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Transcrição:

BuscaLegis.ccj.ufsc.br Usucapião Coletivo Daniel Lobo Olimpio* SÍNTESE: I) Introdução; II) Conceito e fundamento constitucional; III) Finalidade do usucapião coletivo; IV) Requisitos constitucionais; V) O condomínio especial urbano; VI) Questões processuais; VII) Conclusões. I) INTRODUÇÃO: O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2000) ao regulamentar o artigo 182 e 183 da Constituição Federal, estabeleceu as diretrizes gerais da política urbana, instrumento legislativo importante voltado para uma das questões sociais mais caras da vida moderna, qual seja, a vida nas cidades. Entre os instrumentos previstos na referida lei para a implementação da Política Urbana, está o usucapião (no masculino, por ser a forma de tratamento mais usual) especial de imóvel urbano, seja na sua forma individual ou coletiva, disciplinando-o nos artigos 9º a 13º da Lei 10.257/2000. O nosso objeto de estudo, neste trabalho, está voltado para a análise do usucapião coletivo, pelo menos no que diz respeito às suas principais particularidades, sem, contudo, ter a pretensão de esgotar o tema, mas apenas de possibilitar uma visão geral, conforme será demonstrado logo a seguir.

II) CONCEITO E FUNDAMENTO CONSTITUCIONAL: O Instituto do usucapião tem suas origens arraigadas no direito privado, mais precisamente do direito civil, sendo conceituado por Caio Mário da Silva Pereira como sendo: a aquisição da propriedade ou outro direito real pelo decurso de tempo estabelecido e com a observância dos instituídos em lei 1. Hoje, pode-se dizer que o usucapião é um instituto que faz parte da teoria geral do direito, que tem espécies ou tipos próprios do direito privado, e outros específicos do direito público, no caso o direito urbanístico. É nesta última hipótese que se inclui o usucapião coletivo, cujo fundamento não está no Código Civil, mais nos artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988, e artigos 9º a 13º da Lei 10.257/2000. Visam os referidos dispositivos constitucionais dispor sobre a política urbana, ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, além de garantir o bemestar de seus habitantes e regular o usucapião especial urbano. Os citados dispositivos constitucionais estão diretamente conectados com os direitos fundamentais da pessoa. Isso ocorre porque o nosso ordenamento jurídico está voltado para alguns princípios considerados fundantes, que, entre nós, estão previstos nos artigos 1º a 4º da Constituição Federal. Trata-se dos princípios mais relevantes e talvez os menos estudados do nosso sistema jurídico. Dentre tais princípios avultam, para o estudo do presente tema, o da dignidade da pessoa humana e o objetivo de erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. É por isso que não há como desligar, nem por um só momento, o bem estar dos habitantes da cidade, previsto no capítulo da política urbana, dos direitos fundamentais da pessoa, voltados à garantia da dignidade, prestígio do trabalho e erradicação da pobreza. É 1 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 12 ed, Forense, 1997, v IV, 103. 2

esse norte que deve orientar toda e qualquer leitura do Estatuto da Cidade e de seus novos institutos, que vieram dar concretude à norma até então não exeqüível do artigo 182 da Constituição Federal. Assim, a conclusão que se deve ser feita é no sentido de que as figuras de usucapião previstas no Estatuto da Cidade, especialmente o usucapião coletivo, foram alguns dos instrumentos jurídicos escolhidos pelo legislador para promover a efetivação de valores constitucionais, entre eles, a dignidade da pessoa humana. III) A FINALIDADE DO USUCAPIÃO COLETIVO: O usucapião coletivo, conforme dito acima, tem fundamento nos artigos 182 e 183 da Constituição Federal. Contudo, foi apenas o Estatuto da Cidade, Lei nº 11.257/2000, que efetivamente criou essa espécie de usucapião. Trata-se de uma inovação, dita por toda a doutrina, como notável, marcante e revolucionária. A finalidade do usucapião coletivo, sem dúvida alguma, é tornar possível não apenas a regularização fundiária das favelas urbanas brasileiras, mas também a sua urbanização. As favelas são aqueles núcleos habitacionais caracterizados por não serem dotados de planejamento ou de serviços públicos essenciais, em que os moradores têm posse material certa de seus barracos, ou de pequenas casas de alvenaria, mas, dado o caos urbanístico das vielas e a própria precariedade das construções, está a ocupação individual sujeita a constantes alterações qualitativas e quantitativas. Nas favelas não se tem terrenos individualmente identificados, pois esses pressupõe espaço imóvel com divisas certas, de frente para via pública e em condições mínimas de urbanização. 2 No caso dos aludidos núcleos habitacionais, o que existe são espaços que não 2 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 2 ed. São Paulo; Meirelles, 1995, p 296. 3

