eram do sexo masculino e três do feminino; a idade variou de 16 a 37 anos, com média de 25; 13 reconstruções realizaram-se no joelho esquerdo e 17 no direito. A indicação cirúrgica foi devida a sintomas de instabilidade após rotura do ligamento cruzado anterior, que não evoluíram bem com tratamento conservador. TÉCNICA Após os cuidados de assepsia e anti-sepsia, é feita isquemia do membro inferior a ser operado com manguito pneumático na raiz da coxa. O primeiro tempo cirúrgico consiste na retirada do tendão, que é feita inicialmente na junção musculotendinosa proximal, aproveitando-se o máximo possível do comprimento. Uma vez liberada a parte proximal, é feita incisão de lcm na prega de flexão do joelho por onde o tendão é exteriorizado. Finalmente, liberamo-lo de sua inserção através de incisão de aproximadamente 4cm ao nível da pata de ganso. Ainda nesse tempo é importante aproveitar o máximo do comprimento. Uma vez liberado, o tendão é dobrado sobre si mesmo e suas extremidades são suturadas com fio não ab- Rev Bras Ortop Vol 28, Nº 8 Agosto, 1993
RECONSTRUÇÃO DO LIGAMENTO CRUZADO ANTERIOR UTILIZANDO TENDÃO DO SEMITENDINOSO DOBRADO: RELATO DE TÉCNICA ARTROSCÓPICA Seqüência 1 1) Identificação da junção musculocutânea proximal. 2) Exteriorização do tendão na prega de flexão. 3) Desinserção ao nível da pata de ganso. 4) Enxerto pronto. Seqüência 2 1) Representação esquemática do osteótomo no intercôndilo. 2) Visão artroscópica. 3) Início da intercondiloplastia. 4) Intercondiloplastia pronta visualizando-se a região over the top. Seqüência 3 1) Representação esquemática do guia tibial. 2) Visão artroscópica do guia. 3) Fio-guia. 4) Trefina. sorvível nº 1 que servirá para passagem do mesmo pelos túneis ósseos, assim como para tensionamento no momento da fixação (seqüência 1). A sutura das extremidades convencionou-se ser B e a oposta, A. A ênfase no ganho de comprimento do tendão retirado é para termos sobra para fixação tanto na tíbia como no fêmur, como veremos adiante. Começamos o tempo artroscópico da reconstrução com investigação de todo o joelho e tratamento de lesões associadas à do ligamento. Feito isso, realizamos a intercondiloplastia, que tem duplo objetivo: tornar o intercôndilo mais permeável à passagem do enxerto e melhorar o acesso à região posterior do côndilo femoral lateral, facilitando a feitura do furo femoral. Tal procedimento é realizado com o artroscópio no acesso lateral e osteótomo fino no medial (seqüência 2). Rev Bras Ortop Vol. 28, Nº 8 Agosto, 1993 A próxima etapa consiste em preparar o furo da tíbia mantendo o artroscópio no acesso lateral; através do medial, introduz-se no joelho guia para orientação da trefina (Baumer, São Paulo, SP). O guia é posicionado, sob controle artroscópico, no ponto isométrico tibial, dando orientação à entrada de fio através da metáfise tibial, medialmente à tuberosidade anterior na mesma incisão utilizada para desinserir o semitendinoso. Estando o fio-guia intra-articular na posição desejada, a trefina é introduzida seguindo sua orientação (seqüência 3). Feito o furo tibial, o mesmo é tamponado com o impactor da trefina, para que não haja extravasamento de soro para fora do joelho. Procedemos, a seguir, à escolha do ponto isométrico femoral sob visão artroscópica direta, sem utilização de guia. No ponto escolhido, passamos o fio-guia que, 533
J.M. BARRETTO Seqüência 4 1) Escolha do ponto isométrico femoral com probe. 2) Fio-guia cruzando o intercôndilo e penetrando no côndilo femoral lateral. 3) Representação esquemática de fio-guia saindo no côndilo femoral lateral. 4) Representação esquemática de trefina entrando de fora para dentro. 5) Visão artroscópica de trefina entrando no joelho. 6) Visão artroscópica do furo femoral. Seqüência 5-1) Representação esquemática de passagem do tendão pelos furos tibial e femoral. 2) Fixação com grampos de Blount na tíbia. 