A RELAÇÃO ENTRE DIREITO E JUSTIÇA EM HANS KELSEN Considerações sobre a natureza da norma fundamental (Grundnorm)



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Transcrição:

A RELAÇÃO ENTRE DIREITO E JUSTIÇA EM HANS KELSEN Considerações sobre a natureza da norma fundamental (Grundnorm) Trabalho apresentado no XI Encontro Nacional de Filosofia da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), em 19/10/2004. Carolina Muranaka Saliba 1 Resumo: A filosofa do direito desde o século XX tornou-se forçosamente tributária a Hans Kelsen, o que significa afirmar que nenhuma teoria em seu âmbito pode julgar-se suficientemente embasada se não contiver um diálogo, explícito ou implícito, com os pontos essenciais do extenso e profícuo pensamento do aludido jusfilósofo. Nesta acepção específica, pode-se seguramente aplicar a Kelsen a expressão divisor de águas. Obviamente, a contra-face deste status reside na maciça crítica que já se dirigiu e ainda se dirige aos pilares da Reine Rechtslehre (1960). Nesta, que é de fato a sua obra mais conhecida, Kelsen expressa com toda a clareza a pureza metodológica de que deve se revestir a ciência jurídica se pretende com propriedade denominar-se ciência. Uma tal pureza consistiria em afastar do direito tudo aquilo que, ainda quando esteja em estreita conexão com ele, não o integre. Visto de outro ângulo, o direito é uma ordem normativa; este é o ser do direito. O que ele deveria ser não é matéria da ocupação do cientista jurídico, mas sim da política. De modo similar, outra avaliação exterior ao direito é a da sua justiça ou injustiça. No desenvolvimento da Teoria Pura, o instrumental teórico relevante é o da validade. O que a verdade é para o conhecimento científico dos dados empíricos, a validade (e não a justiça) é para a ciência jurídica. O fundamento da ou a razão para a validade (existência) da norma jurídica é alcançado na sua correspondência com outra norma que lhe é superior, o que se aplica também a esta última. Por este procedimento regressivo, de norma fundada à norma fundante, chega-se à Constituição historicamente primeira e, finalmente, à norma fundamental (Grundnorm). Uma norma é fundamental quando (i) não repousa sua validade em nenhuma outra superior, visto que ela é a mais elevada e, portanto, (ii) não é posta por nenhuma autoridade jurídica (já que, do contrário, teria como norma superior a que instituísse o dever de respeitar esta autoridade). Estas características da Grundnorm, por si só, deixam antever a sua problematicidade. Por isso, e dado o caráter central que desempenha na Teoria Pura, Kelsen viu-se constantemente constrangido pelo seu rigor metodológico a reelaborar sua visão acerca dela. Assim é que, quanto à natureza da Grundnorm, passou de um argumento transcendental neokantiano (na Reine Rechtslehre) ao da ficção aos moldes da filosofia do Als Ob de Vaihinger (na póstuma Allgemeine Theorie der Normen). O propósito deste trabalho é analisar a natureza da Grundnorm nas mais variadas propostas kelsenianas condição lógico-transcendental, pressuposição, hipótese, ficção e, daí, a título de ensaio, aproximá-la da idéia de justiça. Cuida-se, bem entendido, não de asseverar a objetividade da idéia de justiça no seu repousar como fundamento do próprio direito, e muito menos de legitimar todo o direito como justo (por uma espécie de justiça originária ou constitutiva ). Trata-se de reconhecer, preliminarmente, que a resposta à questão necessária à cognição jurídica como é possível uma norma fundamental? pode muito bem corresponder, ao arrepio de todo o esforço de Kelsen, a um princípio de justiça. 1 Mestranda em Teoria do Direito do Estado e da Democracia no Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), da Universidade de Campinas (UNICAMP).

I. Introdução: prolegômenos à norma fundamental de Kelsen A Teoria Pura do Direito, em estrita coerência com seu postulado de pureza metodológica, procura expurgar do direito enquanto ciência tudo quanto não se relacione ao seu ser ou à sua existência específica que é a de constituir-se em um sistema de normas -, e assim lança-se a um projeto auto-fundador. Isto equivale a dizer que o fundamento do direito não pode ser estranho ao seu estatuto normativo próprio. Se, do ponto de vista do cientista jurídico e da Teoria Pura, o direito não é mais que um conjunto de normas reciprocamente ligadas por relações de validade, a sua base última necessariamente é ainda (ou também) algo da ordem do dever ser (Sollen), a saber, uma norma. Esta norma que, em última instância, justifica a validade de todas as normas que compõem o sistema, é, por isso mesmo, denominada norma fundamental (no termo alemão original, Grundnorm). Pergunta-se, daí: por que é que uma tal norma é necessária a uma teoria científica do direito positivo (em geral)? Ou, o que dá no mesmo: por que é preciso supor uma Grundnorm para dar tratamento rigorosamente científico ao direito? A resposta vem nos seguintes termos: uma norma individual (tal como a contida numa sentença judicial), justo por ser norma, possui um sentido subjetivo, ou seja, um sentido que se lhe confere aquele que a profere (ou aquele de quem ela emana). Mas esta norma só será válida se o seu sentido subjetivo for também o seu sentido objetivo, ou seja, se houver concordância do ato de vontade de que ela é o sentido com uma norma superior (e válida). A esta norma superior, de caráter mais geral, aplica-se o mesmo raciocínio: sua validade e conseqüente inserção no sistema de um direito positivo fica na dependência da coincidência entre os seus sentido subjetivo e objetivo; extrai-se, pois, da validade de outra norma ainda mais elevada (e válida). Como não é difícil supor, esta ordem retrospectiva ou ascendente galga os degraus até a Constituição. Das normas constitucionais, é com o mais honesto rigor que a ciência do direito questiona a validade; e então pode-se obter a seguinte justificativa: são válidas porque produzidas de acordo com uma Constituição anterior. E por que são válidas as normas desta Constituição anterior? Este regresso alcança, afinal, a Constituição historicamente primeira. Das normas desta, a validade não pode, como é óbvio, decorrer de outra 2