seriam passíveis de regularização pela via do usucapião individual, exatamente por não se tratar de terreno. 3 O que o legislador pretendeu quando da criação do usucapião coletivo foi disponibilizar um instrumento que permitisse a regularização fundiária e a urbanização de toda a área de uma só vez, ou seja, viu o núcleo habitacional desorganizado como uma unidade, uma universalidade de fato. Diante da inação ou incompetência estatal em lidar com esses aglomerados urbanos, o usucapião coletivo poderá se transformar em notável instrumento da política urbana, principalmente porque transfere a iniciativa de regularização aos próprios ocupantes de tais áreas. IV) REQUISITOS DO USUCAPIÃO COLETIVO: Segundo consta no artigo 10 do Estatuto da Cidade, pode-se dizer que o usucapião coletivo tem os seguintes requisitos: a) que a área particular tenha mais de duzentos e cinqüenta metros quadrados. Ou seja, não pode ocorrer usucapião em imóveis públicos. Além disso, como o usucapião coletivo é espécie do usucapião constitucional urbano, a área total sujeita ao usucapião coletivo deve ser maior do que duzentos e cinqüenta metros quadrados, contudo as áreas individuais não poder ser superior a esse teto constitucional. 3 Nesse sentido, Francisco Loureiro, quando afirma: Vê-se, portanto, que o Estatuto da Cidade, por meio do usucapião coletivo, veio corrigir curiosa distorção jurídica criada pelo artigo 183 da Constituição Federal. O possuidor de uma habitação precária em uma favela, por exemplo tem, sem dúvida, o direito subjetivo material de obter a declaração de propriedade do espaço que ocupa por usucapião, desde que cumpra os requisitos exigidos pelo legislador, mas encontrava obstáculos à concreção desse direito. Sempre houve dificuldades em descrever o imóvel, amarrá-lo a pontos geodésicos e a prédios visinhos, estabelecer frente para a via pública, marcar com precisão e segurança a área ocupada. Por isso, o direito subjetivo ao usucapião se esvaía em dificuldades operacionais de materializar o domínio em determinado espaço geográfico. (in ALFONSIN, Betânia, e FERNANDES, Edésio. Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade. Diretrizes, Instrumentos e Processos de Gestão. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004. p 98. 4

b) ocupação da área por população de baixa renda, entendida esta expressão como a camada da população sem condições econômicas de adquirir, por negócio oneroso, um imóvel de moradia. Caberá ao juiz examinar caso a caso se os requerentes encaixam-se no conceito de baixa renda. c) ocupação da área para fins residenciais. A existência de imóveis com destinação mista, residencial e comercial, ou, até mesmo somente comercial, não deve ser empecilho para a incidência do usucapião coletivo, uma vez que os núcleos habitacionais ou favelas formam um todo orgânico, tratado como uma unidade pelo legislador, de tal modo que excluir poucos imóveis comerciais, abrindo retalhos na gleba, pode significar, em certos casos, a inviabilidade da urbanização futura. Em havendo essas hipóteses (alguns poucos imóveis não residenciais), desde que não desfigure o todo, pode-se aplicar o princípio da razoabilidade e a vocação eminentemente residencial da área, vista como uma unidade. d) que a posse da respectiva área seja sem oposição e ininterrupta pelo prazo de cinco anos. Ao contrário do que ocorre no usucapião individual, aqui admite o legislador ( 1º do artigo 10) a soma das posses, tanto pela accessio como pela successio possessionis, bastando que ambas sejam contínuas e cumpram os demais requisitos do usucapião coletivo. A doutrina costuma apontar como razão dessa diversidade de tratamento a própria função exercida pelas duas modalidades de usucapião especial. Enquanto o individual presta-se primordialmente à regularização fundiária, o coletivo volta-se, também e com a mesma intensidade, à urbanização de áreas degradadas, mediante constituição de condomínio peculiar. Outrossim, esse período de cinco anos pode ser computado a partir da vigência da Constituição de 1988, e não somente o período de posse posterior à vigência do Estatuto da Cidade. E, por fim, apesar de haver divergência doutrinária existente, entendo que a posse ininterrupta e pelo prazo de cinco anos deva incidir sobre a área total, vista como uma unidade, independentemente da variação de tempo dos ocupantes particulares. Ou melhor explicando, o prazo de ocupação da área total deve ser, no mínimo, de cinco anos, independentemente de um ou outro particular possuir seu barraco ou casa por período inferior a esse prazo. Melhores esclarecimentos sobre esse particular ponto de vista será 5

