A AUTONOMIA DO DIREITO URBANÍSTICO E A SUA IMPORTÂNCIA PARA O ENSINO JURÍDICO Georges Louis Hage Humbert 1 Introdução Poucas são as faculdades de Direito brasileiras que possuem o Direito Urbanístico integrando a sua grade curricular, seja como disciplina obrigatória ou como uma daquelas optativas. Esta constatação decorre, em larga medida, em face do desconhecimento dos acadêmicos e mesmo dos operadores do Direito, ou, no mínimo, o não conhecimento de qual o objeto, princípios, instituições, instrumentos e a finalidade deste ramo da ciência jurídica. Consequentemente, a matéria não faz parte das grades curriculares e deixa de ser adequadamente conhecida pelos futuros juristas, ou, quando menos, é vista lateralmente, ao arrepio da indispensável compreensão do regime jurídico que lhe é peculiar. O resultado desta problemática é visível: formamos operadores do Direito que, diante de casos concretos que têm por objeto os problemas afetos à disciplina jurídica dos espaços urbanos, não interpretam ou aplicam a norma adequadamente, causando prejuízos à tutela deste bem juridicamente relevante, que mereceu um capítulo próprio na nossa Carta Magna (art. 182). Para a solução desta demanda, é fundamental a defesa científica do Direito Urbanístico como ramo autônomo do direito, consoante demonstraremos ao longo deste ensaio. 1
2 A Autonomia do Direito Urbanístico e a sua Importância para o Ensino Jurídico 1 Apesar do inconteste reconhecimento da existência de inúmeras normas jurídicas peculiares ao Direito Urbanístico nos diversos ordenamentos jurídicos, sua autoridade como ramo autônomo do Direito ainda não é pacífica entre os cientistas do Direito pátrio. Diogo de Figueiredo Moreira Neto insere-o ora num capítulo especial do Direito Ecológico 2, ora como ramo do Direito Administrativo 3, conceituando-o como "conjunto de técnicas, regras e instrumentos jurídicos, sistematizados e informados por princípios apropriados, que tenha por fim a disciplina do comportamento humano relacionado aos espaços habitáveis" 4. Outrossim, autores há que sustentam ser o Direito Urbanístico um capítulo do Direito Ambiental. Adota este posicionamento, entre outros, Celso Fiorillo. É o que se pode inferir das suas seguintes divagações: "Com a edição da Constituição Federal de 1988, fundamentada em sistema econômico capitalista que necessariamente tem seus limites impostos pela dignidade da pessoa humana, a cidade - e suas duas realidades, a saber, os estabelecimentos regulares e os estabelecimentos irregulares - passa a ter natureza jurídica ambiental, 1 Este texto replica, quase que na íntegra, o quanto sustentamos em nossa tese de mestrado em Direito do Estado, defendida e aprovada, no ano de 2009, pela PUC- SP. Confira-se: HUMBERT, Georges Louis Hage. Direito Urbanístico e função socioambiental da propriedade imóvel urbana. Belo Horizonte: Forum, 2009, especialmente o Capítulo 1, item 3. 2 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Introdução ao Direito Ecológico e ao Direito Urbanístico: instrumentos jurídicos para um futuro melhor. p. 53-54. 3 Idem. p. 56. 4 Idem. 2
ou seja, a partir de 1988 a cidade deixa de ser observada a partir de regramentos adaptados tão somente aos bens privados ou públicos e passa a ser disciplinada em face da estrutura jurídica do bem ambiental de forma mediata e de forma imediata em decorrência das determinações constitucionais emanadas dos arts. 182 e 183 da Carta Magna (meio ambiente artificial)." 5 Outros estudiosos que se debruçaram sobre o tema preferem afirmar ser o Direito Urbanístico mero capítulo do Direito Administrativo, ou mesmo capítulo integrante do Direito Econômico 6. Existem ainda aqueles que preferem reconhecê-lo como ramo do Direito ainda em formação. Este é o posicionamento de José Afonso da Silva 7. Ao longo de sua investigação no que se refere ao domínio desta ciência, assevera o consagrado jurista: "Parece ainda cedo para falar-se em autonomia científica do Direito Urbanístico, dado que só muito recentemente suas normas começaram a desenvolver-se em torno do objeto específico que é a ordenação