norma válida e posta pelo e no direito positivo, já que neste caso seria esta a norma constitucional historicamente primeira (e não se teria então realmente chegado, como se pensava, ao ápice do sistema). Mas então de onde extrair a validade destas normas constitucionais? A importância mesma desta questão deve ser assinalada neste ponto. Se não se puder encontrar nenhuma base (jurídico-científica, e não sociológica ou ideológico-política ou do tipo jusnaturalista) para a afirmação da validade destas normas, não é apenas a validade destas normas que se encontrará comprometida, mas a validade de todas as normas da ordem jurídica positiva e, por via de conseqüência, a existência do próprio sistema (vale lembrar que, para Kelsen, a validade é a existência específica das normas jurídicas). Ademais, como se disse, é preciso que o fundamento para a sua validade repouse em uma norma, cuja validade não poderá, contudo, defluir de nenhuma outra (caso em que seria esta e não aquela a Grundnorm). Disto se afirma, portanto, que o pensamento do jurista, sob pena de ficar preso num regresso infinito (de norma fundada à busca pela sua respectiva norma fundante), clama por um ponto de parada, no qual possa fixar-se. Assim é que a norma fundamental, além de desempenhar o papel de unificador de sistema (já que é ela que permite interpretar uma profusão de normas como um sistema), exerce, sobretudo, a importantíssima função de possibilitar julgamentos de validade de normas, o que, por sua vez, dá lugar ao pensamento jurídico-científico. Duas características da Grundnorm são marcantes e, por isso, merecem ser postas em evidência. A primeira delas consiste em sua capacidade meramente formal, por assim dizer, de justificar a validade das normas jurídicas de um direito positivo. Por diversas expressões: da norma fundamental pode-se apenas deduzir o fundamento de validade e não o conteúdo das normas jurídicas concretas 2. Isto, aliás, parece estar em perfeita consonância com a perspectiva kelseniana de que, a princípio, uma norma jurídica válida pode comportar quaisquer conteúdos, das mais diversas orientações. Além disso, como tantas vezes insiste Kelsen, a norma fundamental é uma norma pressuposta (pelo pensamento jurídico-científico), e não posta. Compreensível, já que, fosse posta, seria-o por alguma autoridade que, para ser competente para fazê-lo, teria sua competência de estatuir normas fixada por uma norma 3 superior a estas, que seria, então, esta sim, a norma fundamental. Fixados estes poucos parâmetros, insta perguntar: por que é válida esta norma pressuposta? Ou: por que a Grundnorm é pressuposta como válida? 2 KELSEN, 1999, p. 418. 3

Que ela deva ser pressuposta já se tornou mais ou menos compreensível embora, reconheça-se, não cabalmente demonstrado pela necessidade: de conferir unidade ao sistema, de obstar o regresso ad infinitum nos julgamentos de validade; enfim, de dar tratamento científico ao direito. Todavia, até o momento não ficou de modo algum clara a razão por que se deva aceitar que esta Grundnorm, necessária, seja, ela mesma, válida e, deste ponto de vista, legítima a fundamentar a validade de todas as normas postas no ordenamento jurídico. Há duas situações possíveis que poderiam justificar a validade da norma fundamental: a) ser esta norma auto-evidente; b) a de, em não sendo auto-evidente, dever se legitimar por algum outro meio que, forçosamente, impõe-se pela neutralidade axiológica, pela sua não-determinação de conteúdos (pelo seu ser vazio ) e pela sua não identidade com motivos factuais (da ordem do ser, Sein). Para Kelsen, a primeira das alternativas é de se rejeitar, posto que ele entende não ser possível sustentar a auto-evidência no domínio normativo: Dizer que uma norma é imediatamente evidente significa que ela é dada na razão, com a razão. O conceito de uma norma imediatamente evidente pressupõe o conceito de uma razão prática, quer dizer, de uma razão legisladora; e este conceito é (...) insustentável, pois a função da razão é conhecer e não querer, e o estabelecimento de normas é um ato de vontade. Por isso, não pode haver qualquer norma imediatamente evidente 4. Restando tão somente a alternativa b), o objetivo inicial deste trabalho é o de investigar no que poderia consistir este outro meio, segundo duas sugestões feitas pelo próprio Kelsen: a analogia da Grundnorm com as categorias do entendimento de Kant e a sua formulação nos termos da teoria do como se (Als Ob), de Hans Vaihinger. II. A norma fundamental kelseniana e as categorias transcendentais do entendimento kantianas: uma analogia Na tarefa de explicar a sua teoria da norma fundamental, Kelsen expressamente alude à Kant e às suas categorias do entendimento: Na medida em que só através da pressuposição da norma fundamental se torna possível interpretar o sentido subjetivo do fato constituinte e dos fatos postos de acordo com a Constituição como seu sentido objetivo, quer dizer, como normas objetivamente válidas, pode a norma 3 Apenas uma autoridade competente pode estabelecer normas válidas; e uma tal competência somente se pode apoiar sobre uma norma que confira poder para fixar normas (KELSEN, 1999, pp. 216-7). 4 KELSEN, 1999, p. 218, grifou-se. 4

