A OPERAÇÃO DE REFERÊNCIA NO ATO DE AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM

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A OPERAÇÃO DE REFERÊNCIA NO ATO DE AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM Carmem Luci da Costa Silva * A reflexão que apresento neste texto sobre a operação de referência no ato de aquisição da linguagem inicia com uma passagem de Ferdinand de Saussure, presente no capítulo Analogia e Evolução, do Curso de lingüística geral: A língua é um traje coberto de remendos feitos de seu próprio tecido (Saussure, 1916/2000, p.200). Relaciono essa citação aos dois princípios da língua apontados pelo mestre genebrino nos Escritos de lingüística geral: continuidade e mutabilidade. Esses dois princípios, a meu ver, são constitutivos da aquisição da linguagem, já que a criança, a cada vez que está na enunciação, marca seu movimento na língua, mas um movimento que, como diz Saussure (2002, p.136), em momento algum, chega a entrar em conflito com a unidade da língua. Considerando esses dois princípios saussurianos como constitutivos da aquisição da linguagem, reflito sobre esse processo a partir do ponto de vista da Teoria Enunciativa de Émile Benveniste, linguista que segue os rastros de Saussure. A partir dessa perspectiva, mostro os deslocamentos enunciativos realizados pela criança para produzir referências no discurso para o outro da alocução e se constituir, de modo singular, como um sujeito falante de sua língua materna. A análise que realizo da referência atualizada no discurso no ato de aquisição da linguagem ocorre a partir da verificação do diálogo de Francisca (FRA) com sua tia, transcrito abaixo: Data da entrevista: 10-10-2002 Idade da criança: 2;00.05 Situação: FRA está na casa da avó e da tia (CAR), brincando com uma boneca e dialogando com CAR. Comentário: FRA observa a boneca, que deslizou no chão. FRA: caiu CAR: caiu, o nenê tá preguiçosu né? FRA: ãh? CAR: o nenê só qué dormi FRA: é CAR: essi nenê! Com: FRA assegura a boneca, retirando-a do chão. FRA: çosu, ai guiçosu CAR: é preguiçosu? [= risos] FRA: guiçosu CAR: porque ele é preguiçosu? FRA: XXX ai qué col CAR: hum? Qué cólu? [= risos] FRA: é A enunciação, considerada como o colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização (Benveniste, 1970/1989, p.82), fundamenta-se na noção de ato que coloca em cena locutor, alocutário e referência. Ao estudar a linguagem da criança no quadro teórico enunciativo de Émile Benveniste, concebo a aquisição da linguagem como um ato de enunciação e a enunciação como uma estrutura de aquisição * Doutor em Estudos da Linguagem. Professora do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: clcostasilva@hotmail.com 88

da linguagem que comporta os sujeitos (a criança e o outro) e a língua, constituindo o dispositivo eu(criança)-tu(outro)/ele (referência). Enquanto realização, a enunciação pode se definir, em relação à língua, como um processo de apropriação do locutor. Nessa apropriação, implanta o outro diante de si e expressa certa relação com o mundo, pois a condição mesma dessa mobilização e dessa apropriação da língua é, para o locutor, a necessidade de referir pelo discurso, e, para o outro, a possibilidade de coreferir... (Benveniste, 1970/1989, p.84). Como ocorre a apropriação da língua por Francisca para referir em seu discurso e possibilitar ao outro co-referir? A metáfora saussuriana que associa a língua a um traje permite-me estabelecer a seguinte relação: se a enunciação é um processo individual de apropriação da língua, enunciar é vestir um traje com remendos costurados singularmente pelo próprio locutor. Dessa relação levanto os seguintes questionamentos: De que remendos se vale Francisca para vestir seu traje? Como Francisca costura seu traje? Essas são perguntas que pretendo responder com a análise do fato enunciativo apresentado. A enunciação, ao supor a conversão da língua em discurso (Benveniste, 1970, p.83) 1, aponta para o mecanismo da produção, que é o da verificação de como o sentido se forma em palavras. É esse processo de semantização da língua que coloco em relevo para pensar os movimentos de constituição de referência