APLICAÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA PREVISTAS NA LEI MARIA DA PENHA NÃO SOMENTE PARA A CATEGORIA JURÍDICA MULHER: UMA ANÁLISE DE JULGADOS DOS TRIBUNAIS DE JUSTIÇA DE MINAS GERAIS E SÃO PAULO Flávia Passeri Nascimento 1 Resumo: A pesquisa analisou os principais argumentos utilizados pelos Tribunais de Justiça dos Estados de Minas Gerais (TJMG) e de São Paulo (TJSP) para aplicar ou afastar as medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha (LMP) considerando o gênero, o sexo e a idade da parte vítima da violência doméstica, intrafamiliar e/ou íntima de afeto. Abordaram-se as teorias feministas e de gênero para compreender as assimetrias entre gêneros na sociedade patriarcal brasileira, e como estas desigualdades refletem na garantia e efetivação dos direitos humanos das mulheres. Realizou-se uma revisão bibliográfica sobre a história de criação da LMP, os desafios enfrentados na interpretação jurídica e na aplicação prática dela e a atuação da advocacy feminista na luta pela igualdade de gênero e criação da Lei. As amostras de acórdãos extraídas das páginas eletrônicas dos dois Tribunais citados demonstraram que as medidas protetivas de urgência previstas na LMP estão sendo aplicadas, por analogia in bonam partem, não somente as vítimas do gênero feminino (45% no TJMG e 24% no TJSP). Observou-se que os Tribunais não aplicaram as medidas protetivas às próprias vítimas do gênero feminino (23% no TJMG e 49,5% no TJSP), quando eles não constataram a hipossuficiência ou vulnerabilidade da mulher, a existência de violência de gênero ou do estereótipo mulher adulta cujo agressor é o homem. Palavras-chave: Lei Maria da Penha. Teorias Jurídicas Feministas. Análise Jurisprudencial. Gênero. Interseccionalidades. Ao se falar em Lei Maria da Penha (LMP), a história a que se reporta é a de Maria da Penha Maia Fernandes: uma mulher brasileira vítima da violência doméstica praticada pelo seu, na época, marido (duas tentativas de homicídio que a deixaram paraplégica), e da negligência do Estado brasileiro para punir o seu agressor (ineficácia legislativa e morosidade judicial). Diante tamanha repercussão do caso, entidades internacionais de defesa dos direitos humanos formalizaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos contra o Brasil, o qual foi responsabilizado por negligência e omissão em relação à violência doméstica contra a mulher e obrigado a cumprir as convenções e tratados internacionais dos quais era signatário. A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania recomendou que o Brasil adotasse várias medidas de combate à violência contra a mulher, entre elas, a elaboração de uma lei específica para este fim. Dessa forma, em 2006 foi sancionada e promulgada a Lei Federal n. 11.340, nominada popularmente como LMP. 1 Bacharela em Direito pela Faculdade de Direito de Franca, Franca/SP-Brasil. 1
As autoras Barsted (2011), Calazans e Cortes (2011) e Piovesan e Pimentel (2011) compartilham o entendimento de que aprovação da LMP representa o resultado de uma atuação bem-sucedida de advocacy 2 feminista brasileira e latino-americana voltada para a institucionalização do papel do Estado brasileiro no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres, no reconhecimento dos seus direitos humanos e na compreensão de que as mulheres têm o direito a uma vida sem violência. Além disso, buscou-se romper com as estruturas do patriarcado e suas ressonâncias na hierarquização dos sexos. De acordo com Basterd: Essa Lei adotou a perspectiva feminista de que a violência, especialmente a violência nas relações interpessoais, é um dos principais mecanismos de poder para forçar as mulheres a posições subordinadas na sociedade face à permanência contra elas de padrões discriminatórios nos espaços público e privado (BASTERD, 2011, p. 16-17). As autoras Debert e Gregori (2008) afirmam que a questão da violência na relação entre homens e mulheres, resultado de uma estrutura de dominação deles sobre elas, foi denunciada pelo movimento feminista e acrescentam que: Tal interpretação não estava presente na retórica tampouco nas práticas jurídicas e judiciárias no enfrentamento de crimes até a promulgação, em 2006, Lei n. 11.340 ("Maria da Penha"). A questão da desigualdade de poder implicada nas diferenças marcadas pelo gênero, ainda que esteja sugerida na Constituição e no delineamento dessa lei, encontra imensas resistências nas práticas e nos saberes que compõem o campo da aplicação e efetividade das leis (DEBERT; GREGORI, 2008, p. 168). A LMP trouxe modificações significativas na forma como o ordenamento jurídico brasileiro tratava o problema da violência doméstica contra as mulheres. A Lei reconheceu diferentes formas de violência (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral), introduziu as medidas protetivas de urgência, estabeleceu um atendimento por equipes multidisciplinares, e reconheceu as uniões homoafetivas. Previu, ainda, a criação dos Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com competência cível e criminal (Artigos 14 e 33), tendo os juízes desses juizados a competência para apreciar crimes e questões de direito de família (MACHADO et al., 2012). Um dos temas mais controversos com relação à aplicação da LMP foi à exclusão expressa, em seu Artigo 41, da aplicação da Lei 9.099/95, uma vez que esta implicava um quadro de impunidade dos agressores e não rompia com a lógica do ciclo de violência contra a mulher. 