fundamental, na sua descrição pela ciência jurídica e se é lícito aplicar per analogiam um conceito da teoria do conhecimento de Kant -, ser designada como a condição lógicotranscendental desta interpretação. Assim como Kant pergunta: como é possível uma interpretação, alheia a toda metafísica, dos fatos dados aos nossos sentidos nas leis naturais formuladas pela ciência da natureza, a Teoria Pura do Direito pergunta: como é possível uma interpretação, não reconduzível a autoridades metajurídicas, como Deus ou a natureza, do sentido subjetivo de certos fatos como um sistema de normas jurídicas objetivamente válidas descritíveis em proposições jurídicas? A resposta epistemológica (teorético-gnoseológica) da Teoria Pura do Direito é: sob a condição de pressupormos a norma fundamental: devemos conduzir-nos como a Constituição prescreve, quer dizer, de harmonia com as prescrições do autor da Constituição 5. Cuida-se aqui não de verificar se a norma fundamental possui todas as características das categorias do entendimento, nem de identificar o normativismo kelseniano com a epistemologia kantiana, mas sim de investigar quais são os termos e os limites da relação analógica que se pode entre eles estabelecer 6. De modo mais claro: o que quer dizer Kelsen ao sustentar que, em sua Teoria pura a norma fundamental desempenha o papel similar àquele exercido pelas categorias do entendimento na epistemologia de Kant? Como é fartamente conhecido 7, pelo menos em suas linhas mais gerais, a epistemologia kantiana empreende, com o objetivo de colocar também a metafísica no caminho seguro de uma ciência (já trilhado pela Lógica, pela Matemática e pela Física), à busca pelas condições de possibilidade do conhecimento do mundo empírico e pelos limites deste conhecimento. Nessa via, descobre que o sucesso de outras ciência se deve ao fato de elas terem feito seu objeto se regular pelo sujeito (e não o contrário). Descobre que a este sujeito não é possível o acesso à coisa-em-si e que seu conhecimento é, portanto, limitado. Limitado pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias transcendentais do entendimento. Estas categorias do entendimento são as possibilidades mesmas da experiência. É somente por elas que as percepções sensíveis que afetam o sujeito não permanecem mero agregado caótico, sendo remetidas a e sintetizadas em conceitos. O que conhece das coisas é só o que delas está apto a captar 8. 5 KELSEN, 1999, p. 223, grifou-se. 6 Não se reivindica, de modo algum, a originalidade deste procedimento: (...) não se trata de ver se a norma fundamental exerce o mesmo papel que as categorias do entendimento no sentido de ela dever possuir todas as propriedades destas. Não se trata de identificar a norma fundamental com as categorias e o normativismo de Kelsen com a epistemologia kantiana. Trata-se simplesmente de ver, a grosso modo, se a relação que se estabelece entre as categorias e a epistemologia kantiana é suscetível de aclarar a que deve se estabelecer entre a norma fundamental e o direito positivo de Kelsen (ROY, 1997, p. 15, traduziu-se). 7 Cf., especialmente, o Prefácio à 2 a Edição da primeira Crítica. 8 Na reflexão 3.707, intitulada Certeza e incerteza do conhecimento em geral, Kant escreve: - Ainda que as coisas sejam em si mesmas certamente o que são, tem-se o direito de falar de uma incerteza objetiva, na medida em que nosso 5