dos espaços habitáveis ou sistematização do território. Mas também - ressalva o festejado constitucionalista - não parece assistir razão àqueles que pretendem considerá-lo como simples capítulo do direito administrativo ou ramo do direito econômico. Em verdade, o Direito Urbanístico no Brasil forma-se de um conjunto de normas que compreendem normas gerais, de competência legislativa da união, hoje consubstanciadas no Estatuto da Cidade; normas suplementares de cada estado de pouca expressão; normas municipais, também de caráter 5 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Estatuto da Cidade comentado: Lei nº 10.257/01, Lei do meio ambiente artificial. p. 26-28. 6 José Afonso cita como integrante da primeira corrente Virgílio Testa e, da segunda, André de Laubardire. Cf. SILVA. Direito Urbanístico brasileiro. p. 40-41. Eros Roberto Grau, ao prefaciar dissertação de mestrado, indica que entende o Direito Urbanístico como filiado ao Direito Econômico. In: GUERRA, Maria Magnólia Lima. Aspectos jurídicos do uso do solo urbano. p. 5. 7 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico brasileiro. p. 43. 3
suplementar - agora por força do Estatuto da Cidade, com mais unidade substancial." Logo após, arrebata: "Apesar disso ainda é prudente considerá-lo como uma disciplina de síntese, ou ramo multidisciplinar do Direito, que aos poucos vai configurando suas próprias instituições." 8 Ocorre que, a despeito de sua origem recentíssima, estamos certos - discordando, com a devida vênia dos autores supracitados - da existência do Direito Urbanístico como ramo autônomo do Direito. Com efeito: "Diz-se que há uma disciplina juridicamente autônoma quando corresponde a um conjunto sistematizado de princípios e regras que lhe dão identidade, diferenciando-a das demais ramificações do Direito." 9 Vale dizer, para se reconhecer a autonomia de determinado ramo da ciência jurídica é indispensável identificar alguns elementos essenciais que o conforma. É preciso colher no ordenamento um plexo normativo que lhe seja correspondente, institutos afins, o regime jurídico, além de precisar o objeto de estudo que lhes sejam próprios, formulando-se um conceito. 8 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico brasileiro. p. 44. Regina Helena Costa compartilha deste mesmo entendimento, ao pontuar que "(...) a autonomia científica do Direito Urbanístico ainda não foi alcançada, sendo-lhe possível extrair-se-lhe alguns princípios, que lhe tocam especialmente o objeto, ainda que não lhe sejam exclusivos". COSTA. Princípios de Direito Urbanístico na Constituição de 88. In: DALLARI; FIGUEIREDO (Coord.). Temas de Direito Urbanístico 2. p. 110. 9 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. p. 43. 4
Ora, da atual Constituição da República extrai-se um plexo de normas de Direito Urbanístico. São regras e princípios próprios, determinando-se uma série de competências das mais diversas naturezas, incluindo-se, ainda, um capítulo exclusivo dedicado à Política Urbana, sendo imperioso ressaltar a menção expressa ao Direito Urbanístico como um dos ramos contemplados no ordenamento pátrio 10. Este plexo de normas de Direito Urbanístico não se limita à Constituição. São inúmeras as leis versando acerca do uso e ocupação, parcelamento e zoneamento do solo e áreas urbanas 11. Por fim, não se pode olvidar a existência de um estatuto geral próprio de Direito Urbanístico: é a Lei nº 10.257/01, autodenominada Estatuto da Cidade que, seguramente, é norma geral de Direito Urbanístico - a despeito deste diploma legal conter normas pertinentes a outros ramos do Direito - por estarmos diante de ramo multidisciplinar e mesmo pela configuração sistêmica, concatenada do Direito. É o que, sem maior esforço, se infere do art. 1º da citada lei e seu parágrafo único: "Art. 1º Na execução da política urbana, de que tratam os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, será aplicado o previsto nesta Lei. Parágrafo Único. Para todos os efeitos, esta Lei, denominada Estatuto da Cidade, estabelece normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental." 10 Vide o disposto no art. 24, I, da Constituição da República, ao tratar das competências concorrentes entre os entes federativos. 11 Por todas, a Lei nº 10.257, autodenominada Estatuto da Cidade, o Decreto-Lei nº 25/1937, que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, os Decretos ns. 59/1937 e 271/67, Lei nº 6.766, que dispõem sobre parcelamento e loteamento do solo urbano, Lei Complementar nº 14/73, que estabelece algumas regiões metropolitanas, e a Lei nº 5.917, que aprova o plano nacional de viação. 5