2 De acordo com Libardoni (2000, p. 208) a advocacy foi a capacidade de organização e de mobilização política de organizações e movimentos feministas (...) em favor de uma causa, uma demanda ou uma posição, mas, compreendendo (...) seu significado mais amplo, denotando iniciativas de incidência ou pressão política, de promoção e defesa de uma causa e/ou interesse, e de articulações mobilizadas por organizações da sociedade civil com o objetivo de dar maior visibilidade a determinadas temáticas ou questões no debate público e influenciar políticas visando à transformação da sociedade. 2
Embora a LMP seja considerada um avanço legislativo no enfrentamento da violência contra a mulher, ela enfrenta resistências, desafios e opositores em vários âmbitos institucionais 3 desde a sua promulgação. Dentre um conjunto de obstáculos que necessitam ser superados, para que efeitos da LMP possam modificar comportamentos e valores discriminatórios e violentos, está à dificuldade de acesso à justiça, que, de acordo com Basterd (2011, p. 30), implica o conhecimento da lei, a possibilidade de fazer uso desse conhecimento, a existência de mecanismos ou canais que transformem o direito potencial em direito real e no tratamento igualitário, livre de preconceitos, oferecido pelo Poder Judiciário. Pasinato (2011) compartilha do mesmo entendimento e acrescenta que o reconhecimento dessa legislação como uma política pública necessita não somente do empenho do governo, mas também da sociedade, de forma a se alcançar êxito na proteção dos direitos de mulheres que vivem em situação de violência doméstica e familiar. Outra questão apontada por Basterd (2011) são as concepções ideológicas e políticas escondidas por detrás da máscara de neutralidade e da suposta tecnicidade das decisões judiciais, que impedem ao avanço da legislação pelas instituições da justiça. Rocha (2007) pontua que, por ser um espaço de reafirmação ou contestação de princípios e hierarquias, no Judiciário deve-se travar a luta pelo enfrentamento da violência de gênero, a fim de ampliar a democracia e criar instrumentos efetivos de defesa e garantia de direitos dos segmentos subalternizados. Para isso, deve-se democratizar o acesso desses setores, além de sanar as falhas e omissões do judiciário no Brasil. A LMP, no seu Artigo 5º, define a violência doméstica e familiar contra a mulher, seja no âmbito doméstico, intrafamiliar ou em uma relação íntima de afeto, qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial. A partir da interpretação deste artigo, é possível afirmar que a LMP é taxativa com relação ao sujeito do polo passivo: a mulher hipossuficiente ou em situação de vulnerabilidade em uma relação doméstica, intrafamiliar e/ou íntima de afeto. 3 Em setembro de 2007, foi criado o Observatório de Monitoramento da Lei Maria da Penha - O Observe (constituído por um consórcio que congrega 12 organizações) - cujo objetivo é acompanhar o processo de implementação e aplicação desta Lei, a fim de identificar os avanços e as dificuldades para a sua efetiva e plena aplicabilidade, produzindo e divulgando informações relevantes para os movimentos de mulheres e para as instituições públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres. 3
Como há no Brasil uma lacuna entre as reivindicações sociais (novas relações afetivas e organogramas familiares) e a atuação dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, esse trabalho objetivou incentivar a aplicação extensiva das medidas protetivas previstas na LMP para às vítimas vulneráveis no âmbito doméstico, e não apenas às do gênero feminino. A partir de uma pesquisa empírica realizada a partir da um levantamento de dados direto junto às páginas eletrônicas dos Tribunais dos Estados de Minas Gerais e São Paulo, no período compreendido entre 03 Feb 2016 a 03 Mar 2016, referenciando-se em procedimentos e abordagens metodológicas quantitativas. Os dados registrados foram sistematizados e organizados em gráficos e tabelas, a partir do auxílio do software SAS 9.3.. Para a construção das amostras, utilizaram-se as palavras violência doméstica, violência gênero e violência intrafamiliar com o conectivo E com os seguintes vocábulos: homem, homossexual, homossexuais, lésbica(s), gays, criança, adolescente. As amostras de acórdãos organizadas foram analisadas para mapear os argumentos utilizados pelos dois Tribunais citados para afastar ou aplicar as medidas protetivas de urgência previstas na LMP às vítimas da violência doméstica, intrafamiliar e/ou íntima de afeto, considerando o gênero, o sexo e a idade dela 4. Elas demonstraram que as medidas protetivas de urgência previstas na LMP estão sendo aplicadas, por analogia in bonam partem, não somente as vítimas do gênero feminino (45% no TJMG e 24% no TJSP). No entanto, a