Um primeiro ponto de contato já pode ser estabelecido entre as categorias e a norma fundamental: assim como aquelas tornam possível um conhecimento (ainda que limitado) do mundo empírico e desta forma abrem caminho para uma sua ciência, esta faz-se igualmente imprescindível para o conhecimento científico, mas agora do fenômeno jurídico em seu ser. A norma fundamental é, também, neste sentido, uma condição de possibilidade do conhecimento objetivo (do Direito). As categorias do entendimento, como conceitos puros que são, não apresentam em si nenhum conteúdo dado empiricamente. São formas 9 sem conteúdo, vazias nesta acepção. Outro paralelo com a Grundnorm: como ficou anteriormente registrado, ela não apresenta conteúdos e, justo por esta razão, não determina nem fundamenta conteúdos (das normas válidas postas num direito positivo). A norma fundamental é também vazia. Nas palavras do próprio Kelsen: Assim como os pressupostos lógico-transcendentais do conhecimento da realidade natural não determinam por forma alguma o conteúdo das leis naturais, assim também a norma fundamental não pode determinar o conteúdo das normas jurídicas ou das proposições jurídicas que descrevem as normas jurídicas. Assim como só podemos obter o conteúdo das leis naturais a partir da experiência, assim também só podemos obter o conteúdo das proposições jurídicas a partir do Direito positivo. A norma fundamental tampouco prescreve ao Direito positivo um determinado conteúdo, tal como os pressupostos lógico-transcendentais da experiência não prescrevem um conteúdo a esta experiência 10. Quanto às categorias e sua explicação, Kant depara-se com a seguinte dificuldade, que tem de superar: é questão de fato (quid facti) que o sujeito tem representações; mas o que as justifica, o que assegura que se refiram à experiência? Em se tratando de sínteses realizadas a partir de dados empíricos filtrados pelas formas da sensibilidade, esta questão de direito (quid iuris) demanda uma dedução empírica, já que por esta mostra-se como se adquire um conceito mediante a experiência 11. Contudo, os conceitos puros do entendimento, aplicando-se tanto a objetos da experiência quanto a objetos que não são extraídos de nenhuma experiência, precisam fundar seu uso legítimo em algo marcadamente distinto de derivação empírica. A sua dedução, ao contrário da dos conceitos empíricos, equivale à investigação de seu valor objetivo como de sua legitimidade, e denomina-se dedução transcendental. conhecimento, na condição de limitado, encontra forçosamente, nas coisas que conhece, relações que é incapaz de determinar (LEBRUN, 1993, p. 15). 9 Aqui, o termo forma é tomado em sentido propriamente kantiano: [A experiência] contém dois elementos bastante heterogêneos, a saber, a matéria para o conhecimento fornecida pelos sentidos e uma certa forma para ordenar, proveniente da fonte interna da intuição e do pensamento puros, os quais, por ocasião da primeira, a matéria, entram em exercício e produzem conceitos (KANT, 1997, p. 120). 10 KELSEN, 1999, p. 421. 11 KANT, 1997, p. 120. 6

Entre os diversos conceitos, porém, que constituem o tecido muito mesclado do conhecimento humano, alguns há que se destinam também a um uso puro a priori (totalmente independente de qualquer experiência); e este seu direito requer sempre uma dedução, porque não bastam as provas da experiência para legitimar a sua aplicação, é preciso saber como se podem reportar a objetos que não são extraídos de nenhuma experiência. Dou o nome de dedução transcendental à explicação do modo pelo qual esses conceitos se podem referir a priori a estes objetos (...). (...) Tentar obter sua dedução empírica [dos conceitos que se referem totalmente a priori aos objetos, como os de espaço e de tempo, e como os conceitos do entendimento] seria esforço vão, porque o traço distintivo da sua natureza consiste, precisamente, em se referirem aos seus objetos, sem que, para a sua representação, fossem buscar algo à experiência. Assim, pois, (...), a sua dedução terá sempre de ser transcendental. (...) É claro, portanto, que destes conceitos só pode haver uma dedução transcendental e nunca uma dedução empírica, sendo as tentativas desta última, em relação aos conceitos puros a priori, esforços vãos, de que se ocupa somente quem não compreendeu a natureza peculiar destes conhecimentos 12. Questionando-se não acerca da existência das categorias, mas sim relativamente à maneira pela qual elas correspondem aos objetos, revela-se que o valor objetivo das categorias demanda, portanto, uma dedução transcendental. Não sendo fim do presente trabalho desvelar os seus percursos exatos, basta-nos assinalar que dificuldade similar encontra Kelsen. A norma fundamental, como norma válida, é sui generis, visto que a sua validade não se funda em outra norma válida superior. No que se funda, então, sua validade e, conseqüentemente, seu valor objetivo e seu uso legítimo? Mas se há similaridade ou analogia possível de Kant a Kelsen até mesmo nesta dificuldade, o mestre de Viena não torna explícito, de modo algum, como o recurso aos conceitos puros do entendimento podem auxiliar na elucidação deste seu problema em particular. É este o ponto em que a analogia se limita, e subsiste a questão: como a Grundnorm, mesmo que se esteja convencido acerca da sua necessidade, se justifica (ou justifica a sua validade)? Aproveitando o paralelo Kant-Kelsen, a questão central deste trabalho poderia ser posta nos seguintes termos: a proposição central ou inicial da ciência do direito, que afirma exatamente a necessidade de se pressupor uma norma fundamental para que possa haver afirmação de validade / existência do próprio Direito, é um juízo hipotético ou um juízo categórico? Elucide-se, antes de mais nada, a explicação kantiana destes juízos. Uma das formas lógicas do juízo, das quais se ocupa a Lógica, é a relação (concernente à subordinação entre as representações). Quanto à relação, os juízos podem ser ou categóricos, ou 12 KANT, 1997, pp. 119-21. 7