Ademais, é de se ressaltar a existência de uma série de elementos e institutos jurídicos específicos de Direito Urbanístico. Aos já consolidados, solo criado, parcelamento, edificação ou utilização compulsórios e direito de preempção 12, plano diretor, desapropriação, foram, com o advento do Estatuto da Cidade, agregados novos componentes, tais como a transferência do direito de construir, a outorga onerosa do direito de construir, as operações urbanas consorciadas e o estudo de impacto de vizinhança. Destarte, forçoso concluir estarmos diante de disciplina jurídica autônoma 13, uma vez que possui uma ordenação sistematizada de regras e princípios que lhe são peculiares, que está submetida a um regime jurídico específico e que tem objeto de estudo próprio: as normas jurídicas disciplinadoras dos espaços habitáveis 14. Em síntese: o Direito Urbanístico possui vida própria. Tem linguagem, objeto, institutos, finalidades, regras e princípios prescritivos que lhe são característicos, elementos que demonstram, inequivocamente, sua autonomia científica. Destarte, demonstrar a autonomia científica do Direito Urbanístico, significa delimitar o seu objeto, seus princípios, institutos e instrumentos próprios, a justificar uma atenção especial do estudioso do direito, sendo, portanto, ponto nevrálgico para a valorização do ensino desta 12 Sobre esses três clássicos elementos do Direito Urbanístico, consulte-se, por todos, LIRA. Elementos de Direito Urbanístico. Especialmente p. 155-170. 13 Não podemos deixar de mencionar que esta autonomia é relativa, uma vez que o estudo do Direito Urbanístico não pode, como é próprio da ciência do Direito, se dar de forma isolada, pelo que são imprescindíveis ao conhecimento deste as diretrizes basilares do Direito Constitucional e Administrativo. Diga-se, outrossim, que se trata de autonomia no plano da ciência do direito, da atividade descritiva do Direito e não de autonomia no plano do direito positivo, já que este último é uno, indivisível, sistema ordenado de normas. 14 Aqui compreendido em sentido amplo, ou seja, referindo-se aos espaços habitáveis com altas taxas de densidade demográfica, esteja este incrustado na zona urbana ou rural. 6
disciplina a provocar a sua inclusão como matéria das grades curriculares das faculdades de Direito. 3 Conclusões 1 - As faculdades de Direito no Brasil, em regra, não contemplam o Direito Urbanístico em suas grades curriculares; 2 - Referido problema decorre do não conhecimento acerca do objeto, princípios, institutos e instrumentos peculiares ao Direito Urbanístico e causa a má operação das normas que disciplinam os espaços urbanos; 3 - Para que o Direito Urbanístico passe a fazer parte das grades curriculares das faculdades de Direito é fundamental a comprovação da sua autonomia dentro da ciência jurídica, pois é a partir desta constatação que é dos seus elementos conformadores (objeto, princípios, institutos e instrumentos peculiares) que se fundamenta e justifica perante as instituições de ensino superior o dever de promover uma linha de pesquisa afeta à escorreita compreensão dos princípios e regras jurídicas pertinente ao ordenamento do ambiente urbano. Referências Bibliográficas BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 19. ed., rev. e atual. até a emenda constitucional 47, de 5.07.05. São Paulo: Malheiros, 2005. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do Direito. Trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1996. (Coleção elementos do direito). 7
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