no discurso da criança. Do ponto de vista enunciativo, os deslocamentos da criança no discurso apresentado mostram a seguinte lógica: a criança enuncia X, em que X é: a) remetido à situação de enunciação, responsável pela atribuição de referência; b) formado por unidades que estão em relação entre si; c) constituído por operações de constituição/integração dessas unidades e d) constituído por ajustes de sentido e de forma das referências produzidas na enunciação de eu e de tu. O primeiro ponto a destacar nessa lógica é a de que a intersubjetividade é inseparável da atribuição de referência. De fato, a constituição da referência pela criança está na dependência do movimento de enunciação/co-enunciação, já que enunciar é sempre co-enunciar; referir é sempre co-referir. Nesse caso, o traje é costurado pela criança e pelo outro da sua alocução, lugar em que o tesouro da língua está depositado. O segundo ponto sobre o qual reflito diz respeito às operações de constituição e integração, que me parecem ligadas às faculdades de associação e de co-ordenação, as quais, segundo Saussure, desempenham o principal papel na organização da língua enquanto sistema (Saussure, 1916/2000, p.21). De fato, para estar no simbólico de sua língua materna, a criança precisa entrar cada vez mais na estrutura relacional da língua, a qual está desde sempre submetida, costurando forma e sentido. Nesse caso, a reciprocidade entre os níveis semiótico (língua enquanto estrutura de paradigma) e semântico (enunciação enquanto estrutura sintagmatizada) é a responsável pela presença da criança na linguagem. Isso porque suas formas enunciativas produzidas têm sentido a partir de seus empregos na frase, sentido este ajustado na relação enunciativa constituída por eu e por tu, em que o alocutário ressignifica o sentido da forma enunciativa (do nível semântico) do locutor (criança) com uma forma da língua (do nível semiótico). No diálogo apresentado, o outro da alocução, ao se constituir como locutor, apropria-se da língua para dar continuidade à enunciação caiu da criança de 1 Capítulo O aparelho formal da enunciação, editado originalmente em Langages, Paris, Didier, Larousse, n.17, março de 1970. A publicação brasileira integra o livro Problemas de lingüística geral II (1974/1989) em seu capítulo 5. 89

dois modos: 1) repetindo a forma da criança caiu e, desse modo, atestando um batismo a essa forma como pertencente à língua; 2) sintagmatizando novas formas: o nenê tá preguiçoso né? As novas formas sintagmatizadas são motivos para a criança apresentar sua dúvida: ãh? E o outro da alocução continua sintagmatizando novas formas: o nenê só qué durmi. A criança concorda com o dizer do outro com a forma é, para, em seguida, agarrar a boneca e enunciar as formas sosu, ai guiçosu. Se o sentido da frase está na totalidade da ideia percebida por uma compreensão global, a forma se obtém pela dissociação analítica do enunciado processada até as unidades semânticas, as palavras (Benveniste, 1967/1989, p.232) 2. Por isso, considero fundamental, na operação de referência do ato de aquisição da linguagem, a presença das relações de dissociação e de integração. De fato, para Benveniste (1962/1995) 3, a forma de uma unidade consiste na capacidade de dissociação em constituintes de nível inferior, enquanto o sentido na capacidade de integração, em uma unidade de nível superior. É justamente a apreensão dessa dupla capacidade da língua que possibilita à criança engendrar as formas para produzir referências no discurso, como vemos nas modificações das formas enunciativas sosu e guiçosu. Nesse caso, forma e sentido aparecem como propriedades conjuntas, necessárias, simultâneas e inseparáveis no funcionamento da língua. As possibilidades de dissociação e de integração estão necessariamente relacionadas à associação com outras formas no paradigma da língua e à combinação na ordem sintagmática. Retomando a passagem de Saussure, a criança está remendando e costurando seu traje. No entanto, a costura que realiza somente é possível a partir do tecido da língua. Após a criança enunciar sosu e guiçosu, novamente o outro da alocução traz a forma autorizada pela