demonstrados logo a seguir, quando da análise da sentença proferida na ação de usucapião coletivo. e) a impossibilidade de se identificar os terrenos ocupados individualmente por cada possuidor. A expressão deve ser interpretada pelo critério teleológico e com certa largueza, evitando-se a interpretação literal. Assim, basta pensar numa situação concreta, qual seja, a do usucapião de uma favela contendo cem ou duzentos barracos. A inexistência de vias públicas internas e de recuos entre as moradias impossibilitaria qualquer descrição individual, com um mínimo de segurança, apta a ingressar no registro imobiliário e conformar direito de propriedade. Logo, nos aludidos núcleos habitacionais não há propriamente terrenos identificados, mas sim espaços que não seriam passíveis de regularização pela via do usucapião individual. V) O CONDOMÍNIO ESPECIAL URBANO: A sentença que declara a aquisição da propriedade pelo usucapião coletivo também cria um condomínio especial entre os co-possuidores/proprietários, com a peculiaridade de não ser passível de extinção, pelo menos até que ocorra a urbanização. Ou seja, com a sentença, a declaração de propriedade incide sobre toda área, e é conferida a todos os co-possuidores, cada qual sendo titular de uma fração ideal, formandose um condomínio especial, até posterior urbanização. Ainda não há uma delimitação de cada lote, mais apenas uma fração ideal que cada co-possuidor irá ter sobre o todo. Essa delimitação ocorrerá apenas com a urbanização, ocasião em que se abrirá às ruas, com a divisão dos lotes de acordo com o que determina a legislação; irá haver o fornecimento de água, luz, telefone, gás, esgotamento sanitário, entre outros serviços públicos. O condomínio do Estatuto da Cidade é especial porque, ao contrário do condomínio tradicional do Código Civil, não está sujeito à extinção, salvo por deliberação tomada por dois terços dos condôminos, no caso de execução de projeto de urbanização. Vê-se, 6

portanto, que a extinção está subordinada a duplo e simultâneo requisitos, a saber: a deliberação da maioria qualificada e a existência de projeto de urbanização. O legislador usou o usucapião coletivo como primeira etapa para a urbanização da gleba. Criou facilidades e estímulos num primeiro momento, induzindo a formação de condomínio entre os possuidores/proprietários. Num segundo momento, impediu a extinção do condomínio, subordinando o natural desejo da propriedade plena à prévia regularização urbanística. Para não haver dúvida, é importante fazer uns esclarecimentos. Imaginando-se uma situação típica de uma favela, onde existem vários barrracos ou algumas pequenas casas de alvenaria, bem como diversos becos ou vielas de acesso, praças ou algumas áreas que são comuns a todos os moradores. Com a prolação da sentença, o proprietário de cada barraco irá ter uma fração ideal de domínio de todo o terreno. Essa delimitação certa somente ocorrerá com a urbanização conforme acima dito. Enquanto isso, a própria sentença constitui um condomínio, entre os co-proprietários, para a administração das partes comuns do terreno, ou seja, como será a utilização e limpeza das vielas, dos becos, das praças ou de outros espaços comuns. Dentro de cada residência (barraco ou pequenas casas de alvenaria), o proprietário exerce plenamente seus poderes. Assim, as deliberações do condomímio irão incidir apenas sobre as áreas comuns e outros temas de interesse da coletividade de moradores. Por fim, no que se refere à administração do condomínio, criou-se regime semelhante ao da Lei nº 4591/64, vinculando todos os condôminos à deliberação da maioria, inclusive os discordantes e os ausentes. VI) ALGUMAS QUESTÕES PROCESSUAIS: a) Da legitimidade ativa: 7