hipotéticos, ou disjuntivos. Sendo de nosso interesse tão somente os dos dois primeiros tipos, concentremo-nos neles. Nos juízos categóricos, o predicado está subordinada ao sujeito. A matéria destes juízos compõe-se do sujeito e do predicado, e sua forma reside na cópula ( é / não é ), ou seja, naquilo que indica um relação de acordo ou desacordo entre a representação-sujeito e a representação-predicado. Já nos juízos hipotéticos, a subordinação vincula não simples representações, mas juízos, de tal forma que o juízo-conseqüente decorre do juízo-fundamento. A matéria destes juízos são juízos (fundamento / conseqüente) e a forma é a conseqüência ( Se...então... ). A fim de marcar a distinção entre estes juízos, Kant assevera: Nos juízos categóricos, não há nada problemático, tudo é assertivo. Nos hipotéticos, inversamente, só a conseqüência é assertiva. Nestes últimos, posso ligar dois juízos falsos um ao outro, pois aqui só a correção da ligação importa a forma da conseqüência, sobre a qual repousa a verdade lógica desses juízos 13. Em que pese opinião contrária 14, não nos resta dúvida que, na formulação kantiana e original conferida por Kelsen à Grundnorm, a proposição basilar do conhecimento jurídico-científico é um juízo hipotético, que poderia, com maior ou menor precisão, assim enunciar-se: se uma norma fundamental é pressuposta, então há possibilidade (i) de interpretação de um punhado de normas como ordem / sistema jurídica/o positiva/o; (ii) de julgamentos de validade / existência destas normas, ou seja, de interpretação de certos sentidos subjetivos de atos de vontade como sendo também seus sentidos objetivos e (iii) da própria ciência do Direito. Neste sentido, já o afirmava Kelsen em 1945: (...); a teoria pura recusa-se a ser uma metafísica do Direito. Conseqüentemente, ela procura a base do Direito isto é, o fundamento da sua validade não um princípio metajurídico, mas numa hipótese jurídica isto é, uma norma fundamental a ser estabelecida por meio de uma análise lógica do pensamento jurídico efetivo 15. E também na Teoria Pura do Direito (2 a Edição, 1960): Com efeito, ela [a teoria pura] acentua com ênfase que a afirmação de que o Direito tem validade objetiva, quer dizer, que o sentido subjetivo do ato legislativo é também o seu sentido 13 KANT, 2003, pp. 209-10. 14 Se (...) nos perguntarmos qual, dentre estas duas leituras da doutrina kelseniana da norma fundamental, é a correta se, a saber, na estrutura da Teoria Pura do Direito V-julgamentos [julgamentos de validade] devem ser tomados como sendo hipotéticos ou categóricos, entendo que é lícito dizer que a posição de Kelsen a respeito deste assunto crucial é oscilante e, em última instância, confusa. Mas, considerando-se que uma resposta precisa a esta questão deve ser tirada dos escritos de Kelsen, a leitura favorecida deve ser a última: cientistas jurídicos fazem V-julgamentos categoriais; a cognição jurídica repousa sobre a assunção de que uma norma cuja validade não é derivada de nenhuma outra norma válida é, de fato, válida ( N é válida; então, N1, N2... Nn são válidas ; ou, Já que N é válida, N1, N2... Nn são válidas ). A cognição jurídica, em resumo, dá por assentada a validade da norma fundamental (CELANO, 2000, p. 184, traduziu-se). 15 KELSEN, 1992, p. 03. 8

objetivo, é apenas uma interpretação possível e possível sob uma determinada pressuposição, e não uma interpretação necessária destes atos, que é inteiramente possível não atribuir tal sentido aos atos legislativos 16. normas: De modo mais inteiramente explícito Kelsen formula esta idéia na sua Teoria geral das A norma fundamental pode, mas não precisa ser pressuposta. O que a Ética e a Ciência do Direito dela enunciam, é: somente se ela é pressuposta pode ser interpretado o sentido subjetivo dos atos de vontade dirigidos à conduta de outrem, podem esses conteúdos de sentido ser interpretados como normas jurídicas ou morais obrigatórias. Visto que esta interpretação depende do pressuposto da norma fundamental, precisa ser admitido que proposições normativas apenas nesse sentido condicional podem ser interpretadas como normas do Direito ou da Moral objetivamente válidas 17. Se a teoria da norma fundamental expressa a formulação, por parte dos cientistas jurídicas, de um juízo hipotético, a saber: Se N é válida, então N 1,N 2...N n são válidas (onde N é a norma fundamental de um determinado ordenamento jurídico positivo e N 1,N 2...N n são as normas nele postas), então a validade das normas deste sistema não é categorialmente afirmada, já que fica na dependência da validade do fundamento. Se a teoria da norma fundamental corresponde à formulação de um juízo meramente hipotético, tem-se que um sistema qualquer de normas (jurídicas ou não) pode ser considerado válido por quem quer que aceite ou assuma a validade de sua norma básica ou fundamental. E este quem poderá fazê-lo por quaisquer razões, inclusive ideológico-políticas. De fato, retomando exemplo de que reiteradas vezes se utilizou, Kelsen, em sua Teoria Geral das Normas, parece antever na Grundnorm a possível abertura para o tipo de raciocínio acima formulado. (...) Paul volta da escola para casa e diz para seu pai: Meu condiscípulo Hugo é meu inimigo; eu o odeio. Depois disto, o pai dirige a Paul a norma individual: Tu não deves odiar teu inimigo Hugo, senão amar. Paul pergunta ao pai: Por que devo eu amar meu inimigo?. Quer dizer, ele interroga por que o sentido subjetivo do ato de vontade de seu pai também é o sentido objetivo daquele, é uma norma obrigatória para Paul, o que significa o mesmo: o que é o fundamento de validade desta norma. A seguir, o pai: Por que Jesus impôs: Amai vossos inimigos. Após o que, o filho indaga: Por que se deve obedecer ao mandamento de Jesus?, o que significa tanto quanto por que é o sentido subjetivo desse ato de vontade de Jesus também seu sentido objetivo, isto é, uma norma válida, ou o que significa o mesmo: o que é o fundamento de validade dessa norma geral? Sobre esse problema, a resposta unicamente possível é: porque, como cristão, se pressupõe que se deve obedecer ao mandamento de Jesus. É o enunciado sobre a validade de uma norma que tem de ser pressuposto no pensamento de um cristão para fundamentar a validade das normas da Moral 16 KELSEN, 1999, p. 424. 17 KELSEN, 1986, p. 328. 9