língua, com a seguinte indagação: por que ele é priguiçosu? E a resposta vem na sequência: porque qué cól. A dúvida sobre o sentido da forma priguiçosu parece ter sido desfeita na enunciação e os trajes do outro e da criança passam a assemelhar-se. Nesse vai e vem de formas e de sentidos, a criança, pela língua-discurso, constrói uma semântica particular, produzindo estruturas no uso, que se convertem em formas da língua na relação enunciativa constituída por eu e por tu. É pelo sentido e pela referência que a frase se torna analisável para o locutor, permitindo-lhe apreender o signo a partir do sentido constituído pelo emprego da palavra na frase, que é criação indefinida, variedade sem limite, é a própria vida da linguagem em ação (Benveniste, 1962/1995, p.139). Como unidade do discurso, a frase tem na referência sua propriedade fundamental, já que enunciar é falar de. Como afirma Lichtenberg (2006, p.133), para que a língua possa ser interpretada por quem a utiliza é necessário que ela signifique a situação enunciativa, um certo mundo relativo a eu-tu-aqui-agora que se revela na frase. O terceiro ponto que destaco diz respeito aos ajustes de sentido produzidos no diálogo constitutivo da enunciação de eu e de tu. De fato, o traje da criança é costurado com os remendos realizados também pelo outro da sua alocução, que detém grande parte do tecido que compõe a roupa. As formas enunciativas do locutor-criança atestam 2 Capítulo A forma e o sentido na linguagem, publicado originalmente em Le Langage II (Sociétés de Philosophie de langue française, Actes du XIIIe Congrès, Genève, 1966) Neuchâtel, La Baconnière, 1967. A publicação brasileira integra o livro Problemas de Lingüística Geral II (1974/1989) em seu capítulo 15. 3 Capítulo Os níveis da análise lingüística, publicado originalmente em Proceedings of the 9th International Congress of linguists, Cambridge, Mass., 1962, Mouton & Co., 1964. A publicação brasileira integra o livro Problemas de Lingüística Geral I (1966/1995), em seu capítulo 10. 90

um saber sobre a língua que está em mutabilidade como diria Saussure, no entanto essa mutabilidade inclui a unidade da língua, o que permite ao outro ajustar a relação forma-sentido. É por aí que o locutor-criança, produzindo os sentidos com o seu alocutário na enunciação, constitui as formas da língua na sintagmatização do discurso. Isso faz do lugar de enunciação concedido pelo outro à criança a condição de ela estar na língua. As questões aqui tratadas permitem-me responder ao seguinte questionamento: como uma teoria enunciativa de aquisição da linguagem explica a passagem da criança de não-falante a falante de sua língua materna? A resposta à pergunta considerará três aspectos: a unidade de análise, o nível da análise e a questão desenvolvimental. Esses três aspectos estão entrelaçados na explicação que uma teoria enunciativa pode dar às passagens que ocorrem no ato de aquisição da linguagem, pois, como mostra o recorte enunciativo apresentado neste estudo, as mudanças na relação da criança com a língua processam-se no mesmo tempo e espaço de enunciação. Como explicar essa mudança pela noção de estágio, já que a criança está na mesma fase, ou seja, tem a mesma idade? Que mudanças poderiam ser explicadas? No léxico, na fonologia, na morfologia, na sintaxe? A escolha de uma unidade do léxico talvez me encaminhasse a explicar como a criança adquire uma forma nova: preguiçoso. Já a escolha de uma unidade do nível fonológico talvez me levasse a explicar por que a criança omite segmentos, troca segmentos, sustentando essas modificações via resultados de outras pesquisas para mostrar que a criança está em um dado estágio de aquisição fonológica. Se a escolha recair no nível sintático, possivelmente minha explicação teria de mostrar a passagem de enunciados de uma palavra (caiu/sosu/guiçosu) para enunciados de múltiplas palavras (ai qué cól...). Do ponto de vista morfológico, poderia mostrar as marcas de tempo nos verbos cair e querer. Ora, tudo isso acontece em um mesmo dado. Por isso, retomo a citação saussuriana de que A língua é um traje coberto de remendos feitos de seu próprio tecido para pensar os princípios