maioria dos julgados (55% no TJMG e 76% no TJSP) ainda nega a aplicação das medidas protetivas de urgência às vítimas que não sejam do gênero feminino, sob a justificativa de que a LMP foi criada para proteger exclusivamente a mulher. Embora a LMP tenha sido criada para prevenir e punir a violência doméstica, familiar e/ou íntima de afeto praticada contra a mulher no Brasil, observou-se que os referidos tribunais não aplicaram as medidas protetivas de urgência às próprias vítimas do gênero feminino (23% no TJMG e 49,5% no TJSP), quando eles não constataram a hipossuficiência ou vulnerabilidade da mulher violentada, a existência de violência de gênero ou do estereótipo mulher adulta cujo agressor é o homem. De acordo com o TJSP, por exemplo, quando as vítimas eram crianças ou adolescentes do sexo feminino, a não aplicação da LMP (61% e 71%, respectivamente) deu-se devido (i) a 4 Não somente a vítima do gênero feminino. 4
vulnerabilidade da vítima não advir de uma violência de gênero, mas sim da sua pouca idade ou (ii) porque a LMP é destinada apenas às mulheres adultas, não alcançando crianças e adolescentes do sexo feminino, as quais já possuem proteção do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Contudo, a própria LMP, em seu artigo 2º, assegura a aplicação deste instrumento legal a toda a mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião. Ademais, a aplicação de um diploma legal não impede a aplicação de outro, desde que não haja conflito de normas entre eles, conforme prevê o artigo 13 da LMP, podendo um preencher as lacunas existentes no outro e, dessa forma, proteger integralmente a mulher. Concluiu-se que as medidas protetivas de urgência previstas na LMP podem ser aplicadas à vítima hipossuficiente ou em situação vulnerável no ambiente doméstico ou intrafamiliar, independentemente do seu gênero, sexo ou idade. Referências BARSTED, Leila Linhares. Lei Maria da Penha: uma experiência bem-sucedida de advocacy feminista. In: CAMPOS, Carmem. Hein de. Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 13-37.. Lei 11.340 de 07 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do 8 o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm>. CALAZANS, Myllena; CORTES, Iáris. O processo de criação, aprovação e implementação da Lei Maria da Penha. In: CAMPOS, Carmem. Hein de. Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 39-63. DEBERT, Guita Grin; GREGORI, Maria Filomena. Violência de gênero: novas propostas, velhos dilemas. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.23, n. 66, fev. 2008, p. 165-211. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v23n66/11.pdf> Acesso em: 08 de ago. de 2016. LIBARDONI, Marlene. Fundamentos teóricos e visão estratégica da advocacy. Revista Estudos Feministas, CFH/CCE/UFSC, v. 8, n. 2, p. 167-169, 2000. PASINATO, Wânia. Avanços e obstáculos na implementação da Lei 11.340/2006. In: CAMPOS, Carmem. Hein de. Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 119-142. 5
PIOVESAN, Flávia; PIMENTEL, Sílvia. A Lei Maria da Penha na perspectiva da responsabilidade internacional do Brasil. In: CAMPOS, Carmem. Hein de. Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 101-118. ROCHA, Lourdes de Maria Leitão Nunes. Violência de gênero e cumprimento da lei no Brasil: atuação do campo jurídico. In: ALMEIDA, Suely Souza de (org). Violência de Gênero e Políticas Públicas. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2007, p. 189-212. The application of urgent protective measures stated in the Maria da Penha Law not only for the legal category "woman : analyzing the decisions of Minas Gerais and Sao Paulo Courts of Justice Abstract: This study analyzed the main arguments used by Minas Gerais and São Paulo Courts of Justice to apply or not apply the protective measures provided by Maria Penha Law (LMP), considering the gender, sex and age of the victim in a situation of domestic, family and/or intimate partner violence. The feminist and gender theories which tackle on gender asymmetries in the Brazilian patriarchal society were discussed, as well as how these inequalities reflect in the assurance and enforcement of women s human rights. A literature review was performed to help understand the conception of the Maria da Penha Law, the challenges faced to legal interpretation and practical application of the law and the activity of the feminist advocacy in the struggle for gender equality and Law s creation. The samples of judgments were collected from the websites of Minas Gerais and São Paulo Courts of Justice, and they showed that the urgent protective measures provided by LMP are being applied in analogy in bonam partem not only for female gender victims (45% at the TJMG and 24% at the TJSP). The Courts have not been enforced the protective measures for the female gender victims (23% at the TJMG and 49,5% at the TJSP), when it was not realized the vulnerable situation of the woman, any gender violence or the stereotype adult woman whose aggressor is a man. Keywords: Maria da Penha Law, Legal Feminist Theories, Judicial Interpretation, Gender, Intersectionallity. 6