cristã. É a norma fundamental da Moral cristã que fundamenta a validade de todas as normas da Moral cristã (...) 18. Significa dizer que um tal sistema normativo moral-cristão tem como norma fundamental a aceitação de que a autoridade de Jesus deve ser obedecida; tem como pressuposto, portanto, tão somente uma asserção de fé ou uma crença. Nada mais há que sustente este sistema, com exclusão de outro cujas normas apresentem conteúdos até mesmo opostos. Similarmente, um sistema normativo de direito positivo assenta-se sobre uma norma fundamental que revela apenas o assentimento (por crença ou quaisquer outras razões ideológicopolíticas) de uma pessoa ou mesmo de um conjunto de pessoas que, aliás, congregam-se na unidade denominada Estado. A assim considerar, com a teoria da norma fundamental Kelsen não só não teria conseguido elaborar uma Teoria do Direito livre de todo e qualquer elemento ideológico e / ou político (pura no tocante à sua exata delimitação com relação a outros âmbitos ou setores do conhecimento humano), como também e, para a nossa preocupação, sobretudo, não teria logrado êxito em explicar a própria norma fundamental. É que, como bem o expressa Bruno Celano: (...) considerar a norma fundamental como válida por uma razão ou outra equivale a considerá-la, no final das contas, como não tendo base alguma (...) 19. Ou, em outros termos: o direito não seria efetivamente auto-fundado, senão, ao revés, fundado em elementos que lhe são completamente estranhos. III. A norma fundamental como ficção Na já mencionada Teoria geral das Normas obra de publicação póstuma -, Kelsen, em algumas poucas linhas, parece reformular por completo sua visão acerca da natureza ou estatuto que se deva conferir à Grundnorm. De fato, expressamente reconhece que erroneamente a concebia como hipótese, quando desde sempre deveria tê-la antevisto como uma ficção, no sentido da filosofia do como se (Als Ob), de Hans Vaihinger (1911). Assim, reiterando que a norma fundamental não é uma norma posta como todas as demais do sistema, mas meramente pensada, Kelsen introduz o que aparenta ser uma significativa mudança no tratamento do ponto mais importante de sua Teoria Pura: a norma fundamental, como ficção, não é 18 KELSEN, 1986, p. 326. É de se ressaltar que, embora o trecho aluda à norma fundamental de um sistema normativo específico, qual seja, o da Moral cristã e não propriamente jurídico, serve perfeitamente ao que se pretende demonstrar. Isto porque, como Kelsen de fato está procedendo neste excerto, a noção de norma fundamental e suas implicações cabem em todo e qualquer sistema normativo, que se pretenda tornar como objeto de estudo de ciência. 19 CELANO, 2000, p. 187. 10

nada mais que um recurso do pensamento, do qual se serve se não se pode alcançar o fim do pensamento com o material existente 20. Esta definição de ficção ajusta-se perfeitamente a tudo quanto restou assentado acerca da Grundnorm: o material jurídico (normas postas do sistema) não fornece justificação alguma para a sua própria validade (o que seria, neste caso, o fim do pensamento), que permanece como dúvida em suspenso. Ademais, a norma fundamental preenche os dois requisitos básicos de uma ficção real, a saber: contradizer a realidade e ser contraditória em si mesma 21. A sua contradição com a realidade está em não ser posta por nenhum real ato de vontade. Nesta medida, pensar em uma norma fundamental é desafiar o que a realidade jurídica 22 com o seu material efetivamente existente atesta. Além disso, é auto-contraditória por força da problematicidade intrínseca na definição de sua validade. A fim de esclarecê-lo, diga-se o seguinte: a validade de uma norma dada é definida como sendo a coincidência do sentido subjetivo do ato de vontade que a põe com seu sentido objetivo, fornecido este por uma norma superior. Mas, no caso da Grundnorm, não há norma superior, pelo que sua validade é pressuposta em confronto e violação diretos à definição mesma. Daí porque diz Kelsen que a Grundnorm encarna uma autoridade fictícia, que se coloca acima de todas as demais autoridades. 20 KELSEN, 1986, p. 329. 21 Constructos ideais são, no sentido estrito do termo, reais ficções quando não apenas estão em contradição com a realidade, mas [também] são auto-contraditórias em si mesmos (VAIHINGER, 2002, p. 16, traduziu-se do inglês). Na seqüência deste mesmo trecho, Vaihinger esclarece que, além das ficções reais, há as semi-ficções, entendidas estas como as que apenas contradizem a realidade (ou desviam-se dela), mas não são consigo mesmas contraditórias. 22 Em um artigo de 1919 portanto muito anterior à Teoria Geral das Normas e mesmo à Teoria Pura do Direito denominado Zur Theorie der jurisdichen Fiktionen, Kelsen relutava em reconhecer que um conceito normativo, tal como deveria ser a Grundnorm, pudesse estar em contradição com a realidade, ainda que pudesse ser contraditória em si mesmo. É que a realidade em que então pensava era a realidade do mundo do ser, e neste caso realmente não lhe faltava razão: na medida em que as normas pertencem ao dever ser e dirigem-se ao ser para determiná-lo ( e não descrevê-lo), é de se esperar que os preceitos jurídicos confrontem o que se verifica (a norma que diz não matar só faz sentido, inclusive, em função da existência efetiva de ocorrências em que um homem vem a praticar homicídio contra outro homem). Contudo, mesmo nesta consideração não se pode dizer, com rigor, que há contradição entre ser e dever ser, uma vez que a contradição apenas pode ser afirmada entre coisas de mesmo estatuto lógico (ser e ser, ou dever ser e dever ser). Nas palavras do próprio Kelsen: Mas em que pode consistir a contradição com a realidade, que se leva a cabo em toda proposição de dever (Sollsatz), mesmo na que tem como conteúdo o impossível? A proposição que expressa o ideal (o dever, a instância ética): A deve ser bom; e a proposição que descreve a realidade: A não é bom, não se contradizem de nenhuma maneira (...). O ser de A contradiz simplesmente ao ser de não-a, mas não ao dever-ser de não-a (...). Portanto, um conceito normativo pode ser contraditório em si mesmo, mas não pode nunca estar em contradição com a realidade, já que o conhecimento normativo em geral não se dirige ao ser (KELSEN, 1919, p. 1239 apud RACINARO, 1982, p. 21). Por outro lado, se por realidade se considera realidade jurídica - lembrando-se que a realidade ou o ser específico do direito é o dever ser -, pode-se sem erro dizer que a noção da Grundnorm introduzida por Kelsen a contradiz. 11