de continuidade e mutabilidade na aquisição da linguagem, já que a criança está em um movimento na língua em que, como diz Saussure (2002, p.136), tudo está ali. Se a enunciação é apropriação da língua por um locutor, trata-se do fato de que a criança se apropria de toda a língua (tem a sua disposição todos os níveis e unidades). Nesse caso, ao se eleger um ponto de vista enunciativo para tratar da aquisição da linguagem, não se elege a priori um nível de análise nem uma unidade de análise, porque está em questão o modo pelo qual as formas linguísticas da enunciação se diversificam e se engendram para produzir sentido a cada ato de enunciação. Assim, não busco, nas análises da fala da criança, unidades determinadas a priori, mas me deixo interrogar pelas enunciações da criança, que me desafiam a buscar, no aparato teórico-metodológico da Teoria da Enunciação de Émile Benveniste, a lógica relacionada aos movimentos singulares da criança na estrutura enunciativa. Foi essa lógica singular que busquei explicar com o fato enunciativo de Francisca. Além disso, as questões apontadas fazem-me distanciar de uma concepção desenvolvimental de aquisição de linguagem, visto todas as formas da língua estarem, desde sempre, implicadas nas relações enunciativas de eu e de tu. Na verdade, o que a criança mostra é a apreensão particular de todo o tecido da língua para produzir sentidos sempre novos a cada ato enunciativo, pois, como diz o mestre genebrino, ao explicar a criação de formas analógicas, cada inovação será uma nova aplicação de elementos fornecidos pelo estado anterior da linguagem (Saussure, 2002, p.140). Ora, a inserção 91

do discurso no mundo via enunciação está ligada ao presente inerente à enunciação, que se renova a cada produção do discurso, delimitando por referência interna o que vai se tornar presente e o que já não o é mais. Nessa perspectiva, a aquisição não pode ser vista como evolução, conforme uma perspectiva desenvolvimentista, mas como uma apreensão, visto a criança, ao mesmo tempo em que constitui a língua com o outro, ser constituída pela estrutura da língua, em que cada ato de enunciação, ao inserir seu discurso no mundo, é marcado por uma nova relação com a língua e com o outro. Dessa maneira, cada discurso enunciado pela criança na sincronia traz, simultaneamente, a diacronia, já que o estado atual de língua traz o estado anterior. Assim, a sincronia está relacionada ao presente inerente à enunciação e a diacronia à renovação de que fala Benveniste a cada produção de discurso. Cada ato enunciativo carrega as marcas de atos enunciativos anteriores, o que faz com que o locutor (criança), na história de suas enunciações, constitua a língua e, concomitantemente, seja por ela constituído. Nesse caso, cada locutor possui uma história de enunciações, por meio da qual constitui sua língua materna e o sistema de representações de sua cultura, estabelecendo-se, desse modo, como sujeito de linguagem. Movimentando-se da enunciação para a língua e da língua para a enunciação, o sujeito da aquisição da linguagem instaura-se no funcionamento referencial e intersubjetivo da linguagem. Mas como se dá esse movimento? A expressão de Benveniste de que todo homem inventa a sua língua e a inventa durante toda a sua vida permite-me pensar que todo homem está desde sempre mudando sua relação com a língua e que o desenvolvimento da linguagem não é próprio da criança. Nesse caso, tanto o locutor (criança) quanto seu alocutário estão em uma estrutura de enunciação em que ambos se modificam. No entanto, mesmo que considere que a cada ato de enunciação todo homem modifica sua relação com a língua, não posso deixar de considerar o fato de que, na aquisição da linguagem, não ocorre somente uma modificação, mas preenchimentos de algo que falta. É o momento em que o tecido para compor o traje língua de que fala Saussure é, ao mesmo tempo, escolhido e imposto. Nesse caso, é o modo como cada locutor costura seu traje que está em questão, porque interessa verificar como a criança tece sua roupa, ou seja, como, singularmente, apropria-se de sua língua materna. Ora, esse modo é único! Uma teoria enunciativa não