Segundo reza o artigo 12 da Lei nº 10257/2001, são partes legítimas para a propositura da ação usucapião especial urbana: I) o possuidor, isoladamente ou em litisconsórcio originário ou superveniente; II) os possuidores, em estado de composse; III) como substituto processual, a associação de moradores da comunidade, regularmente constituída, com personalidade jurídica, desde que explicitamente autorizada pelos representados. Neste ponto, apesar da divergência doutrinária existente, entendo que os incisos I e II do referido artigo dizem respeito ao usucapião especial urbano individual. De fato, nesses casos, o que o sujeito vem a juízo é pretender o reconhecimento de seu direito do ponto de vista particular, ainda que a autuação se dê de forma conjunta, via litisconsórcio. Assim, somente a hipótese do inciso III se aplica ao usucapião coletivo, ou seja, a associação de moradores da comunidade, regularmente constituída, desde que explicitamente autorizada pelos representados, é que pode impetrar a ação de usucapião coletiva. Em caso de propositura da ação de usucapião coletiva pela associação de moradores, é obrigatória a identificação clara dos possuidores. Essa identificação deve ser feita por unidade familiar, ou seja, cada família deverá ter um representante, que, juntamente com o seu cônjuge, deverá constar na inicial como possuidor. Entendo, outrossim, por ser a ação de usucapião coletivo uma demanda de natureza também coletiva, que os legitimados para a propositura da ação civil pública poderiam utilizar essa espécie de ação para tutelar o meio urbanístico, que inclui, sem dúvida, a declara ção de usucapião de área superior a duzentos e cinqüenta metros quadrados ocupada por uma coletividade de pessoas, desde que satisfeitos os demais requisitos constitucionais e legais. Dentre os legitimados na Lei nº 7347/85, quem demonstra especial interesse de agir, nessas situações, seria o Município de cuja área usucapível estivesse vinculada e o Ministério Público. O Município porque as favelas urbanas são problemas típicos de 8

cidades, cujo interesse local em sua regularização fundiária e urbanização justifica a sua competência constitucional e seu interesse de agir. O Ministério Público porque o perfil constitucional desta instituição e a relevância social do tema justifica a legitimidade do Parquet para a propositura de ação civil pública na tutela do meio urbanístico (Lei nº 7347/85, VI) e a garantia do direito à moradia. Assim, uma vez que se possa configurar que o não exercício da posse de uma área por parte do proprietário, com medida superior a duzentos e cinqüenta metros quadrados, esteja prejudicando o direito constitucional de habitação e o desenvolvimento urbano, previstos nos artigos 182 e 183 da Constituição Federal cumulados com a Lei n 10257/2001, temos como perfeitamente cabível a legitimidade do Ministério Público e entes da administração pública direta e indireta, no pedido de tutela judicial coletiva visando pedir a perda da propriedade em favor da comunidade, considerada a área globalmente considerada, para, assim, poder a administração pública desenvolver, sem precisar desapropriar, um política de regularização e desenvolvimento urbano na área, com notável economia para o poder público. b) Da legitimidade passiva: Haverá a necessidade de se formar um litisconsórcio passivo necessário, formado por: b.1) titulares do domínio, ou seja, as pessoas (físicas ou jurídicas, desde que privadas) que sejam proprietárias do terreno ou área sobre a qual recairá a declaração de usucapião; b.2) os proprietários dos imóveis confrontantes; b.3) os eventuais possuidores ao tempo do ajuizamento da ação que não figurarem no pólo ativo da demanda; b.4) os terceiros serão citados por edital, para conferir eficácia erga omnes à coisa julgada; b.5) a intimação das fazendas federal, estadual e municipal; b.6) a intimação do Ministério Público para intervir no feito como custos legis. c) Da prova: 9