3) Fixação com grampos no fêmur. entrando pelo acesso medial, transfixa o côndilo femoral lateral de dentro para fora, saindo na face lateral do joelho. No local da saída do fio, é feita incisão de aproximadamente 4cm, que dá acesso ao côndilo femoral lateral. A trefina femoral encamisa o fio-guia e o furo femoral é feito de fora para dentro (seqüência 4). Tamponamento semelhante ao tibial é efetuado no fêmur. Realizados os dois furos, retiramos o tampona- mento tibial e, através do furo da tíbia, colocamos a sutura A dentro do joelho. Através do acesso medial, com pinça de preensão, capturamos a sutura e a orientamos, sob visão artroscópica, para o furo femoral. À medida que a pinça progride no furo femoral, retiramos o tamponamento, permitindo que a mesma saia lateralmente no joelho. Nesse momento, a pinça de preensão libera a sutura que,está presa por pinça de Kocher. O enxerto é então posicionado nos túneis, de modo que haja sobra tanto na tíbia como no fêmur. Tensionando a sutura B, fixamos a sobra tibial do tendão lateralmente a sua saída do túnel com dois grampos de Blount. A seguir, introduzimos o tarugo ósseo do furo tibial. Realizada a fixação tibial, procedemos ao tensionamento do enxerto, através da sutura A, cuja sobra é fixada ao fêmur com dois grampos de Blount (seqüência 5). Seqüência 6-1) Reconstrução pronta, aspecto clínico. 2 e 3) Reconstrução pronta, aspecto artroscópico. Nesse tempo, são realizados testes de estabilidade e arco de movimento, que, uma vez satisfatórios, permitem a fixação final no fêmur, com introdução de fora para dentro do tarugo ósseo femoral. Inspeção artroscópica final é feita com o objetivo de detectar e corrigir eventuais pontos de pinçamento do enxerto (seqüência 6). A isquemia é retirada e após hemostasia é realizado fechamento por planos das feridas tibial e femoral. Com a camisa do artroscópio, lava-se abundantemente a articulação, suturando-se os acessos lateral e medial a seguir. Não usamos drenos de aspiração. O paciente sai da sala com imobilizador articulado de joelho em extensão completa. 534 Rev Bras Ortop Vol. 28. Nº 8 Agosto, 1993
RECONSTRUÇÃO DO LIGAMENTO CRUZADO ANTERIOR UTILIZANDO TENDÃO DO SEMITENDINOSO DOBRADO: RELATO DE TÉCNICA ARTROSCÓPICA DISCUSSÃO Seqüência 7 1, 2 e 3) Aspecto artroscópico do enxerto visualizado com um ano e seis meses de pós-operatório. PÓS-OPERATÓRIO Primeiros 15 dias: crioterapia, mobilização da patela, exercícios isométricos para quadríceps e isquiotibiais, mobilização passiva de 0 a 90 graus. Quinze dias a um mês: idem ao anterior, aumentando-se a fixação passiva para 110 graus. Durante o segundo mês: idem aos anteriores, associando-se exercícios isotônicos em arco de 30 a 90 graus, carga parcial do membro operado com muletas, retirada do imobilizador articulado de joelho aos 45 dias, ganho de arco de movimento. Durante o terceiro mês: idem aos anteriores, associando-se deambulação total sem auxílio, exercícios isométricos de cadeia fechada (5), exercícios proprioceptivos. Durante o quarto mês: idem aos anteriores, associando-se aumento de carga. A partir do quarto mês: musculação protegendo o arco de extensão de 30 a 0 graus até o final do sexto mês. Final do décimo mês: alta. AVALIAÇÃO PÓS-OPERATÓRIA Com a técnica utilizada, os testes para insuficiência do ligamento cruzado anterior diminuíram muito ou se negativaram, particularmente o ressalto anterior. Apesar de iniciarmos a reabilitação precocemente, não houve perda significativa da estabilidade conseguida cirurgicamente. Em um paciente, tivemos a oportunidade de realizar inspeção artroscópica da reconstrução após um ano e seis meses de operado. Observou-se bom aspecto do enxerto, que se encontrava sinovializado com trama vascular, e excelente tensão aos testes com probe (seqüência 7). Evidentemente, essas constatações são iniciais e estamos aguardando número significativo de pacientes completar dois anos de pós-operatório para realizarmos avaliação mais definitiva. O método de reconstrução do ligamento cruzado anterior proposto por Marczyk preconiza seis semanas de imobilização gessada cruropodálica. Tal medida coloca essa técnica em franca desvantagem em relação a protocolos mais agressivos de reabilitação (10,11,14,15). O sistema de fixação com utilização de tarugos ósseos confere boa estabilidade ao enxerto no peroperatório; entretanto, somente após a cicatrização dos túneis considera-se a fixação estabelecida (12). O conjunto túnel-enxerto-tarugo confere fixação através de forças de compressão, qué sabidamente favorecem a consolidação do osso esponjoso, assim como inibem fenômenos de corticalização da parede interna do túnel. Portanto, tal sistema de fixação tem bases biológicas definidas, mas requer tempo para que tenha bases mecânicas confiáveis. Buscando melhorar fixação mecânica do enxerto, começamos a retirar o tendão com o maior comprimento possível, de tal forma que as sobras pudessem ser fixadas à tíbia e ao fêmur com dois grampos de Blount. Tal medida, associada à boa isometria e à proteção da carga durante o primeiro mês, permitiu-nos proporcionar ao paciente