considera a noção de estágio justamente porque a própria noção de enunciação impossibilita conceber a repetibilidade e a generalidade, fenômenos que, de certa forma, sustentam a concepção de fases de aquisição. De fato, para que se diga que a criança está em determinado estágio, torna-se necessário levar em conta a recorrência de formas e mecanismos da língua, assim como a presença de tais formas e mecanismos em outras crianças de faixa etária semelhante em uma amostra representativa. Já a enunciação situa-se no terreno da irrepetibilidade, visto que, a cada vez que a língua é enunciada, o tempo (agora), o espaço (aqui) e as pessoas (eu e tu) são únicas e singulares. Por isso, uma análise enunciativa não generaliza os seus resultados, porque a especificidade do tempo, do espaço e dos sujeitos aí incluídos permite conceber o que há de singular na aquisição da linguagem para o sujeito em questão. Nesse caso, observo os movimentos de anterioridade/posterioridade em uma dependência lógica, não cronológica. Embora possa prever determinados deslocamentos como constitutivos de toda criança na estrutura da enunciação, tais como os vinculados à operação de referência, concebo que o modo como cada criança realiza esses deslocamentos seja particular, porque cada ato 92

de aquisição da linguagem põe em cena a singularidade de cada sujeito na estrutura da enunciação, em que os sentidos e formas produzidas constituem-se no próprio ato. O eu, de um ponto de vista da aquisição considerado a criança, desloca-se em uma estrutura enunciativa, que comporta o tu (outro), o ele (língua), sendo constituído pela língua-discurso ao mesmo tempo em que a constitui. Considerar a expressão língua-discurso implica pensar as regularidades do sistema linguístico no quadro da singularidade da enunciação. Implica considerar um tecido compartilhado (mecanismo da língua) para a costura de um traje único e particular, a língua materna engendrada por cada sujeito falante. O ato de aquisição da linguagem é o que permite que costuremos nossos trajes, desfilando por aí nosso estilo de vestir (nossos discursos). O outro da alocução da criança é o lugar do tesouro, onde estão depositados as linhas, as agulhas e o próprio tecido. O modo como esse outro vai abrindo essa caixa de tesouro para a criança é fundamental, pois é nesse lugar que ela pode costurar sua própria roupa. Na enunciação, segundo Benveniste (1970/1989), é preciso considerar o ato que instancia locutor e alocutário; a situação em que se realiza, a partir da qual o locutor produz referência, e os instrumentos de realização (os caracteres da língua). Retomando a metáfora saussuriana, parece-me que a explicação do processo de aquisição da linguagem pela criança por um ponto de vista enunciativo requer a observação do modo como a criança costura o seu traje (a sua língua materna) a partir de um tecido que lhe pré-existe (o mecanismo da língua compartilhado). A escolha que a criança faz da cor do tecido, do tipo de linha e de agulha (os instrumentos e os caracteres da língua) para tecer a sua vestimenta (seu discurso) e o modo como engendra os remendos para compor essa roupa parecem ser aspectos fundamentais a serem considerados por um pesquisador enunciativo de aquisição da linguagem. Referências BENVENISTE, Émile (1974). Problemas de lingüística geral II. Campinas, SP: Pontes, 1989. BENVENISTE, Émile (1966). Problemas de lingüística geral I. Campinas, SP: Pontes, 1995. DUFOUR, Dany-Robert. Mistérios da trindade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2000. LICHTENBERG, Sônia. Sintaxe da enunciação: noção mediadora para reconhecimento de uma lingüística da enunciação. Tese de doutorado. Porto Alegre: UFRGS, 2006. SAUSSURE, Ferdinand. (1916) Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 2000. SAUSSURE, Ferdinand. Escritos de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 2002. SILVA, Carmem Luci da C. A instauração da criança na linguagem: princípios para uma teoria enunciativa em aquisição da linguagem. Tese de doutorado. Porto Alegre: UFRGS, 2007. SILVA, Carmem Luci da C. A criança na linguagem: enunciação e aquisição. Campinas, SP: Pontes Editores, 2009. 93