Cabem todas as provas em direito admitidas, com especial atenção para as provas testemunhal, documental e pericial. Será a perícia valiosa para dar exata configuração à gleba, bem como proporcionar ao juiz correta visão dos confrontantes e de eventuais possuidores que não figurem no pólo ativo da demanda. A prova, no caso, conforme o entendimento expressado no tópico referente ao requisito da posse, deve incidir sobre a posse ou ocupação total da área por prazo de, no mínimo, cinco anos, ininterrupta e pacífica. Não se trata, assim, de provar a posse de cada particular de forma individual ou particularizada, o que tornaria o processo moroso e complexo. Basta pensarmos em uma favela com mil famílias, para se chegar à conclusão que é inviável se analisar a posse individual ou particulariza. A única alternativa, nessa mesma hipótese, é se comprovar a posse coletiva, da área total, que pode ser feita, por exemplo, pela existência na área pleiteada pela comunidade de atividades públicas realizadas neste prazo, tais como terraplanagem, realização de esgoto, instalação de rede elétrica, construção de escolas, postos de saúde, mercados, entre outros exemplos. d) Do rito processual: Segundo o artigo 14 do Estatuto da Cidade na ação judicial de usucapião especial urbano, o rito processual a ser observado é o sumário. Trata-se de uma inovação que, segundo a quase unanimidade da doutrina, foi não muito feliz. O rito sumário se apresenta como incompatível com a ação de usucapião, uma vez que necessita, para a realização da audiência preliminar, a efetiva citação de todos os que figuram no pólo passivo, o que poderá trazer transtornos em se tratando de usucapião. Para solucionar esse problema, a doutrina se mostra dividida, tem que entenda que o juiz deve converter o rito sumário em ordinário, outros entendem que se deva adotar o rito especial previsto nos artigos 941 a 945 do Código de Processo Civil, também para os casos de usucapião especial urbano, seja individual ou coletivo. Particularmente, entendo que a segunda posição é a mais correta. Ora, se houve falha do legislador em prevê o procedimento correto, deve-se buscar aquele que já existe e que é específico para esse tipo de ação, qual seja, o procedimento especial para as ações de usucapião previstos nos artigos 941 a 945 do Código de Processo Civil. 10

e) Da alegação de usucapião especial em contestação: Com base na súmula 237 do Supremo Tribunal Federal, já era pacífica a possibilidade de se avocar a usucapião como matéria de defesa em contestação. Ou seja, em havendo ações possessória ou petitória, o réu, na contestação, poderia argüir, como matéria de defesa, o usucapião. Contudo, a sentença de improcedência, embora reconhecesse a consumação da prescrição aquisitiva, não era hábil para ensejar o registro da aquisição. Assim, o réu, apesar de ter uma sentença que declarasse a aquisição do domínio de um imóvel pela via do usucapião, para poder efetuar sua transcrição no registro imobiliário deveria ajuizar a específica ação especial de usucapião. Pois bem, o artigo 13 do Estatuto da Cidade reconheceu a possibilidade de se alegar à usucapião especial urbana como matéria de defesa e, além disso, previu a possibilidade da própria sentença que tiver reconhecido o usucapião servir como título para a transcrição do imóvel. Quanto a essa última possibilidade, qual seja, a sentença que tiver reconhecido a usucapião como matéria de defesa servir como título de transcrição de domínio, a doutrina vem entendendo ser inaplicável, alegando para tanto, dois motivos: primeiro, pode ser que não se tenha, no caso concreto, a descrição da área usucapienda; segundo, porque na ação possessória ou petitória em que tenha havido a alegação de usucapião como exceção, não teria havido a participação das fazendas da união, estadual ou municipal, bem como do Ministério Público como fiscal da lei. Assim, tem que entenda que, em tendo havido exceção de usucapião em demanda petitória ou possessória, seria necessário que o juiz determinasse a integração à lide destes litisconsortes necessários, permitindo que estes sujeitos participem da demanda para que, em sendo acolhida a exceção, seja a sentença considerada título hábil para ser inserido no Registro Imobiliário em favor do excipiente. f) Da sentença: Segundo prevê o parágrafo terceiro do artigo 10, na sentença o juiz atribuirá igual fração ideal do terreno a cada possuidor, independentemente da dimensão do terreno que cada um ocupe, salvo hipótese de acordo escrito entre os condôminos, estabelecendo frações ideais diferenciadas. 11