Para que sob luzes mais claras repouse a questão da norma fundamental como ficção, retorne-se a um ponto que foi apenas anunciado ao início deste tópico: a distinção entre ficções e hipóteses, a que se refere Kelsen ao inserir a Grundnorm dentre as primeiras. A esta temática, Vaihinger dedica todo um capítulo de sua A filosofia do como se (XXI), no qual, em linhas gerais, marca a diferença nos termos que a seguir se expõe. Chama-se hipótese ao que se dirige através da realidade, submetendo a sua própria ao teste e à verificação. A hipótese, portanto, almeja ser provada verdadeira como expressão da realidade. Sua função é provisória, já que visa ser em definitivo estabelecida pelos fatos da experiência. Esta sua função provisória é também teórica, na medida em que consiste em conectar fatos, preenchendo as brechas ainda desconhecidas entre eles. A hipótese esforça-se por abolir contradições, substituindo-as pelas própria realidade na medida em que a descobre. O instrumental (teórico) que justifica a utilização das hipóteses é a probabilidade. A feição da ficção é inteiramente diversa: ela não se preocupa em afirmar um fato real, mas tão somente algo por meio do qual seja possível lidar com a realidade e compreendê-la. Sua função na ciência é, deste modo, prática; e sua justificação reside nas suas necessidade, utilidade e conveniência. A ficção não revela, então, conhecimento real algum: ela não tenta descobrir, mas sim inventar. Por isso mesmo, é também provisória: mas porque é deixada para trás tão logo tenha cumprido o seu dever. E, o mais importante: no uso da ficção não está esforço algum em abolir contradições. Pelo contrário, a ficção chama à existência e encarna em si contradições lógicas. Assentados estes pressupostos, pode-se dizer que, reconhecendo a norma fundamental como ficção, Kelsen está ao mesmo tempo reconhecendo que não há e nem pode haver - por contraposição à hipótese concordância alguma entre ela e a realidade (jurídica). Assim, se quando da Grundnorm como hipótese isto já poderia ser afirmado, agora (pós- Teoria Geral das Normas) pode-o com muito mais razão e fundamento: falta objetividade (e, portanto, estabilidade) à própria base de toda a estrutura do Direito. IV. A Teoria Pura do Direito e o jusnaturalismo: norma fundamental como esquema de justiça? Ao procurar auto-fundar o sistema jurídico-normativo que esgota todo o campo do Direito, Kelsen desejava expurgar de sua teoria toda justificação metajurídica, ou seja, toda explicação para a sua validade que repousasse em elementos não jurídicos. Obviamente, o jusnaturalismo, ao apontar para um Deus ou para qualquer outra autoridade (personificada ou não), legisladora das coisas da 12