reabilitação precoce, sem interferir na estabilidade conseguida cirurgicamente. Ao término de quatro a seis semanas, a fixação com os grampos provavelmente perde importância, pois nessa ocasião os túneis já estarão cicatrizados, proporcionando fixação biológica definitiva. Na reconstrução artroscópica apresentada por Ellera Gomes & Marczyk (4), o furo femoral é realizado de dentro para fora do joelho. Encontramos dificuldades nesse tempo operatório, pois a trefina prende-se com freqüência à sinovial na entrada do joelho e, pior do que isso, muitas vezes a angulação requerida para a feitura do furo femoral coloca a trefina em contato com a cartilagem do côndilo femoral medial, podendo lesá-la. Devido a tais intercorrências, decidimos fazer o furo femoral de fora para dentro, usando-se fio-guia passado de dentro para fora. eliminando o trabalho com trefinas no intercôndilo. sem interferir com a precisão. Com a reconstrução artroscópica, acreditamos proporcionar ao paciente cirurgia menos traumática, pois elimina-se a artrotomia, assim como maior comodidade ao cirurgião. A iluminação do joelho através da artroscopia fornece excelente visualização na região intercondilia- Rev Bras Ortop Vol. 28, Nº 8 Agosto, 1993 535
J.M. BARRETTO na, proporcionando segurança na escolha dos pontos de fixação, além da óbvia vantagem da inspeção articular. Finalizando, consideramos que a técnica descrita apresenta baixa morbidade, confere segurança, permite reabilitação agressiva no pós-operatório imediato e preserva o mecanismo extensor, sendo portanto nossa opção no tratamento das lesões do ligamento cruzado anterior. REFERÊNCIAS 1. 2. 3. 4. 5. 6. Cho, K.O.: Reconstruction of the anterior cruciate ligament by semitendinus tenodesis. J Bone Joint Surg [Am] 57:608, 1975. Ellera Comes, J.L. & Marczyk, L. R.: Reconstrução dos ligamentos cruzados do joelho com tendão duplo do semitendinoso. Rev Bras Ortop 16:128-130, 1981. Ellera Gomes, J.L. & Marczyk, L. R.: Anterior cruciate ligament reconstruction with a loop or double thickness of semitendinous tendon. Am J Sports Med 12: 199, 1984. Ellera Comes, J.L. & Marczyk, L.R.: Reconstrução artroscópica do ligamento cruzado anterior com tendão duplo do semitendinoso. Apres. no IV ORTRA Internacional, Rio de Janeiro, 1985. Fu, F. H., Woo, S.L-Y. & Irrgang, J.J.: Current concepts for rehabilitation following anterior cruciate ligament repair. J Orthop Sports Phys Ther 15:270, 1992. Holmes, P. F., James, S. T., Larson, R.L., Singer. K.M. & Jones: Retrospective direct comparison of three intraarticular anterior cruciate ligament reconstructions. Am J Sports Med 19: 596, 1991. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16. Howell, S.M., Clark, J.A. & Blasier, R.D.: Serial magnetic resonance imaging of hamstring anterior cruciate ligament autografts during the first year of implantation A preliminary study. Am J Sports Med 19:42, 1991. Marder, R.A., Raskind, J.R. & Carroll, M.: Prospective evacuation of arthroscopically assisted anterior cruciate ligament reconstruction Patelar versus semitendinous and gracilis tendon. Am J Sports Med 19:478, 1991. Mott, H.W.: Semitendinous anatomic reconstruction for cruciate ligament insufficiency. Clin Orthop 172:90, 1983. Noyes, F.R., Mangine, R.E. & Barber, S,: Early knee motion after open and arthroscopic anterior cruciate ligament reconstruction. Am J Sports Med 15: 149, 1987. Paulos, L., Noyes, F. R., Grood, E.S. & col.: Knee rehabilitation after anterior cruciate ligament reconstruction and repair. Am J Sports Med 9:149, 1981. Van Rens, T. J. G.: Fixation of ligament structures in the knee, in Chapchal, G.: Injuries of the ligaments and their repair, Stuttgart, Georg Thieme, 1976. Wilson, W.J. & Scranton Jr., P. E.: Combined reconstruction of the anterior cruciate ligament in competitive athletes. J Bone Joint Surg [Am] 72:742, 1990. Yasuda, K. & Sasaki, T.: Muscle exercise after anterior cruciate ligament reconstruction. Biomechanics of simultaneous isometric contraction method of quadriceps and the hamstrings. Clin Orthop 220:266, 1987. Yasuda, K. & Sasaki, T.: Exercise after anterior cruciate ligament reconstruction: the force exerted on tibia by separate isometric contraction of the quadriceps or the hamstrings. Clin Orthop 220:275, 1987. Zarins, B. & Rowe, C. R.: Combined anterior cruciate ligament reconstruction using semitendinous tendon and iliotibial tract. J Bone Joint Surg [Am] 68: 160, 1986. 536 Rev Bras Ortop Vol. 28. Nº 8 Agosto, 1993