Ou seja, a sentença tem natureza mista, é tanto declaratória como constitutiva. É declaratória porque reconhece a existência de usucapião coletivo, atribuindo a cada possuidor, em regra, igual fração ideal do terreno, independentemente da dimensão da área que este possuidor ocupe, salvo se existente acordo escrito entre os condôminos estabelecendo frações ideais diferenciadas, caso em que o juiz deverá observá-lo na própria sentença. Outrossim, é constitutiva, porque na própria sentença o juiz determina a constituição do condomínio entre os co-possuidores. Em determinados casos, diante da complexidade da demanda, principalmente quando se estiver em litígio centenas ou milhares de famílias ocupantes de uma determinada área, é perfeitamente defensável que o juiz dê prioridade para a decretação por sentença de usucapião da área considerada como um todo, deixando para um segundo momento a simples homologação do acordo da divisão das frações diferenciadas. Isso para que se possibilite ofertar uma tutela jurisdicional rápida, eficiente e com pacificação social. g) Da suspensão das ações possessórias e petitórias propostas sobre o imóvel usucapiendo: O artigo 11 do Estatuto da Cidade dispõe que, na pendência de ação de usucapião especial urbano, ficarão sobrestadas quaisquer outras ações, petitórias ou possessórias, que venham a ser propostas relativamente ao imóvel usucapiendo. Não é feliz o dispositivo, pois pode dar margem a abuso de direito, impedindo, por tempo indeterminado, a retomada da área pelo proprietário. Melhor seria que o legislador tivesse atribuído ao juiz a faculdade de suspender ou não um dos feitos, quando houvesse risco de sentenças contraditórias. 4 h) Da assistência judicial gratuita e da gratuidade do registro da sentença: Em se tratando de usucapião coletivo, a hipossuficiência econômica da comunidade ou grupo de pessoas já é pressuposto do próprio direito alegado, permitindo o acesso delas 4 Sobre o tema: LOUREIRO, Francisco Eduardo. Juízo Possessório e Juízo Dominial. Revista de Direito Imobiliário, n 50, p. 207-228. 12

ao benefício da assistência judiciária gratuita, bem como ao registro também gratuito da respectiva sentença usucapienda ( 2º do artigo 12 da Lei nº 10257/2001). VII) CONCLUSÕES: Verifica-se que os artigos 9º a 14 do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001) introduziram significativas alterações no instituto do usucapião constitucional urbano, previsto no artigo 183 da Constituição Federal. O Estatuto da Cidade trouxe um importante instrumento para a concreção do direito humano à moradia, possibilitando através dos institutos da usucapião especial urbana, individual e coletiva, a democratização do acesso à terra e o direito à cidadania às populações à margem da cidade formal. O usucapião coletivo em especial veio preencher lacuna no sistema jurídico, que impossibilitava a aplicação do direito subjetivo criado pelo artigo 183 da Constituição Federal a núcleos habitacionais irregulares e favelas, em vista da fluidez e falta de certeza material dos limites ocupados. Aliás, deve haver, por parte do intérprete, um permanente esforço para libertar-se da figura do usucapião individual disciplinada pela lei civil, que tem por escopo apenas a aquisição da propriedade por modo originário. Aqui, o legislador é mais ambicioso e almeja não só a regularização fundiária, mas também a urbanização da gleba. Para finalizar, vale registrar as palavras do Dr Ingo Wolfgang Sarlet 5, que deverão ser levadas em consideração quando da análise dos dispositivos ora comentados: 5 SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: Algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. Arquivos de Direitos Humanos, v. 4, 2002, p.191. 13

...cremos ser possível afirmar que os direitos fundamentais sociais, mais do que nunca, não constituem mero capricho, privilégio ou liberalidade, mas sim, premente necessidade, já que a sua supressão ou desconsideração fere de morte os mais elementares valores da vida e da dignidade da pessoa, em todas as suas manifestações. A eficácia (jurídica e social) do direito à moradia e dos direitos fundamentais sociais deverá, portanto, ser objeto de permanente e responsável otimização pelo Estado e pela sociedade, na medida em que levar a sério os direitos (e princípios) fundamentais correspondente, em última análise, a ter como objetivo a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana, por sua vez, a mais sublime expressão da idéia de justiça... NOTAS BIBLIOGRÁFICAS: ALFONSIN, Betânia, e FERNANDES, Edésio. Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade. Diretrizes, Instrumentos e Processos de Gestão. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2004. p 98. LOUREIRO, Francisco Eduardo. Juízo Possessório e Juízo Dominial. Revista de Direito Imobiliário, n 50, p. 207-228. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 12 ed, Forense, 1997, v IV, 103. SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: Algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia. Arquivos de Direitos Humanos, v. 4, 2002, p.191. SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. 2 ed. São Paulo; Meirelles, 1995, p 296. *Advogado em Natal/RN. 14

OLIMPIO, Daneil Lobo. Usucapião Coletivo. Disponível em: < http://www.jfrn.gov.br/doutrina/doutrina218.doc>. Acesso em: 16 out 2006. 15