natureza e do mundo dos homens, como razões necessárias e suficientes para a validade de todo Direito, insere-se neste tipo de explicação rejeitada por princípio por Kelsen. Também deste modo a idéia de justiça é por ele afastada; e o faz não por desconhecer a sua importância na história da filosofia política, mas sim por sua natureza extrajurídica. Do ponto de vista de um jurista enquanto tal, a questão da justiça deve ser deixada de lado. Segue-se daí que a norma fundamental deveria não apenas ser em essência e indubitavelmente algo de exclusivamente jurídico, como também imune a qualquer possibilidade de analogia com a idéia de justiça. Quanto à primeira exigência como se espera tenha ficado claro até o presente momento da exposição -, registre-se que a dificuldade em se fixar a natureza da Grundnorm por si só é indicativa da possível abertura para uma sua caracterização não-jurídica: trata-se mesmo de uma norma e, portanto, algo da ordem do dever-ser (Sollen) -, visto que não é o sentido de real ato de vontade algum? E, sendo norma, será realmente uma norma válida, mesmo para espanto de todo o raciocínio jurídico que julgava já dispor de todos os predicados definicionais para o operador validade? No tocante à segunda exigência, parece similarmente que a norma fundamental se presta ao seu entendimento tal como uma idéia de justiça. Explique-se: a Teoria Pura sempre procurou rejeitar a justiça como integrante do âmbito do jurídico porque, dentre outras razões, antevia nela uma instabilidade decorrente das várias definições que comporta (seriam todas fórmulas vazias). Uma teoria científica (tal como pretendia construir Kelsen com relação ao objeto direito ) não poderia, portanto, comportar um elemento tão avesso ao tratamento objetivo 23. A justiça não seria, assim, segundo a Teoria Pura, uma noção hábil a fundar objetiva e seguramente o Direito. Mas assim também se nos afigura a Grundnorm: não meramente formal, mas amorfa, na medida em que não se sabe o que é (embora se saiba que deva ser, o quê deva e não deva ser e que, o que deveria ser, não é seguramente). Neste sentido, não é demais supor que a Grundnorm possa ser a própria justiça, transposta e resposta na Teoria Pura, ao arrepio de todos os esforços de seu autor. Neste sentido: Uma norma válida cuja validade não é derivada de alguma outra norma válida é um fundamental princípio de justiça (...). Reinvindicar que o Direito tem autoridade equivale a reivindicar que é justo. O conceito de Direito é o conceito de justiça. Desnecessário dizer que uma tal resposta à nossa questão é rejeitada por Kelsen (...) 24. 23 (...) estou absolutamente ciente de não tê-la respondido [à questão o que é justiça? ]. A meu favor, como desculpa, está o fato de que me encontro nesse sentido em ótima companhia. Seria mais do que presunção fazer meus leitores acreditarem que eu conseguiria aquilo em que fracassaram os maiores pensadores. De fato, não sei e não posso dizer o que seja a justiça, a justiça absoluta, esse belo sonho da humanidade. Devo satisfazer-me com uma justiça relativa, e só posso declarar o que significa justiça para mim (...) (KELSEN, 2001, p. 25, grifou-se). 24 CELANO, 2000, pp. 198-9, traduziu-se, grifou-se. 13

Finalmente, há ainda outro indício de que esta tese não é de todo descabida: a norma fundamental, exatamente como a confusa noção de justiça, situa-se fora do direito positivo. Esta observação não fugiu ao próprio jusfilósofo que, embora não reconhecendo a conexão norma fundamental justiça, assim chegou a se pronunciar: É verdade que a norma fundamental não é uma norma do direito positivo, isto é, de uma ordem coativa globalmente eficaz posta através da legislação ou do costume. Este é, porém, o único ponto em que existe certa semelhança entre a teoria da norma fundamental e a do jusnaturalismo. Em todos os outros pontos as duas teorias estão em diametral oposição uma à outra (...) 25. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CELANO, Bruno. 2000. Kelsen s concept of the authority of law, Law and Philosophy, vol. 19, n o 02, Março de 2000, pp. 173-199. KANT, Immanuel. 1997. Crítica da razão pura, trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, Lisboa: Fundação Caloustre Gulbenkian, 4 a edição.. 2003. Manual dos Cursos de Lógica Geral, trad. de Fausto Castilho, Campinas: Editora da Unicamp; Uberlândia: Edufu, 2 a edição. KELSEN, Hans. 2000. A ilusão da justiça, trad. de Sérgio Tellaroli, Col. Justiça e Direito, São Paulo: Martins Fontes, 3 a edição.. 1998. O problema da justiça, trad. de João Baptista Machado, Col. Justiça e Direito, São Paulo: Martins Fontes, 3 a edição.. 2001. O que é justiça? A Justiça, o Direito e a Política no espelho da ciência, trad. de Luís Carlos Borges, São Paulo: Martins Fontes, 3 a edição.. 1986. Teoria Geral das Normas, trad. de José Florentino Duarte, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor.. 1992. Teoria Geral do Direito e do Estado, trad. de Luís Carlos Borges, Col. Ensino Superior, São Paulo: Martins Fontes, 2 a edição.. 1999. Teoria Pura do Direito, trad. de João Baptista Machado, São Paulo: Martins Fontes, 6 a edição. LEBRUN, Gérard. 1993. Do erro à alienação, in TORRES FILHO, Rubens Rodrigues (org.), Sobre Kant, trad. de José Oscar Almeida Morais et alli, São Paulo: Edusp, pp. 15-23. 14

RACINARO, Roberto. 1982. Hans Kelsen y el debate sobre Democracia y Parlamentarismo en los años veinte y treinta, Introducción a KELSEN, Hans. Socialismo y Estado: una investigación sobre la teoría política del marxismo, [México]: Siglo Veintiuno Editores SA. ROERMUND, Bert Van. 2000. Authority and authorisation, Law and Philosophy, vol. 19, n o 02, Março de 2000, pp. 201-222. ROY, Louis. 1997. Pour une interprétation large de la norme fondamentale-transcendentale de Hans Kelsen, Cahiers d épistémologie, 23, 9708, pp. 03-27, disponível em http://www.unites.uqam.ca/philo/pdf/9708.pdf, acesso em 13/09/2004. VAHINGER, Hans. 2002. The philosophy of as if : a System of the Theorethical, Pratical, and Religious Fictions of Mankind, trad. para o inglês de C. K. Ogden, Col. The International Library of Philosophy, London: Routledge and Kegan Paul Ltd.. 25 KELSEN, 1998, p. 115, grifou-se. 15